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Palavras, palavras, palavras
ELES SÃO OS CRIADORES DE UMA PARTE FUNDAMENTAL, INDISSOCIÁVEL, DA NOSSA MÚSICA. UM PAPO COM GRANDES LETRISTAS, QUE FALAM SOBRE SEU PROCESSO CRIATIVO E A IMPORTÂNCIA VITAL DOS DIREITOS AUTORAIS
Por Bruno Calixto, do Rio
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*Ilustrações de Reinaldo Lee
O ato criador de Carlos Rennó sempre começa literalmente no escuro - cenário perfeito para a buscada “iluminação”. Paulo Sérgio Valle vive um (ou muitos) personagens e coloca a melodia do parceiro na cabeça, remoendo-a até a letra tomar forma. Para Fausto Nilo, é imprescindível observar o que o criador dos acordes quer antes de “ajudar de modo sonoramente harmonizado” com palavras e frases. Uma imagem, uma cena, uma pessoa bonita disparam a torrente criativa de Antonio Cicero. Thiago Amud mistura um pouco de cada jeito anterior e forja, “da maneira mais conturbada possível”, seu método de compor.
O hábito de se sentar quase que diariamente em frente a uma folha de papel em branco – ou, vá lá, a um computador – levou esses artistas a comporem palavras para serem cantadas. Eles são alguns entre os incontáveis letristas que fazem da nossa canção uma das mais ricas do planeta. E conhecem, como ninguém, a importância dos direitos autorais, principalmente porque, em sua maioria, não sobem ao palco e, portanto, só contam com a própria obra como ganha-pão.
“Hoje em dia, como a vendagem de discos caiu muito, compor é a principal fonte de renda dos letristas que não cantam”, resume Cicero, mais de cem composições no currículo, a maior parte gravada pela irmã, Marina Lima. “É principalmente o letrista quem vive dos direitos autorais, sem dúvida a defesa deles nos é muito cara.”
Carlos Rennó crê que a consciência dessa dependência levou os letristas a um patamar diferente de envolvimento com a questão ao longo dos anos. Se, antes, muitos criadores deliberadamente evitavam pensar em “questões mundanas”, como a arrecadação, hoje eles participam ativamente do fortalecimento do sistema. “O empenho dos letristas tem sido importante na defesa dos direitos autorais”, analisa. “Dada a natureza do nosso trabalho, e a dependência de tais direitos, somos possivelmente os artistas em melhor condição de avaliar a qualidade da arrecadação e da distribuição. E posso atestar que ela evoluiu demais, graças também ao trabalho de associações como a UBC.”
Fausto Nilo descreve o nível de entrega necessário para que um autor que não atua também como intérprete viva da própria arte: “É, de fato, muito árduo o trabalho de construir um repertório que venha a produzir uma renda tal que possibilite um nível de vida compatível com as exigências de controle e tranquilidade para trabalhar com essa especialidade”. Nada que os assuste ou demova. Dotados de talento natural e beneficiados pela variedade quase ilimitada da música brasileira, esses autores se atiram no abismo de diferentes formas.
NO PRINCÍPIO É A DÚVIDA
“Antes de compor a letra, acontece uma dessas duas coisas: ou eu duvido da minha capacidade de criá-la ou, então, eu não tenho dúvida nenhuma; tenho certeza de que não serei capaz”, brinca o compositor, jornalista e escritor Carlos Rennó, 40 anos cultivando um solo fértil de criações e autor de “Escrito nas Estrelas” (com Arnaldo Black), clássico popular na voz de Tetê Espíndola.
Paulo Sérgio Valle adotou um método que lhe assegura força diante de cada novo desafio: ele “provoca” emoções, percorre um turbilhão delas. “Não digo que eu tenha vivido todas as histórias que contam minhas letras. Mas, no momento em que estou escrevendo, vivo tudo intensamente, como se estivesse acontecendo de fato.” Terminada a letra, Valle volta a se encontrar com o parceiro dos acordes para os ajustes finais, uma espécie de acertos de contas que deixa letra e melodia tinindo.
Depois de décadas de trabalho profissional na confecção de letras musicais, Fausto Nilo afirma estar certo de que suas fontes ainda são a rua e o imaginário das pessoas anônimas. “Nunca sou o personagem principal de minhas letras”, observa. “Tive chance de crescer e viver na rua, oportunidades de convivência com pessoas de classes sociais diferentes. Escrevo a partir da influência das próprias melodias de meus parceiros. Elas me provocam, me levam a pensar e a criar frases nas quais as palavras me ajudam a expressar coisas corriqueiramente indizíveis nas linguagens convencionais e que percorrem regiões em que meus ouvintes e eu nos encontramos.”
