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A. Garay Que meios de defesa e de protecção dos factos religiosos? A situação em França
Que meios de defesa e de protecção das práticas religiosas? A situação em França
Sr. Alain Garay*
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«Profanação: nove sepulturas do quadrado muçulmano da necrópole nacional de Revigny-sur-Ornain (Meuse) foram profanadas[...] nove das cinquenta estelas muçulmanas foram quebradas rente ao solo. O Secretário de Estado dos Antigos Combatentes, Hamlaoui Mekachera, exprimiu a sua «viva indignação”.» (Le Monde, 28 de Março de 2003).
«Anti-semitismo : uma mulher de sessenta e três anos foi apedrejada e ficou com ferimentos ligeiros, na noite de quinta-feira 27 de Março, quando se preparava, juntamente com outras pessoas, para entrar numa sinagoga em Garges-les-Gonesse (Val-d’Oise). Os projecteis foram lançados contra o grupo a partir de um imóvel de três andares sobranceiro ao local de culto.[...]» (Le Monde, 30-31 de Março de 2003).
«[...] A requerente queixa-se de uma série de reacções hostis (campanha de imprensa, criação de associações de defesa, organização de debates públicos sobre as seitas, etc.) ou de medidas, tais como decisões da justiça e decisões administrativas, que teriam afectado certas testemunhas de Jeová [...]o Tribunal salienta, por um lado, que quando se faz referência ao relatório do inquérito parlamentar sobre as seitas, esta referência constitui um simples obiter dictum que não pode, em caso algum, ser considerado como a ratio legis da medida. O tribunal nota, aliás, como o governo, que um relatório parlamentar não tem qualquer efeito jurídico e não pode servir de fundamento para nenhuma acção penal ou administrativa.» (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, decisão de inadmissibilidade de 6 de Novembro de 2001 no caso Federação Cristã das Testemunhas de Jeová contra a França.)
A defesa e a protecção das práticas religiosas não se improvisam1. Elas resultam antes de mais de uma justa medida da natureza e dos efeitos dos actos qualificados como atentatórios aos direitos e liberdades dos crentes. Mais, sob o efeito conjugado das leis da República e do estatuto laico das instituições públicas, o Estado em si, parece «ignorar» os crentes não se interessando senão pelos cidadãos administrados.
O discurso sob a forma de vitimização, de lamentações e de «jere-
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*Advogado no Tribunal de Paris e investigador da Universidade de Marselha 9
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? miadas» que os crentes atingidos podem ter, realmente ou não, nos seus direitos e nas suas obrigações pode sustentar, por sua vez, uma suspeição globalizadora sobre um determinado país sem medida nem colocação em perspectiva histórica e social. É o caso da França cuja posição das autoridades públicas foi posta em causa por certos responsáveis judeus devido ao «recrudescimento» de actos anti-semitas no país, e por certas instâncias nacionais (Office of International Religious Freedom do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América, e a U.S. Commission on International Religious Freedom) e organizações internacionais (Federação Helsínquia para os Direitos do Homem), tendo em conta a política de luta contra as seitas»2. O que se passa realmente? Por um lado, a denúncia pública de alegados atentados aos direitos e liberdades dos crentes provenientes frequentemente de grupos de pressão constituídos em associações de defesa sem que se saiba quem verdadeiramente os compõe e que parecem fazer concorrência às instâncias «tradicionais» de defesa dos direitos do homem do tipo Federação Internacional dos Direitos do Homem, Liga dos Direitos do Homem3. Aqui, o debate sobre a legitimidade e a representatividade das associações de defesa da liberdade de religião traduz na realidade a questão do modo como os crentes asseguram colectivamente os meios de avaliação e de controlo dos seus direitos e obrigações4. Será que existe uma especificidade de exercício do direito e das liberdades dos crentes, assim como se foram progressivamente elaborando as «estratégias» de defesa e das lógicas militantes tais como os «direitos dos estrangeiros», dos «sem-abrigo», dos «mal-alojados», etc.?
Normalmente o atentado às práticas religiosas é polimorfo. Ela tem lugar num sistema que ignora a «minoria» mas não o «minoritário», a questão das modalidades de tomada em conta da diferença e do pluralismo. Ela torna-se sensível e suscita controvérsias sobre as palavras e as constatações na presença de «discriminações». Mas o que é que se entende por discriminação? Por discriminação religiosa? Por definição, ela implica a faculdade de distinguir, de discernir. Para Ribot, é o fundamento da nossa inteligência. Ela traduz a preocupação da distinção pela qual o direito admite que um tratamento jurídico possa ser diferenciado assim que as distinções estabelecidas se apoiem em motivos de interesse geral ou sejam justificadas por uma diferença de situação objectiva5. Este é o tipo de atitude do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que concluiu, até ao presente, que há violação do direito garantido no artigo 14.º da Convenção Europeia (não sofrer discriminação no gozo dos direitos reconhecidos pela Convenção) «quando os Estados fazem sofrer, sem justificação razoável e objectiva, um tratamento diferente a pessoas que se encontram em situações análogas6». Na prática. Observa-se uma grande diferença entre as recriminações formuladas por indivíduos e grupos e a realidade dos «atentados» dos quais se consideram vítimas7 . Segundo Vianney Sevaistre, conselheiro para os cultos do actual ministro do Interior e chefe do Gabinete Central dos Cultos, existe uma «imensa
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? discórdia» entre os que sofrem e os que impõem discriminações. Assim, os «testemunhos» e o seu valor, fornecidos durante o Primeiro Colóquio sobre as Discriminações Religiosas em França organizado em Paris a 29 de Março de 2003, sob a égide do Conselho das Igrejas Cristãs de Expressão Africana na Europa8. Esses «testemunhos», não constituíndo a prova de atentados aos direitos e liberdades dos crentes, manifestam, à sua maneira, um «sofrimento» real, uma «dor», uma «queixa» à medida do envolvimento e do investimento de certas pessoas, mas igualmente medidas de luta contra as «seitas» e as derivações sectárias em França9 . Mas, observando de mais perto, esses «testemunhos» em si não constituem demonstrações nem provas de atentados susceptíveis de qualificação jurídica e de sanções judiciárias10 . Eles suscitam verificações e definição de perspectivas práticas comparativas, históricas, sociais, resumindo, uma avaliação entre o discurso e a realidade11 .
De modo que, na nossa opinião, a defesa e a protecção das práticas religiosas assenta, do ponto de vista jurídico, numa tripla dimensão que põe em causa imperativos de forma (I) e, simultaneamente, a escolha do quadro de expressão das crenças religiosas que condicionam frequentemente os recursos judiciários (II).
I. A importância das questões de forma na tomada em conta das constatações de atentados
1. A delicada questão da realidade das constatações de atentado às práticas religiosas numa sociedade democrática
A proclamação de uma discriminação dita religiosa – emanando de uma religião, de uma crença ou de uma prática religiosa, de um indivíduo, de um grupo, de uma administração – não estabelece por si só a realidade desta nem a sua existência. Expressão talismã, ela permanece fechada numa estrita interpretação do Código Penal: «Constitui uma discriminação toda a distinção operada entre as pessoas físicas em razão da [...] sua filiação ou da sua não filiação, verdadeira ou suposta [...] a uma determinada religião» (artigo 225.º-1). Ela é punida pela lei penal «quando consiste: 1. em recusar a prestação de um bem ou de um serviço; 2. entravar o normal exercício de uma qualquer actividade económica; 3. recusar empregar, sancionar ou licenciar uma pessoa; 4. subordinar a prestação de um bem ou de um serviço a uma condição fundada sobre um dos elementos referidos no artigo 225.º-1; 5. subordinar uma oferta de emprego, um pedido de estágio ou um período de formação na empresa a uma condição fundada sobre um dos elementos referidos no artigo 225.º-1; 6. recusar aceitar uma pessoa num dos estágios referidos no parágrafo 2 do artigo L. 412.º-8 do Código da Segurança Social.»
