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A. Marga O debate Habermas-Ratzinger – Convergências e implicações
Andrei Marga**
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A Academia católica de Munique teve uma excelente ideia em organizar, a 28 de Janeiro de 2004, um debate aberto entre um dos mais notáveis filósofos da actualidade, Jürgen Habermas, e uma das mais notáveis personalidades do Vaticano, o cardeal Joseph Ratzinger, sobre o tema “Os fundamentos morais de um Estado liberal”. O debate que se realizou deve a sua importância, não apenas à representatividade cultural dos interlocutores, mas ao facto de que por detrás dos seus nomes há trabalhos definitivamente inscritos no património filosófico e teológico mundial. Por outro lado, Jürgen Habermas e o cardeal Ratzinger são verdadeiras consciências dos nossos tempos que, de uma forma indirecta, pelas suas contribuições, eram, até então, essencialmente críticos um do outro. Para marcar a importância do acontecimento, o director da Academia Católica, Florian Schuller, apresentou Jürgen Habermas como “o filósofo alemão mais influente desde Marx, Nietzsche e Heidegger” e o Cardeal Ratzinger como uma verdadeira “locomotiva” da Igreja Católica. Salientou, também, que “o nome de ‘Ratzinger’, tal como o de ‘Habermas’ designam, hoje, todo o mundo intelectual e que os dois, em conjunto, formam um dos conjuntos mais estimulantes que se possam imaginar actualmente, em matéria de debates – provavelmente, mesmo, para além do espaço germanófono – sobre a reflexão e os princípios da existência humana”. As intervenções essenciais de Jürgen Habermas e do cardeal Ratzinger foram, em tempos, publicadas no jornal Zur Debatte. Themen der Katholischen Akademie in Bayern, 34 Jahrgang, 1, 2004, Munique.
Apresentaremos de seguida o seguinte: 1. Os pontos de vista expressos por Jürgen Habermas e o cardeal Ratzinger;
________ *Este artigo foi escrito antes do Cardeal Joseph Ratzinger ter sido nomeado papa e tomar o nome da Bento XVI, a 2 de Abril de 2005 ** Professor na Universidade Babes-Bolyai, em Cluj-Napoca, Roménia
O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações 2. algumas convergências inesperadas; 3. certas implicações deste debate histórico.
Habermas abordou o tema dos “fundamentos pré-políticos morais de um Estado liberal” tendo, como ponto de partida, a questão posta por Ernest-Wolfgang Bökenförde em Die Enstehung des Staates als Vorgang der Säkularisation (1967), da seguinte forma: “Será que o Estado liberal e secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele mesmo é incapaz de garantir?1” Dito de outra forma, é certo que o Estado de direito democrático poderá renovar os seus fundamentos sem apelar às tradições éticas e religiosas sobre as quais assenta? No decurso do debate de Munique, Habermas tentou responder a esta questão apoiando-se no estado actual do mundo.
É hoje admitido, retrospectivamente, que a moderna doutrina dos direitos do homem e a tradição do Direito Racional, utilizando interpretações secularizadas, foram possíveis no quadro de visões monoteístas, em todo o caso religiosas. “A história da teologia cristã da Idade Média, em particular a escolástica espanhola tardia, entra, por certo, naturalmente, na genealogia dos direitos do homem”2. No entanto, as legitimidades do Estado moderno recorreram às fontes profanas da filosofia dos séculos XVII e XVIII.
A questão muito pontual que se coloca é o saber se o Estado secularizado é capaz de encontrar em si mesmo as motivações necessárias para que os cidadãos, não só gozem das suas liberdades e dos seus direitos, mas que também estejam prontos, se necessário, a sacrifícios para os defender e promover.