Antonio Cicero está sempre ligado. “Uma palavra que eu ouça por acaso, uma pessoa bonita, uma ideia, um livro que eu esteja lendo, uma notícia de jornal... Qualquer coisa pode ser o estopim (do processo criativo).” Como muitos outros letristas, ele prefere que a melodia, e não a letra, surja primeiro. “Ao fazer a minha parte, a poesia, penso no parceiro, no cantor, deixome inspirar pela melodia, pelo ritmo”, discorre. “O tempo de criação varia muitíssimo, pode ser rápido ou demorar muito… Mas uma coisa é certa: é sempre indolor.”
Para Thiago Amud é diferente. Aos 35 anos, e com parcerias acumuladas com bambas como Guinga, Francis Hime, Edu Kneip, Zé Paulo Becker, Thiago de Mello, Fernando Vilela, Thomas Saboga, Pedro Sá Moraes, Marcelo Fedrá e Sylvio Fraga Neto, a entrega não é sempre desprovida de tormento. “Às vezes, isso (o processo criativo) dura muito tempo. Dias, meses. Às vezes fico até febril”, comenta o autor, que também toca. “Já no palco só entram delícias. No palco, o pior já passou, é a hora da plenitude. E, mesmo quando as dores superam as delícias, algo me diz que isso é outro modo de alegria.”
UM BOM LETRISTA É...
O dono de uma vasta obra, o criador de “histórias” apreciadas e gravadas por intérpretes exigentes, o colecionador de parceiros de talento, o construtor que desafia o lugar-comum... Difícil conceituar um bom letrista com poucas palavras. Thiago Amud aventa outras: “qualidade intrínseca”. “A saber, (o bom letrista tem) originalidade do mote, capacidade de deslocamento do lugar-comum, capacidade de diálogo com a tradição, entoabilidade, caráter desafiante, poder encantatório etc. Se, no entanto, eu tiver que escolher uma entre as opções, escolherei vasta obra”, define.
Uma das facetas divinas do trabalho, lembra Fausto Nilo, é poder trabalhar com tantos estilos do rico repertório existente no Brasil. “Tenho que admitir que encontrei uma profissão – embora eu tenha outra que é o urbanismo – e que permaneço nela há 43 anos”, ele diz. Nilo tem cerca de 400 canções, muitas inesquecíveis, como “Amor Nas Estrelas” (com Roberto de Carvalho), “Astro Vagabundo” (com Fagner) e “Bloco do Prazer” (com Moraes Moreira). “Isso tudo é mais do que eu imaginava realizar. Ainda faço letras e gravo todos os anos.”
Na feliz percepção de Paulo Sérgio Valle, o que caracteriza um bom letrista é a capacidade de tocar o outro. “Nada é melhor do que ver as pessoas cantarem minhas letras como se fossem sua própria historia de vida. Vasta obra ou pequena obra dependem da capacidade de trabalho do autor. Isso não atesta o valor do letrista”, opina o artista, influenciado “pela sonoridade das palavras” de Ronaldo Bôscoli, para ele um dos compositores mais ilustres do Brasil.
Carlos Rennó, autor de aproximadamente 180 letras – incluindo versões para canções americanas –, insiste na entrega intensa, no escuro: “Um escuro no qual, ou do qual, não sei como, eu acabo arrancando – depois de procurar conscientemente – uma luz; ou a luz.”
O que, para ele, caracteriza um bom letrista não é, absolutamente, a vastidão de sua obra, seu dado quantitativo, mas o seu “quilate poético”. “Naturalmente esse fator tende a contribuir para que o criador seja gravado desejavelmente não por medalhões, mas por intérpretes bons, não raro seus próprios parceiros compositores-músicos”, crê. “Se eu continuo escrevendo, é sem dúvida pelo prazer final da realização, da luminosidade desse momento que não se dá senão como resultado do trabalho intenso a que me entreguei com sangue e neurônios, cabeça e coração. O meu prazer como criador é o prazer do difícil, tal como definido por Paul Valéry; prazer do artista mais esforçado que talentoso, como se definia o grande João Cabral de Melo Neto.”
CARLOS RENNÓ
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Compositor, jornalista e escritor. Em 1982, participou do festival MPB Shell (Rede Globo) com a composição “Outros sons” (com Arrigo Barnabé), interpretada por Eliete Negreiros. Em 1985, venceu o Festival dos Festivais (Rede Globo) com a música “Escrito nas estrelas” (com Arnaldo Black), defendida por Tetê Espíndola.
Influências: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, John Lennon, Bob Dylan, Cole Porter, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Luiz Galvão e Waly Salomão.
Parcerias: Arnaldo Black.
Quem mais o gravou: Tetê Espíndola.
Tem mais de: 180 letras.
As mais marcantes: “Pássaros na Garganta”, “A Europa Curvou-se Ante o Brasil”, “Escrito nas Estrelas”, “Façamos” (versão do clássico “Let's Do It”, de Cole Porter), “Todas Elas Juntas Num Só Ser” e “Tá?”.
