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M. Ventura Proteccionismo e livre mudança – A nova gestão jurídica da religião na Europa

III. Quarta sessão

“Os mecanismos jurídicos de luta contra as violações do direito à liberdade de religião e de convicção”

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Proteccionismo e livre-mudança – A nova gestão jurídica da religião na Europa.

Marco Ventura*

I.Prioridade da gestão de Estado e perspectivas europeias em 1989

Por ocasião da queda do muro de Berlim, em 1989, a protecção da liberdade de religião na Europa definia -se no espaço dum triângulo formado pelos três níveis jurídicos do Direito de Estado, do Direito Europeu e do Direito Internacional.

O Direito de Estado nacional encarregava -se, em cada país, da liberdade de religião na base duma tradição que envolvia um certo sistema de relações Igreja/Estado (separação, Direito Concordatário, Estado confessional, etc.), uma certa paisagem sócio -religiosa, uma arquitectura institucional específica (case law, Direito Institucional, federalismo e descentralização, etc.). Apesar da força crescente dos laços internacionais – europeus, especialmente – a gestão jurídica da religião baseava -se na prioridade da soberania do Estado nacional, esta mesma soberania vestefaliana que baseava a sua inspiração teórica e jurídica, do Estado nacional nascido das guerras de religião.

Em 1989, o Direito europeu apresentava -se dividido em dois: por um lado, o Direito Comunitário, encarregado da integração económica, mas reticente face aos direitos fundamentais; por outro lado, o Direito saído da Convenção europeia dos direitos do homem de 1950 nas suas aplicações jurídicas – pelos órgãos, a Comissão e o Tribunal de Estrasburgo – e políticas – o Conselho da Europa. A integração económica e a integração para os direitos do homem realizavam -se seguindo dois caminhos diferentes: a Comunidade europeia, nova figura de Direito, inédito na história das instituições, resumia um percurso

de integração pelo mercado, não implicando, senão muito timidamente, a dimensão sócio -política; por outro lado, a aplicação dos direitos fundamentais pelos órgãos de Estrasburgo – mas também, e é preciso não esquecer, pelo processo de Helsínquia, a CSCE e a OSCE – implicava uma integração para os direitos fundamentais bastante eficazes no fundo, mas ainda muito frágeis no que respeita a identidade das instituições implicadas e a harmonização das intervenções – particularmente a respeito da prioridade estática nacional e a margem de apreciação reservada ao Direito interno como se pôde constatar em Estrasburgo, no relatório Arrowsmith de 12 de Outubro de 1978 da Comissão dos Direitos do Homem.

Finalmente, o Direito Internacional parecia poder afirmar-se como protagonista num cenário mundial liberto da lógica dos blocos opostos. As Nações Unidas tinham a grande oportunidade de relançar as suas convenções (a Declaração de 1948, os pactos de 1966) que até aí tinham tido um papel essencialmente simbólico – basta pensar nos limites jurídicos do Comité dos direitos do homem instituído pelo Pacto relativo aos direitos civis e políticos de 1966 – e sobretudo inventar novas vias de protecção dos direitos fundamentais.

Em síntese, o triângulo Direito de Estado/Direito Europeu/Direito Internacional era fortemente desequilibrado: apesar dos avanços importantes do ponto de vista simbólico (Nações Unidas, Declaração de 1991, sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção), era no Direito interno que se determinava pelo essencial o tipo de protecção sobre a liberdade de religião, sobre a frente da nova época concordatária (Itália, 1984, landers alemães), novas leis sobre a liberdade religiosa (Espanha, 1980), do financiamento público da religião (debate sobre a liberdade escolar em França), do federalismo (na Bélgica) da reforma do sistema das Igrejas estabelecidas (established churches, na Inglaterra e na Suécia).

II. Crise da soberania Vestefaliana e competição entre a União europeia e os Estados membros.

Uma quinzena de anos após a queda do muro de Berlim, toda a interpretação da protecção da liberdade de religião na Europa se deve medir com o novo quadro social e jurídico.

