26 minute read

M. Verfaillie O progresso do diálogo inter-religioso na tradição europeia T. Domanyi A situação da liberdade religiosa no catolicismo

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia *

Maurice Vefaillie **

Advertisement

Permitam-me que comece por uma nota pessoal: qualquer que seja a sinceridade do nosso olhar, cada um de nós interpreta o mundo e os seus movimentos em função da sua formação e da sua experiência. Penso que é importante dizer-vos que ao avaliar a evolução do diálogo inter-religioso na tradição europeia, tento fazê-lo do ponto de vista cristão.

O historiador que fala dum facto concreto – por exemplo, o desembarque dos aliados em Junho de 1944 – aborda o assunto com uma certa vantagem. Com efeito, se a escolha dos momentos e a extensão das consequências deste acontecimento podem ser objecto de interpretações diferentes, o acordo geral faz-se sobre a sua existência, sobre os lugares, a data e o papel que ele desempenhou na derrota do regime nazi.

Podemos imaginar que o mesmo acontece quando se trata do alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia, na medida em que se torna possível distinguir o carácter de certos debates, de localizar na História as maneiras de conceber as relações inter-religiosas e de considerar as suas discussões como suficientemente significativas para serem olhadas como preparação para verdadeiros diálogos. “Diálogo Inter-Religioso”. Nos nossos dias a expressão tornou-se tão corrente a propósito de tantos encontros inter -religiosos que o sentido do que é um “diálogo” se esvaziou, ao ponto de parecer vazio de conteúdo.

Após este preâmbulo, proponho-vos que tratemos o nosso assunto em três partes. 1) Definir a noção moderna do diálogo e a sua filosofia; 2) Lembrar na história da Europa os antecedentes das relações das religiões entre si e 3) Abordar rapidamente alguns factores que desempenham um papel no desenvolvimento das relações inter-confessionais e inter-religiosas.

I. A noção moderna de diálogo e a sua filosofia na Europa

Antes de abordar este novo conceito que esta palavra e esta filosofia abrangem, é necessário lembrar que a palavra “diálogo”, no seu sentido actual, não aparece no vocabulário religioso, na Europa, senão após a Segunda Guerra Mundial, portanto muito recentemente. Deste modo, por exemplo, encontra-se numa declaração feita em 1947 por uma igreja reformada na Holanda. Trata-se da relação teológica que esta igreja mantém com Israel, no sentido religioso do povo judeu.

Participantes do Congresso Mundial sobre a Liberdade Religiosa “Religião, diálogo, solidariedade e desenvolvimento”, organizado em Santiago de Compostela, Espanha, de 25-27 de Maio de 2005. Da esquerda para a direita, John Graz, secretário geral da IRLA, Silver Spring. Estados Unidos; Rosa Maria Martinez de Codes, professora de História da Universidade Complutense, Madrid, Espanha; Maurice Verfaillie, antigo secretário-geral da AIDLR e redactor-chefe da revista Conscience et Liberté, acompanhado pela sua esposa Irene. Foto publicada com a amável autorização da Drª Rosa Maria Martinez de Codes

A. A Filosofia do diálogo no conceito moderno

Tratando-se do espírito de diálogo tal como o pastor Henri Nusstlé o entende no seu livro Diálogo com o Islão, aparecido em 1949, JeanClaude Basset cita-o: “[…] estabelecer uma confrontação desprovida de toda a animosidade recíproca, de substituir o antagonismo por uma explicação, um diálogo1” Um outro protestante, J. Spencer Trimingham, escrevia em 1955: “Utilizamos este termo “diálogo” na sua acepção continental moderna de encontro construtivo entre cristãos e muçulmanos […]; um encontro no respeito recíproco e na compreensão mútua da fé dos outros, com a preocupação de encontrar uma base comum e um compromisso em favor do bem-estar da sociedade no seu conjunto2.”