Na prática, as estritas condições do delito penal reduzem consideravel-
menteonúmerodasacçõesnajustiça.Aquestãodadificuldadedaprovado acto discriminatório é omnipresente. Para o juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Frédéric Desportes, «é difícil estabelecer a existência de um motivo quando ele não é expresso. Ora o motivo discriminatório é o elemento constitutivo essencial da infracção [...]. É evidentemente mais aleatório, na ausência de elementos de comparação, demonstrar que uma recusa isolada foi inspirada por motivos discriminatórios [...] É muito difícil estabelecer que a pessoa posta em causa fez uso de discriminação da sua liberdade, pois a recusa alegadamente discriminatória poderá ser explicada por razões objectivas escapando a qualquer verificação12.»
Mais, de acordo com o método do Juiz Europeu dos Direitos do Homem, o controle da condição de «vítima» está estritamente ligado ao exame da boa fundamentação do agravo, da alegação e, em particular, da existência de uma ingerência no direito da pessoa que se considera discriminada. O Tribunal Europeu examina assim: 1. a existência material, in concreto, da ingerência; 2. a justificação da dita ingerência, prevista na lei, que prossegue um objectivo legítimo, proporcional ao dito objectivo, numa sociedade democrática13. É a partir deste método de julgamento que o Tribunal Europeu «frequentemente, para se pronunciar sobre a existência de um atentado aos direitos protegidos pela Convenção, faz questão de discernir a realidade para além das aparências e do vocabulário empregue14».
2. O recurso aos instrumentos de regulação estatal, sinal de confiança legítima da legalidade democrática e da protecção correspondente
Alguns observaram que «[...] o nosso catálogo dos direitos fundamentais, por mais rico que seja, não inclui, além da liberdade religiosa, o suporte jurídico da reivindicação de alguns de nós de querer viver segundo as suas convicções15. Assim, a partir do momento em que um grupo religioso, crentes ou fiéis reivindicam o legítimo exercício da legalidade estatal, eles entendem a submissão plena à lei comum. Este acto de confiança constitui para o Estado e o corpo social o sinal da vontade do grupo ou dos crentes de beneficiar das garantias legais, da igualdade. Ele traduz da sua parte a aceitação das regras de vida em sociedade marcada pela garantia segundo a qual «os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos» (artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789). Esta falta de consideração pelas instituições estatais e públicas implica, em contrapartida, modalidades de «reconhecimento16» de cima que, por sua vez, têm efeitos em termos de aceitação social17. O esforço de visibilidade e de reconhecimento do quadro jurídico estatal pelo grupo religioso é para o Estado uma garantia de integração18. Além disso, Jean-Paul Costa, conselheiro de Estado e actualmente vice-presidente do Tribunal Europeu
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? dos Direitos do Homem, salientava a oportunidade de reter a noção de representatividade para garantir as liberdades de crer ao mais alto nível: «[...] a noção de representatividade permitiria um verdadeiro diálogo do Estado e das colectividades públicas com os representantes das religiões e das seitas o que, no plano da organização dos serviços públicos como o do exercício da liberdade dos cultos, ofereceria muitas vantagens19.» Ter-se-á compreendido isso, pois o debate sobre os critérios de aceitação pelos crentes das modalidades de gestão pública das práticas religiosas é realmente determinante (infra).
3. A prova do tempo e da judicialização das respostas às constatações de atentados às práticas religiosas.
A lenta emergência da protecção da liberdade de consciência – a noção de «liberdade religiosa» não assenta, enquanto tal, sobre nenhuma definição legal de direito francês – e o tecnicismo requerido pelos meios de resolução amigável ou judicial das tensões e dos litígios dão a impressão de um déficit de protecção. Na realidade, a experiência prova que a defesa profissional, passo a passo e metódica, das crenças religiosas assegura uma protecção reforçada dos quadros de expressão dos factos religiosos. A defesa e a protecção das práticas religiosas conservam uma dialéctica emancipadora dos discursos com lágrimas nos olhos e das litanias tradicionais sobre o déficit das garantias jurídicas e institucionais. Mas aqui, a escolha dos meios materiais exige uma avaliação das forças em presença (redes, grupos de pressão, movimentos diversos de personalidades tais como o Rede Voltaire, a União Nacional de Defesa das Famílias e dos Indivíduos, dita UNADFI, o Centro contra as Manipulações Mentais, dito CCMM, tal deputado ou senador, tal presidente de Câmara, etc.), dos recursos humanos (escolha dos Conselhos: pessoal religioso, comunicadores, advogados, jornalistas, universitários, funcionários, etc.) e financeiros (custo das diligências, dos procedimentos, das auditorias judiciais, contabilísticas, fiscais e financeiras, etc.). Esta diligência colide com a tradição de gestão das práticas religiosas confiada ao monopólio dos clérigos e das pessoas estritamente religiosas que não possuem, na sua maioria, recursos externos e profissionais e não hesitam a implicarem-se pessoalmente, de modo frequentemente aproximativo, nesses domínios técnicos.
A erosão do tempo e dos acontecimentos experimentados, marcados pelas colocações em causa, discriminatórias e constantes, emanando de certos órgãos de imprensa, de certas administrações encarregadas de repressões fiscais, sociais e aduaneiras, conduzem certos responsáveis religiosos a tomar medidas de reacção adaptadas à situação. Esta tomada de consciência não é natural nem imediata. Ela surge com frequência tardiamente, quando o déficit de reputação é tal que alimenta o recurso a um incremento de medidas discriminatórias. Quem cala consente. A escolha dos conselhos e dos meios releva portanto do exame da história religiosa
do nosso país, das respostas elaboradas pelas diferentes instituições de crentes e de um não menos indispensável recurso à experiência e ao perecer profissional20 .
O caminho do restabelecimento dos equilíbrios entre liberdade de crenças e liberdade de acção de terceiros está semeado de ciladas. Confrontados com controvérsias públicas que acreditam o reforço dos actos discriminatórios, o Estado e os seus representantes têm então por lógica a suspensão das suas decisões ao estabelecimento de uma jurisprudência estabelecida. Na presença de terceiros, o Estado, testemunha de um atentado ou de uma constatação de «discriminação», submete então a resolução do conflito à decisão do juiz. A contrario, esta posição de neutralidade aparente pode por sua vez legitimar a seriedade do critério parlamentar dos «esclarecimentos judiciários» de certos grupos qualificados como «seitas» pelos dois relatórios de informação parlamentar. Isto atesta a importância da oportunidade e das modalidades dos recursos judiciais nacionais e internacionais. O recurso ao procedimento do requerimento judicial21 permite, sabe-se, tomar rapidamente medidas desde a realização do atentado para «limitar, suprimir mesmo, se possível, os seus efeitos sobre a consciência afectada [...] O Tribunal da Relação de Dijon teve assim a oportunidade de afirmar expressamente esta competência do juiz dos recursos quando é alegado o atentado manifestamente ilícito ao exercício desta liberdade fundamental que é a liberdade de consciência: Dijon, 22 de Março de 1988; Dalloz, 1988, I.R. 13522». Além disso, o contencioso das actividades cultuais pode reflectir-se positivamente no estatuto jurídico e social dos grupos de crentes23. Jacques Arrighi de Casanova explicou assim o recurso ao juiz num sistema jurídico onde «a República não reconhece nenhum culto24» descrevendo a diligência de «reconhecimento colateral» dos grupos religiosos surgidos em França após 1905:
«A obtenção do estatuto das associações cultuais [...] surge, para muitas destas novas religiões, como uma questão de ordem social e política [...]novos cultos surgem e procuram, senão ser “reconhecidos” [...] pelo menos obter um reconhecimento oficial indirecto solicitando o benefício das legislações que tomam em conta, de uma forma ou de outra, a existência de um culto. A constituição de associações procurando obter um carácter cultual, no sentido do título IV da lei de 1905, é precisamente um dos seus meios privilegiados25.» Observa-se que o contencioso face às jurisdições judiciárias é marcado por numerosas decisões «pusilânimes»26 enquanto que o juiz administrativo fica frequentemente, parece-nos, ligado a uma interpretação legalista e aos grandes princípios27. Deste ponto de vista, só estudos de avaliação e trabalhos de síntese, tornados públicos28 , permitiriam medir «o imenso trabalho judiciário, insuficientemente posto à luz, num domínio frequentemente passional [...]. Tal como é colocado em marcha pela jurisprudência civil e penal, o modelo laico da República privilegia menos “as finezas da definição da liberdade religiosa” do que
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? uma abordagem pragmática das situações e uma procura das soluções para proteger a sociedade e os indivíduos que a compõem (unindo-se ao modelo de cepticismo estrutural evocado por R. Torfs) [...]. O juiz permite assim escapar a esta alternativa lancinante ignorar/reconhecer 29.» Enfim, sendo o juiz nacional o juiz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os queixosos têm manifestamente todo o interesse, em matéria de protecção dos direitos fundamentais, de se referirem e invocarem, perante os juizes da ordem jurídica interna, a plena aplicação dos seus princípios e da jurisprudência subsequentes. O sistema europeu das garantias dos direitos do homem constitui um aguilhão eficaz a vários títulos, mesmo que ele não seja uma fachada miraculosa para um aparente déficit de protecção em direito interno30 .