ANTONIO CICERO
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Compositor. Poeta. Filósofo. Escritor. Por conta da atividade de seu pai, um dos fundadores do Instituto de Estudos Brasileiros e diretor do BID (Banco Internacional de Desenvolvimento), morou em Washington na adolescência. Formou-se em Filosofia. Sua primeira composição foi “Alma Caiada”, um poema musicado pela irmã Marina Lima quando ambos estudavam em Nova York, gravada em 1977 por Maria Bethânia. No ano de 1979, no disco “Simples Como Fogo”, que marcou a estreia de Marina, foram incluídas várias parcerias da dupla, tais como “Transas de Amor” e “Tão Fácil”.
Influências: Noel Rosa e Cole Porter.
Parcerias: Marina Lima, Adriana Calcanhotto, Arthur Nogueira, Lulu Santos, Orlando Moraes.
Quem mais o gravou: Marina Lima.
Tem mais de: 100 letras.
A mais marcante: “Fullgás”, com Marina Lima.
PAULO SÉRGIO VALLE
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Compositor e letrista. Formado em Direito pela antiga Universidade Estadual da Guanabara. Irmão do instrumentista, compositor e cantor Marcos Valle. Em 1961, começou a escrever letras para as músicas de Marcos, que, nessa época, integrava um trio composto ainda por Dori Caymmi e Edu Lobo. Dois anos depois, teve registrado seu primeiro trabalho como compositor, com a gravação de sua canção “Sonho de Maria” (com Marcos Valle) pelo Tamba Trio.
Influências: Ronaldo Bôscoli.
Parcerias: Marcos Valle, Herbert Vianna, Eumir Deodato, Eduardo Lages, João Donato, José Augusto, Roberto Carlos, Chico Roque, Ed Wilson, Hildon, Fabio, Egberto Gismonti, Roberto Menescal, Mauro Motta, Vanda Sá, Augusto Cesar, Reinaldo Arias, Edmundo Souto, Galdino Penna, Vinicius Cantuária e Hugo Belardi.
Quem mais o gravou: José Augusto. Em seguida, Marcos Valle e Roberto Carlos.
Tem mais de: 800 letras.
As mais marcantes: “Viola Enluarada”, “Preciso Aprender a Ser Só”, “Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim”, “Evidências”, “Essa Tal Liberdade” e “Samba de Verão”.
THIAGO AMUD
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Arranjador, violonista, compositor e cantor. O pai era músico. Começou a estudar violão aos 13 anos. Cursou um ano de Letras na Universidade do Estado do Rio e, a partir de 1999, bacharelado em Música Popular Brasileira na Universidade Federal do Estado do Rio, habilitando-se em Arranjo Musical. Em 1994, começara a compor. Venceu por cinco anos consecutivos (1995 a 1999) o Festival Estudantil de Música da Faculdade Hélio Alonso, no Rio. Parte do júri era formada por artistas como Paulinho da Viola, Elza Soares, Paulo César Pinheiro, entre outros.
Influências: Villa-Lobos, Debussy, Bartók, Dorival Caymmi, Noel Rosa, Tom Jobim, Luiz Gonzaga, Elomar, Guinga, Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, Björk, The Beatles, Jorge de Lima, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Tarkovsky e Fellini.
Parcerias: Guinga, Francis Hime, Edu Kneip, Zé Paulo Becker, Thiago de Mello, Fernando Vilela, Thomas Saboga, Pedro Sá Moraes, Marcelo Fedrá e Sylvio Fraga Neto.
Quem mais o gravou: Guinga.
Tem mais de: 120 letras.
As mais marcantes: “Sacradança”, “Madrêmana” e “Contenda”.
FAUSTO NILO
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Letrista. Arquiteto e urbanista com escritório em Fortaleza (CE), onde se fixou a partir da década de 1970. Iniciou a carreira como letrista profissional também naquela década, quando conheceu o Pessoal do Ceará, tendo escrito letras para Fagner, Belchior, Petrúcio Maia e Manassés. Em 1972, teve registrado pela primeira vez seu trabalho como compositor, com a gravação de “Fim do Mundo”, parceria com Fagner, por Marília Medalha.
Influências: Ataulfo Alves, David Nasser, Jacques Brel, Bob Dylan e Tom Waits.
Parcerias: Fagner, Moraes Moreira, Dominguinhos, Geraldo Azevedo, Robertinho de Recife, Ritchie, Roberto de Carvalho, Lulu Santos, Zé Ramalho, Severino Araújo e Chico Buarque.
Quem mais o gravou: Fagner.
Tem mais de: 500 letras.
As mais marcantes: “Pedras que Cantam”, “Pequenino Cão”, “Amor nas Estrelas”, “Bloco do Prazer”, “Pão e Poesia”, “Lua do Leblon”, “Retrovisor”, “Cartaz” e “Zanzibar”.