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C. Cuciuc A dinâmica de pluralismo religioso na Roménia
A dinâmica do pluralismo religioso na Roménia
Constantin Cuciuc*
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Na Roménia, é frequente que as noções de liberdade religiosa e de liberdade de religião se confundam. A razão deve ser procurada no facto de que a Igreja Ortodoxa, maioritária, é uma instituição e que esta colabora de uma forma permanente com o sistema político, a autoridade religiosa que se identifica com o poder do Estado do momento. Na Idade Média, a Roménia, situada entre o Ocidente e o Oriente, estava sob a influência de três grandes impérios que dispunham, cada um deles, de um sistema religioso próprio: o Império Otomano, que era muçulmano; o Império Austro-Húngaro, que protegia o catolicismo; e o Império dos Czares, que praticava uma ortodoxia bizantina, que, após a conquista de Constantinopla pelos turcos, assumiu a coordenação espiritual e a política das Igrejas Ortodoxas da Europa e do Leste. Tantas influências tornaram-se numa tradição e que, ainda hoje, se sentem na vida religiosa da Roménia.
A religião ortodoxa, as práticas, a estética e a organização eclesiástica seguiram o modelo bizantino inscrito no código das leis do imperador Justiniano, o estatuto de Igreja colaboradora do Estado. O poder político regulamentava e defendia os interesses nacionais e os da população. A Igreja Ortodoxa era o outro “braço” que, no conjunto da harmonia social, oferecia à população um modelo de vida espiritual. Esta colaboração entre o poder político e a autoridade da fé manteve-se, mesmo depois de ter começado a modernização, inclusive sob os regimes totalitários e sob o comunismo.
A liberdade da vida religiosa, portanto, evoluiu em função dos contextos políticos do momento e das relações entre a Igreja e o Estado. Sob os princípios reinantes, os principados romenos tinham representantes da Igreja no seio das suas instituições políticas, que construíam igrejas e dotavam-nas de propriedades. Depois da formação do Estado romeno, os chefes da ortodoxia figuravam “de direito” nas organizações legislativas. A Convenção de Paris (1858) precisava que “o metropolita, primaz da Roménia, era o presidente do
________ * Professor da Sociologia das Religiões na Universidade de Bucareste e Director do Departamento de Sociologia religiosa no Instituto de Sociologia 69
corpo moderador”. A primeira Constituição (1866) estipulava contudo que “os romenos beneficiavam da liberdade de consciência, da liberdade de ensino, da liberdade de imprensa, da liberdade de reuniões”.
Pouco a pouco, a ortodoxia ganhou terreno na Roménia, sem que o monarca se lhe impusesse pelo poder político. Desde o início, este andou a par com a religiosidade popular, não recusando a coexistência com outras formas de religiosidade. “A religiosidade dos romenos, escreveu Bogdan Petriceicu Hasdeu, é desprovida de beatice e de fanatismo. O cristão não faz nenhuma diferença entre grego e bárbaro, letrado ou ignorante, judeu ou pagão; este era o primeiro dogma de S. Paulo”. A vida religiosa da ortodoxia, por seu lado, harmonizou-se com o poder político. Ainda hoje conserva uma configuração hierárquica de tipo medieval. Os tempos passam, aos ortodoxos juntaram-se populações de outras etnias e de outras crenças. Perseguidos pelos czares da Rússia estabeleceram-se na Bessarábia e na Dobroudja. Hoje coexistem e mantêm boas relações com o resto da população. O domínio dos muçulmanos em certas regiões, (a Dobroudja, a Bessarábia e a margem esquerda do Danúbio) arrastou a chegada de etnias islâmicas (turcas, tartáricas, gagaouzes). Desde 1521, os estudantes saxões que estudam na Alemanha introduziram na Transilvânia as ideias luteranas. O próprio calvinismo rapidamente chegou aos católicos magiares. Na Transilvânia criou corpo um Igreja unitarista, espalhada hoje pelo mundo inteiro. A modernização do Império Austro-Húngaro e do Império dos Czares da Rússia favoreceu, largamente, a penetração na Roménia, de diferentes formas de neo-protestantismo,
O pluralismo religioso temse afirmado, pouco a pouco na Roménia. Longe de ser imposto, aproveitou-se um apoio real, o dos povos que tinham emigrado neste país, por razões económicas e políticas, e em que cada etnia continuava a praticar a sua própria religião. No século XIX, é verdade que existiam algumas descriminações na Roménia, mas estavam ligadas à questão da cidadania. Por exemplo, a Constituição de 1866 estipulava: “Apenas os estrangeiros de ritos cristãos podem adquirir a cidadania”.