Os efeitos positivos, directos e indirectos, do contencioso nacional e europeu são de natureza a consolidar e a reforçar o quadro das actividades religiosas assim submetido à racionalidade normativa e processual31 . Além disso, constituem um factor de honorabilidade devido à função de magistratura do juiz em França, «guardião das nossas promessas democráticas» (Antoine Garapon). Além disso, o recurso ao juiz é susceptível de suspender ou de atenuar a lógica das «campanhas» hostis aos crentes ateando legitimamente contra-fogos e metendo a descoberto tensões no limite do aceitável numa sociedade democrática (pensa-se aqui nas campanhas de imprensa», em forma de «cruzadas» contemporâneas, contra crentes suspeitos de actos de «pedofilia», de «prevaricação» ou mesmo de «fraude», organizadas pelo simples facto da sua filiação confessional ou de convicção). Enfim, o recurso ao juiz autoriza aos crentes a construção de um «muro protector» por uma jurisprudência estabelecida, ponto de referência da liberdade das religiões enquanto fazemos a experiência de uma sociedade no seio da qual «os fins jurisdicionais públicos são muito amplamente predominantes32». Além disso, todas as coisas iguais a essas condições de forma respondem, como um eco, às, não menos formais, do quadro de expressão das crenças que determina, na nossa opinião, a garantia das protecções dos crentes.
II. A escolha do quadro de expressão das crenças determina a garantia das protecções oferecidas aos crentes.
1. A necessária diligência prévia em termos de explicação e de demonstração dos esquemas de organização e de funcionamento do conjunto dos grupos religiosos.
Se a lei fundadora de 9 de Dezembro de 1905 «respeitante à separação das Igrejas e do Estado» (título exacto da lei) consagrou, num estrito ponto de vista legal, uma ausência de reconhecimento dos «cultos» (e não das «Igrejas») pela instituição estatal, não «separou» de forma alguma as religiões da República. De modo que as tensões entre as práticas religiosas
e as práticas estatais não relevam somente do quadro jurídico dos cultos. Os litígios que daí resultam ultrapassam largamente o quadro legal de concertação nas relações entre os cultos e o Estado. Os confrontos em questão exercem-se à vez num espaço político e jurídico que sofreu a proeminência do Estado e dos seus valores. Com efeito, a esta liberdade de crer ou de não crer corresponde um arranjo normativo e prático das modalidades de expressão das crenças religiosas. A liberdade de consciência, total, mantém-se portanto, na prática, subordinada – sem ser enfeudada – ao regime das liberdades públicas. Todos e cada um dispõem das suas opções de consciência no limite das condições do exercício das liberdades sob a cobertura do respeito do «sacrossanto» princípio do respeito da ordem pública (cf. artigo 10.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789).33
Mas na realidade, parece que as crenças religiosas são tanto mais protegidas quanto relevam do exercício de um culto. Com efeito, do ponto de vista das protecções externas, o nosso regime de liberdade das crenças religiosas é antes de mais o dos cultos. Assim, a liberdade de religião não adquiriu, relativamente à liberdade de culto, uma autonomia que ele não possui. Na França sabe-se que o quadro jurídico das manifestações religiosas não se reduz apenas às legislações e regulamentos dos cultos, enquanto que a defesa e a protecção das práticas religiosas obedecem ao quadro jurídico dos cultos. Quantas vezes não constatámos nós a existência de uma denegação das práticas «de novos movimentos religiosos» ou de «movimentos religiosos minoritários» pela simples razão que o estatuto de associação cultual, da lei de 9 de Dezembro de 1905, respeitante à separação das Igrejas e do Estado, não lhes foi conferido no quadro de um pedido de autorização para receber um legado (artigo primeiro da lei de 25 de Dezembro de 1942) ou no quadro de um contencioso do direito de imprensa sobre a difamação ligada à filiação a uma determinada religião (cf. artigo 32.º-2 da lei de 29 de Julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa). É do mesmo modo da «protecção» que no plano fiscal oferece o estatuto de associação cultual em razão do carácter derrogatório da fiscalidade dos cultos. Como se a qualidade cultual condicionasse a protecção da filiação e do exercício religioso.
Nestas condições, o nosso sistema jurídico das religiões supõe a colocação em prática de quadros legais – os das instituições associativas ou congreganistas – que comportam exigências particulares relevando da organização e do funcionamento dos grupos de crentes. Esta arquitectura cultual e religiosa supõe a aceitação de regras de organização, de transparência e de controle pelo prisma dos imperativos democráticos (designação dos responsáveis pela Assembleia Geral da associação, controle das contas, etc.)34. Um tal esquema situa-se na base do respeito das crenças e das práticas religiosas na França.
2. A colocação em evidência das responsabilidades individuais e colec-
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos?
tivas dos crentes
Em França, a tradição e a gestão «bonapartista» das práticas religiosas, pelas instâncias superiores, parece impor a instauração de instâncias nacionais representativas das práticas religiosas, O nosso quadro regalengo incita os crentes a associarem-se (regras do contrato civil de associação das leis de 1901, de 1905, das congregações religiosas do título III da lei de 1901). O Estado tem horror ao vazio. Ele impôs, desde 1802, sob a autoridade de Bonaparte, o agrupamento dos crentes segundo o modelo consistório, federativo, unionista35. Esta demanda implícita do Estado central, modelada pela tradição da autoridade estatal, encontrou um aliado natural no regime dos cultos construído pelos parlamentares a partir de 1905, seguido por numerosas leis subsequentes.
O regime dos cultos e das associações religiosas comporta assim numeras adaptações susceptíveis de favorecer a expressão do religioso no espaço público e privado, e, no entanto, por capilaridade, a sua defesa e protecção. Tal é o caso, por causa dos quadros legais de emancipação e de liberdade, das práticas religiosas em numerosos domínios: assim, dos regimes legais das capelanias na escola, nos hospitais, nos estabelecimentos penitenciários, no seio das forças armadas, o estatuto dos ministros dos cultos, a fiscalidade e o direito social dos cultos, as questões dos edifícios do culto, etc.
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Este esquema implica a responsabilidades36 e a designação de responsáveis dos grupos de crentes, encarregados de representar os atentados, as demandas, e as relações, no próprio seio da colectividade religiosa. Esses responsáveis instituídos oferecem às instâncias que asseguram a defesa e a protecção das práticas religiosas (administração, justiça, eleitos) referências quanto à natureza das práticas religiosas em causa, o tipo de tensão ou de litígio, permitindo provavelmente antecipar e prevenir um eventual conflito. Podem igualmente assegurar a regulação e a gestão das tensões consecutivas às tomadas de posição públicas e/ou mediatizadas dos «que estão de saída», dos «ex-fiéis ou adeptos», dos «oponentes» que tendem a pôr em causa os seus antigos correligionários.