Seja qual for a variante do Estado liberal secularizado que se imagine, “as virtudes políticas são essenciais para a manutenção da democracia – mesmo se essas virtudes não forem destiladas senão a ‘conta-gotas’. É assunto de socialização e de aclimatação das práticas e das formas de pensar de uma cultura política da liberdade. O estatuto de cidadão está, em certa medida, inserido numa sociedade civil que vive de fontes espontâneas ou, se preferirem, “pré-políticas”. Logo, não se conclui que o Estado liberal seja incapaz de reproduzir os pressupostos inerentes às suas motivações a partir do seu próprio fundo secularizado. Os motivos que permitem uma participação dos cidadãos na formação da opinião e de vontade políticas alimentamse, certamente, de projectos de vida éticos e de formas de cultura vividos”3. Entretanto, as sociedades abrem-se para uma Sociedade de cidadãos do mundo estruturada por normas, que representam, pelo menos, uma abordagem dos problemas. Uma vez orientadas nesta direcção, as sociedades só podem assegurar a “solidariedade” de que necessitam apenas no momento em que “os princípios da justiça se inserem na densa rede de uma cultura orientada segundo os valores”. Doutra forma, o refúgio dos cidadãos dos Estados democráticos na esfera privada, sob diversos aspectos, alarga-se. “A tendência
para a privatização reforça-se entre os cidadãos através do recuo desanimador da função desempenhada pela formação da opinião e da vontade públicas: cada vez mais, esta não se exerce senão parcialmente nas arenas nacionais e já não atinge os processos de decisão transferidos para a escala supranacional”4. Uma “tendência do cidadão para a despolitização” é estimulada por muitos aspectos da evolução das sociedades democráticas actuais.
Nesta situação – e aí trata-se de um novo passo na concepção do filósofo – Habermas propõe que o dossier seja, desde logo, classificado de secularização – com um pós-modernismo acusando a auto destruição da racionalidade moderna e com uma Igreja Católica outrora reservada face às correntes do humanismo, das Luzes e do liberalismo – seja reaberta para ser reexaminada. “A questão está em saber se uma modernidade ambivalente só poderá encontrar a sua estabilidade, graças às forças seculares de uma razão comunicacional, e creio ser melhor colocar esta questão não a colocando no extremo do ponto de vista de uma crítica da razão, mas analisandoa, sem dramatização, como uma questão empírica e aberta. A filosofia deve, também, pegar a sério neste fenómeno, por assim dizer, do interior como uma exigência cognitiva”5. A tese – nova nos escritos de Habermas – que o filósofo defendeu em 2004, por ocasião do debate de Munique, é que a filosofia e a religião conservam, como argumentaram Kant e Hegel, os seus domínios de competência, as suas “fronteiras” claramente delimitadas. Mas, afirma Habermas, perante a diferença do classicismo alemão, é necessário renunciar à “pretensão filosófica” de estabelecer o que, nas tradições da religião, é “verdadeiro ou falso”. “O respeito que acompanha esta recusa de realizar um julgamento cognitivo baseia-se na atenção devida às pessoas e às formas de existência que retiram, visivelmente, a sua autenticidade e a sua integridade, de convicções religiosas. Mas o respeito não é tudo: em relação com as tradições religiosas, a filosofia tem razões para estar pronta a aprender”6 .
Habermas admite que entrámos numa “sociedade pós-secula-
rizada”. Uma vez que a integração nas sociedades da modernidade tardia está em perigo – porque o equilíbrio entre os três grandes meios de integração social está ameaçada, os mercados e o poder administrativo põem de lado a solidariedade social – impõe-se uma reavaliação das fontes motivadoras. “Também é do interesse do próprio Estado democrático a adopção de um comportamento de preservação perante todas as fontes de cultura de que se alimentam a consciência das normas e a solidariedade dos cidadãos”7 . “A
sociedade pós-secularizada” é aquela onde a “secularização” é reinterpretada como um “processo de aprendizagem complementar” apoiada, ao mesmo tempo sobre as mentalidades profanas e religiosas, emprestadas sem
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avaliações a priori e de maneira
reflexiva. “A neutralidade do poder do Estado quanto às concepções do mundo que garante uma igual liberdade ética a cada cidadão, é incompatível com a universalidade política de uma visão de um mundo secularizado. Quando os cidadãos secularizados assumem o seu papel político, não têm o direito nem de recusar às imagens religiosas do mundo um potencial de verdade presente nelas nem de contestar aos seus concidadãos crentes o direito de dar, numa linguagem religiosa, a sua contribuição aos debates públicos”8