Duas expressões devem ser sublinhadas nesta última citação: “diálogo na sua acepção continental moderna” e “encontro construtivo […] no respeito recíproco”. A questão é saber quando nasceu este conceito no Ocidente. Jean-Claude Basset situa esse “nascimento” após a primeira guerra mundial, com o desenvolvimento, nos meios da teologia protestante alemã, duma verdadeira filosofia do diálogo. O conceito moderno do diálogo desenvolveuse em seguida no século XX, até penetrar nos meios católicos com o Concílio do Vaticano II (1962-1965). Mas foi principalmente com Martin Buber (1878-1965) que a filosofia do diálogo mergulhou as suas raízes na herança do pensamento judaico. Ele funde-a como uma antropologia de dupla relação com o outro e com o mundo: a relação “Eu-tu” e a relação “Eu-Aquilo” 3 .

Em 1923, Buber, sublinhara que nem o “Eu” nem o “Tu” podem viver separadamente. Eles não existem senão no contexto do “eu-tu”, que precede a esfera do “Eu” e a esfera do “Tu”. Da mesma maneira, nem o “Eu” nem o “isso” podem existir separadamente. Eles existem unicamente na esfera do “Eu-isso”. A relação do “Eu-Tu” não é absoluta senão em relação a Deus o “Tu” eter-

no. Esta relação não pode ser plenamente realizada nos outros domínios da existência inclusive nas relações humanas. Elas obscurecem-se muitas vezes na esfera do “Eu-isso”4 .

Por seu lado, Kalman Yaron, director do Instituto Martin-Buber na Universidade Hebraica de Jerusalém, escreve: “Buber afirma que a Bíblia testemunha de um diálogo permanente entre o Criador e as Suas criaturas – um encontro no qual o homem é um parceiro autêntico capaz de se fazer ouvir […] No coração do diálogo figura o encontro entre dois seres soberanos dos quais nenhum procura impressionar o outro nem usá-lo. Segundo Buber, o homem pode viver sem diálogo, mas quem não encontrou um “Tu” não é verdadeiramente um ser humano. Contudo, aquele que penetra no universo do diálogo corre um risco considerável porque a relação “Eu-Tu” exige uma abertura total do “Eu”, que se expõe a uma recusa e a uma rejeição total 5”. Pode-se portanto compreender como este pensamento tenha sido qualificado de “revolução copérnica” por Gabriel Marcel e Gaston Bachelard, por causa do lugar central que Buber concede ao encontro do “outro”. E é justamente porque ela se enraíza no ensinamento bíblico – onde o homem aí aparece à imagem de Deus como um ser cuja personalidade se estrutura no conjunto de relações – que este pensamento pode ter impacto na reflexão cristã.

B. Definição

O que é que podemos compreender por “diálogo inter-religioso?”

O Dicionário Francês Le Petit Robert (1996) define o diálogo, qualquer que ele seja, como o “contacto e discussão entre duas partes à procura de um acordo, dum compromisso”. Do ponto de vista que nos interessa neste congresso, os traços característicos que Jean-Claude Basset revela, parecem mais próximos do assunto da nossa reflexão: “O diálogo é um encontro de pessoas […] É próprio do diálogo tomar em conta os indivíduos, a sua história e o seu futuro; mais, é no diálogo que os interlocutores se podem reconhecer como pessoas com a sua individualidade e a sua liberdade 6”.

É evidente que esta abordagem pressupõe uma noção elaborada da pessoa humana. Esta existe no pensamento cristão. Podemos recuar pelo menos até ao Novo Testamento para encontrar a sua manifestação. O “noûs” (em grego) utilizado pelo apóstolo Paulo nas suas epístolas, é a expressão duma personalidade estruturada e tomada na sua totalidade: “[…] O “eu” que “sabe”, que “compreende”e que “conhece” é sempre ao mesmo tempo um “eu” que se orienta, que “quer” e que toma posição. O elemento vontade está sempre incluído na inteligência do sujeito pensante (I Cor. 1:10; Rom. 12:2; 14:5; 7:23) 7”, Escreve Jean Zurcher. Na Idade Média, o filósofo Boéce definia-a “como a substância individual duma natureza razoável” (Boéce, in De duabis naturis et una persona Christi).