3. A primazia dos termos do diálogo e da mediação dos conflitos (no seio do mundo das empresas, relações com os poderes públicos, com os eleitos locais e nacionais, etc.)
A construção de um espaço de liberdade de religião implica a contribuição das capacidades e o envolvimento dos próprios crentes na explicação e no aclarar das suas tomadas de posição religiosas. A informação na matéria é fonte de resolução de numerosos pontos de tensão inúteis. O recurso a formas de diálogo no espaço público e privado é de natureza a reforçar o próprio «estatuto» dos crentes. Gérard
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? Defois, prelado católico, que, segundo a sua expressão, «representa uma associação que tem vinte e cinco séculos de experiência», explicou assim que «ser julgado em nome do humanismo, ser contestado a título dos medos que se inspira, ser recusado por causa de questões que se colocam, é ser intimidado a dar-se conta das nossas esperanças e das nossas diferenças, e, por aí, a entrar em debate com a sociedade no pluralismo das convicções e da evolução dos costumes. [...] Precisamos portanto de explicar, desdobrar, significar as nossas razões de esperar de modo diferente e de julgar de modo diverso. Contudo, as dificuldades actuais advêm de um desconhecimento radical da história real da Igreja, do seu Evangelho e do carácter específico da sua acção. [...]37» Aceitar este déficit de cultura da informação dos factos religiosos no seio de um grupo de crentes, significa uma mudança de posição ao mesmo tempo que reivindica o estatuto de uma «instituição de verdade» e recusa em si uma concorrência de discurso sobre si. Esta diligência parece hoje indispensável nas nossas sociedades de troca e de pôr tudo em causa. Ela diz respeito ao conjunto de corpos constituídos, de grupos, de associações, de indivíduos que, no espaço público, reivindicam uma palavra, uma mensagem, uma posição38 .
A gestão dos conflitos em matéria de confrontação das normas e dos comportamentos religiosos com a sociedade civil, a sociedade política, no mundo da empresa, no seio da «escola», etc. apela a um modo de resolução não jurisdicional dos conflitos, quando isso é possível. Com efeito, o recurso ao juiz resulta quase sempre de um fracasso na relação entre homens, mulheres, pessoas morais e autoridades. É, portanto, necessário suscitar sempre e ainda modelos de interacção entre os diferentes intervenientes no espaço público e fazer assim a economia das disputas inúteis, duvidosas e dispendiosas39. A experiência de certas iniciativas tais como a Associação dita Marseille-Espérance merece que nos interessemos nela.40 À sua maneira, Danielle Hervieux-Léger, referindo-se à «parábola neocaledónia» (cf. a missão instituída em 1988 por Michel Rocard, então Primeiro-Ministro, «encarregue de apreciar a situação e de restabelecer o diálogo na Nova Caledónia») advoga nestes termos a favor de uma «laicidade mediadora»: «A única coisa que conta, desde que um grupo reclama esse dever democrático, é saber-se em que medida os valores que ele difunde e as práticas que ele coloca em acção são compatíveis não apenas com o Estado de direito, mas igualmente com o universo de valores que pode, por si só, assegurar-lhe o exercício efectivo do direito que ele reivindica. Sobre o primeiro ponto, o juiz dispõe, nos planos civil e penal, de instrumentos de controlo e de sanção. Sobre o segundo, falta inventar uma instância mediadora que possa sair dos “litígios sobre os valores” que faz surgir a proliferação dos regimes comunitários da validação do crer, uma instância que elabore, caso a caso, uma definição prática (e não jurídica) dos limites aceitáveis da liberdade
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? religiosa praticada numa sociedade democrática. A sua missão não seria estatuir, mas sim organizar o debate e de tornar públicos os seus termos, em todos os casos em que esse exercício da liberdade suscita conflitos que não compete ao Direito regular, mas que implicam, no entanto, os princípios fundamentais da vida colectiva. [...] Ao aceitar ou ao recusar o princípio desta mediação estatal, as diferentes famílias espirituais e o conjunto dos grupos e movimentos que reivindicam para si mesmos o benefício da liberdade religiosa demonstrariam, ao mesmo tempo, a sua aceitação ou a sua recusa do quadro democrático no interior do qual essa liberdade pode ser invocada41 .» Por mais sedutora que seja, esta proposta não deixa de surpreender relegando o exercício dos direitos, das liberdades e das obrigações para uma instância intermediária sob a égide do Estado, que, sob a capa de «mediação», assegurasse uma regulamentação: 1. pelo debate e 2. cujos termos seriam tornados públicos. Por um lado, sacrificando assim o uso administrativo das «comissões», «missões», «células», do ponto de vista constitucional, parece arriscado subordinar o exercício de uma liberdade fundamental à mediação de um corpo intermediário. Ao seguir o interessaddo, o «Direito» não permite aceder a uma «definição prática dos limites aceitáveis da liberdade religiosa». O jurista e o juiz, caso a caso, mas igualmente no quadro de uma doutrina dominante ou de uma política de jurisprudência, sucumbiriam à exigência da elaboração de uma definição prática dos ditos limites. Por um lado, esta perspectiva não toma suficientemente em conta a muito importante obra pretoriana do juiz em França em matéria de liberdade pública que, no silêncio dos textos, elaborou um regime de liberdades públicas, perfectível, é certo, mas que honra a França. A diligência proposta faz tábua rasa sobretudo da equidade que resulta do tratamento pelos Direitos nacional e internacional das diferenças religiosas e culturais. Por outro lado, esta proposta, sem equivalente no domínio das liberdades públicas – pensarse-ia em elaborar uma tal construção para conseguir uma definição prática de liberdade sindical ou para as liberdades políticas? – não deixaria de revelar, mais uma vez, o reflexo gravado de suspeita dos grupos religiosos não tradicionais que, em França, continuam ainda a fazer as despesas da «colocação em exame parlamentar» decidida em 199542 .
Num artigo intitulado «La justice défeillante pour répondre aux agressions – À Lyon, les instances communautaires font figure d’ultime recours», o diário Le Monde, de 29 de Março de 2003, noticiava as carências das Comissões departamentais de acesso à cidadania (CODAC), encarregues nomeadamente da recolha dos dados relativos aos actos de racismo e de discriminação e de lhes dar seguimento, fosse ele judiciário, através de um encaminhamento para os serviços judiciais competentes, ou do tipo mediação. Alain Jakubowicz, advogado e presidente do Conselho Representativo das Instituições Judaicas de França (CRIF) do Rhône, explicava ao diário que «A CODAC nunca procura resolver actos de
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? anti-semitismo. Não existe lugar público onde as autoridades públicas resolvam essas práticas [...] Os judeus dirigem-se-nos prioritariamente porque pensam que que está melhor colocado para os ajudar é o CRIF, não o Estado». Esta constatação de carência dos CODAC sublinha, mais umavez,odéficitdeculturapúblicademediaçãoemmatériadegestãodos atentados às práticas religiosas. Será o diálogo inter-religioso suficiente? Competirá ao Estado, e aos seus organismos organizar as modalidades de uma laicidade mediadora? Actualmente nada é menos seguro do que isto, não mais que antes. Na realidade, parece que a instauração das condições de diálogo e, portanto, de mediação advém primeiramente das próprias pessoas e dirigentes religiosos. O peso da palavra das instituições e dos seus representantes não tem igual, enquanto que a grande maioria dos atentados às práticas religiosos em si resultam frequentemente de conflitos entre os próprios crentes ou entre grupos de crentes. Assim, é de educação que se trata antes de mais; simplesmente de educação para a cidadania e de educação para o pluralismo religioso.
Conclusão
Podem ser avançadas uma série de observações conclusivas para esclarecer esta modesta apresentação relativa a um assunto que os crentes e «descrentes» levam a peito.
Antes de mais, na ausência de instrumentos de medida e avaliação do número e natureza dos atentados às práticas religiosas, torna-se extremamente difícil chegar a uma conclusão geral sobre a acuidade da questão e da sua prioridade43. Já o «discurso» em forma de «vitimização», pelo contrário, deve ser entendido para ser melhor compreendido: quais são as suas causas e sob que formas? Quem é o emissor da informação: a própria vítima? Terceiros? E por que razões?