No que concerne à sociedade, enfrenta -se um fenómeno religioso cada vez mais complexo no qual se acotovelam uma privatização marcada (dissociação entre pertença e crença, aparentemente selectiva, pluri -pertença), os desafios das comunidades muçulmanas, a penetração dos “novos movimentos religiosos”, o integrismo judeu e cristão, o regresso da teologia política.

Do ponto de vista jurídico, a dimensão do Direito Internacional ficou consideravelmente enfraquecido em consequência das crises determinadas pelos novos equilíbrios (globalização, nacionalismos, terrorismo, estratégia americana): da crise jugoslava às duas guerras no Iraque, do 11 de Setembro à

Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica falência de todas as tentativas de gestão participada e eficaz da globalização.

Em contrapartida, o direito europeu registou um avanço incontestável. O nascimento da União Europeia, em 1992, envolveu não apenas um processo político de abertura à sociedade, no cuidado de reduzir o défice democrático, mas também, e sobretudo, o pleno reconhecimento duma verdadeira protecção comunitária dos direitos fundamentais por meio dos tratados (incluída a Carta de Nice e o processo de elaboração duma Constituição europeia), do Direito derivado e da jurisprudência do Tribunal de Luxemburgo. É neste contexto que se situa, entre outros, o instrumento jurídico introduzido em 1992 pelo tratado de Maastricht segundo o qual (...) o Conselho, estatuindo por unanimidade por proposta da comissão e após consulta do Parlamento Europeu, pode tomar as medidas necessárias com o objectivo de combater toda a discriminação baseada no sexo, na raça ou na origem étnica, na religião ou nas convicções, numa deficiência, na idade ou na orientação sexual (art. 13 do Tratado que institui a Comunidade Europeia).

Ao mesmo tempo, desde 1993, o Tribunal de Estrasburgo, apesar de muitas hesitações e reticências – caso Kokkinakis de 25 de Março – desenvolveu uma jurisprudência limitando os poderes de estado em favor duma protecção verdadeiramente transfronteiriça da liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Com efeito, o Parlamento empreendeu o esforço de interpretar os limites legítimos da liberdade de pensamento, consciência e religião previstas pela alínea 2 do artigo 9 CEDH sobre a base de princípios – assim como o princípio da proporcionalidade – que subordinam o poder do Estado a um nível superior de racionalidade jurídica na protecção dos direitos fundamentais. Não é por mero acaso se a primeira condenação de um Estado pela violação do artigo 9 se constrói sobre o princípio da proporcionalidade. Assim, o Tribunal salienta que as jurisdições gregas estabeleceram a responsabilidade do requerente sobre motivos que se contentam em reproduzir os termos do artigo 4, sem precisar suficientemente em que é que o acusado teria tentado convencer o seu próximo por meios abusivos. Nenhum dos factos que relataram o permitem constatar. Desde logo, não foi demonstrado que a condenação do interessado se justificava, nas circunstâncias da causa, por uma necessidade social imperiosa. A medida incriminada não aparece então proporcionada ao fim legítimo perseguido, nem, partindo “necessário, numa sociedade democrática”, à procura dos direitos e liberdade do outro (nº 49). Quanto ao Direito de Estado, permanece inteiramente determinante, mas apresenta -se encurralado entre a integração europeia, a descentralização e a regionalização (subsidiariedade vertical) e, finalmente, a privatização e o reconfessionalismo (subsidiariedade horizontal). A soberania tradicional está em crise, a sociedade europeia está desde agora multi -étnica, mas sobretudo multi -ética: as formas de

Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica decisão e os valores de base estão em discussão. Daí uma fraqueza crescente do Estado centralizado e Vestefaliano tal como se conheceu durante séculos.

A crise do sistema anterior a 1889 torna -se evidente no momento da negociação do Tratado de Amesterdão, quando alguns Estados sob a pressão das Igrejas maioritárias e privilegiadas – pedem a inclusão no tratado duma norma excluindo toda a ingerência comunitária sobre o direito dos Estados membros da União em matéria de estatuto dos grupos religiosos.