C. Implicações, ao nível religioso, desta concepção do diálogo

Compreendido como comunicação ao nível religioso, e no sentido moderno ocidental, o “diálogo” situa-se num plano completamente diferente dos outros modos de relacionamento. “Diálogos” no sentido duma mesma confissão religiosa ou “diálogos” por ocasião de encontros inter-religiosos: para serem verdadeiros, eles necessitam de várias

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia condições das quais mencionaremos apenas algumas: 1. É um encontro de pessoas. No sentido da noção actual de “diálogo”, não se devia falar de “diálogo de religiões”, mas de “diálogo entre crentes”. De facto, aquilo a que se chama correntemente “diálogo interreligioso” limita-se antes a uma justaposição ou a uma comparação de sistemas de pensamento religioso.

2. Ele supõe um intercâmbio

respeitoso e confiante. O recurso ao diálogo implica o reconhecimento da pessoa e da dignidade do outro, com um grau de confiança mútua no discurso entre ambos.

3. Deve comportar a reciproci-

dade. O diálogo exclui uma relação fundada exclusivamente sobre o estatuto de relação “professor-aluno” – tal como se pratica, por exemplo no budismo. Que o diálogo seja inter-confessional ou inter-religioso, as suas dimensões colocam problemas aos espíritos ancorados na sua certeza absoluta de serem os únicos detentores de todas as verdades. A reciprocidade coloca os parceiros à escuta um do outro com uma abertura de espírito à luz que podem receber um do outro.

4. Reconhece a individualidade

de cada uma das partes. Martin Buber recusava “ao mesmo tempo uma abordagem totalmente individualista em que um sujeito percebe o outro unicamente em relação a si próprio”, e “a perspectiva colectiva”, que oculta o indivíduo “e não vê senão a sociedade 8 . A experiência mostra que a individualidade prejudica porque a diferença prejudica. Ora, o diálogo pressupõe o reconhecimento da realidade da individualidade de cada pessoa. 5. É uma aposta e um desafio. Qual é o grau de compromisso de cada uma das partes? No diálogo religioso, existe uma verdadeira aposta. Ele ultrapassa o sentido das palavras. Com efeito ele pode dizer respeito ao modo de vida e às convicções religiosas de cada uma das partes. Dialogar, é sempre em qualquer momento, correr o risco de se ver a si próprio posto em causa; é um desafio talvez a mudar a sua maneira de crer e de viver. Portanto a conversão do outro não poderá acontecer sem um verdadeiro diálogo. A aposta não é nada menos do que a sinceridade e o discernimento nas suas próprias convicções. O respeito pela liberdade de consciência reveste-se então de toda a sua importância.

II. Os antecedentes do diálogo inter-religioso na Europa

A. O carácter das relações inter-religiosas antes da época moderna

Será que podemos falar do despontar dum diálogo inter-religioso antes da época moderna? Será que isso corresponde a uma realidade histórica? Como foram consideradas as relações entre confissões cristãs e entre as religiões ao longo da história da cristandade ocidental? Gabriel Marcel e Gaston Bachelard qualificaram a concepção buberiana de diálogo de “revolução copérnica do pensamento”. Quer isto dizer que antes do século XX nunca houve “nenhum encontro construtivo” no domínio religioso? Todos os historiadores do cristianismo notaram que a maior parte dos encontros deste tipo foram alimentados por um espírito de rivalidade, mais do que por um espírito de reconciliação. O primeiro objectivo “das discussões” ou dos

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia “colóquios” religiosos era preservar a unidade confessional da cristandade na Europa. Cada uma das partes tentava afirmar a sua superioridade sobre as outras. O estilo do discurso salientava sobretudo a polémica, a refutação ou a reprovação. É verdade que por vezes, existiram “diálogos” amigáveis entre cristãos e muçulmanos em Espanha antes do reino de Castela. Não obstante, em geral, o ambiente era de hostilidade podendo conduzir ao processo inquisitorial. Ainda no século XVI, a opinião dominante que animava estes encontros – fossem eles católicos, luteranos, calvinistas ou anabaptistas – não admitiam a pluralidade de confissões no interior do estado.

