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Euroceticismo

Consumo de pescado em queda na Espanha, guerra na Ucrânia, dificuldades pós-Brexit e restrições da política pesqueira comum acendem alerta no velho continente

Javier Garat Pérez é um dos maiores porta-vozes da indústria pesqueira global e anda bastante cético sobre os rumos do setor. A única concessão ao ceticismo que ele fez em entrevista exclusiva à Seafood Brasil foi uma celebração discreta da assinatura do acordo BBNJ, ou Tratado do Alto-Mar, em março. “Depois de intensas negociações, chegou-se a um acordo que conseguiu, entre outras coisas, conscientizar os negociadores sobre a importância das organizações regionais de pesca existentes e a gestão pesqueira.”

A defesa das Organizações Regionais de Ordenamento Pesqueiro (OROPs) é uma das principais bandeiras deste espanhol, presidente da Coalizão Internacional das Associações de Pesca, secretáriogeral da Confederação Espanhola de Pesca (Cepesca) e também presidente da Associação de Organizações Nacionais de Empresas de Pesca da União Européia (Europêche). Mestre em Direito Internacional, Pérez é uma presença frequente nos principais fóruns internacionais relativos à pesca e conservação dos oceanos, mas sempre na defesa do ponto de vista da pesca legal reportada de acordo com a legislação europeia.

Na entrevista a seguir, ele critica e analisa as consequências para a atividade pesqueira em águas europeias à decisão do Reino Unido de sair da União Europeia, que também sente os impactos das restrições determinadas pela política pesqueira comum do bloco, cada vez maiores. Na outra ponta, ele também alerta para a queda no consumo de pescado na Espanha, país com os maiores índices de ingestão de produtos aquáticos do continente. “O consumo destes produtos diminuiu 25% desde 2008, o que preocupa pelo impacto no setor e na saúde dos espanhóis”, sublinha.

1 Como é a sua atuação nestas entidades regionais Cepesca e Europêche?

Na Cepesca, o meu papel é defender os interesses das associações de armadores e organizações de produtores, que representam cerca de 800 empresas e 900 embarcações que pescam tanto nas águas da União Europeia, como nas águas de países terceiros e no alto mar.

Defendemos os interesses dos associados par a que sejam o mais competitivos possível e trabalhem de forma responsável e sustentável , com foco na conservação da biodiversidade, no uso sustentável dos recursos naturais e na segurança alimentar. No Cepesca, temos um diálogo com os diferentes órgãos do Governo, o Senado, os demais stakeholders, como as ONGs, os consumidores, os sindicatos, entre outros.

Já na Europêche, defendo os interesses das organizações europeias de pesca na União Europeia e promovo o diálogo com a Comissão Europeia, com o Parlamento Europeu, com o Comitê Econômico e Social Europeu, entre outras entidades. Nós acreditamos que na União Europeia temos os padrões mais altos do mundo em todos os sentidos, conservação, social, laboral, segurança, sanidade etc. E isso só aumenta. Um plano recente fechou 87 zonas de pesca na Espanha, França, Portugal e Irlanda, na teoria, para proteger os ecossistemas marinhos. Mas na prática, foram proibidas todas as artes de fundo, como o arrrasto, espinhel, emalhe. No entanto, proibir o espinhel de fundo significa proibir uma pesca de anzol, que causa impacto mínimo no fundo do mar.

2 Que impacto teve o Brexit na pesca europeia?

A saída do Reino Unido da União Europeia foi um erro grave. No campo das pescas, era compreensível que os pescadores britânicos quisessem deixar a União Europeia por causa da Política Pesqueira Comum. No entanto, isso gerou uma série de problemas para as pescarias europeias, que tiveram que se adaptar à nova realidade.

Mitigar os impactos do Brexit tem sido um processo longo e difícil. Acordos tiveram de ser negociados entre a União Européia e o Reino Unido para garantir o acesso às águas e aos recursos pesqueiros, mas esses acordos tiveram certas limitações e restrições que afetaram a pesca europeia.

A União Europeia teve de abdicar de 25% das suas possibilidades de pesca nas águas do Reino Unido, o que teve consequências graves para alguns países como a Irlanda, Dinamarca, Holanda e França. Além disso, a frota bacalhoeira de alguns países está sofrendo um impacto significativo. Também houve caos administrativo no início, pois a alfândega não estava preparada para o aumento da papelada envolvida no trânsito de mercadorias do Reino Unido.

As questões da pesca foram as últimas a serem encerradas nas negociações do Brexit. O governo britânico usou os aspectos emocionais da pesca para justificar sua saída da UE, gerando nacionalismo e expectativas entre os cidadãos que posteriormente não foram atendidas. A União Europeia teve de abdicar das quotas de bacalhau que não eram pescadas no Reino Unido, mas na Noruega e Rússia, o que teve graves consequências para alguns países da UE. Além disso, as possibilidades de pesca têm agora de ser negociadas recurso a recurso com a UE, como se o Reino Unido fosse apenas mais um país terceiro.