Recebido sob a forma de anexo ao Tratado de Amesterdão, em 1997 (declaração nº 11) e, sucessivamente, em 2003, inserido no artigo 51 (§1) do projecto de Tratado estabelecendo uma Constituição para a Europa proposta pela Convenção, este princípio chave da competição entre os Estados membros e a União está assim formulado:

“A União respeita e não ajuíza do estatuto de que beneficiam, em virtude do Direito nacional, as Igrejas e as associações ou comunidades religiosas nos Estados membros.”

O Estado nacional apercebe -se de que já não é o único a decidir – o que envolve consequências evidentes sobre os equilíbrios internos entre política e religião. Desde agora está em competição com a União Europeia pelo controlo dos laços entre o Direito e a religião. Na medida em que se sente despojado duma função – dum poder – histórica, e na medida em que é influenciado por autoridades religiosas receosas de perder os seus privilégios – ele opõe -se aos efeitos da integração duma liberdade de religião tão estreitamente dependente deste estatuto. A margem de apreciação (Tribunal de Estrasburgo, acórdão Preminger de 29 de Setembro de 1994), a cláusula das identidades nacionais (artigo 6 §3 do Tratado da União europeia; preâmbulo da Carta de Nice) o principio de subsidiariedade (artigo 5 introduzido em Maastricht em 1992 no Tratado que institui a Comunidade Europeia): tudo é funcional com o objectivo de proteger o status quo das relações Igreja -Estado e do mercado religioso tal como se apresenta em cada país.

III - A influência comunitária sobre a gestão jurídica do facto religioso. A crise da prioridade

dos direitos nacionais. O princípio do artigo 51 §1 do projecto de Constituição – superioridade dos Direitos nacionais sobre o Direito Comunitário em matéria de estatuto das comunidades religiosas – explica muito claramente em que se tornou o triângulo de 1989 quinze anos depois: pesada crise das instâncias internacionais, avanço da União Europeia – e dos órgãos de Estrasburgo encarregados da aplicação da Convenção de 1950 – orgulhoso da resistência dos Estados (dos Direitos internos): donde a competição entre a União e os Estados membros que representam desde agora o pressuposto incontornável de toda a reflexão sobre os patamares de protecção da liberdade de religião na Europa. Muito eficaz enquanto símbolo da competição União/Estados, o princípio do artigo 51 §1 não é tão eficaz enquanto utensílio normativo

Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica e político de gestão da transição. E isto por duas razões: 1. Primeiramente, porque é impossível isolar um “domínio religioso” (“estatuto dos grupos religiosos”) e, em relação a ele, traçar uma fronteira entre as competências da União e as competências dos Estados membros; os estatutos das Igrejas estão estreitamente ligados ao Direito comum em matéria de saúde, de emprego, de impostos, de educação, etc. Pela sua própria natureza, o fenómeno religioso – e por consequência a liberdade de religião – afecta todos os aspectos e campos da vida social; recusa assim deixar -se fechar na qualificação jurídica de “domínio de competência autónoma”. O princípio da superioridade dos Direitos nacionais sobre o Direito Comunitário em matéria de estatuto das comunidades religiosas é assim primeiramente ineficaz e porque não se baseia no pressuposto – falso e impossível – de que se pode tratar este domínio como qualquer outro domínio da competência e objecto de divisão ou de atribuição entre a União e os países membros. 2. Em segundo lugar, o princípio do artigo 51 §1 do projecto de Constituição não considera a especificidade da estrutura das competência no sistema jurídico da União Europeia nem mesmo das iniciativas políticas da União. Ele pressupõe, com efeito, uma rigidez que o sistema não conhece, particularmente no que respeita aos princípios da subsidiariedade, de proporcionalidade e de flexibilidade. Ao mesmo tempo, negligencia, por um lado, o impacto sobre as competências comunitárias das atribuições da União em matéria de protecção dos direitos fundamentais e de luta contra toda a discriminação e, por outro lado, as políticas comunitárias de abertura à sociedade civil – diálogo social, democratização real do sistema comunitário, apercebe -se facilmente de que o princípio da superioridade dos Direitos nacionais sobre o Direito Comunitário em matéria de estatuto das comunidades religiosas é anacrónico porque se fundamenta sobre uma lógica anterior a 1989: uma União europeia económica sem nenhum papel sócio -político, incapaz de se encarregar da protecção dos direitos fundamentais, contra os Estados membros vestefalianos plenamente soberanos. Ora a realidade é completamente diferente. A União Europeia influencia já o fenómeno religioso através dos cinco factores (vias de contaminação europeia e comunitária do direito interno das relações Igreja/ Estado): 1. A protecção dos direitos fundamentais assegurada nos tratados – particularmente pela aplicação nos domínios de competência e comunitário dos artigos 13 do Tratado que institui a Comunidade Europeia, tal como foi reformado pelos Tratados de Maastricht e Amesterdão: 6 do Tratado de Maastricht sobre a União Europeia de 1992 e 10 da Carta de Nice de 2000; 2. O Direito derivado que, nos domínios de competência comunitária, “reencontra” de modo implícito ou explícito a religião (entre os numerosos exemplos, pode pensar-se na Directiva 2000178/CE do