A história de Espanha oferece um exemplo interessante, ao qual faremos breve referência. Facto interessante – mesmo se é um aspecto particular e típico, diferente da história das outras nações da Europa na mesma época – a Espanha é o único país que viu no seu território, durante um grande período de tempo, um face a face permanente de três grandes religiões em presença: o catolicismo, o judaísmo e o islamismo. No fim da Idade Média, com estas três religiões, a Espanha herdava três forças políticas ou culturais tendo cada uma, em diferentes graus, exercido uma influência na formação da identidade espanhola. O professor Mário Tedeschi, da Universidade de Nápoles, analisou esta coabitação. Será então isto o triunfo da tolerância e do diálogo inter-religioso? Ele responde com um “não” pouco enfático. Na sua exposição, no decurso do “Encontro entre três confissões religiosas, o cristianismo o judaísmo e o islamismo” que teve lugar em Toledo em Novembro de 1998, concluiu com um balanço mitigado: “após tantos séculos a despeito de tantos anos passados, este problema (da coabitação) parece não ter sido resolvido”. Sublinhando que a realidade histórica, no fim da Idade Média espanhola, é a sobrevivência das nações confessionais que procuravam na religião aspectos promotores da unidade ou apoio às forças da oposição, ele acrescentava, a propósito do caso de Espanha: “a tendência de falar de respeito recíproco, ou mesmo de tolerância religiosa numa tal situação, seria demasiado simples. Da mesma maneira, seria anacrónico querer transpor conceitos e princípios modernos – como o da tolerância – num período e em sistemas que não os consideravam como valores “transmissíveis” 9 . Sem dúvida que a adesão a uma fé religiosa criou, muitas vezes, incompreensões e lutas no solo espanhol. É igualmente verdade para as outras nações europeias. Contudo, também existiram longos períodos em que a coabitação tomou o lugar da confrontação. E o professor Tedeschi continua: “[…] isto autoriza-nos a olhar para a Idade Média espanhola sob um ângulo mais moderno porque, no seu solo, a coabitação pacífica entre as três religiões foi possível durante certos períodos enquanto que por razões políticas, a intolerância religiosa e ideológica não usurparam a consideração ou o respeito que uma das confissões podia ter sobre as outras 10.” Consequentemente, a cristandade na Europa conheceu precursores da tolerância e do diálogo. Não se tratava de instituições confessionais mas de indivíduos. Esquecemo-nos facilmente hoje dos grandes visionários da paz religiosa na Europa, como por exemplo, o Catalão Raymond Lulle (1233-1316), no século XIV.

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia Devemos também lembrar que os primeiros humanistas, nos séculos XV e XVI, foram católicos fervorosos que optaram pelo respeito nas diferenças, pela concórdia e pelo diálogo em nome do Evangelho.

Mesmo se a influência do humanismo cristão diminuiu após a Reforma Protestante e a vigorosa reacção da Contra -Reforma Católica, faltaríamos ao dever se passássemos por alto o papel desempenhado nos séculos XV e XVI por teóricos tais como Nicolas de Cues (1401-1464), Thomas More (1478-1535), do diálogo e no alvorecer da Reforma Luterana, Erasmo (1469-1536) que será o apóstolo mais activo e mais influente na reforma dessa prática. As suas preocupações e a sua busca do diálogo parecem muito singulares na sua época.

“(Estes humanistas) são consagrados a um ideal de unidade espiritual entre os homens, mas não o querem todos da mesma maneira como os doutores da Idade Média”, escreve Joseph Lecler na sua História da tolerância: “estes (os doutores da Idade Média) não hesitavam em adoptar em relação às diversidades religiosas uma posição de combate: luta violenta contra os heréticos, cruzadas contra os Infiéis. Tal não era a posição dos humanistas. Para unir os homens sobre o plano religioso, à partida eles pensavam menos naquilo que os dividia do que naquilo que os aproximava. No meio das divergências que os opunham, estavam à procura dum terreno comum. No meio das forças, desejavam criar processos pacíficos. Estes eram os “irenistas”11.” Contudo o seu ideal ainda não é o da tolerância no sentido moderno. Preocupam-se, sobretudo, em reduzir as divergências religiosas por um esforço leal de conciliação. Por isso, é necessário mencionar um facto que poderia ser considerado, em razão das dimensões da personagem, como um pequeno passo no processo que chegará muito mais tarde ao reconhecimento da liberdade religiosa: Erasmo, o primeiro, propôs, pelo menos como solução provisória, a ideia duma tolerância civil do culto protestante. É necessário sublinhá-lo, porque é um caso quase único 12 .