A política e a Igreja ortodoxa respeitavam a liberdade da religião. Praticavam um regime de tolerância para com os outros cultos e crenças. A Igreja maioritária representava a autoridade religiosa, mesmo sendo ela uma componente do sistema político. Este último considerava que os recém chegados, que pertenciam a outras religiões e etnias, eram úteis no plano social e económico. Os arménios eram excelentes diplomatas; os judeus eram reconhecidos, como ninguém mais, em matéria de comércio e de finanças; quanto aos alemães teotónicos que tinham sido colonizados, eram incorporados no exército para guardar as fronteiras. Outros alemães foram, mais tarde, deslocados
A dinâmica do pluralismo religoso na Roménia para regiões de subsolo rico, para aí praticarem a mineração e implantar diversos ofícios. Os búlgaros e os sérvios, que tinham sofrido perseguições por parte dos muçulmanos estão na origem do grande impulso que ainda hoje marca as zonas agrícolas e hortícolas da margem esquerda do Danúbio. Grupos religiosos, expulsos da Europa estabeleceram-se na Moldávia e na Transilvânia onde conservam, não só as suas crenças, mas a sua organização comunitária.
Novas religiões cristãs foram integradas, por sua vez, no respeito das autoridades e dos costumes dos autóctenes. É verdade que surgiram alguns conflitos – aliás raros – principalmente quando as novas religiões reivindicaram o estatuto de prioritárias de que beneficiavam nos seus países de origem. Mas na Roménia, não eram mais do que minorias toleradas e praticamente desprovidas de autoridade e de prestígio sócio-político. De início, não contavam com mais do que poucos adeptos, mas foram-se progressivamente integrando na população, com as suas doutrinas religiosas por vezes ingénuas ou confusas, tanto quanto os seus rituais eram improvisados e o suporte material precário. Isso não impediu que, mais tarde, algumas das suas solicitações fossem reconhecidas por causa das modificações da situação demográfica, da repartição territorial ou, ainda, das actividades sociais que realizaram.
Assim, estabeleceu-se uma certa relação de reconhecimento e de coexistência entre as Igrejas tradicionais e as Igrejas mais recentes. Sem estar legalmente regulamentada, a liberdade religiosa era, apesar disso, bem real. Os cultos neo-protestantes, por sua vez, desenvolviam livremente as suas actividades difundindo publicações e recebendo missionários estrangeiros. Obtiveram mesmo, direitos políticos. A Igreja Baptista, por exemplo, podia registar actos civis, no mesmo plano que as Igrejas Ortodoxas. Ao mesmo tempo, a Igreja nacional Ortodoxa dedicouse a precisar o seu estatuto em relação com a política e com as outras religiões. Depois da guerra da independência e da paz de Berlim (1878) a Igreja reconheceu aos crentes das outras religiões a possibilidade de se poderem naturalizar e de adquirir a cidadania romena. Em 1904, a Igreja Ortodoxa publicou um livro de síntese consagrado à vida religiosa na Roménia, intitulado A Igreja Ortodoxa e os cultos estrangeiros no Reino da Roménia. As guerras no início do século XX, e muito particularmente a Primeira Guerra Mundial, introduziram mudanças, não apenas ao nível da situação política e territorial da Roménia, mas igualmente ao nível da situação religiosa. Na antiga Roménia, registaram-se, por ocasião do recenseamento, de 1899, 91,5% de ortodoxos. Trinta anos mais tarde, em 1930, contavam-se 72,6%, os católicos e os reformados provinham, sobretudo, da Transilvânia. A lei sobre a emigração de 1925 permitiu a perto de 30 000 estrangeiros, a maior parte professando uma
Trages regionais da região de Sibiu. Foto Arnold Zwahlen
outra fé diferente da ortodoxa, que viessem para a Roménia. O Estado e a Igreja Ortodoxa agiram em conjunto para tentar englobar nesta última aqueles que tinham outras crenças. Os gregos ortodoxos, foram assim convidados a voltar à Igreja Ortodoxa. Mesmo depois da sua integração no Estado romeno, a Transilvânia que tinha conservado a sua própria estrutura étnica e religiosa, continuou, con-
A dinâmica do pluralismo religoso na Roménia tudo, a respeitar as tradições dos gregos católicos. Sobre os quase 20 milhões de habitantes que o país contava, 71,9% eram romenos, 7,9% magiares, 3,2% alemães, 2,3% judeus, 4% búlgaros, 2% ciganos, 1,5% turcos e tártaros, 1% gagaouzes, etc. Doravante, a pertença religiosa e a pertença étnica não se voltam a sobrepor. Romenos tinham passado para o catolicismo e para o grego-catolicismo; outros tinham entrado em Igrejas neo-protestantes legalmente reconhecidas. No recenseamento de 1930, 72,6% declararam-se ortodoxos, 7,9% grego-católicos, 6,8% católicos romanos, 4,2% de rito mosaico, 2,2% luteranos evangélicos, 1% muçulmanos, etc.