Conselho de 27 de Novembro de 2000 apoiando a criação de um quadro geral em favor da igualdade de tratamento em matéria de emprego e de trabalho dos quais várias normas respeitam à discriminação religiosa); 3. A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades europeias de Luxemburgo que faz face, e isto não é raro, a casos respeitantes, de um modo ou de outro, à religião – ver por exemplo o acórdão Steymann de 5 de Outubro e o acórdão Associação Igreja da Cientologia de Paris de 14 de Março de 2000; 4. A Declaração nº 11 anexada ao Tratado de Amesterdão ela mesma, reiterada no art. 51 §1 citado; 5. O diálogo informal entre as autoridades comunitárias e as autoridades religiosas que se desenvolve por iniciativa da Comissão desde há uma dezena de anos; 6. Os documentos do Parlamento europeu que, a despeito da falta de valor jurídico constrangente, têm um significado político não negligenciável – ver por exemplo a Resolução sobre as mulheres e o fundamentalismo de Março de 2002 e a Resolução sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia em 2002 de 4 de Setembro de 2003, que trata da liberdade de pensamento, de consciência e religião nos pontos 32 a 35.

Assim o problema não é o de negar em princípio – duma maneira abstracta – uma influência real já bem estabelecida, nem o de voltar atrás por uma limitação geral do funcionamento do Direito da União que parece inconcebível. A questão é antes, primeiramente, assumir a coexistência dum poder de Estado e dum poder comunitário na gestão jurídica do fenómeno religioso e, em seguida, regular eficazmente a competição entre os dois.

IV – O laboratório europeu – Proteccionismo e livre -mudança

A influência do Direito Comunitário sobre a gestão jurídica da religião e da competição entre poderes europeus e poderes de Estado devem ser consideradas como uma síntese das tensões e das dinâmicas das relações entre Direito religioso na Europa neste sentido, convém falar dum verdadeiro laboratório europeu.

Ora, o laboratório não é somente o lugar onde se experimentam as técnicas de distribuição e de coordenação dos poderes (processo), é também o lugar onde são testados os princípios de valores, o sentido das coisas (substância). No laboratório europeu, técnicas e princípios são inseparáveis; processo e substância são indissolúveis.

A perspectiva continental permite assim ler na competição entre União e Estados pelo controlo do fenómeno religioso, uma competição substancial entre uma lógica proteccionista e uma lógica de livre mudança na gestão jurídica do mercado religioso europeu.

A lógica proteccionista caracteriza-se pela identificação, o reconhecimento legal (de Direito Interno) das entidades colectivas tendo direito ao estatuto de grupos religiosos e, por este meio, às vantagens simbólicas, financeiras, organizacionais. Esta aproximação

Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica privilegia a tradição histórica e cultural, a especificidade nacional e regional. A exigência de uma cooperação formalizada entre autoridades públicas e autoridades religiosas, a tomada em consideração, o reconhecimento e o tratamento específico do facto religioso em relação a outros domínios da vida social. A lógica proteccionista envolve assim o seguinte esquema:

Reconhecimento das entidades que têm direito ao estatuto de grupo religioso 4 tratamento diferenciado (Direito especial por vezes bilateral, derrogações ao direito comum) 4 grupos reconhecidos protegidos e favorecidos (e/ou privilegiados) parceiros dos poderes públicos.