B. A Europa em transição

Com o tempo estas correntes de pensamento foram relegadas ao segundo plano através de compromissos, políticos e económicos considerados como superiores numa Europa ainda medieval, mas já em transição para uma modernidade nascente. A Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII é a Europa da Reforma e da Contra-Reforma, contudo ainda permanecendo fortemente debaixo do jogo de interesses e de forças políticas dominantes. É também a Europa da inflação devastadora das estruturas sociais tradicionais, depois a dum século que favoreceu os conservadorismos. É a Europa da rivalidade entre a Espanha e a França, a Europa das guerras da Itália, as guerras da religião em França, da emancipação dos Países Baixos, a guerra dos Trinta Anos e da Revolução em Inglaterra. É sobretudo a Europa do fim da monarquia absoluta em França e da Revolução Francesa. Enfim, a Europa torna-se, durante estes séculos, um vasto campo acidentado onde não é fácil dar apoio ao encaminhamento de uma ideia: a liberdade de consciência que se difundirá, depois transformará as

mentalidades colectivas e o curso das relações inter-religiosas.

III. Factores sociais do desenvolvimento actual das relações inter-confessionais e inter-religiosas.

O passado testemunhou que as comunidades religiosas podem conviver lado a lado durante séculos, no mesmo espaço geográfico e cultural, sem se empenharem em verdadeiros diálogos. Não deveríamos ver aí uma indicação de que os principais factores que favorecem os encontros inter-religiosos devem ser procurados nas evoluções sociais, nas estratégias políticas ou nas mudanças culturais, pelo menos na primeira fase, em vez de nas primeiras preocupações das instituições religiosas? Não estarão aí os primeiros factores responsáveis destes encontros? A realidade histórica é complexa. Vários factores se combinam e entram em jogo, incluindo factores propriamente religiosos. Referir-nos-emos aqui apenas a quatro.

1. O pluralismo.

A Grande Enciclopédia Larousse (Éditions Prestige, 1970) propõe uma definição dinâmica de Pluralismo: “estado do que é não único, mas apresenta diferenças, em matéria de filosofia, de religião, de política […] Doutrina que preconiza a coexistência construtiva de diversas tendências”.

Na Europa ocidental, a fissura da unidade da cristandade, com a Reforma do Século XVI, deu forma à pluralidade religiosa. Não se podia ignorar outras abordagens da mesma revelação em Jesus Cristo, que davam como consequência outras confissões de fé e outras organizações religiosas cristãs. Um primeiro pluralismo inscreveu-se então na história com o princípio “cujus régio ejus religio”, formulado por ocasião da paz de Augsbourg em 1555, depois com a ultrapassagem dos tratados Vestefália em 1648 13. Cento e trinta e cinco anos mais tarde, no momento da independência dos EUA, em 1783, depois com a Revolução Francesa, apareceu uma nova dimensão do pluralismo com a ruptura do elo que unia entre si as instituições religiosas e os poderes políticos.

Por outro lado, na Europa, as afirmações e as práticas religiosas já não desempenham, como no passado, o papel de fundamento da existência colectiva. O compromisso religioso repousa sobre a escolha pessoal e não mais sobre a autoridade da tradição ou da instituição religiosa. A primazia do indivíduo sobre o grupo, escolha em vez da herança da tradição, estes factores desempenham um papel na procura de encontros interreligiosos (ver experiência de Taizé).

No domínio espiritual, é necessário fazer-se a distinção entre um pluralismo neutro e um pluralismo positivo. O primeiro tem as suas raízes no desencanto face a uma unidade perdida e inacessível. As oposições e as diferenças estão coladas e as convicções reduzidas a um dominador comum. Este pluralismo está marcado por uma vontade de indiferenciação. Trata-se com efeito dum enfraquecimento da diversidade, quando se fala duma consequência inelutável. O segundo, o pluralismo positivo contemporâneo, pelo contrário, tende a dar a cada um a valorização que lhe é devida, e é este último que favorece o diálogo.