Durante o período de entre-asduas-guerras, o regime de liberdade da religião instituída repousava sobre o princípio da Igreja Ortodoxa dominante. A liberdade religiosa era condicionada pelo reconhecimento pelo Estado de um número determinado de “cultos”. Consistia então no direito dos cultos reconhecidos tolerarem, ou não, a presença dos outros “cultos”. A Constituição de 1923 estipulava que “os romenos, qualquer que seja a sua origem étnica, a sua língua ou a sua religião, gozam da liberdade de consciência, da liberdade de ensino, da liberdade de imprensa, da liberdade de reuniões, da liberdade de associação e de todos os direitos e liberdades estabelecidos pela lei”. É necessário, no entanto, não esquecer, que a Igreja Ortodoxa, como religião da maioria, era “a Igreja dominante” e que a Igreja grego-católica tinha “primazia” sobre os outros cultos. A lei sobre o regime geral dos cultos, de 1928, confirma os princípios constitucionais insistindo sobre os aspectos concretos. No espírito do modelo de liberdade religiosa de entre-as-duas-guerras, a Igreja Ortodoxa e oito outros cultos ditos “históricos” eram legalmente reconhecidos. As outras organizações religiosas eram consideradas como associações religiosas ou eram “completamente interditas”. As associações religiosas legalmente reconhecidas – baptista, adventista, cristã segundo o Evangelho – podiam desenvolver livremente as suas actividades, mas sem o apoio do Estado e sem beneficiar dos privilégios concedidos aos cultos legais. A Igreja Ortodoxa tornou-se depois um factor político importante na Roménia, estando representada no sistema legislativo. Pessoal do culto ortodoxo ocupa ainda hoje funções nos ministérios e noutras instituições políticas. Durante este período, o sistema político tem estado particularmente preocupado com a actividade dos grupos religiosos “completamente interditos”. A própria lei dos cultos de 1928 tinha interditado sete associações religiosas – os nazarenos, os estudantes da Bíblia, os mileritas, os adventistas reformistas, os ceifeiros, os pentecostais, os inocentes – “uma vez que as suas doutrinas eram de natureza a atentar contra as leis e as instituições do Estado e porque as suas práticas iam contra a ordem pública”. Com o tempo, outras comunidades
A dinâmica do pluralismo religoso na Roménia religiosas foram suprimidas pela legislação em vigor. Em 1936 Igrejas Ortodoxas de rito antigo, viram-se forçadas a integrar-se no seio da Igreja Ortodoxa oficial. Perto de um milhão de “estilistas”, como eram designados, foram considerados como pertencendo a uma “seita” legalmente interdita. As suas igrejas e lugares de culto foram distribuídas pelas paróquias ortodoxas, os seus membros foram perseguidos, as suas revoltas reprimidas pela polícia e, em certas localidades, os conflitos foram mesmo saldados por mortos e feridos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, por razões étnicas e militares, as actividades de todas as “associações religiosas” foram interditas. Os membros do culto mosaico foram perseguidos pelos legionários e os nazis, e o seu estatuto oficial foi suspenso.
A entrada do exército soviético na Roménia foi marcada por um regresso das liberdades, mesmo na via religiosa. As portas das prisões foram abertas, libertando um número de crentes assaz grande, principalmente dos “estilistas”, de Testemunhas de Jeová, dos inocentes e dos pentecostais. Depois de 1944, um grande número de associações religiosas foram legalmente registadas ou registadas de novo. Algumas dentre elas também pediram a restituição dos seus bens.
Esta liberdade, que revestiu, por vezes, aspectos um pouco anárquicos, foi limitada pelo novo regime geral dos cultos, promulgado em 1948. Este texto jurídico será a base legal da vida religiosa durante o meio século do regime comunista, e algumas das suas provisões constituem, ainda hoje, o suporte legal das relações entre os cultos. A lei de 1948 foi adoptada no momento em que o regime comunista se estava a constituir. Também, como tinha necessidade do apoio político dos crentes, o regime concedeu liberdades de religião que, mais tarde, foram de novo limitadas, sempre por razões políticas. As associações religiosas tais como as que já mencionámos acima foram perseguidas e tanto quanto possível, suprimidas. O reconhecimento dos cultos legais era condicionado pelo parecer do legislador, o qual, entre 1948 e 1952, restringia sempre os critérios para conceder autorizações legais. Sobre os dezassete estatutos e pedidos de reconhecimento, apenas catorze cultos foram aprovados pelas autoridades. Todas as outras formações religiosas permanecem, na prática, fora da lei. Em 1948, o culto grego-católico foi integrado, por força da lei, na Igreja Ortodoxa. Mais de cem religiosas e uma parte das suas ordens, apesar disso activas até então, foram suprimidas. Algumas, no entanto, prosseguiram nas actividades, mas na ilegalidade. Sob o comunismo, a liberdade de religião era, primeiramente, condicionada pela ideologia ateia de partido. Como ele era o único partido político e que se apresentava como a única “força dirigente”, conseguiu impor a sua ideologia ao sistema político e à fraca representação da sociedade civil. A liberdade da religião era aplicada pelas
A dinâmica do pluralismo religoso na Roménia instituições do Estado no espírito da ideologia dos regimes que se sucederam de 1944 a 1989. Por vezes, a liberdade era mais real; outras, mais limitada. Desde 1971, as medidas contra a vida religiosa tornaram-se sempre mais agressivas, chegando à supressão de cemitérios e de lugares de culto, a destruição e a eliminação dos símbolos sagrados.