A lógica proteccionista evoca um triplo nível de protecção: primeiramente protege a especificidade do fenómeno religioso (evitando que ele perca a sua identidade na mistura do Direito Comum); em segundo lugar, protege certos grupos (mais úteis, mais fiáveis, etc.) em relação a (contra) outros; finalmente, protege a identidade nacional e regional num espírito de agrupamento dos cidadãos da decisão (subsidiariedade vertical). Muito evidentemente o corolário do princípio proteccionista é o monopólio (superioridade/prioridade) do Direito de Estado sobre toda outra fonte/poder concorrente.

Assim que o Tribunal de Estrasburgo integre a lógica proteccionista cada vez que ela se detém diante da margem nacional de apreciação (ver por exemplo o caso Kalaç de 1 de Julho de 1997), o Direito comunitário segue esta lógica sempre que aprecia a especificidade religiosa do domínio da intervenção (o caso julgado pelo Tribunal, o domínio sujeito do Direito derivado) e interdita -se toda a ingerência em relação ao Direito Interno. Isto foi o caso, particularmente, no processo Reino Unido de 12 de Novembro de 1996 sobre as disposições do tempo de trabalho assim que o Tribunal reenviou aos Estados membros toda a decisão sobre o tratamento do Domingo como dia feriado, tendo em conta a diversidade dos factores culturais, étnicos e religiosos nos diferentes Estados membros. O mesmo se passou com o processo Holanda de 9 de Outubro de 2001 em matéria de biotecnologias uma vez que o envio ao legislador foi motivado sobre a base do “contexto social e cultural que conheceu cada Estado membro” (nº 38) ou seja sobre a base do princípio segundo o qual, como diz o advogado geral Jacobs nas suas conclusões, pertence a cada Estado membro determinar as exigências da moralidade pública no seu território, segundo a sua própria escala de valores (nº 99). A mesma iniciativa também foi adoptada no plano legislativo na directriz de 27 de Novembro de 2000 sobre a igualdade de tratamento em matéria de emprego onde se derroga ao direito comum pelo que é do emprego nas organizações religiosas: a directriz é, sem prejuízo do Direito das Igrejas e das outras organizações públicas ou privadas cuja ética é fundada na religião ou as convicções, agindo em conformidade com as disposições constitucionais e legislativas

nacionais, de requerer das pessoas que trabalham para elas uma atitude de boa fé e de lealdade para com a ética da organização.

No oposto à lógica proteccionista, a lógica da livre mudança caracteriza -se pelas assimilações da religião a toda uma outra realidade social e implica o tratamento indiferenciado dos grupos religiosos segundo o Direito Comum aplicando -se às associações. A lógica da livre mudança privilegia o princípio da igualdade – contra todo o risco de discriminação dum certo grupo com vantagem para outro – no cuidado de garantir na nova realidade social multireligiosa um livre e igualitário exercício das crenças onde todo o grupo, independentemente da sua estruturação legal, possa competir com os outros. Desenha-se assim o esquema seguinte:

Igualdade de todos os grupos religiosos g mesmo estatuto jurídico g mesmo tratamento de Direito Comum (que os grupos não religiosos) g ausência de grupos reconhecidos protegidos e favorecidos (e/ou privilegiados) g livre exercício das religiões.

A lógica da livre mudança compreende um duplo nível de livre mudança. Primeiramente, visa uma sociedade aberta a uma competição plenamente livre entre toda a sorte de crenças, ideologias, convicções, pensamento (sem discriminação duma ideia em relação a outra qualquer e sem nenhum reconhecimento duma prioridade de ideias religiosas tais como são); em segundo lugar, visa uma sociedade aberta a uma competição plenamente livre entre religiões (sem discriminação duma ideia religiosa em relação a outra, nem dum grupo religioso em relação a outro).