2. A secularização e a liberdade religiosa

Duas outras evoluções da sociedade europeia desempenham também um papel favorável no espírito

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia destes encontros: a secularização e a afirmação dos direitos do homem, mais particularmente com o reconhecimento do direito inalienável e individual à liberdade de consciência e de religião.

a) A secularização

Não nos compete traçar aqui a história da secularização depois do século XVI. Os significados que este termo tomou depois do século XVIII não faltam. É necessário fazer diferença entre “secularizar” e “laicizar”, compreendendo-se este último termo mais como o resultado da vontade política de “tornar (o Estado) independente das autoridades religiosas” (Grand Larousse Encyclopédique”, Édições Prestige, 1970). “Secularizar” por outro lado refere-se à dinâmica da própria sociedade no seu todo 14. Na Europa a secularização continua a ser um factor na separação das Igrejas e dos Estados. A diferença é que no passado a secularização não era conhecida na escala actual, e ela ofereceu e continua a oferecer um “terreno” em que os encontros entre as confissões e as religiões se sentem libertas da pressão da sociedade globalizante de outrora. A sua única referência, portanto, é a religião como tal.

b) O aparecimento da liberdade de consciência e de religião

Já sublinhámos que, o conceito moderno do diálogo inter-religioso necessita do reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente a liberdade de consciência e de religião. Contudo, para permitir que esta questão se coloque abertamente na Europa, foi necessário esperar que a corrente das ideias que a subentende se afirmasse e que ela fornecesse aos homens de poder uma fonte intelectual de reflexão. Não é fácil seguir com exactidão o caminho traçado por esta ideia através dos séculos XVI, XVII e XVIII. Na teologia de Lutero, de Calvino, ou na do seu adversário Castellion, este tema adquiriu uma dimensão política no conceito dos reformados franceses, depois no conceito dos porta-vozes independentes, como John Milton, por ocasião da Revolução inglesa. Este conceito (da liberdade de consciência e religião) tornou-se filosófico com John Locke, Leibnitz e Pierre Bayle. O progresso deste movimento de ideias teve numerosas repercussões políticas, sociais e religiosas. A sua realização não foi possível senão com a derrocada do edifício imponente da igreja dominante. A sacudidura provocada pela ruptura da unidade da cristandade, com a Reforma, repercutiu-se através do Velho Continente à semelhança das réplicas dum tremor de terra. A subida do sentimento nacional no Noroeste Europeu, depois os choques da descrença no século XVII, contribuíram para o recuo do tenaz conformismo doutrinal tradicional induzido pelas autoridades eclesiásticas. De facto, foi necessário obter a adesão da organização política da sociedade para que a liberdade de consciência se traduzisse em factos sociais. Fazendo da liberdade religiosa um princípio constitucional, certas instituições, como os Estados das Ilhas de Rhodes, em 1636, e da Pennsylvanie em 1681, abriram, de maneira precoce, o caminho da sua futura constitucionalização no século vinte. O fenómeno marginal que ela representava ainda no século XVII no contexto da resistência encarniçada das nações europeias modernas, com todo o reconhecimento desta liberdade, esta grande ideia impôs-se passo a passo, passando primeiro pelo caminho de diversos éditos de

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia tolerância. Seriam necessários três séculos para que ela fosse plenamente aceite.

No modelo pluralista da sociedade europeia actual, em que a diversidade religiosa se tornou uma constatação, o verdadeiro diálogo inter-religioso poderia tornar-se um factor possível na promoção da paz, na medida em que ele estabelece a legitimidade do direito enunciado no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, só ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pelas práticas e pelos ritos.”

3. O Ressurgimento religioso

Contudo somos forçados a constatar que o tempo em que muitos queriam ver na secularização um processo inevitável está ultrapassado. Não só ela não se notou no mundo, mas, no Ocidente, parece marcar passo. É um facto que longe de se extinguir como muitos imaginavam, as tradições religiosas reapareceram sob formas mais ou menos renovadas. Os efeitos deste ressurgimento fazem-se sentir na Europa com o desenvolvimento de novos movimentos religiosos (n.m.r.), a atracção pelas religiões orientais, mas também com os integristas e os conservadores católicos ou protestantes e com os extremistas muçulmanos. Todas estas correntes concorrem para uma “ocidentalização” da diversidade religiosa. Elas tornam necessários os diálogos para favorecer a aplicação dos direitos do homem, contrabalançando os elitismos e os exclusivismos, fontes de radicalização e de conflitos.