Além disso, observa-se nos crentes uma confusão/distorção, conhecida dos praticantes do Direito, entre a invocação encantadora a respeito dos «grandes princípios» (liberdade, direitos do homem, etc.) e o imperativo de protecção que, segundo os primeiros, daí deveria necessariamente derivar. Ora, nem o direito à liberdade de consciência nem o direito à liberdade de culto são meios infalíveis para lá chegar.
Enfim, em França, o clima de suspeição que pôde ter resultado das medidas de «luta contra as seitas», mas igualmente, tratando-se de actos anti-semitas, o recrudescimento do racismo reforça a «crença» numa deterioração do estado da liberdade religiosa.
Baseando-se nesta constatação, é necessário desimpedir os eixos de trabalho com vista a restabelecer os equilíbrios e conseguir assegurar, no sentido do próprio título da Carta Europeia dos Direitos do Homem, «a salvaguarda» dos direitos, liberdades e obrigações dos crentes. Os remédios destinados a corrigir ou a antecipar os conflitos podem assim ser descritos, no estado actual da legislação, da regulamentação, da jurisprudência e
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? da doutrina administrativa (tratando-se de «doutrina administrativa» na falta de ser «una ou indivisível», e na ausência de «guiché único» para os cidadãos administrados, a organização administrativa impõe frequentemente uma verdadeira gincana aos administrados44).
Não existindo reconhecimento social, a aceitabilidade pelas opiniões públicas, o déficit da imagem e da reputação, os grupos de crentes podem beneficiar de uma protecção assegurada através de um reconhecimento superior do seu estatuto jurídico e associativo45. O esforço de organização e de institucionalização das práticas religiosas constitui um dado maior em França. Émile Poulat, através de uma bela fórmula de que detém o segredo, apela aqui ao «realismo conjugado com a competência». Esta constatação, que desafia a inteligência e a razão, está bem à medida do que está em jogo nas nossas sociedades desencantadas e técnicas que continuam a segregar formas extraviadas de expressão da mediocridade contemporânea: recurso ao «outing» (i.e. exteriorizar, tornar público, publicar)46, à «guerrilha semântica»47 à instrumentalização das questões de segurança e de identidade48 , e ao recurso à arma fiscal táctica49. O déficit de conhecimento, de especialização e de experiência constitui uma «circunstância agravante» que apela a que os grupos religiosos empreendam diligências à altura do que está em jogo. Este arranjo supõe o ter em conta as condições de forma, a adopção de um esquema de organização e de funcionamento particular que a jurisprudência dos tribunais nacionais e internacionais tomam positivamente em consideração, conjunto de natureza a assegurar uma defesa e uma protecção equilibradas das práticas religiosas.
Textos de base50 (referências não exaustivas)
«Ninguém pode ser perturbado por causa das suas opiniões, mesmo as religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.» (Artigo 10.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.)
«A França assegura a igualdade perante a lei a todos os cidadãos sem distinção de origem, de raça ou de religião. Ela respeita todas as crenças.» (Artigo primeiro da Constituição de 4 de Outubro de 1958).
«São punidos com uma coima [...] os que por vias de facto, violências ou ameaças contra um indivíduo, seja fazendo-o temer perder o seu emprego ou expor a um dano a sua pessoa, a sua família ou a sua fortuna, o tenham levado a exercer ou a abster-se de exercer um culto, a fazer parte ou a cessar de fazer parte de uma associação cultual, a contribuir ou a abster-se de contribuir para as despesas de um culto.» (Artigo 31.º da lei de 9 de Dezembro de 1905).
«Serão punidos com as mesmas penas os que tenham impedido, retardado ou interrompido os exercícios de um culto através de distúrbios ou desordens causados no local servindo a esses exercícios.» (Artigo 32.º
Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? da lei de 9 de Dezembro de 1905).
Os artigos 9.º do Código Civil (atentado à vida privada), 225.º-1 e 432.º-7 do Código Penal (repressão da discriminação) e L 122.º-45 do Código do Trabalho («Nenhum assalariado pode ser sancionado ou licenciado em razão das suas convicções religiosas»).
Lei de 29 de Julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa (artigos 23.º e 24.º: «provocação à discriminação em razão da religião» e artigos 29.º e 32.º-2: «difamação religiosa».
Notas
1. Poucos estudos foram publicados sobre este assunto. Mencionaremos apenas a obra colectiva La protection internationale de la liberté religieuse, J.-F. Flauss (éd.) Publications de institut international des droits de l’homme, Institut René Cassin de Strasbourg, Bruylant (Bruxelles), 2002 ; referiremos o artigo do Pr. Jean Duffar intitulado «La protection internationale des droits des minorités religieuses» (R. D. Publ. 1994, pp. 1495ss,) o de Thierry Massissous, «La liberté de conscience, le sentiment religieux et le droit pénal» (Dalloz, 1992, pp. 118-118) e d’Alain Lacabarats, «La juge et la laïcité : le droit au respect des croyances» (Les Petites Affiches, 3 de Outubro de 1997, n.º 119, p. 49. A escassez de tais estudos práticos e profissionais (os dois primeiros são advogados e o terceiro magistrado) é real, à excepção de certas teses universitárias, desconhecidas do grande publico, dos crentes e dos representantes religiosos. Para um exame universitário da questão que «mostra toda a dificuldade que experimenta o sistema jurídico para proteger a liberdade de consciência» ver Dominique Laszlo-Fenouillet, La conscience, L.G.D.J., Biblio. de droit privé, tomo 235, 1993, 550 páginas, e a obra de Vincent Fortier, Justice, religions et croyances, CNRS Éditions, Coll. CNRS Droit, 2000. 2 Ver as declarações de Hubert Védrine, ministro dos Negócios Estrangeiros, na Assembleia Nacional a 17 de Março de 1999 (J.O. Ass. nat., 2.ª sessão, 17 de Março de 1999, pp. 25322533); Blandine Chelini-Pont. «Au nom du Christ et de l’Amérique – Le fondamentalisme américain et son impact géopolitique : tentative de perspective», in Revue française de géopolitique, n.º 1, 2003 ; Bruno Fouchereau, «Au nom de la liberté religieuse – Les sectes, cheval de Troie des Etats-Unis en Europe», in Le Monde diplomatique, Maio de 2001 (este artigo comporta inexactidões em relação a factos relatados sem verificação). 3 Assim as controvérsias sobre o estatuto de certas organizações não governamentais, qualificadas, na melhor das hipóteses, de instrumentos de comunicação, e na pior, de «narizes postiços», ou de defesa da Igreja da Cientologia que militam pela a defesa dos direitos do homem. Observam-se sobre isto numerosas tentativas deste grupo no domínio da acção colectiva relativa à defesa dos direitos do homem, legítimas em si, mas que revelam um discurso sobre os princípios («os direitos do homem») que não permite de modo algum responder às condições legais do exercício das liberdades públicas em França (a respeito das formas de acção colectiva em matéria associativa, fiscal, social, etc.). Como se essa atitude, omnipresente nesse grupo, tal como uma estrutura que se impõe, evitasse ter de responder às condições em causa e constituísse uma desculpa absolutória. Ora a invocação e a proclamação das liberdades, mesmo a de «religião» ou de culto, não constituem in abstracto factos justificativos nem talismãs. 4 Cf. as actividades da Associação Crenças e Liberdades cujo objectivo é, por um lado,
