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Uma Identidade Plural | Fernando Pereira

“Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. (...) Esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.”

Fernando Pessoa

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As crises identitárias são muitas vezes como os sismos de baixa magnitude em terras vulcânicas. Passam por nós e nós por elas através dos anos, sem quase as sentirmos, muitas vezes até como se nunca nos tivéssemos cruzado, de tão inócuas e subtis que se revelam. Fazem afinal parte de um natural processo de crescimento, de uma insegurança latente e quase pueril, que permanece inclusive na idade adulta, em todo o seu percurso e ao longo da vida. Estas pequenas questões da identidade, acompanham-nos sempre, para sempre e nas nossas mais diversas circunstâncias.

Vejamos, por exemplo, aquele curioso fenómeno provocado em nós pela publicidade ou pelos mass media e que nos leva, em perfeito automatismo, impulsivamente, muitas vezes compulsivamente, a desejar e adquirir coisas que não necessitamos. Objetos tantas vezes inúteis, dispensáveis ou supérfluos, mas que subconscientemente nos fazem sentir outra pessoa. O que fazemos, enfim, para transmitir de nós uma ideia de maior sucesso, um estatuto que não nos pertence, uma imagem que não corresponde à real essência do que somos. Quantas figurinhas criamos, quantas personagens vamos fabricando, projetando a cada dia nos outros e que, sem pedir licença, usurpam no fim a nossa verdadeira identidade? Quantas vezes nos despimos de nós, abdicamos de nós, para sermos invariavelmente uma outra pessoa qualquer?

E que bom deve ser, em certos momentos da vida, “possuir” um carro de Ronaldo, o perfume de Banderas ou mesmo até o café e o charme de Sir George Clooney. De repente, somos pessoas importantes, reconhecidas socialmente a ganhamos confiança para enfrentar o mundo. Interessante fenómeno este, que se traduz afinal num jogo inocente, uma dança subtil entre

egos e alter-egos, cuja consequência é uma sequência inequívoca de equívocos de personalidade. Fazendo assim e muito bem, jus ao famoso “speech” de William Shakespeare: “all the world’s a stage, and all the men and women merely players.” Coisas do mundo e de todos os mundos, em todos os tempos.

Recordo por isso que, quando há décadas atrás iniciei as minhas deambulações pelo mundo da música e do espetáculo, enfrentei então alguns acrescidos problemas de identidade. Como se não bastassem os naturalmente resultantes do meu próprio crescimento e desenvolvimento enquanto persona, numa sociedade em grande transformação e cada vez mais exigente, tinha agora que lidar também com as questões de identidade derivadas da minha atividade profissional, enquanto cantor e performer.

Que fazer, que caminho seguir, que decisões artísticas tomar, quando aparentemente se possui um aparelho vocal que, segundo os entendidos e a experiência vivida, dava para cantar tudo e nos registos mais incríveis? Depois de tantos anos, desde criança, rigorosamente a brincar e a divertir-me com a voz, descubro de repente que as minhas apresentações levam milhares de pessoas ao delírio, que tenho agora uma carreira promissora pela frente e a enorme responsabilidade de me encontrar, em essência e enquanto artista, no meio daquela multidão de vozes e infinitas possibilidades musicais.

Deveria apostar em temas originais e ser mais um cantor convencional, a uma só voz? Deveria explorar o aparelho vocal único que Deus me deu e elevá-lo a todas as proezas possíveis ou impossíveis? Onde estava afinal a minha verdadeira identidade enquanto artista? E tem uma identidade artística que se definir irremediavelmente pela singularidade? Então e se eu fosse um cantor plural? Porque não poderia eu ser afinal isso tudo e cantar tudo, declamar, representar, imitar em grande estilo todas as vozes do mundo?

Numa sociedade em que todas as pessoas procuram “imitar” alguém, quase sempre dissimuladamente, pelos motivos mais fúteis ou no mínimo discutíveis, eu podia, assumidamente, fazer da imitação de grandes cantores o principal ingrediente de um espetáculo de excelência, um produto artístico absolutamente único e inimitável. E fazer também, humildemente, aquilo que mais gostava, que era divertir as pessoas, levar alegria e felicidade às pessoas. Citando P. T. Barnum, a incrível personagem de Hugh Jackman em The Greatest Showman: ”the noblest art is that of making others happy”. E eram já tantas as pessoas felizes e a divertir-se com esta arte original...

Entendi então definitivamente, que a minha identidade não se caracterizava pela singularidade. A minha identidade era toda essa pluralidade. E poderia depois fazer o que quisesse com o aparelho vocal. Não só criar o tal “espetáculo das vozes”, mas também usar essa capacidade especial de mudar e moldar a voz, para cantar originais em vários registos diferentes, com várias personalidades vocais diferentes, como se fossem de facto cantores diferentes a interpretar cada um dos temas.

“Sê plural como o Universo”, exortou-nos Fernando Pessoa. E se Pessoa materializou o conceito de heterónimo, com a genialidade da sua escrita, inventando outros “Pessoas”, eu poderia então materializar o conceito de “heterófono” criando as minhas diferentes fonias.

Confesso que volvidos tantos anos, vivendo estas crises de identidade vocal, sou ainda às vezes assaltado por dúvidas existenciais. Penso que se trata de algo natural, quando num exercício quase esquizofrénico, se guardam assim todas as “vozes” e sons na cabeça. Mas como diria o compositor Raul Seixas: “prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…” E o nosso caminho sempre se faz caminhando. No final, devemos pôr de lado todos os arquétipos e estereótipos, sejam eles sociais ou culturais, porque a verdadeira identidade somos nós, em cada um de nós.

A minha identidade sou Eu!

por Marco Silva

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