O cardeal Ratzinger evocou desenvolvimentos nas sociedades contemporâneas que reclamam um novo apelo à religião para que a humanidade preserve os limites de uma vida digna de ser vivida. Por um lado, “a emergência de uma sociedade mundial”, por outro lado, o desenvolvimento, sem precedentes, das capacidades técnicas de destruição da humanidade transforma o problema “dos fundamentos éticos das culturas que se cruzam” num problema crucial da nossa época. O projecto de Hans Kung sobre o Weltethos em sinal da urgência, mesmo se dá lugar a objecções, como Robert Spaemann mostrou no seu Weltethos als “Projekt” (2000)9. “Parece-me no entanto evidente que a ciência como tal, não saberia trazer um ethos que, por consequência, uma consciência ética não se constitui como um produto nascido de debates científicos”10. Outra situação: as mudanças da representação do mundo e do homem, que resultaram dos conhecimentos científicos cada vez mais ricos, levaram à dissolução das “velhas certezas morais”. Há, no entanto, uma “responsabilidade da ciência” para com a humanidade e, sobretudo, uma “responsabilidade da filosofia”: que consiste em acompanhar de forma crítica, o desenvolvimento das diferentes ciências. Por fim, “o dever da política consiste em colocar as forças sob o controlo do Direito e regular assim o seu uso sensato”. A força do Direito deve prevalecer-se sobre o direito da força, da arbitrariedade e dos abusos. “A liberdade sem o Direito, é a anarquia e portanto, a destruição da liberdade”11 . Para o cardeal Ratzinger, o Direito deve ser construído de forma a permanecer um “veículo da justiça” e não um privilégio daqueles que detêm o poder. A regra da maioria, adoptado pelos sistemas democráticos, da formação da vontade política deveria no entanto ser vista não apenas sob o aspecto técnico da tomada de decisões, mas também sob o seu aspecto moral. “Mas maiorias também podem ser cegas ou injustas12.” O problema
dos fundamentos éticos do Direito colocam-se, por conseguinte,
com uma acuidade acrescida. O Direito é, ele mesmo, precedido por premissas que o ultrapassam, como Direito, e que dependem de uma outra espiritualidade. A tudo isto juntam-se “os desafios” dirigidos ao poder, do Direito e da moral do mundo contemporâneo. “E, daqui em diante, veremos: a humanidade não tem nenhuma necessidade da Grande Guerra para tornar impossível a vida no mundo. As forças anónimas do ter-
A Praça do Mercado em Brasov (antiga Kronstadt, na Transilvânia), “a joia dos Cárpatos”. Ao fundo, a célebre catedral protestante chamada “A Igreja Negra”. Foto Jürgen Butscher
ror que podem agir com crueldade por todo o lado são suficientemente fortes para lançar o mundo no caos sem tocar na ordem política13 .” É isto que nos leva a pôr o problema das origens do terrorismo.
Na sua intervenção, por ocasião do debate de Munique, o cardeal Ratzinger fez notar que “é assustador […] que se apresentem legitimações morais ao terrorismo14”, e invocou, nesta perspectiva a referência às ligações à opressão e à religião nas mensagens dos terroristas islâmicos. Como consequência, o célebre teólogo formulou explicitamente a seguinte questão: “Será que a religião não deve ser colocada sob o controlo da razão e cuidadosamente delimitada?”15 A
religião deve participar, também, na promoção “da liberdade e da tolerância universais”, tal como as modernas doutrinas dos direitos do Homem necessitam, hoje, de um desenvolvimento urgen-
te. “Talvez hoje fosse necessário completar a doutrina dos direitos do Homem com uma doutrina dos deveres e limites do Homem; era isto que, apesar de tudo ajudar a renovar a questão de saber se não
poderia estar aí uma razão da natureza e portanto, um direito razoável para o homem e a sua presença no mundo16.” Neste sentido o cristianismo oferece a perspectiva de uma resposta. “Mesmo se a cultura secular de uma racionalidade rigorosa – da qual Jürgens Habermas nos deu um quadro impressionante – é largamente dominante e mesmo se ela se entende como aquilo que torna a ligar, a compreensão cristã [da realidade] continua a representar uma força eficaz17.” É necessário, portanto, perguntar: “A secularização europeia não será uma via particular que teria necessidade de uma correcção?18. Isso não quer dizer, sublinha o cardeal Ratzinger, que seja necessário unir Carl Schmitt, Heidegger e Lévi Strauss e acusar “a fadiga” da racionalidade europeia. Isso apenas significa admitir que “a fórmula universal ou racional, ou ética, ou religiosa sobre a qual todos se reuniram [ao mesmo tempo] e que poderia reunir o conjunto, não existe. Eis porque digamos, também o ethos mundial permanece uma abstracção19.”