Da aspiração à construção de uma livre circulação das religiões processa-se naturalmente o ultrapassar da superioridade do Estado no controlo jurídico da religião em favor dum tratamento jurídico da religião integrando vários níveis de poderes. Isto foi tanto o caso com a jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo como com o do Tribunal do Luxemburgo.

O Tribunal de Estrasburgo evocou várias vezes o conceito de livre competição entre grupos e ideais religiosos como parte integrante da protecção assegurada pelo artigo 9 CEDH livre para definir o papel do Estado enquanto garante dos direitos e liberdades individuais e organizador imparcial do exercício das diversas convicções e religiões numa sociedade democrática (caso Refah Partisi, 31 de Julho de 2001, nº 70).

Por outro lado, também tratou casos respeitantes ao fenómeno religioso sem tomar em consideração a especificidade religiosa (a saber, fora da aplicação do artigo 9 CEDH). Um caso exemplar é o dos acórdãos Refah Partisi de 31 de Julho de 2001 e de 13 de Fevereiro de 2003 em que o Tribunal define o princípio de laicidade e decide sobre um caso cuja natureza religiosa é evidente (legitimidade da dissolução dum partido islâmico turco) apoiando-se pelo essencial no artigo 11 CEDH (direito de associação) e sem nenhuma referência ao artigo 9 (o Tribunal utilizou neste caso o mesmo método já experimentado no caso Polat de

Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica 8 de Julho de 1999 em relação ao artigo 10 CEDH):

No caso Jerusalém de 27 de Fevereiro de 2001 também, uma controvérsia sobre o direito dum cidadão austríaco a qualificar uma associação de “seita” foi julgada em favor do requerente sobre a base do artigo 10 CEDH (liberdade de expressão), sem nenhuma referência à dimensão religiosa do caso em questão (definição de seita, noção negativa de seita) e no cuidado de assegurar uma protecção dos direitos fundamentais para além das especificidades nacionais. Com efeito, segundo os juízes, o Tribunal não tendo por tarefa, ao exercer (o seu) controlo, de se substituir às jurisdições nacionais, mas de verificar sob o ângulo de artigo nº 10, à luz do conjunto do caso, as decisões que elas tomaram em virtude do seu poder de apreciação (nº 34), neste caso, é necessário reconhecer que ao exigir da requerente que ela prove a veracidade das sua declarações, negando -lhe ao mesmo tempo, uma possibilidade efectiva de produzir elemento em apoio destas e assim demonstrar que se tratava de comentários objectivos, as jurisdições austríacas excederam a margem de apreciação de que dispunham (nº46).

Paralelamente o Tribunal do Luxemburgo julgou vários casos tendo uma dimensão religiosa objectiva sobre o pressuposto de que os factos podiam entrar no domínio do Direito Comunitário e serem decididos no interior da lógica do sistema judicial da União.

Foi o caso do acórão Steymann de 5 de Outubro de 1988 no qual o Tribunal considerou que certas actividades no seio da comunidade Bhagwan podiam ser assimiladas a actividades económicas e, por conseguinte, julgadas pelo juiz comunitário. De facto, segundo o Tribunal, tendo em conta objectivos da comunidade, a participação a uma comunidade fundada sobre uma religião, ou outra inspiração espiritual ou filosófica, não releva do campo de aplicação do Direito Comunitário senão na medida em que ela pode ser considerada como uma actividade económica no sentido do artigo 2 do tratado. Bem entendido, as duas lógicas, proteccionista e de livre mudança, não se afirmam nunca de modo absoluto. Normalmente, elas coabitam, como foi este caso para a Itália cujo sistema concordatário, prevendo um reconhecimento civil da jurisdição dos tribunais eclesiásticos, foi por um lado salvaguardado por um regulamento comunitário de 2000 em matéria de cooperação judiciária em Direito da Família (o regulamento prevê um tratamento especial para os países concordatários) e por outro sancionado pelo Tribunal de Estrasburgo por violação do direito à defesa (acórdão Pellegrini de 20 de Julho de 2001).