3 O setor pesqueiro valorizou e reconheceu como “histórico” o Acordo Internacional sobre a Conservação e Uso Sustentável da Diversidade Biológica Marinha de áreas além da jurisdição nacional (BBNJ). Qual é a sua visão a respeito?

Após intensas negociações, chegou-se a um acordo que, entre outras coisas, conscientizou os negociadores sobre a importância das OROPs pesqueiras regionais existentes e da gestão pesqueira. Além disso, a pesca e o pescado foram deixados de fora das negociações - consta no texto que as competências dessas organizações serão respeitadas e os estudos de impacto ambiental serão coordenados com elas. Estas OROPs mostram que já existem instrumentos legais, corpos científicos e organizações multilaterais nas quais os governos chegam a acordos para gerir a pesca em alto mar em função das diferentes espécies existentes.

O acordo foi pressionado por algumas fundações norte-americanas que buscavam a proibição da pesca em alto mar, mas essa medida foi evitada, reforçando o papel das organizações pesqueiras regionais e dando aos cientistas mais meios para realizar seu trabalho. Ficou claro que os poderes dessas organizações não serão prejudicados de forma alguma e que em nenhum caso, a pesca poderá fazer parte das negociações sobre recursos genéticos marinhos.

4 Há diversas questões sensíveis no Atlântico Sul, como capturas ilegais de diversos países dentro das

200 milhas náuticas da Argentina, por exemplo. De que forma as instituições que você representa podem colaborar com outras locais, como a OPRAS, por exemplo?

A discussão sobre a pesca também tem a ver com a soberania dos países. Às vezes, argumentos ambientais são usados, mas há outras questões por trás deles. A partir da década de 1970, quando foram estabelecidas as zonas econômicas exclusivas, as relações dos países com países terceiros mudaram no sentido de que eles não podiam mais pescar nessas águas, o que exigiu firmar acordos com esses países terceiros. Isso possibilitou, por exemplo, a criação de sociedades mistas entre empresas espanholas e argentinas. Algumas foram um grande êxito e funcionam até hoje. Já outras não deram certo.

Instituições locais, como a Capeca, estão em diálogo com a frota europeia para saber como ocorre a presença dela e qual a sua atuação na questão das duzentas milhas. Na minha opinião, existe uma colaboração muito boa entre empresas européias e organizações argentinas. Só não avançamos no sentido de ter uma organização regional por conta das Ilhas Malvinas (Falkland, para os ingleses). Este tem sido o freio para criar uma Organização Regional da Pesca ali. O Brasil também pertence à OPRAS e Alpescas e está em interlocução constante com a IFCA.

5 O consumo de pescado está em queda na Espanha. A que se deve esta mudança no comportamento do consumidor local, que sempre ingeriu muito pescado?

Desde o ano de 2008, a tendência do consumo doméstico de produtos da pesca é descendente. Especificamente, o consumo de pescado caiu cerca de 25% desde 2008 até o presente , número esse que é muito preocupante não só pelo impacto que pode ter no setor, mas sobretudo, pela saúde dos espanhóis. O Dr. Guillermo Aldama, cardiologista da Universidade de La Coruña, é um médico especializado nestas questões e apaixonado pelo consumo de peixe e pelos benefícios que traz para a população em geral. Ele disse que se os padrões de consumo que tínhamos até poucos anos atrás não mudassem, no ano 2030, seríamos o país mais longevo do mundo , isto é, viveríamos mais tempo que os japoneses. Mas é claro que isso se mantivéssemos os padrões de alimentação saudável que temos hoje, com a dieta tradicionalmente conhecida como mediterrânea.

Isso vem mudando por vários fatores, como os hábitos de consumo dos cidadãos, por exemplo. Aqui na Espanha, sempre se vendeu peixe inteiro ou em filés, mas sempre com algum preparo complementar em casa. Como não temos mais tanto tempo para se dedicar a cozinhar, isso foi se perdendo. Além disso, desde 2008, não temos mais o FROM, um fundo de regulação dos mercados que realizou campanhas promocionais muito importantes sobre a importância do consumo de pescado, consumo responsável e respeito pelos tamanhos mínimos - essas campanhas tiveram grande notoriedade na Espanha, seja na televisão, na rádio ou na mídia em geral. Com cerca de 10 milhões de euros por ano de investimento, isso gerou um impacto considerável junto dos consumidores.

Nós calculamos que na Espanha, destinam-se cerca de 12 bilhões de euros anuais de gasto sanitário por enfermidades associadas à má alimentação. Por este motivo, estamos pedindo a redução do IVA (Imposto de Valor Agregado), como foi feito com outros produtos, para que os pescados e frutos do mar possam ser mais acessíveis aos consumidores e tenham ao menos 10% menos de preço. Estamos convencidos de que o impacto nos consumidores que apostam por este consumo teria consequências muito positivas na saúde dos consumidores e, por tanto, uma redução considerável a médio prazo no gasto sanitário. Segundo o Dr. Aldama, de cada 100 euros, 97 são destinados à cura e só 3 são empregados na prevenção.

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