A avaliação feita por Habermas, segundo a qual, como humanidade, entrámos numa “sociedade póssecularizada” é, no essencial, partilhada pelo cardeal Ratzinger. “No que respeita às consequências práticas, sinto-me em grande concordância com a exposição de Jürgen Habermas sobre uma sociedade pós-secularizada, sobre a vontade de aprendizagem mútua e sobre a autolimitação praticada por cada um20”, precisou o cardeal. Ele admitiu, explicitamente, a existência de patologias nas religiões: “Temos observado que existem patologias extremamente perigosas nas religiões; e elas tornam necessário considerar, à luz divina da razão como uma espécie de órgão de controlo que a religião deve aceitar como um órgão permanente de purificação e de regulação – um ponto de vista que era, de resto, o dos Pais da Igreja21.” Mas há, também “patologias da razão” – das quais a mais recente e a mais perigosa é, além da bomba atómica, a “produção” artificial de seres humanos com a ajuda das tecnologias genéticas, que tornam necessário a manutenção da “razão” dentro dos seus limites e “é por isso que, no sentido inverso, a razão também deve ser reconduzida aos seus limites e desenvolver uma capacidade de escuta nas grandes tradições religiosas da humanidade22”. Não se trata daquilo a que
alguns têm chamado “o regresso à fé” (Rückkehr zum Glauben), mas antes de uma “forma de correlação necessária entre a razão e a fé, razão e religião, chamadas a uma purificação e a uma regeneração mútuas; eles necessitam uma da outra e devem reconhecê-lo mutu-
amente23.” Os principais parceiros desta “correlação” são “a fé cristã” e “a racionalidade ocidental secularizada”.
O debate de Janeiro de 2004 em Munique entre Habermas e o cardeal Ratzinger perfila-se, ao fim e ao cabo, como uma verdadeira viragem na abordagem dos problemas das sociedades e da cultura da modernidade. Com efeito, este debate reuniu duas personalidades, as mais marcantes do nosso tempo, e cada um dos interlocutores assu-
miu, perante o debate novas iniciativas a partir da visão já articulada que lhes tinha valido a consagração: Habermas admitiu que as
fontes da racionalidade europeia secularizada já não bastam para dominar as crises actuais, precisamente a crise da motivação nas democracias de um mundo em vias de mundialização; e o cardeal Ratzinger admitiu, por seu lado, que a própria religião tem necessidade da razão para prevenir o deslizamento para os fundamentalismos que dão origem
ao terrorismo. O debate marca uma viragem porque ele atacou um dos problemas que se agravam nas sociedades da modernidade tardia – a crise da motivação – e diagnosticou as evoluções actuais desenvolvendo a ideia segundo a qual já se deu a passagem para a “sociedade pós-secularizada”. Pelo menos, no que respeita estes dois aspectos, houve uma grande convergência algo inesperada entre uma das grandes personalidades filosóficas e uma das maiores personalidades teológicas do último século.
Habermas e o cardeal Ratzinger consideram que a secularização na qual a Europa se envolveu, há alguns séculos, deverá sofrer uma alteração. Os dois admitiram que a racionalidade secularizada europeia necessita actualmente de um complemento que as tradições religiosas estão dispostas a assegurar. Ambos estimam que as fontes culturais das democracias têm necessidade não apenas das fontes profanas dos procedimentos baseados na liberdade e na igualdade, mas também da infraestrutura moral e da motivação religiosa. Ambos partilham, também, a convicção de que a passagem para a sociedade pós-secularizada já se deu, em que a razão e a fé, respectivamente as ciências e a filosofia, por um lado, a religião por outro passam para uma relação historicamente nova, onde cada uma está disposta a aprender da outra. Os dois partilham, por fim, a opinião de que a época de hostilidade entre a razão e a fé – ou de uma ser considerada pela outra de uma forma depreciativa como “historicamente ultrapassa-
da24” – está no passado.