V - Governação comunitária e parceria

A coexistência duma lógica proteccionista e duma lógica de livre mudança é incontestavelmente própria a qualquer experiência nacional de relação Igreja/Estado na Europa, mas adquire uma evidência tanto mais forte no laboratório europeu quando este se constrói depois de decénios na tensão entre as duas lógicas. A lógica do comércio livre

(os princípios cardeais da liberdade de circulação de pessoas, de bens, de serviços e de capitais) e da ultrapassagem dos provincianismos, por um lado, e a lógica da preservação dos interesses e das identidades, por outro, não podem senão estender -se do domínio económico ao domínio social e político até se impor (tanto do ponto de vista terminológico como factual) na competição por uma gestão jurídica do religioso.

Foi o que compreenderam, muito antes, os especialistas e os homens de Estado, as autoridades religiosas que constituíram representações estáveis em Bruxelas e que empreenderam um diálogo informal com as autoridades comunitárias.

Foi também o que compreenderam as autoridades comunitárias que empurraram este diálogo na direcção dos objectivos da integração comunitária segundo a intuição expressa por Jacques Santer, em 14 de Setembro de 1998: Reclamar “Uma alma pela Europa” torna -se igualmente o formular o desejo de ver as instância religiosas e filosóficas trazerem elas próprias a sua contribuição e as suas respostas sobre questões que surjam na vida de cada um e toquem a identidade de cada indivíduo. As Igrejas, em particular, são assim convidadas a dar uma interpretação e um sentido à construção europeia.

Mas é sobretudo a lógica de cooperação que tende a valorizar a parceria dos grupos religiosos envolvendo estes mesmos grupos, num estilo a meio caminho entre o informal e o institucional, a um espírito de diálogo entre si, ao reconhecimento mútuo, a uma responsabilidade política leal em relação à construção europeia e à coesão social.

A resposta do laboratório europeu à coexistência do proteccionismo que influi sobre o exercício dos poderes de estado, regionais, comunitários e internacionais, é uma parceria limitada pelos direitos fundamentais, os princípios democráticos, as regras do jogo comunitário (o “método comunitário”). É uma parceria que necessita de interpretar a lógica da reforma da governação ilustrada pelo Livro Branco da Comissão de 2001.

Designando “as regras, os processos e os comportamentos que influem no exercício dos poderes ao nível europeu, particularmente do ponto de vista da abertura, da participação, da responsabilidade, da eficácia e da coerência” (Livro Branco de 2001), a governação torna -se a encruzilhada da democratização das instituições europeias, da harmonização entre regionalização (subsidiariedade vertical) e privatização (subsidiariedade horizontal), da abertura do decision making à sociedade civil. É implicando a sociedade civil numa “boa governação” que se integram proteccionismo e livre mudança, segundo o Livro Branco.

A sociedade civil desempenha um papel importante permitindo aos cidadãos exprimirem as suas preocupações e fornecendo os serviços correspondentes às necessidades da população. As Igrejas e as comunidades religiosas têm a seu cargo uma contribuição específica (3.1.).

Nada de constrangedor ou de sistemático, bem entendido: os sistemas nacionais de relações Igreja-

Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica -Estado têm aí uma certa vantagem. E no entanto, a dinâmica comunitária parece mais capaz de dispor de referências em relação a esta área em que se confundem protecção e livre mudança, Direito especial e Direito comum, competências europeias e nacionais/regionais.

Será necessário que nos habituemos a esta indefinição. O próprio projecto de Constituição é disso testemunha visto que a única tentativa de cortar a direito (o princípio de superioridade do Estado do artigo 51 §1) é desmentido não apenas pela sua própria fraqueza, mas também pelo princípio da terceira alínea do mesmo artigo segundo o qual, quanto às Igrejas, associações ou comunidades religiosas, organizações filosóficas e não confessionais, reconhecendo a sua identidade e a sua contribuição específica, a União mantém um diálogo aberto, transparente e regular com estas Igrejas e organizações. Competição entre União e países membros, coexistência de proteccionismo e livre mudança, governação e parcerias: a erosão das categorias tradicionais (confessionalismo, separatismo, laicidade, neutralidade) exige um esforço de interpretação e de intervenção à altura de uma transição tão delicada.

* Professor, Faculdade de jurisprudência, Universidade de Siena, Itália

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