defender, a liberdade religiosa, o direito ao respeito das crenças; e, por outro lado, os dogmas, os princípios da Igreja Católica, assim como as suas instituições (Monsenhor Bernard Lagoutte, «L’action en justice – l’exemple de l’Association Croyances et Libertés», in Religions, droit et société dans l’Europe communautaire, Collection Droit et Religion, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2000) e as daAssociação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa cuja sede é em Berna (Suíça). Esta última conta com uma Comissão de Honra pluri religiosa e «laica» (J. Baubérot, E. Poulat, J. Robert, etc.). 5 Pierre-Henri Prélot, «Les religions et l’égalité en droit français», in Rev. Dr. Publ., n.º 3, 2001, p. 739. 6 Ver as Conclusões do Seminário do Comissário Europeu para os Direitos do Homem de 10 e 11 de Dezembro de 2001 sobre as relações as relações entre Igrejas e Estados: «Certas comunidades podem beneficiar de um regime especial. Esse regime não é constitutivo de uma discriminação desde que a cooperação entre essas comunidades e o Estado seja fundada sobre critérios objectivos e razoáveis tais como a pertinência histórica ou cultural, a representatividade ou a utilidade social para a sociedade no seu conjunto ou para um grupo de população substancial ou específico. O Estado tem também uma obrigação positiva de contribuir para a preservação do património religioso, cultural ou histórico fornecido à humanidade pelas comunidades religiosas ao longo dos séculos.» 7 Para uma abordagem aprofundada do método de apreciação do Juiz Europeu dos Direitos do Homem, ler Jacques Velu e Rusen Ergec, La Convention européenne des droits de l’homme, Bruylant-Bruxelles, 1990, pp. 120 ss. Estes autores explicam em detalhe que o carácter razoável e objectivo da distinção se aprecia segundo dois critérios: a prossecução de um objectivo legítimo e a relação de proporcionalidade entre os meios e o objectivo assim visado. 8 Presidido por Émile Poulat na presença, nomeadamente, do Sr. Vianney Sevaistre que expôs o tema «Que diz a lei de 1905? O que deve ser e não ser uma associação cultural» (Actas a serem publicadas pelas Éditions L’Harmattann, Paris). 9 Para uma leitura das medidas de luta contra as «seitas» em França, ver a obra de 250 páginas Face aux sectes, que reúne exclusivamente os textos oficiais na matéria (leis e regulamentos) e que foi publicado por Les Éditions des Journaux officiels em Fevereiro de 2002 (n.º 1747). Sobre a «vontade de revitalizar o trabalho de coordenação interministerial» neste domínio, ver as respostas ministeriais publicadas sobre o assunto, após 29 de Novembro de 2002, data da criação da nova Missão Interministerial de Vigilância e de Luta contra as Derivações Sectárias (MIVILUDES) que substitui a Missão Interministerial de Luta contra as Seitas (J.O., Assemblé nationale de 6 de Janeiro de 2003, p. 31; 27 de Janeiro de 2003, p. 500 e 17 de Fevereiro de 2003, p. 1247). 10 É evidente que a qualificação jurídica e a sanção judiciária de um atentado podem não corresponder, para a própria pessoa, pela constatação objectiva, aos seus olhos, da realidade e da gravidade do atentado. A tradução jurídica do alegado atentado, desse ponto de vista, pode constituir, para alguns, algo de verdadeiramente contraproducente, um logro, uma vã diligência. 11 Foram denunciados no colóquio acima referido de 29 de Março de 2003 um inquérito dos Serviços de Informações Gerais sobre a situação pessoal, económica e bancária de um pastor de expressão africana (quid sit dos poderes de inquérito legítimos dos ditos serviços?), os efeitos de uma postura comunal de interdição de reunião cristã num local não respondendo (segundo parece) à regulamentação em matéria de segurança, (quid sit da aplicação da dita regulamentação?), a intervenção da polícia à entrada de uma estação de metro parisiense por causa da pregação na via pública por parte de um pastor (quid sit do regime de «colportagem»
que proíbe tais manifestações em certas zonas da capital?), etc. 12 Discriminations, Éditions du Juris-Classeur, Pénal, 2000, art.º225-1 a 225-4, § 81ss. 13 Para o Tribunal Europeu, de jurisprudência constante, «simples suspeitas ou conjecturas são insuficientes» para estabelecer a realidade de uma constatação de violação dos direitos e liberdades garantidas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim julgado no caso Federação Cristã das Testemunhas de Jeová de França contra França que «[...]o artigo 35.º § primeiro da Convenção exige que um indivíduo requerente se considere efectivamente lesado pela violação que alega. Este artigo não institui em proveito de particulares uma espécie de actio popularis para a interpretação da Convenção; ele não autoriza a queixa in abstracto de uma lei pelo facto de ela parecer infringir a Convenção. Por princípio, não basta a um indivíduo requerente sustentar que uma lei viola, pela sua simples existência, os direitos de que usufrui nos termos da Convenção; ela deve ter sido aplicada em seu detrimento [...] Um processo de intenções feito ao legislador preocupado em regulamentar um problema escaldante da sociedade não é a demonstração de probabilidade de um risco incorrido pelo requerente. Além disso, não saberia, sem contradições, valer-se do facto que ela não constitui um movimento atentatório das liberdades e, ao mesmo tempo, pretender que ela fosse, pelo menos potencialmente, uma vítima da aplicação que poderia ser feita dessa lei» (observação n.º 53430/99, decisão de inadmissibilidade de 6 de Novembro de 2001). 14 Sentença De Jong, Baljet e Van der Brink de 22 de Maio de 1984, série A, n.º 77, p. 23 § 48 com uma referência à jurisprudência anterior (estudar aqui a obra colectiva La Convention européenne des droits de l’homme, sob a dir. de L.-E. Pettiti, E. Decaux e P.-H. Imbert, Economica, 1995). 15 Pierre Soler-Couteaux, Raports de synthèse du Colloque national sur les témoins de Jéhovah et le droit ; Ass. Nat., 26 de Outubro de 1993, Les Petites Affiches, 10 de Agosto de 1994. 16 Como sublinha muito justamente Émile Poulat, o termo de «reconhecimento», polissémico, como vários outros em matéria de liberdade religiosa (cf. «laicidade», regime da lei de 1905 ou antes «oriundo da lei de 1905», «separação», «associação religiosa», etc.) faz parte dessas noções ambíguas porque estão carregadas de sentido, de contra-sensos e de prenoções. Em «Direito francês das religiões», tratando-se de «reconhecimento», encontra-se este termo unicamente no artigo 13.º da lei de 1 de Julho de 1901 relativa ao contrato de associação (título III, Das congregações): «Toda a congregação religiosa pode obter o reconhecimento legal por decreto emitido com o aval do Conselho de Estado», enquanto que o artigo 2.º da lei de 9 de Dezembro de 1905 fixa o princípio segundo o qual «A República não reconhece [...] nenhum culto». Mas há mais. No campo intelectual utiliza-se esse termo noutro sentido: assim, Tariq Ramadan, professor de filosofia e de islamologia na Universidade de Genebra, afirma que «a União das Organizações Islâmicas de França aceitou o jogo em troca de um reconhecimento público», (Le Monde, 5 de Abril de 2003). 17 Deste pondo de vista observar-se-á que certos grupos poderiam acumular o «estatuto parlamentar de seitas» (devido a que em 1995 o seu nome aparecia na lista parlamentar das «seitas») e o «estatuto administrativo de culto» (pelo facto de que, posteriormente a 1995, os serviços do Estado, Governos Civis e Finanças, conferem esse estatuto a grupos que os pedem e que preenchem as condições legais e da jurisprudência). Tal é o caso, em 2003, das Testemunhas de Jeová. Ver a nota jurídica sobre dois Pareceres do Conselho de Estado datados de 23 de Junho de 2000 versando sobre matéria de fiscalidade fundiária cultual (de modo que em França, as 1000 e mais associações locais das Testemunhas de Jeová logram desse modo ser-lhes conferido o estatuto de associações exclusivamente cultuais da lei de 9 de Dezembro de 1905) publicada na Revue du Droit public, n.º 6, 2000. 18 Esta diligência é, além disso, de natureza a evitar ao grupo religioso de sofrer os efeitos ligados às grelhas de leitura policiais (relatórios dos Serviços de Informações Gerais que resultam das investigações sobre as práticas ligadas à filiação religiosa: ver, por exemplo, o