As implicações do debate de Janeiro de 2004, em Munique, entre Habermas e Ratzinger, assim como as suas convergências, de qualquer maneira inesperadas, são seguramente importantes para a abordagem das sociedades da modernidade tardia, para a filosofia e a teologia, assim como para evolução dos dois pensadores. A análise das teses e dos argumentos dos dois célebres interlocutores pode dar origem a consequências em cada uma destas direcções, consequências que não estão senão a começar. Não nos vamos, no entanto, demorar aqui sobre as consequências nas direcções mencionadas, mas sobre a questão que diz respeito
ao papel das faculdades de teo-
logia: o seu lugar será no seio das universidades públicas ou noutro lugar? Tomamos como base factual da nossa argumentação o exemplo da Universidade Babes-Bolyai de Cluj-Napoca – na hora actual uma das universidades europeias em que
O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações
A catedral ortodoxa da Assunção, em Brasov. Foto Arnold Zwahlen
A estátua de Johannes Honterus (1498-1549), o grande humanista e reformador alemão, diante da Igreja negra em Brasov. Foto Jürgem Butscher.
a organização dos estudos teológicos é mais diversificada.
A própria Transilvânia – parte da Roménia actual situada no arco dos Cárpatos – representou historicamente o local de encontro das diversas denominações do cristianismo – católica, ortodoxa, uniata, protestante, néo-protestante – e do judaísmo. Poucas regiões da Europa conheceram uma tal diversificação religiosa. Isto tornou possível, com o tempo, o aparecimento de iniciativas características. É aqui que aparece a Igreja Unitária que irá conhecer a sua expansão nos Estados Unidos. É sempre na Transilvânia, em torno da Igreja Luterana, que nasceu, já no século XVI, um dos primeiros sistemas de ensino com base comunitária e eclesiástica do continente. É ainda aqui que se constitui a Igreja Católica de rito oriental dos uniatas romanos e que se formaram, algumas das mais numerosas comunidades néo-protestantes da Europa. O ensino superior, como por toda a Europa, iniciou-se com colégios – universidades – fundados por missionários jesuítas enviados por Roma.
Num tal contexto, era desejável, ao menos por razões históricas, que a primeira universidade da Transilvânia, a de Cluj-Napoca. Tivesse como objectivo, depois de 1989, o encontrar uma solução que permitisse dispensar estudos teológicos. Uma decisão do governo romeno tornou possível, em 1991, a integração das faculdades de teologia no seio das Universidades do Estado. Esta oportunidade foi aproveitada pela Universidade BabesBolyai, não apenas em virtude da razão histórica – a Transilvânia conhece tradições religiosas importantes de uma diversidade particular – mas também por razões que
derivam do novo lugar da teologia na cultura do mundo contemporâneo e da religião na vida
das sociedades actuais. O dogma da incompatibilidade entre as universidades e a religião promovido pelo regime comunista e o facto de considerar a religião como algo de “ultrapassado” do ponto de vista histórico – no paradigma que vem de Hegel, Feuerbach, Marx, Comte, Nietzsche, Freud – foram denunciados. A teologia retomou o seu lugar nas Universidades do Estado.
