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M. A. Semino A Laicidade na América Latina: o exemplo uruguaio

Conferência de S. Ex.ª o Embaixador Miguel Angel Semino, por ocasião do encontro “França-Américas” em 17 de Setembro de 2002 em Paris, sede da Associação

A Laicidade na América Latina: O exemplo uruguaio

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Senhor Presidente da “França-Américas” e Embaixador Jean-René Bernard. Senhora Presidente da Secção América Latina, Drª Marie Thérèse Prevel, Senhores Embaixadores, caros colegas, Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Agradeço-vos pela vossa presença. É para mim uma grande honra ocupar a prestigiada tribuna da “França-Américas”. Procurarei estar à altura da distinção de que fui objecto.

Antes de entrar propriamente no assunto, permitir-me-ei fazer algumas observações que me parecem necessárias. 1. A minha exposição sobre a laicidade no Uruguai será, muito mais de natureza descritiva do que comparativa em relação com os outros países da América Latina. Devo sublinhar que em nenhuma ocasião as minhas ideias deverão ser interpretadas como uma ingerência, mesmo indirecta, nos assuntos internos da França – o que me está vedado – ou uma apologia do nosso sistema. Este último funciona bem no nosso país, mas não temos nenhuma intenção de o exportar, nem de julgar os outros sistemas a partir da nossa experiência nacional. De facto, a minha exposição deveria intitular-se, mais modestamente: “A Laicidade na América Latina: o caso do Uruguai”. 2. A minha conferência não terá um carácter académico, uma vez que não estamos numa Faculdade de Direito, e limitar-se-á a dar-vos um simples vislumbre da nossa concepção e da nossa prática da laicidade. 3. Tentarei apresentar um panorama jurídico geral da situação. Teria sido de grande utilidade analisar os diferentes factores históricos e sociológicos que estão na base de algumas disposições nos outros países da América Latina, mas, infelizmente, isso não será possível. Talvez possamos voltar a este assunto posteriormente se, conforme espero, se

sentirem na obrigação de me colocarem questões ou se fizerem os vossos comentários e as vossas críticas. Poderemos, então, socorrendo-nos da História, compreender, um pouco melhor algumas particularidades nacionais.

I. A Secularização

Antes de se tornar num Estado laico, isto é, não religioso, o Estado uruguaio – segundo a Constituição de 1830 – era católico, apostólico e romano (art. 5). E assim foi até à Constituição de 1918. Ao longo deste período, que durou quase noventa anos, a sociedade uruguaia passou por um longo processo de secularização. Para o professor Jean Baubérot, isso “implica uma relativa e progressiva perda de pertinência social do religioso (…)”. A sociedade civil separou-se, progressivamente, da religião e este fenómeno favoreceu, ao fim de algum tempo, a instauração da laicidade do Estado que, sempre segundo o professor Jean Baubérot, “é, antes de mais, o trabalho do político, visando reduzir a importância social da religião, como instituição, em direcção a destitucionalizá-la”.

Este processo social natural de secularização foi acompanhado por um incitamento por parte do Estado, como o confirma o que se segue: 1858 – Expulsão da ordem dos jesuítas. 1861 – A administração dos cemitérios fica daqui em diante, sob a responsabilidade das comunas. 1877 – Adopção da lei sobre a educação gratuita e obrigatória. Os não católicos deixam de ser obrigados a receber ensino religioso. 1879 – A lei retira à Igreja o controlo do Estado civil – nascimentos, casamentos, mortes. 1885 – A lei sobre o casamento civil estipula que este será o único acto legítimo e que deverá ser celebrado antes do casamento religioso. Hoje, no Brasil e na Colômbia, por exemplo, o casamento religioso tem efeitos civis. No caso da Colômbia, até mesmo a anulação do casamento religioso tem efeitos civis.

A lei considera ilegais os conventos, ou mosteiros que não tenham sido autorizados pelo governo. 1906 – Retirados os crucifixos dos hospitais públicos. 1907 – Adopção da primeira lei sobre o divórcio. Supressão do juramento religioso dos legisladores. 1908 – Supressão do feriado em honra da Anunciação feita à Virgem Maria. 1909 – Abolição do ensino religioso e da prática da religião nas escolas públicas. 1911 – Encerramento na embaixada junto da Santa Sé. Restabelecimento

das relações diplomáticas com o Vaticano em 1939. 1912 – Supressão do feriado no dia da Assunção. 1913 – A lei reconhece à mulher, e apenas pela sua vontade, o direito ao divórcio. (Não é obrigada a apresentar razões e o marido não tem o direito de se opor.) 1918 – Adopção de uma nova Constituição: separação da Igreja e do Estado. 1919 – Adopção de uma lei secularizando as festas religiosas: a) suprimindo: O Dia de Todos-os-Santos, da Assunção e da Imaculada Conceição. b) modificando os nomes: Natal torna-se no “dia da família” e a Epifania (a Festa dos Reis) no “dia das crianças. A Semana Santa chamase, desde então a “semana do turismo”.

Por fim, acrescento que algumas povoações – nem todas – que tinham nomes de santos (como São Vicente, São Tomás, Santa Isabel, Nossa Senhora de Guadalupe) também mudaram de nome.

II. A Laicidade

Passarei a ler, de imediato, o artigo 5 da Constituição: “Todos os cultos religiosos são livres, no Uruguai. O Estado não apoia nenhuma religião. Reconhece à Igreja Católica a propriedade de todos os edifícios religiosos, que ela tenha construído, total ou parcialmente, com os fundos do tesouro público, com excepção das capelas que assegurem o serviço dos asilos, dos hospitais, das prisões e outros estabelecimentos públicos. Estipula, igualmente, que estão isentos de impostos os edifícios consagrados ao culto das diversas religiões”.

A chave da abóbada do nosso sistema é que, no Uruguai, não há religião oficial, como é o caso daArgentina, da Bolívia, ou da Costa Rica. O Estado não reconhece a nenhuma religião um carácter preeminente, preponderante, ou maioritário, contrariamente ao Peru, ao Paraguai e ao Panamá.

Qual é o fundamento político e doutrinário da separação da Igreja e do Estado e da laicidade? A religião é um assunto privado, pessoal. O facto religioso deixa de ser um acto público.

A laicidade uruguaia não é neutra; apenas se abstém de tomar posição. Qual é a diferença? O abstencionismo não reconhece o carácter público do fenómeno religioso. Permanece à parte, salvo para proteger a liberdade religiosa, que é uma liberdade igual às outras – quer seja a liberdade de reunião, a liberdade de associação, etc. A neutralidade, em contrapartida, reconhece o carácter público da religião. Está equidistante das diferentes religiões. É o caso do Brasil, em que o Estado e a Igreja estão separados,

mas onde existe um regime de colaboração – por razões de interesse público – com todas as religiões – naquilo que concerne, particularmente, ao reconhecimento do casamento religioso, as capelanias dos hospitais e do exército, as subvenções para o ensino religioso, etc.

Acrescentarei que o sistema brasileiro da separação da Igreja e do Estado prevalece, também, na Guatemala e na Colômbia, e que muitos países – laicos – que não têm religião do Estado continuam a exigir do Presidente da República que preste um juramento de tipo religioso ou a invocar a protecção divina no preâmbulo da Constituição como no Chile, no Equador, nas Honduras, no Haiti, na República Dominicana, por exemplo.

Gostaria, agora, se me permitem, salientar uma outra questão, de tipo acima de tudo pragmático, para apoiar a nossa laicidade abstencionista: com que religiões devemos colaborar? As que são mais antigas? As que são maioritárias? As que são cristãs? Como iremos conservar uma distância igual com umas e com outras? Contamos, pelo menos, dezoito denominações cristãs no Uruguai. Há igualmente um número assaz numeroso de judeus, alguns muçulmanos e umbandistas – os fiéis de uma religião com raízes africanas, que se tem desenvolvido rapidamente nos últimos anos. Contentar-me-ei em colocar algumas questões sem lhes responder, e que vos peço me perdoem por isso.

III. Consequências que resultam da nossa laicidade abstencionista

O ensino público é laico, como no México, no Equador e na Nicarágua.

Os serviços públicos e o conjunto da administração pública são laicas. Eis alguns exemplos: a) Não se encontra nenhum símbolo religioso nos hospitais; b) nem se encontram noutros estabelecimentos públicos: ministérios, Câmaras Municipais, quartéis, etc.; c) não existem capelães – quer seja no exército, nas prisões ou nos hospitais; d) os funcionários – do governo, administrativos e diplomático – não podem participar, oficialmente em cerimónias religiosas. Devo sublinhar “oficialmente”, porque podem fazê-lo, é evidente, a título pessoal. Eu posso, sem nenhum problema, assistir a um ofício religioso do templo do meu bairro, mas devo declinar qualquer convite, que me seja dirigido, na minha qualidade de embaixador, o que é frequente nos meios diplomáticos latino-americanos, por ocasião das festas nacionais.

Os membros do clero e os ministros das diferentes confissões são cidadãos de pleno direito. Não estão privados dos seus direitos cívicos – de forma geral, ou parcial – como é o caso, por exemplo, na Argentina,

A Laicidade na América Latina: o exemplo do Uruguai no México e no Panamá. No Uruguai, podem eleger e ser eleitos; podem fazer política e praticar um proselitismo ideológico apoiando-se nas suas convicções religiosas. Os partidos políticos ligados a uma religião são permitidos. O Estado não tem nenhum direito de vigilância nem sobre o clero, nem sobre os edifícios religiosos.

Não é feita nenhuma distinção entre cultos “reconhecidos” e “não reconhecidos”. O reconhecimento do Estado não é necessário para usufruir da liberdade religiosa. No entanto, para exercer os seus direitos civis – como o de propriedade, por exemplo – devem adquirir personalidade jurídica como uma qualquer associação, o que não é complicado.

Não existe nenhuma autoridade administrativa encarregue daquilo que, frequentemente se chama de “assuntos religiosos” porque, como já foi dito anteriormente, para nós, são assuntos privados.

Se bem que o facto religioso seja considerado como privilégio do domínio privado, o nosso Direito tem duas excepções a esta regra de ouro. A primeira emana da Constituição, que declara os edifícios sagrados, isentos de todos os impostos – como é o caso do Chile e da Guatemala; a segunda emana do Código Penal (art. 304 e seguintes), que pune os crimes contra a liberdade religiosa – ofensas contra os ministros do culto, perturbação das cerimónias, destruição dos templos, etc.

Estas excepções pretendem, como podem compreender, proteger a liberdade religiosa, sem fazer distinção entre os diferentes cultos. Elas constituem excepções “positivas” e não “negativas”.

Balanço final

A grande maioria dos uruguaios – sejam eles crentes, ou não – aceitam globalmente o sistema de separação da Igreja e do Estado e a laicidade abstencionista que daí deriva. Esta última levou a uma paz religiosa, sem, contudo, impedir o desenvolvimento de todas as religiões que quiseram implantar-se entre nós, e elas são numerosas. Porquê?

Somos, e temos sido, um país de imigrantes. Se nos perguntarem donde vieram os uruguaios, responderemos que “descemos dos navios”. E isto não é uma brincadeira, é a verdade. Desses navios desceram espanhóis católicos, franceses católicos, protestantes – os Valdenses – italianos católicos, mas também franco-maçons e liberais, suíços católicos e protestantes, gregos e eslavos ortodoxos, libaneses maronitas, judeus, agnósticos e ateus – “Todas as aves do mundo vieram e fizeram os seus ninhos”.

Temos o sentimento de que a laicidade uruguaia não é muito bem compreendida. E esta é a razão, pela qual, me permito insistir mais uma vez sobre este ponto: a laicidade uruguaia não é anti-religiosa, como foi, num momento da sua história, o México antes da reforma constitucional de 1992. A maioria da população do meu país é cristã, e mesmo aqueles

que o não são construíram a sua escala de valores – conscientemente, ou não – apoiando-se na moral cristã.

Não tenho o direito de vos deixar pensar, bem entendido, que não encontrámos dificuldades ao tratar da questão da liberdade religiosa e da laicidade. A aplicação quotidiana dos grandes princípios constitucionais coloca, sempre, problemas; é necessário não alimentar ilusões.

Até hoje, a questão do lenço islâmico nunca se pôs, porque quase não há muçulmanos no meu país. Que eu tenha conhecimento, também não temos o caso da excisão. No entanto, como é de esperar o Estado foi confrontado com o problema suscitado por um casal que recusou vacinar os seus filhos por razões religiosas. Segundo a nossa legislação, é necessário ter recebido as três vacinas obrigatórias para se inscrever numa escola. Razões de ordem e de saúde pública estão na base desta exigência, que não é fantasista, nem arbitrária. Além disso, os pais, foram intimados a fazer vacinar os seus filhos, eles não quiseram sujeitar-se a esta exigência e, depois de algumas tentativas inúteis, abandonaram o país.

Outros problemas surgiram, especialmente com as Testemunhas de Jeová por causa das transfusões de sangue, e com os judeus por causa da dispensa das aulas ao sábado. É possível resolver estes problemas? Em todos os casos é necessário aplicar o princípio, segundo o qual, a liberdade religiosa não pode ser objecto de outras restrições senão as que estão previstas na lei e que são necessárias para a protecção da segurança pública, a ordem, a saúde, ou a moral públicas, os direitos e liberdades dos outros (art. 12 do Pacto de São José da Costa Rica) – Convenção Americana dos Direitos do Homem (art. 9 da Convenção Europeia).

Entre nós, a noção de ordem pública, por exemplo, contém a da igualdade dos sexos perante a lei e a noção de saúde pública, que releva da obrigação de se cuidar em caso de doença e de respeitar as regras sanitárias que foram editadas por razões de interesse geral. É, portanto, desenvolvendo estas noções orientadoras que se poderá tentar resolver os problemas e os conflitos que surgem naturalmente no seio da nossa sociedade, cuidando para seja respeitado, ao máximo, o equilíbrio necessário entre autoridade e liberdade.

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