artigo do diário Le Monde de 17 de Outubro de 2002 intitulado «Les renseignements généraux “convoquent” les responsables musulmans de la Seine-Saint-Denis». Guardamo-nos, contudo, de «diabolisar» o trabalho de polícia desses serviços que, em razão das missões de vigilância que lhes incumbem, podem exercer simultaneamente a protecção dos crentes. É o caso das investigações desses serviços no domínio da observação dos actos anti-semitas em França, revelados pelo Le Monde de 29 de Março de 2003) e das conclusõesparlamentares (Relatórios das duas comissões de inquérito de 1995 e de 1999). Jean-Marie Woerling evoca assim a oportunidade de uma «diligência de “reconhecimento positivo” das crenças comportando um interesse social [...] sobre a base de critérios objectivos estranhos ao conteúdo das próprias convicções religiosas» (Une définition juridique des sectes?», in Les «sectes» et le droit en France, sob a dir. de Francis Messner, PUF, Politique d’aujoud’hui, 1999, pp. 87-89). 19 Sectes et religions : où sont les différences? Études en l’honneur de Georges Dupuis, L.G.D.J., 1997. 20 Assinala-se a este respeito o déficit de conhecimento teórico e prático dos diferentes intervenientes (gabinetes das associações de Governos Civis, pessoal e dirigentes religiosos, funcionários territoriais, etc.) no domínio difícil, técnico e complexo, do direito à liberdade de consciência, do direito das associações religiosas e dos cultos. É verdade que esta carência resulta também do «consenso de discrição» (Paul Chambaud) de que beneficia o direito dos cultos. Partindo, indicar-se-á a organização pelo Instituto de Direito e de História Religiosos da Universidade de Aix-Marseille III, a contar do início das actividades universitárias de 2003, do diploma universitário «Laïcité, droit des cultes et des associations religieuses», primeiro do género em França (www.idhr.u-3mrs.fr). 21 Philippe Bertin, Le juge des référés, protecteur des croyants, Gaz. Pal., 1984, 2, doctr. 534. 22 Dominique Laszlo-Fenouillet, acima citado, pág. 471. Visa-se aqui, entre outras modalidades de recursos, as disposições dos artigos 808.º e 809.º do Novo Código do Processo Civil, mas igualmente o artigo 533.º do Código de Justiça Administrativa, que concerne o recurso administrativo dito «liberdade fundamental». 23 O artigo 66.º da Constituição de 4 de Outubro de 1958 dispõe que «[...] A autoridade judicial, guardiã da liberdade individual, assegura o respeito deste princípio nos termos da lei» (ver o Código Constitucional, comentado e anotado por M. de Villiers e Th. S. Renoux, Litec, 2001). 24 Para prosseguir a discussão sobre a noção polissémica de «reconhecimento», salienta-se que o legislador de 1905 colocou o princípio de que só a República não reconhece nenhum culto e não o Estado. 25 Conclusões sob o parecer da Assembleia do Conselho de Estado de 24 de Outubro de 1987, no caso Associação local para o Culto das Testemunhas de Jeová de Riom, RFD ADM. 14(1), Jan.-Fev. 1998, p. 65. 26 1.º civ. de 18 de Set. de 2002, Singer contra Toubon, JCP 202, V. 2660 (rejeição de um poder no quadro do contencioso da colocação em causa por falta do Ministro da Justiça signatário da circular de 29 de Fevereiro de 1996, relativo à luta contra as «seitas»); ver também o contencioso Palau-Martinez, de 13 de Julho de 2000 (recusa da guarda dos filhos a uma mãe testemunha de Jeová), em processo no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (decisão de admissibilidade de 4 de Março de 2003). 27 Saudamos aqui a obra do Conselho de Estado e dos seus comissários do Governo, que faz escrever a Jean Barthélemy, bastonário da Ordem dos Advogados no Conselho de Estado e no Tribunal da Relação: «composto, segundo Le Bras, de “magistrados íntegros, lúcidos e humanos”, e determinado a proteger as liberdades, permitiu a aplicação pacífica da lei de separação, colocando-se como garante da coesão do Estado e da nação.» («Le Conseil d’État et la construction des fondements de la laïcité» in La Revue administrative, número especial 1999, PUF, que constitui as Actas do colóquio intitulado «Le Conseil d’État et la 25
liberté religieuse»). 28 Observar-se-á a este propósito a diferença prática entre a abundante produção universitária, precisa, técnica e documentada (dissertações, teses, etc.) e as referências a esses trabalhos, por exemplo, pelos poderes públicos e magistrados. Aqui, como noutros lados, somos confrontados com a «efectividade» reduzida dos trabalhos universitários fora do campo da produção intelectual propriamente dita. 29 Vincente Fortier, acima citado, pp. 172-173. 30 Gérard Gonzalez, La Convention européenne des droits de l’homme et la liberté des religions, Economica, 1997. 31 Pierre Drai, Le rôle et la place du juge en France aujoud’hui, conferência no Instituto Portalis em Aix-en-Provence, RRJ – Droit prospectif, 1991, 3 ; Yves Madiot, Le juge et la laïcité, Pouvoirs, 1995, n.º 75. 32 Antoine Leca, La genèse du droit – Essai d’introduction historique au droit, Librairie de l’Université, Presses universitaires d’Aix-Marseille, 2002, p. 281. 33 L’ordre public: Ordre public ou ordres publics? Ordre public et droits fondamentaux, sob a direcção de Joëlle Redor, Actas do colóquio de Caen de 11 e 12 de Maio de 2000, Bruylant-Bruxelles, 2001, Col. Droit et Justice. No mercado dos bens simbólicos tudo parece ser permitido. Cada um é livre, por exemplo, de adquirir o automóvel dos seus sonhos mediante o pagamento do preço de aquisição correspondente. Mas a colocação em circulação desse símbolo está submetida a numerosas condições materiais: carta de condução, apólice de seguro, inspecção técnica. A «polícia dos cultos» (título V da lei de 9 de Dezembro de 1905) não é uma polícia do pensamento nem das crenças. Ela traduz, no entanto, regras de adaptação de um viver em conjunto numa sociedade democrática. Parece-nos desde esse ponto de vista que a definição das restrições à liberdade de manifestar a sua religião, a única susceptível de ser incluída, está muito bem traçada, explicitamente, no parágrafo 2 do artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: «A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e da moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.» Realça-se a clareza deste texto quanto às condições objectivas que ele coloca (objecta-se contudo a grande dificuldade em avaliar o conteúdo da «moral pública»).Assinalase, no entanto, que Jean-Pierre Raffarin, Primeiro-Ministro, face a um parecer do Conselho de Estado elaborado em 1989 encarregou, contudo, a Academia das Ciências Morais e Políticas de proceder a uma «reflexão muito importante sobre o uso do “véu islâmico” na escola.»Aqui a «moral académica» é solicitada sobre uma questão a priori de convicção. (Ver Le Monde de 5 de Abril de 2003). 34 Coloca-se aqui a questão da legitimidade e da própria legalidade de um recente «entorse» no direito das associações e no princípio da gestão democrática das instituições quando o Estado impõe, fora do âmbito da escolha dos membros que compõem uma associação declarada, a designação ad nominem de um presidente: cf. a designação, pelos poderes públicos, de Dalil Boubakeur, antes da eleição dos seus membros, à presidência do Conselho Francês do Culto Muçulmano. Na prática, o Estado molda assim as modalidades de designação das pessoas religiosas pelas instituições que praticam amplamente a cooperação sem se saber dos procedimentos democráticos, que, quando existem, validam as escolhas condicionais e prévias das hierarquias religiosas. 35 Ver, por exemplo, as modalidades estatais de tomada em conta, por parte dos poderes públicos, das práticas «dos islãos» em França, sob a égide do Ministério do Interior e dos Cultos no quadro da Consulta aos muçulmanos de França (cf. os estatutos da Associação para a organização das eleições no Conselho Francês do Culto Muçulmano, organismo declarado segundo a lei de 1 de Julho de 1901, mas igualmente as eleições de «Al Istichara», jornal da Consulta dos muçulmanos de França, publicado pelo Ministro do Interior). Ver igualmente o