E, 1991, a Faculdade de Teologia Ortodoxa integra a Universidade Babes-Bolyai pelo seu ensino pastoral, pedagógico e de assistência social. Em 1992, é a Faculdade Católica de Rito Oriental – a uniata – que integra a Universidade com o seu ensino pedagógico e de assistência social. Em 1993, é criada a Faculdade Teológica Protestante, cujo ensino pedagógico é logo integrado na Universidade Babes-Bolyai. Em 1995 é posta em acção, na mesma universidade, o Instituto
de Estudos Judaicos “Moshé
Carmilly”. É em 1996 que se cria a Faculdade de Teologia Católica, que com a sua componente pedagógica, após um acordo entre a Universidade Babes-Bolyai e o arcebispo católico de Alba Iulia. A
Universidade Babes-Bolyai compreende quatro faculdades de
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teologia representando as Igrejas Históricas da Transilvânia: ortodoxa, católica de rito oriental, protestantes unitária, evangélica, calvinista, católica romana – o que situa a Universidade BabesBolyai de Cluj-Napoca entre as universidades que dispensam a formação teológica mais rica do
continente. Com o seu Instituto de Estudos Judaicos, esta organização de estudos teológicos permite aos estudantes um novo e amplo acesso aos fundamentos judeo-cristãos da Europa, mantendo, efectivamente, uma frutuosa atmosfera ecuménica e irradia, na cultura da região e do país, o espírito de novas abordagens dos problemas da vida das sociedades de hoje25. Uma vasta compreensão da cultura ou da religião voltou a ter o seu lugar ao lado das ciências, das artes e da filosofia, e a redefinição da universidade como universitas – isto é, como lugar da formação argumentativa da opinião e como comunidade daqueles que instruem em colaboração – fez com que a verdade e o bem ganhassem terreno.
Este envolvimento da Universidade Babes-Bolyai na via da cooperação argumentativa da razão e da fé, respectivamente das ciências, da arte, da filosofia e da religião, beneficia do apoio dos prelados das Igrejas e dos rabinos. A nova orientação foi apoiada por ocasião da reorganização da universidade, com a Carta (1995), que prevê o ensino em três línguas: o romeno, o húngaro e o alemão. Foi igualmente apoiada pela introdução do estudo de três línguas clássicas da cultura europeia: o hebraico, o grego e o latim. Depois, em 2003, foi possível inaugurar o Centro de Estudos Bíblicos da Universidade Babes-Bolyai, com o concruso das faculdades de teologia e o Instituto de Estudos Judaicos26 . Este novo perfil desta Universidade, é paralelo às mudanças significativas que tiveram lugar na cultura do mundo actual. Trata-se de um novo peso cultural da Bíblia, e dos novos ângulos de exploração das fontes. Hoje, ainda, a Bíblia é lida como uma magnífica narração histórica, como um tesouro linguístico, uma obra literária, uma ampla visão do mundo, como uma legitimação de um sentido. Mas a história contemporânea abriu também a possibilidade – até mesmo a necessidade – de uma leitura da Bíblia na perspectiva das relações entre as culturas. Trata-se igualmente de um novo peso cultural da religião. Segundo muitos indícios, já passou a época em que ainda se podia pensar à maneira de Hegel, Feuerbach, Comte, Marx, Nietzsch e Freud, no conceito da que a religião tinha sido “ultrapassada” pela filosofia, a ciência, a emancipação social, a reorganização cultural ou a terapêutica pessoal. Entrámos naquilo que Franz Rosenzweig antecipou com The Star of Redemption (1923): a época em que a religião, a filosofia e a arte cooperam em vez de proporem “ultrapassar-se” uns aos outros, o período que Jürgen Habermas assinalou recentemente, em Glauben und Wissen (2001), como sendo a do “paralelismo entre a filosofia e a teologia”27. Trata-se,
ao mesmo tempo de uma nova compreensão entre o cristianismo e o judaísmo. Através de novas investigações, em virtude de novas orientações espirituais, a história contemporânea conduziu à derrota de certos preconceitos milenares e a reconhecimentos de envergadura histórica. Os Judeus reconheceram Jesus como descendente do povo judeu e as Igrejas – católica, protestante, ortodoxa – consideram Jesus Cristo como precedendo da magnífica cultura do povo da Terra Santa28 . Trata-se, por fim, da redescoberta do “triângulo” JerusalémAtenas-Roma como fundamento cultural da Europa, para além da representação consagrada, na nossa época, pelo idealismo clássico alemão, que tinha tendência para derivar a cultura europeia da herança greco-romana29 .
