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M.A. Tyner A protecção da liberdade religiosa no Tribunal .... Europeu dos Direitos do Homem
Mitchell A. Tyner *
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Por entre as convenções internacionais em vigor actualmente, que visam proteger a liberdade religiosa, a Convenção europeia dos direitos do homem e das liberdades fundamentais é, de longe, a mais eficaz. Contudo, as decisões tomadas relativas à interpretação desta Convenção mostram que a protecção oferecida se revela selectiva e desigual.
A Convenção que data de 1950, entrou em vigor em 1953. O Protocolo Nº 9, adicionado em 1955, permite, tanto aos indivíduos como aos Estados, apresentarem um requerimento. No início, estes requerimentos eram apresentadas à Comissão Europeia dos direitos do homem e, mais recentemente, junto do seu sucessor, o Tribunal Europeu dos direitos do homem. Depois da sua criação, a Convenção registou um número cada vez maior, de 2088 no decurso do primeiro decénio de existência, para 8396 em 1999.
Eis aqui alguns extractos importantes dos artigos 9 e 14 e do primeiro protocolo do artigo 2 da Convenção:
Artigo 9, parágrafo primeiro: “Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção individualmente ou colectivamente, em público ou em privado, pelo culto, pelo ensino, pelas práticas e pelo cumprimento dos ritos”.
Artigo 9, parágrafo dois: “A liberdade de manifestar a sua religião, ou as suas convicções, não podem ser objecto de outras restrições, senão aquelas que, previstas pela lei constituem medidas necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança pública, para o protecção da ordem, da saúde e da moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem”.
Artigo 14: “O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado, sem distinção nenhuma, baseada particularmente sobre o sexo, a raça, a cor, a língua, as opiniões políticas ou quaisquer outras opi-
A protecção da liberdade religiosa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem niões, o origem nacional ou social, o pertencer a uma minoria nacional, a fortuna, o nascimento ou qualquer outra situação”.
Primeiro protocolo adicional ao artigo 2: “A ninguém se pode recusar o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que assume no domínio da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais de assegurar esta educação e este ensino de acordo com as suas ideias religiosas e filosóficas”.
Por entre os assuntos onde estas disposições ligadas à liberdade religiosa foram interpretadas, duas devem revestir -se duma importância particular.
Primeiramente, Arrowsmith contre Royaume -Uni, 3 Comissão europeias dos direitos do homem 218 (1998), tratava -se de um pacifista que distribuía panfletos aos soldados britânicos encorajando -os a recusar servir na Irlanda do Norte, explicando-lhes como proceder, o que constitui uma violação da lei. Arrowsmith declarou que os seus actos eram protegidos pela Convenção, porque eles eram motivados pela religião. A Comissão recusou fazendo notar que, embora o pacifismo seja uma convicção protegida, os panfletos distribuídos não faziam referência a esta convicção. Os seus actos não representavam portanto uma manifestação destas convicções. A Comissão acrescentou que todos os actos motivados (e não requeridos) pela religião não são protegidos. A Comissão colocou a barreira bastante alta para aqueles que pedem uma protecção da prática livre duma religião: deve existir um elo estrito entre a convicção e a acção, e a acção que se deseja ver protegida deve ser necessária ao exercício da religião em questão. O segundo caso interessante é o de Kokkinakis contra a Grécia, 17 CEDH 397 (1993). Kokkinakis, uma testemunha de Jeová grega foi condenado por proselitismo quando procurava falar das suas convicções a outras pessoas. Anulando a condenação, o Tribunal afirmou que a liberdade religiosa inclui o direito de procurar convencer o seu próximo da justeza das suas convicções, e que a medida grega não era necessária numa sociedade democrática. Constituem os actos de Kokkinakis uma manifestação da sua religião, e não os de Arrowsmith? A incoerência, à primeira vista, destas duas decisões explica -se pela intenção: não do defensor mas da lei. Arrowsmith infringiu uma lei que não visava nem a restringir, nem a dissuadir a prática duma religião. Por outro lado, a condenação de Kokkinakis fundava -se sobre uma medida tendo como objectivo impedir que outras religiões que não a do Estado grego, se propagassem. Arrowsmith e Kokkinakis tiveram que se render a uma norma semelhante à enunciada pelo Supremo Tribunal dos E.U.A. por ocasião da questão Smith contra a Divisão do emprego e Igreja de Babalu Lukumi Aye contra Hialiah: as leis que procuram abertamente limitar a prática duma religião não serão toleradas, e as práticas religiosas que infringem uma lei neutra e geralmente aplicada também o não serão. Notemos que este mesmo assunto reaparece em sete outros casos, todos pondo em causa a Grécia:
A protecção da liberdade religiosa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
Manousakkis contra a Grécia, 23 CEDH 387 (1996): uma testemunha de Jeová foi condenada por ter criado e usado um lugar de culto sem autorização. Os documentos revelaram que um pedido de autorização foi de facto registado, mas que as autoridades recusaram tomá-la em consideração. Anulando a condenação, o Tribunal baseou a sua decisão argumentando que a liberdade religiosa exclui toda a decisão do Estado neste domínio, devendo todas as religiões ser tratadas segundo o princípio de igualdade.
Valsamis contra a Grécia, 24 CEDH 294 (1996): um aluno testemunha de Jeová recusou, por causa das suas convicções religiosas, participar em desfiles escolares de carácter militar para celebrar a festa nacional. O Tribunal manteve a sanção contra o aluno, argumentando que “a obrigação não era de natureza a ofender as suas convicções” e que Valsamis não tinha o direito de desobedecer às regras.
Aqui também, Manousakkis demonstrou a intenção do Estado de restringir a prática da sua religião e não Valsamis.
Tsirlis contra a Grécia, 25 CEDH 198 (1997): os ministros do culto das Testemunhas de Jeová não ficaram insentos do serviço militar como é habitual para o clero grego ortodoxo. O Tribunal ordenou que a insenção fosse concedida sem discriminação a todos os ministros de culto.
Pentides contra a Grécia, 24 CEDH CD1 (1997): em circunstâncias semelhantes às do caso de Manousakkis, Pentides foi acusado de estabelecer um lugar de culto sem autorização. Mas, desta vez, em vez de não darem seguimento ao pedido de autorização, as autoridades puseram em marcha um procedimento kafkaniano tendo como objectivo dissuadir as religiões indesejáveis. Uma vez mais, o Tribunal ordenou a criação dum procedimento neutro aplicável a todos os grupos religiosos. A igreja católica da Caneia contra a Grécia, 27 CEDH 521 (1997): uma congregação põe em causa a recusa das autoridades para a concessão da mesma personalidade jurídica que é concedida às outras igrejas. O Tribunal considerou que se tratava duma dissuasão intencional e duma aplicação selectiva e anulou a recusa. Larissis contra a Grécia, 27 CEDH 329 (1998): oficiais pentecostais da força aérea foram condenados por proselitismo em relação aos soldados da força aérea e em relação aos civis. Esta condenação foi anulada no que diz respeito aos civis, semelhantemente ao caso de Kokkinakis, mas mantida no caso dos soldados, porque os oficiais têm a obrigação de fazer atenção em não intimidar os seus subordinados em matéria de religião. Serif contra a Grécia, CEDH 20 (1999): um grupo de muçulmanos elegeu um intérprete autorizado da lei muçulmana, condenado por usurpação de funções de um ministro de religião nomeado pelo governo. Anulando a decisão, o Tribunal declarou que “as tensões podem surgir quando uma comunidade religiosa se divide; trata -se aqui de uma das consequências inevitáveis do pluralismo. Neste caso, o papel das autoridades não é eliminar a
A protecção da liberdade religiosa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem fonte das tensões suprimindo o pluralismo, mas assegurar a tolerância entre grupos rivais”.
Em sete de oito casos gregos tratados, o Tribunal defendeu os direitos religiosos em circunstâncias onde foi provado que o governo tinha a intenção de limitar as práticas religiosas. Unicamente no caso de Valsamis, o tribunal manteve a decisão desfavorável à religião, argumentando que a intenção aqui não era prejudicar deliberadamente a religião.
Uma outra análise dos oito casos é possível: sete casos em oito diziam respeito a actos manifestando pura e simplesmente a religião, domínio familiar do Tribunal. Unicamente no caso Valsamis, o Tribunal foi confrontado com actos que realmente não manifestavam aos seus olhos assuntos religiosos.
Os casos seguintes são semelhantes aos casos já apresentados
X. contra o Reino Unido, 22 CEDH 27 (1981): não foi concedido a um professor muçulmano um intervalo mais longo no almoço à sexta -feira para orar. O Tribunal rejeitou este requerimento, argumentando que o intervalo mais longo não era uma condição necessária à sua religião.
Stedman contra o Reino Unido, 89 CEDH 104 (1997): um cristão evangélico foi despedido por ter recusado trabalhar ao domingo. Recusando a queixa, o Tribunal anunciou que a liberdade religiosa no emprego estava suficientemente garantida, visto que ele estava livre para procurar um outro emprego.
Buscarini contra São Marinho, 30 CEDH 208 (1999): o Tribunal pôs fim à obrigação de todos os deputados do Parlamento de São Marinho prestarem juramento sobre a Bíblia. Hasan contra a Bulgária, 34 CEDH 55 (2000): O Tribunal pediu à Bulgária para permanecer neutra na contenda que opunha dois imãs (ministros da religião maometana) rivais. Igreja metropolitana de Bessarábia contra a Moldávia, 35 CEDH 13 (2001): O Tribunal anulou a recusa da Moldávia de reconhecer um grupo religioso desconhecido. Os casos aqui citados ilustram claramente os pontos fortes e os pontos fracos que esmaltam a jurisprudência do Tribunal Europeu dos direitos do homem em matéria de liberdade religiosa. Os seus pontos fortes: 1) A discriminação intencional para com toda a religião é completamente proibida 2) Os grupos religiosos gozam de um autonomia substancial na gestão dos seus próprios assuntos. 3) Os grupos religiosos devem ser tratados de maneira igual pelo governo 4) O que se entende tradicionalmente por “manifestar a sua religião” – o culto, o ensino e a profissão de fé – é objecto de uma protecção evidente. 5) O pluralismo religioso está protegido. As suas fraquezas: 1) Baixo nível de protecção para as práticas religiosas não tradicionais 2) O Tribunal exerce muita deferência para com o Estado em matéria de religião.
A protecção da liberdade religiosa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem 3) Não se protegem suficientemente as práticas religiosas em casos em que elas estão intencionalmente ameaçadas, como nos assuntos que dizem respeito aos empregos acima citados. 4) Falta de respeito para com o indivíduo, por oposição aos grupos religiosos como sujeito real da liberdade religiosa.
Uma questão recente e desconhecida talvez consiga colocar -nos no bom caminho.
Na questão do cemitério Re. Crawlex Green Road Cemetery, (2001) H.R.L. 21, um tribunal britânico foi colocado na presença de uma viúva que queria deslocar os restos mortais do seu marido. Eles não eram crentes e o marido devido a um erro, foi sepultado num cemitério reservado aos crentes. Cedendo ao pedido da viúva, que pedia uma excepção à regra geral que proibía proceder duas vezes ao mesmo sepultamento, o Tribunal declarou que agiria de maneira incompatível com os direitos (artigo 9) da requerente se lhe recusasse, nas circunstâncias presentes, retirar as cinzas do seu marido dum lugar em que, aos seus olhos, pelo menos, a sua presença pareceria hipócrita e contrária às suas crenças humanistas. Por outras palavras, o Tribunal não se perguntou: “porque deveríamos nós autorizar um derrogação para o bem da consciência?” mas preferiu perguntar: “existirá uma boa razão para não autorizar?” O Tribunal Europeu dos direitos do homem talvez tenha isso em consideração e se inspire neste caso.
__________ * Director dos assuntos jurídicos, da Associação Internacional de Liberdade Religiosa, Silver Springs, Estados Unidos da América