4. O ecumenismo

Desde início do século XX, e mais ainda nos meios cristãos após a Segunda Guerra Mundial, o ecumenismo tomou a forma de resposta ao aparecimento do pluralismo religioso. É necessário mencionar aqui o papel do Conselho Ecuménico das Igrejas e o da World Church Communion. É verdade que existem “ecumenismos” fora do cristianismo. Contudo devemos sublinhar que foi o ecumenismo cristão que mobilizou quantitativamente o maior número de pessoas, leigos e clérigos. Na realidade seria mais exacto falar de ecumenismos no plural, porque existem ecumenismos protestantes, ecumenismos católicos ou ecumenismos ortodoxos. Existem também ecumenismos de base (ver Larzillier, em Lausanne), ecumenismos oficiosos e ecumenismos eclesiásticos, oficiais15 . O ecumenismo cristão quer inscrever-se no contexto do diálogo tal como o temos descrito. O facto é que ele é mais frequentemente o fruto de iniciativas ocidentais, directamente confrontado com o pluralismo sob todas as suas formas.

Conclusão

1. Pode falar-se do alvorecer de um diálogo inter-religioso na Europa. Ele corresponde bem a uma realidade histórica. Os seus traços de carácter apareceram às apalpadelas através dos séculos, com uma aceleração desde o início do século XX. Não obstante ainda hoje procura os seus caminhos: – As manifestações dos diálogos são múltiplas. É necessário falar de diversidade de diálogos, em função das pessoas em presença e dos desafios do encontro. – Os diálogos inter-confessionais ou inter-religiosos não são, propria-

O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia mente falando, os resultados duma progressão uniforme nas tradições religiosas. São frequentemente o resultado de pressões exteriores que se impuseram. – Evitarão eles o perigo de permanecer à superfície da vida religiosa e de passar ao lado das perspectivas espirituais das partes em presença? – Será o diálogo inter-religioso tentado a fazer o impasse sobre a conversão em nome duma certa ideia dum pluralismo enfraquecido e duma desconfiança, por vezes justificada, em relação a proselitismos abusivos? 2. Que acontecerá amanhã? O recuo de cinquenta anos depois da eclosão duma noção moderna do diálogo não permite ainda tirar conclusões. Tudo dependerá das concepções que a sociedade terá do papel da religião no espaço público. Devem ser evitadas algumas armadilhas: a) Seria um erro pensar que a religião fosse um dos principais factores dos conflitos a que assistimos hoje. b) Pela sua filosofia da sociedade ou pela sua teologia, as religiões podem alimentar as fontes de tensão com elevados riscos; por exemplo exacerbando as reivindicações da etnicidade ou o nacionalismo criando comunitarismos, estimulando um conservadorismo abusivo, o fanatismo, o elitismo ou o exclusivismo. c) Último perigo, mas não o menos importante: os geopolíticos de religião que aceitam uma influência do Estado para servir de instrumento a fim de realizar os seus projectos políticos.

*Exposição apresentada por ocasião do Congresso Internacional “Religião, diálogo, solidariedade e desenvolvimento”, que teve lugar em S. Tiago de Compostela de 25 a 27 de Maio de 2005. ** M. Verfaillie era então secretário-geral da Associação internacional para a defesa da liberdade religiosa e redactor-chefe de Revista Consciência e Liberdade.

Notas

1. Jean-Claude Basset, Le dialogue interreligeux, Histoire et avenir, Editions du Cerf, Paris, 1996, p.67 2. J. Spencer Trimingham, The Christian Church and Islam in West Africa, Londres, 1995, p. 45. 3. Cf. Jean-Claude Basset, op. cit., p. 21: “Em França, o personalismo de Emanuel Mounier (1905-1950) constitui um importante prolongamento da corrente do diálogo que também marcou o existencialismo dito cristão; assim a noção de comunicação de Karl Jaspers (188384