Em conclusão, o perfil evocado da Universidade Babes-Bolyai reúne convicções que ganham terreno e que o debate entre Habermas e o cardeal Ratzinger veio encorajar. A saber, a convicção de que é no domínio da religião que se decide, bem vistas as coisas, a sorte dos homens, para que os debates teológicos deixem de ser importantes unicamente para os teólogos. Os representantes das Igrejas devem deixar de reduzir a religião a uma lírica puramente subjectiva ou a um ritual em si mesmo, pois que se torna evidente que as formas de expressão do espírito – a religião, a arte, a filosofia – não se sucedem, mas coabitam e cooperam. E nós, que participamos nos debates no domínio público, nos da filosofia, das ciências e da teologia, somos todos chamados a tomar consciência do facto de que existem fronteiras entre estes diferentes domínios, e se bem que não se possa ignorar as especificidade de cada um deles, estes não são herméticos, como se acreditava, e não justificam, de forma alguma, preconceitos, em termos verdadeiros ou falsos. “A fronteira entre as razões seculares e religiosas é, de qualquer modo, ténue. Eis porque, fixar essas fronteiras em disputa deveria ser considerado como uma tarefa de cooperação, exigindo das duas partes ter em conta a perspectiva do outro. 30”
Notas
1. Ernst-Wolfgang Bökenförde, “Die Entstehung des Staates als Vorgang des Sakularisation”, in Recht, Staat, Freiheit, Suhrkamp, Francoforte, 1967, 2ª de., 1992, p. 112. Tradução de Jean-Louis Schegel, „Os fundamentos geopolíticos do Estado democrático“, in Revista Espirit, Julho de 2004. 2. Jürgen Habermas, “Stellungnahme”, in Zur Debatte. Themen der Katholischen Akademie in Bayern, 34. Jahrgang, Heft 1, Munique, 2004, p. 2. 3. Op. cit. p. 3. 4. Idem, p. 3. 5. Idem, p. 3. 6. Op. cit. p. 4 7. Idem
8. Idem 9. Robert Spaemann, “Weltethos als ‘Projekt’”, in Merkur, Heft 570/571 10. Joseph Cardinal Ratzinger, “Stellungnahme”, in Zur Debatte. Themen der Katholischen Akademia in Bayern, op. cit., pag. 5 11. Op. cit., p. 5 12. Op. cit., p. 6 13. Op. cit., p. 5 14. Idem 15. Idem 16. Idem, 17. Idem 18. Op. cit., p. 7 19. Op. cit., p. 7 20. Idem 21. Idem 22. Idem 23. Idem 24. Abordámos a substituição do “paradigma da ultrapassagem histórica da religião” pelo “paradigma do paralelismo da teologia e da filosofia”, in Andrei Marga, Religia in era globalizarii, EFES, Cluj 2004, p. 33-64. 25. Apresentámos este desenvolvimento dos estudos teológicos na Universidade Babes-Bolyai, in Andrei Marga, Filosofia si teologia astazi. Philosophy and Theology Today. Philosophie uns Theologie heute, EFES, Cluj, 2005, p. 76-79, 193-200. 26. Ver «Theologia Biblica», in Buletinul Centrului de Studii Biblice al Universitatii Babes-Bolyai, 1 de Março de 2003. 27. Jürgen Habermas, Glauben und Wissen, Suhrkamp, Francoforte, 2001. 28. Schalon Bem-Chorin, Bruder Jesus. Der Nazarener in judischer Sicht, Paul List, Munique, 1970; Gaalyah Cornfeld (ed.), The Historical Jesus. A Scholarly View of the Man and his World, Mac Millan, Nova Iorque, Londres, 1982; James Charlesworsth, Jesus within Judaism. New Light from Exciting Archeological Discoveries, Doubleday, Nova Iorque, 1988; David Flusser, Jewish Sources of Early Christianity, Mod Book, Tel Aviv, 1989; Walter Kasper, Jesus der Christus, Mattias, Grunewald, Mainz, 1992; Jacques Duquesne, Jésus, Desclée de Brouwer, Flammarion, Paris, 1993. Hans Kung, Das Christentum, Piper, Munique, 1994; E. P. Sanders, The Historical Figure of Jesus, Penguin Books, Londres, Nova Iorque, 1995; Gérard Israel, La question Chrétienne. Une Pensée juive du christianisme, Pauot, Paris, 1999. 29. Sobre este tema, ver Andrei Marga, « Die Wiederherstellung des Dreiecks Jerusalem, Athen, Rom «, in Andrei Marga, Filosofia si teologia astazi, op. Cit., p.149-190 30. Jürgen Habernas, Glauben und Wissen, op. Cit., p.22