importante relatório do Alto Conselho para a Integração, de Novembro de 2000, sobre o tema «O Islão na República». 36 Sobre a responsabilidade social, a supervisão das eleições dos membros do Conselho Francês do Culto Muçulmano, de um intelectual influente entre os muçulmanos de França, ver por exemplo o «discurso legalista-realista» de Tariq Ramadan: Duas análises estão em presença: a da nova geração, que não acredita na sinceridade do poder e dos representantes muçulmanos, e as das pessoas que pensam que a lei é uma coisa, mas que é necessário compor com a realidade. Eu reconheço-me no realismo destes últimos, mas com a firme vontade de respeitar amanhã as exigências legítimas dos primeiros.» (Le Monde, 5 de Abril de 2003.) 37 Les médias et l’Église – Évangelisation et information : le conflit de deux paroles, Gérard Defois, Henri Tincq, Éditions CFPJ, 1997. 38 Ver por exemplo as tomadas de posição da Conferência dos Bispos de França acerca da questão dita dos «padres pedófilos» em relação à prática do sigilo dos ministros do culto e do segredo de confessionário. A aproximar-se da campanha de impressa de Março de 2003 do Conselho Superior do Notariado sob o tema «Para a honra do notariado». As mensagens difundidas em páginas inteiras dos diários nacionais comportavam as seguintes passagens: «É um procedimento doravante clássico na nossa sociedade tomar alguns casos desviantes e fazer deles espelhos deformadores das práticas de um grupo político, económico, social, cultural, religioso ou [...] profissional. Toma-se partido de uma vez por todas: desenrola-se o raciocínio ao longo de colunas sem tomar o cuidado de escutar os profissionais incriminados e de transcrever os seus argumentos. O subtil deslizar semântico do erro para a falta, depois da falta para o delito, é de natureza a comover e a perturbar o leitor [...]» No registo cristão, a primeira epístola de Pedro apela a estarmos «sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós.» (capítulo 3, versículo 1). (Na verdade trata-se do versículo 15). (N.T). 39 Ver, por exemplo, o entusiasmo e as tomadas de posição em Évry (Essonne), início de 2003, em torno do encerramento municipal de um comércio devido à venda de produtos exclusivamente «hallal», etc. 40 Bruno Étienne, «Marseille comme exemple d’interaction ville/religion: l’Association Marseille-Espérance, in Le religieux dans la commune – Régulations locales du pluralisme religieux en France, sob a direcção de Franck Frégosi et Jean-Paul Willaime, Labor et Fides, 2002. 41 Le pèlerin et le converti – La religion en mouvement, Flammarion, 1999, pp. 262ss. 42 Num outro registo respeitante às preocupações dos grupos religiosos, quaisquer que sejam, em França, ler a análise de Patrice Rolland, «La loi du 12 juin 2001 contre les mouvements sectaires portant atteinte aux droits de l’homme – Anatomie d’un débat législatif», Arch. de Sc. soc. des Rel. 2002, p. 212, (Janeiro-Março de 2003) pp. 149-166: «Le Garde des sceaux a parlé d’un “texte de régulation sociale et éthique”» Não são as ambiguidades da lei o reflexo das dificuldades de regulação dos fenómenos religiosos num Estado laico ? O método mais simples de regulação, quando se trata de uma liberdade fundamental, é a regulação jurídica de direito comum. No caso presente, J.-P. Willaime tem razão em sublinhar que o religioso sectário não coloca ao Estado problemas diferentes de intransigência ou de integralismo religioso nas religiões «reconhecidas». Ora, a estes, a República acomodou-se desde a origem». Acerca desta vontade política de manter a «pressão» parlamentar sobre as «seitas», ver as três propostas de resolução registadas na Presidência da Assembleia Nacional sob o n.º 340, a 5 de Novembro de 2002 (tendendo a criar uma comissão de inquérito sobre as implicações das seitas no quadro da formação profissional), o n.º 518, de 7 de Janeiro de 2003 (tendendo a criar uma comissão de inquérito às actividades do movimento raeliano, os seus meios financeiros e as tentativas de clonagem reprodutiva do embrião humano em território francês) e o n.º 558, de 21 de Janeiro de 2003 (tendendo a criar uma comissão de inquérito sobre a implicação das seitas no domínio da saúde e o sector médico-social).
43 Indicam-se, contudo, as conclusões do Relatório de 2002 da Comissão Nacional Consultora dos Direitos do Homem, que regista um número de violências e de ameaças «antijudaicas» e contra os «Magrebinos» nunca antes atingido (dos quais 193 actos anti-semitas, ou seja seis vezes mais que em 2001). Ver a lei n.º 88/2003, de 3 de Fevereiro, visando agravar as penas que sancionam as infracções de carácter racista, anti-semita ou xenófobo (J.O., 4 de Fevereiro de 2003, pp. 2104-2105). 44 Em matéria estritamente cultual, podem intervir, segundo as questões, o Bureau Central des Cultes, os Bureaux Chargés des Associations en Préfecture (regime das associações), as Comunas (questões de urbanismo), as «Administrações Fiscais» (estatutos das pessoas «religiosas», dos edifícios; nomeadamente o regime das actividades «religiosas»), as «administrações sociais» (nomeadamente o estatuto social das pessoas «religiosas», regime no Direito do trabalho das comunidades e colectividades «religiosas»), etc. 45 E aqui, relembramos o importante esforço em termos de engenharia «jurídica» ao qual é necessário entregar-se para chegar a elaborar um esquema de organização e de funcionamento conforme ao direito aplicável à doutrina administrativa. Émile Poulat escreve que «o regime francês dos cultos pode dar o sentimento de uma “fábrica de gás”: ele abre às Igrejas todas as possibilidades do direito segundo a natureza das suas actividades sem reconhecer a personalidade moral que lhes permitirá constituirem-se em holding oferecendo à sua clientela o culto, a cultura, o desporto, o ensino, a beneficência, a edição, o artesanato. A laicidade francesa compartimenta, em benefício da clareza.» (La Croix, 9 de Outubro de 2002). Sobre este assunto poder-se-á medir, por exemplo, a amplitude da tarefa, examinando o «matagal» dos textos legislativos e regulamentares sobre os organismos sem fins lucrativos, conjunto constitutivo de um verdadeiro «código das associações» (ver o excelente Code des associations, publicado em Setembro de 2002 sob a direcção de Xavier Delsol, pelas Éditions Juris Service, Groupe Dalloz, 662 páginas de textos jurídicos). 46 Por exemplo, fazer circular na Internet ou simplesmente à sua volta a suposta filiação de uma pessoa física ou moral a uma «seita», uma «loja maçónica», etc., forma moderna dos métodos dos «sicofantas». 47 Sobre os «métodos», ler Comment manipuler les médias – 101 recettes subversives, de Patrick Farbiaz, Denoël, Coll. Impacts, 1999. 48 Construção de acasos ligados ao uso do véu dito «islâmico», ao comércio de carne hallal ou casher sobre a base de recusa do «comunitarismo». 49 A taxação selectiva dos «dons manuais», no entanto livres segundo o artigo 6.º da lei de 1 de Julho de 1901. 50 Face aux discriminations, Les Éditions des Jounaux officiels, législation et réglementation, 2002, n.º 1725. Poder-se-á utilmente referir a obra de base em direito dos cultos e das associações religiosas em França, a saber Liberté religieuse et régime des cultes en droit français, sob a direcção de Bernard Jeuffroy e François Tricard, Cerf, 1996. Para um excelente apanhado dos textos internacionais e das «estratégias que permitem evitar ou erradicar a intolerância e a discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção» ler o artigo de Rosa Maria Martinez de Codes (historiadora, professora na Universidade Complutense de Madrid), «Le combat contre la discrimination en Europe occidentale», Conscience et liberté, n.º 63, 2002, pp. 30-45. (Publicada igualmente na Consciência e Liberdade, n.º 14, 2.º semestre de 2002, pp. 30-45, sob o título «O Combate contra a discriminação na Europa Ocidental»). (N.T.).