1969) e o que Gabriel Marcel chama de o ‘milagre do encontro do Tu’. Ao contrário, para o existencialismo dum Jean-Paul Sartre, o ‘outro’ é sinónimo de solidão. Finalmente, o pensamento de M. Buber tem profundas repercussões na teologia, menos judaica que cristã, – ele foi sempre considerado como um marginal pelo facto de certas tomadas de posição concernente a Jesus ou aos Árabes […].” 4. Ver Martin Buber, Je et Tu, Éditions Aubier-Montanhe, Paris, 1969. 5. Kalman Yaron, Martin Buber, in Perspectives, revista trimensal da UNESCO, vol.XXIII, nº 1-2 Paris, 1993, p. 135-147, UNESCO, Escritório Internacional de Educação, Paris, 2000). cf. www.ibe.unesco.org/publications/ThinkersPdf/buberf.pdf 6. Jean-Claude Basset, op. cit., p.23. ver Kalman Yaron, “Na ordem do monólogo, o outro, mesmo sendo abstracto, é entendido como percebido e utilizado, enquanto que na ordem do diálogo, ele é encontrado, reconhecido e nomeado como ser singular”. (Op. Cit.) 7. Jean Zurcher, L’homme. Sa nature et sa destinée, Edições Delachaux et Niestlé, Biblioteca teológica, Genebra, 1953, p.183,184 8. Kalman Jaron, op. cit., p. 138 9. Mário Tedeschi, “The Three Riligions in the Late Spanish Middle Ages”, i Encuentro de las tres confesiones religiosas. Christianismo, Judaísmo, Islam, Ministério da Justiça, Madrid, 1999, p.156 10. Mário Tedeschi, op. cit., p. 157 11. Joseph Lecler, Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme, Edições Aubier, Paris, 1955, tomo 1, p. 125. 12. Cf. Léon Haskin, Érasme parmi nous, Edições Fayard, Paris, 1987: “Erasmo é pacifista e internacionalista por razões diferentes das razões morais ou de ciência política. Ele admite estas motivações, mas ultrapassa-as. O cristão para ele, porque ele é cristão, não pode senão seguir as vias da paz a despeito das barreiras nacionais. A filosofia de Cristo dá ao seu pacifismo um fundamento evangélico. […], o ecumenismo de Erasmo procede legitimamente da sua fidelidade […] O espírito ecuménico modifica profundamente as relações dos cristãos entre si. Foi porque ao concílio de Trento faltou este espírito que preferindo o anátema ao diálogo, ele não seguiu a linha erasmiana de concórdia. Por receio do indiferentismo e do contágio, ele alargou o fosso que separa os católicos dos dissidentes”. P. 422,423. 13. Em 1648-1649, as cláusulas religiosas inscritas nos tratados de Vestefália puseram fim à guerra dos trinta anos. Elas consagravam o fim da Contra-Reforma católica na Alemanha e confirmavam a paz de Augsburgo de 1555, excepção feita às que constrangiam em toda a parte as pessoas a adoptar a religião do seu príncipe, “[…] está aqui a vitória da liberdade de consciência – o cujus régio ejus religio foi abolido”, escreve a este propósito Emílio Léonard. A tolerância, que não desempenhava verdadeiramente o papel de virtude desde o Século XVI, engendrava agora o reconhecimento da quebra da sociedade religiosa na Europa. A conservação dos Estados parecia sempre desejável, quaisquer que fossem as divisões confessionais. A associação dum príncipe religioso da união e duma organização estatal tinha conduzido, em 1555, ao princípio cujus régio, ejus religio. Este princípio já não se aplicava senão em unidades territoriais restritas, enquanto que em unidades mais alargadas onde as duas teologias, católicas e protestante, eram rivais, era necessário abandoná-la para colocar no seu lugar um princípio de coexistência.

14. Ver Jean Baubérot, “Sécularisation e laïcisation. Modo de emprego ‘à francesa’”, comunicação apresentada em 4 de Novembro de 2004 no Centro de Altos Estudos em Ciências Religiosas: “[…] a secularização diria respeito antes de mais ao papel da dinâmica social e implicaria uma parte relativa de pertinência social, cultural (e como consequência, individual) do universo religioso em relação à cultura comum (o que não é aliás, sem impacto sobre as instituições). Estes são menos (ou já não são) quadros normativos orientando os comportamentos sociais em numerosos sectores. A laicização por outro lado, concerne antes de tudo ao lugar do papel social da religião no campo institucional, a diversificação e as mutações sociais deste campo em relação com o Estado e a política (e também a sociedade civil)”. 15. Ver Jean Séguy, “Thèses e hypothèses en œcuménologie”, in Social Compass 15, 1968, p. 433-442

This article is from: