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D. Little Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna
David Little **
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Introdução
Evocar o termo “pós -moderno”, como fiz no título desta apresentação, levanta, forçosamente, questões. Uma vez que ser pós-moderno significa adoptar uma atitude céptica para com a coerência de todas as ideologias, teorias e conceitos gerais – isto é, passar o seu tempo a “problematizar” e “não exprimir o essencial” de nada, como se diz – o melhor que possamos fazer, aparentemente, é procurar compreender o que não é um “mundo pós-moderno”. Se queremos reconstruir, mas também desmontar, reanimar, mas também dissecar, não vemos muito bem onde é que o pós -modernismo nos levará1 .
No entanto, existe um problema mais sério. Richard Wolin. Autor de The Seduction of Unreason: The Intellectual Romance with Fascism from Nietzsche to Postmodernism, choca com a seguinte constatação: “Nos meios universitários, o pósmodernismo alimenta-se das doutrinas de Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, Maurice Blanchot e Paul de Man – prefigurando, todos, um certo fascínio pelo fascismo onde todos sucumbiram2. A tese deste autor e as provas sobre os laços entre o pós -modernismo e o fascismo, sobretudo no que concerne a Jacques Derrida e Michel Foucault, são, sem qualquer dúvida, controversas e sujeitas a prova. Contudo, Richard Wolin apresenta uma série de elementos indicando que personalidades eminentes como Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer estavam bem ligados e conclui que mesmo indivíduos como Jacques Derrida e Michel Foucault partilham, a tal ponto que é perturbador, o a priori profundamente anti-liberal que caracteriza o pensamento nazi. O livro de Richard Wolin criou um considerável mal-estar no seio do movimento pós-moderno.
Em contrapartida, há um ponto para o qual a corrente pós-modernista tem, implicitamente, trazido a sua luminosa contribuição, um ponto que,
salvaguardadas todas as propor-
ções, tem uma relação construtiva com o tema. É o que diz respeito à maneira de examinar as três outras noções evocadas no título deste artigo: cultura, religião e identidade nacional3. O pós-modernismo, como já se disse anteriormente, desconfia, particularmente, das teorias unificadas e dos “esquemas narrativos”, assim como das ideias gerais. A sua primeira reacção será a de “decompô-
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna -las” em várias sub-partes que, segundo ele, se contradizem entre si. Segundo os pós-modernistas, o problema das teorias unificadas, das ideologias e das ideias gerais, é que elas escondem uma multidão de tensões e de contradições que se encontram camufladas quando são apresentadas como elementos bem unidos num todo harmonioso. Com efeito, segundo Nietzsche, toda a pretensa “ordem”, toda a “harmonia” ou “unidade” é, na realidade, o produto do poder e do domínio, e não o reflexo de uma coerência intrínseca racional ou moral. Como ele declarou, resumindo assim o pensamento pós-moderno – se é que isso é possível! – a língua dominante de cada nação não passa de um dialecto defendido por um exército.
O pós-modernismo apresenta, portanto, duas importantes formas de pensar em matéria de cultura e de religião, explicando, especialmente, como é que estas noções interagem num contexto nacional.
Segundo os pós-modernistas, devemos, em primeiro lugar, considerar cada um dos conceitos não como
qualquer coisa ordenada, unitária e estável, mas muito mais como um aglomerado de perspectivas e de atitudes divergentes e muitas vezes em conflito, continuamente
contestadas e postas em causa. Como alguém sublinhou, a cultura não é uma coisa, mas um processo. Este último não é fixado e decidido de uma vez por todas. Está sempre em movimento. Isso é igualmente verdadeiro para a religião e o seu impacto na formação da cultura e da identidade nacional.
Por outro lado, devemos notar do papel do poder e do domínio na “cultura dominante” de cada nação, incluindo no papel da religião. Contudo, como mostrarei mais adiante, os pós-modernistas exageram a importância da influência que os governos e os seus partidários exercem sobre o processo que favorece e impõe um sistema de cultura nacional e de valores religiosos ao ponto de suprimir ou limitar os outros. Não há dúvida que todas as nações têm recorrido, mais ou menos, aos governos e aos seus partidários para apoiarem perante as outras um conjunto de convicções culturais e religiosas. Dessa forma, muito frequentemente, decidem através de métodos arbitrários e injuriosos, o que faz, ou não faz parte da cultura – e da religião – oficial em determinado momento e lugar, numa sociedade particular. Mas, seja qual for a pertinência do seu raciocínio, os pós -modernistas têm a tendência para se descartarem da análise generalizando ao máximo. Não chegam, sequer, a admitir que há mais ou menos boas formas de estudar as tendências dos governos e dos seus partidários para determinar o que é aceitável e o que o não é. Por exemplo, os pós -modernistas são inclinados, como sublinhei anteriormente, a duvidar que o “discurso liberal” incluindo o dos direitos do Homem, possa constituir um meio eficaz de limitar o poder arbitrário de um governo. Segundo Wolin, a filosofia pós -moderna qualifica a linguagem dos direitos do Homem de “discurso de pseudo emancipação” que camufla invariavelmente formas inquietantes de poder e domínio4 . Penso acima de tudo, que estes são justamente dois argumentos (bem fundados) dos pós-modernistas sobre a forma como a cultura e a religião e a identidade nacional são modeladas – 1. um pluralismo irredutível e uma controvérsia permanente; 2. uma tendência para ser dominada pelos
governos e os seus apoiantes – que põem em evidência a necessidade de um sistema de protecção dos direitos do Homem, em particular, a liberdade “de consciência, de religião e de convicção”, como indicado nos documentos relativos aos direitos do Homem.
Em resumo, a minha posição é a seguinte: Se a religião, a cultura e a identidade nacional também modeláveis, variáveis e contestadas como dizem os pós-modernistas, e se também, as convicções em matéria de culto, de religião e de identidade nacionais também são tributárias do domínio arbitrário como eles sugerem, então é crucial encontrar uma protecção contra a discriminação e a repressão que podem exercer sobre opiniões muito diversas e muitas vezes contraditórias, sobre esses assuntos, em todos os países, seja nos Estados Unidos, em França, na Turquia, no Japão ou em qualquer outro lugar. E é precisamente aí que os direitos do Homem entram em
jogo, particularmente para aquilo que é a “liberdade religiosa” que se poderia acima de tudo chamar “os direitos de convicção”5 . Uma vez que o que diferencia a minha tese do pós-modernismo corrente e o conceito de que o sistema dos direitos do Homem pode fazer face às Marcha de protesto dos imigrantes mexicanos no 1º de Maio de 2006 realidades da culem Denves, Estados Unidos. Foto Echando/Raices/Taking Root, 2002 tura, da religião e American Friends Service Committee (www.afsc.org). da identidade nacional para a defender, dedicar-me-ei a demonstrar que estes são, sobretudo, os mecanismos dos direitos do Homem que protegem “a religião ou as convicções”, incluindo os que põem em causa e procuram fazer evoluir os conceitos dominantes, em matéria de cultura, de religião e de identidade nacional, que têm uma importância primordial. Concluirei que estas protecções que colocam constrangimentos e limites exteriores a todas as culturas nacionais, não podem ser desacreditadas ou suprimidas, como parece ser o pensamento dos pós-modernistas.
Uma defesa dos direitos de convicção
Todas as nações que aderiram aos instrumentos internacionais dos direitos do Homem, como o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, por exemplo, e que, por conseguinte, estão obrigados a promover os direitos do Homem através do mundo, têm três razões imperiosas para se sentirem abrangidas pelas
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna violações dos direitos de convic-ção, totalmente ligados aos exces-sos daquilo a que chamamos o “nacionalismo pato-lógico”.
Desde já, todo o edifício das nor-mas dos direitos do Homem repousa sobre a neces-sidade de proteger os indivíduos contra o domínio colectivo e os even-tuais excessos e abusos de autori-dade arbitrárias decorrentes. Esta é a lição fundamental que o mundo inteiro, depois da Segunda Guerra Mundial, tirou das bases da ideologia fascista, que se enraizava na submissão absoluta do indivíduo à vontade da nação. Como disse Hitler, “O nacional-socialismo tem, como ponto de partida, […] não o indivíduo nem a humanidade [… mas] o povo (das Volk) […e] deseja salvaguardá-lo, mesmo às custas do indivíduo7.” A repulsa que este género de opinião inspira, desencadeou a revolução dos direitos do Homem e contribuiu para aquilo a que Mary Glendon chamou “A World Made New” (Um Mundo Novo) de acordo com o título da obra que ela consagrou à redacção da Declaração Universal dos Direitos do Homem8 .
A anulação do direito de ter a sua própria opinião em matéria “de consciência, de religião e de con-vicção9” constitui uma característica evidente do domínio nacionalista. O fascismo, em particular, constituiu
O Mayflower II. A intolerância religiosa da Igreja do Estado inglês da época obrigou os Pais Peregrinos - dos quais a maior parte de entre eles estava refugiada na Holanda - embarcou a bordo do Mayflower, em 1620, para emigrar para as colónias inglesas da América do Norte. Foto Hans Martin uma ameaça directa, completa e sistemática para as quatro categorias do direito de convicção que depois foram garantidas nos documentos e que foram explicitamente formulados após os rigores fascistas10 .
1. O direito ao livre exercício em matéria de pensamento, de consci-
ência, de religião ou de convicção, o que corresponde ao direito à liberdade. Este direito inclui uma garantia visando que ninguém fosse submetido “a coacção que possa atentar contra a sua liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha11” e “não permita nenhuma restrição da liberdade de pensamento e de consciência, nem da liberdade de ter ou adoptar uma religião ou uma convicção de sua escolha12”. É também garantida “a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público, como em privado, através do culto e o
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna cumprimento dos ritos, das práticas e do ensino13”. “O cumprimento dos ritos e práticas da religião ou convicção podem incluir não apenas actos cerimoniais, mas também costumes como o respeito das regras die-téticas, o uso de vestuário distintivo, o facto de cobrir a cabeça, etc.14”
As únicas restrições possíveis, são as que os governos podem impor sobre a “liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções” (por oposição a ter ou a escolher uma religião ou uma convicção), com o fim de proteger “a segurança, a ordem e a saúde públicas, a moral ou as liberdades e direitos fundamentais de outrem15”. Paralelamente, é ao governo que incumbe, com toda a evidência, trazer esclarecimentos neste domínio. Deve provar que qualquer restrição ao direito de manifestar as suas convicções é, simultaneamente “necessária” e “proporcional”; o que significa que a restrição deve ser estabelecida e gerada de forma a ser a mais limitada possível, tendo como objectivo salvaguardar, de maneira urgente, um interesse de Estado16 . Convém notar que as restrições à liberdade de religião ou de convicção não são permitidas por motivos imprecisos, tais como, a segurança nacional17. Uma vez que os fascistas mutilaram pouco a pouco todos os direitos apelando para a segurança nacional, esta exclusão tem a sua importância. 2. O direito de não ser objecto de
discriminação baseada na religião
ou na convicção, isto é, o direito à igualdade. Segundo este princípio, “entende-se pelos termos ‘intolerância e discriminação baseadas na religião ou na convicção’18 toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas na religião ou a convicção e tendo como objecto ou como efeito suprimir ou limitar o reconhecimento, o gozo ou o exercício dos direitos do Homem e das liberdade fundamentais sobre a base da igualdade19.” Isso significa que mesmo que o princípio da religião do Estado, ou religião oficial não seja interdito, a sua existência não pode dar origem a discriminações contra os aderentes de outras religiões ou de não crentes. Por exemplo, “todas as medidas que limitem a ilegibilidade para fazer parte dos serviços do governo, aplicadas aos membros da religião dominante ou que lhes dariam privilégios económicos ou imporiam restrições especiais à prática de outros cultos20” são interditas. 3. O direito à protecção das mino-
rias, sejam elas “étnicas, religiosas
ou linguísticas21”. A interpretação – que tem autoridade – deste direito feita pelo Comité dos Direitos do Homem constitui um passo na boa direcção tendo em vista satisfazer a fragilidade desta disposição por ocasião da redacção da Declaração Universal dos Direitos do Homem22 , principalmente feita pelos representantes dos Estados Unidos, do Canadá e da Austrália. Com efeito, estes Estados desejavam reduzir o entendimento da autonomia cultural das minorias de forma a favorecer uma política de assimilação. As recentes declarações do Comité, sugerindo que para “corrigir condições que limitem ou impeçam os direitos das minorias, medidas positivas tomadas pelos Estados […] poderiam ser necessárias a fim de proteger a identidade de uma minoria e os direitos dos membros para aproveitarem da sua cultura e da sua língua e, dessa forma, desenvolverem, assim como, praticarem a sua religião […]23”,
lembrando formulações mais determinadas do direito à protecção das minorias que foram rejeitadas no momento da redacção24 . 4. O direito a ser protegido contra
todo o “apelo ao ódio […] religioso que constitui um incitamento à discriminação, à hostilidade ou à
violência25”. Este direito ultrapassa numerosas questões. Tendo em vista a experiência fascista parece sensato “interditar legalmente” os actos que tenham como objectivo, ou eventualmente como efeito, despoletar a discriminação, a hostilidade e a violência para com outros indivíduos e grupos. Não nos faltam exemplos significativos de comportamentos inadmissíveis datando do período nazi. Por outro lado, provocar a discriminação como é definida acima, constitui indubitavelmente uma violação dos direitos do Homem, tal como o incitamento à violência – salvo enquanto expressão do “di-reito soberano à autodefesa ou odireito dos povos
à autodetermina-ção26”. Por outro lado, é particularmente difícil, por razões jurídicas, definir o “ódio religioso” e a “hostilidade”, mencionados no artigo citado. Sabe-se que o ódio e a hostilidade, que dependem, antes de mais, da atitude e da emoção, são particularmente difíceis A Plymouth Plantation, no estado de Massachussets. Foi aí que os Pais de contro-lar e, Peregrinos se estabeleceram depois de terem pisado solo americano. Mais de metade deles que tinha viajado no Mayflower foram levados pelas doenças, durante a travessia. Foto Hans Marti. por isso, entram em conflito com a liberdade de opinião e de expressão, o que já se revelou exacto no decurso dos debates que têm tido lugar, por ocasião da redacção deste parágrafo27. É de prever que este direito, se bem que indispensável, continuará a gerar consideráveis controvérsias sobre estes aspectos. A negação total dos direitos ao livre exercício, à não-discriminação, ao respeito pelas minorias e à protecção contra os abusos por motivos religiosos ou por outras formas de ódio, como era praticado pelos governos fascistas ilustra perfeitamente os dois aspectos da análise pós-moderna da cultura e da religião. Um sistema nacional repressivo impõe, arbitrariamente a partir de cima, e acaba por dominar uma sociedade ou desvia-se de diversas culturas e religiões. Para mim, a solução lógica e prática encontra-se nas recomendações dos direitos do Homem – a saber, aplicar e promover a liberdade de convicção, assim como as outras prescrições. Estes
direitos têm como objectivo proteger o pluralismo como algo de pessoal, frustrando, ou limitando o domínio nacional arbitrário.
Esta solução aplica-se também à segunda razão que faz com que nos sintamos preocupados com a violação da liberdade de convicção: o “nacionalismo patológico”, associado ao fascismo, não desapareceu depois da Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, transformou-se em diversas formas de autoritarismo e de ultra-nacionalismo, que apareceram à luz do dia após o desmembramento da União Soviética, e que representam as novas versões da mesma ameaça que o fascismo constituiu.
É aquilo que se chamará o “nacionalismo etno-religioso”, e que nos preocupa particularmente na hora actual e apresenta-se da seguinte forma: um grupo, uma entidade religiosa e étnica específica, tenta ganhar o poder político e jurídico sobre os habitantes de determinado território, e impor e conservar o seu domínio cultural e religioso em detrimento das minorias presentes nesse território. Como ilustram a Bósnia, o Kosovo, o Sudão, o Sri Lanka, a Irlanda do Norte, a Índia. Israel/Palestina e muitas outras tentativas semelhantes geram, segundo os casos, intolerância, discriminação, perseguição, expulsão ou mesmo extermínio, em particular das minorias, muitas vezes pelos governos nacionais. Como dissemos, um sistema nacional repressivo imposto arbitrariamente a partir de cima acabam por dominar – sob regras diversas – sociedades ou marginalizam-se diversas culturas e religiões. De novo, o único antídoto razoável, parece ser encorajar a propagação da liberdade de convicção e dos outros direitos do Homem29. Felizmente, vários elementos dão a entender que eles se propagam até certo ponto e com consequências muito positivas30 .
A terceira razão que nos preocupa, pela violação da liberdade de convicção e a necessidade de a proteger, está no crescimento do terrorismo e a sua ligação com o “nacionalismo patológico”, descrito por Robert Pape no seu recente estudo Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism31. Segundo a tese principal deste autor, “a raiz do terrorismo por atentados suicidas é o nacionalismo – a crença entre os membros de uma comunidade de que eles partilham um conjunto de características étnicas, linguísticas e históricas e que têm o direito de governar a sua pátria sem a interferência de estrangeiros32”.
Para ele, se bem que a religião não seja a primeira causa do terrorismo através de atentados suicidas, contribui, de maneira crítica para a consolidação de uma identidade de grupo e intensifica as divisões entre os membros do grupo e os que estão no exterior deste, particularmente se se trata de ocupantes como os Israelitas na Palestina e os Americanos no Iraque ou em qualquer outro lado do mundo árabe. Por causa do “mecanismo de exclusividade” e da tendência para “diabolizar o inimigo” particularmente associados à religião, acontece que “sob a ocupação estrangeira” […] diferentes religiões inflamam “os sentimentos nacionalistas de modo que o mártir e os atentados suicidas recebem um apoio massivo33”, e que esses sentimentos encorajam “a vontade de morrer e de matar inocentes34”.
É evidente que os métodos terroristas, incluindo os atentados suicidas, violam, sistematicamente
as normas dos direitos do Homem. Na medida em que o terrorismo está ligado à libertação nacional, este seria para pôr de pé uma organização política em que a vida religiosa e cultural seria objecto de domínio mais arbitrário possível. Por exemplo, ao encorajar a expulsão de tropas estrangeiras dos Estados árabes, como o Kuwait, a Arábia Saudita e o Iraque, e a criação, nesses Estados e noutros, daquilo que ele considera como um governo nacional islâmico autêntico, Oussama Bin Laden deu a entender os seus objectivos e ideias específicos, mantendo e filiando -se na Frente Nacional Islâmica do Sudão e apoiando o governo taliban no Afeganistão. Estes dois regimes contam-se, efectivamente, na sua história recente, entre os que mais violam os direitos do Homem, incluindo as quatro categorias das liberdades de convicção35 .
Ao citar estes três exemplos particulares de “nacionalismo patológico”, procuramos mostrar, ao mesmo tempo, as lamentáveis consequências da negação sistemática da liberdade de convicção – e de outros direitos do Homem – e a inspirar e/ou a reforçar um envolvimento com estes direitos. Deveríamos sublinhar que a tendência para reprimir a diversidade religiosa e cultural através do domínio arbitrário, não se limita em caso algum, aos três exemplos citados. Com efeito, todas as nações modernas estão, em graus diversos, expostas a conflitos entre maiorias e minorias por causa de questões de identidade religiosa ou cultural. É por não existir nenhum lugar no mundo onde a identidade cultural e religiosa seja “algo de ordenado, unitário e de estável”, e não é constituída “por um aglomerado de perspectivas e de atitudes divergentes e por vezes em conflito, continuamente contestada e posta em causa”, e que os governos e os seus partidários não tentem impor uma ordem arbitrária, que a necessidade de uma liberdade de convicção é tão imperiosa em todo o mundo.
Por fim, todo o meu sistema de defesa da liberdade de convicção repousa na seguinte certeza: face aos acontecimentos a partir de meados do século XX, parece moralmente inevitável que todo o ser humano considere aquilo a que o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem chama “actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade” com a mesma “revolta partilhada” que uniu os redactores da Declaração Universal e animou a sua obra. É isso que explica a razão pela qual a Declaração foi tão encorajada por todos. Empregando a frase “revoltam a consciência da humanidade”, os redactores alargaram os seus próprios sentimentos ao resto da humanidade. Apanhando Hitler em contra-pé, acreditam que todo o ser humano, moralmente são, se teria revoltado se tivesse estado em circunstâncias similares36. Por outro lado, parece também moralmente inevitável envolver-se em adoptar e manter as normas de restrição fundamentais criadas pelos redactores, para impedir que actos de barbárie se voltem a produzir, e, de acordo com a Declaração, para fazer respeitar, por todos, estas normas, incluindo as pessoas religiosas.
É esta crença de que existe um fundamento moral comum irredutível para a liberdade de convicção – e os outros direitos do Homem – que distingue a posição defendida aqui, da da corrente pós-modernista. Mesmo se um grande número de pós-modernistas esclarece a nossa compreensão da religião e da cultura nacionais, o
seu cepticismo doutrinário leva-os, no fim de contas, segundo penso, à sua perda. Deixa-os sem fundamento que lhes permita alcançar os meios indispensáveis para proteger o pluralismo cultural e religioso e opor-se ao domínio arbitrário num contexto nacional.
A Cultura, a religião e a identidade nacional americana
Iremos agora aplicar brevemente, aquilo que desenvolvemos até agora, a um caso particular: as recentes controvérsias sobre a identidade nacional americana. Estas dissensões referem-se a um recente livro de Samuel P. Huntington, Who are We? Challenges to America’s National Identity37, que tem sido muito debatido. O autor defende que aquilo a que
chama “a identida-de nacional anglo-protestante” é um modelo cultural unificado e relativamente estável no decurso da história americana. Segundo ele, trata-se de uma combinação original de influências britânicas dominantes (sobretudo a língua e as instituições político-legais) e a Assinatura da Declaração da Independência pelos membros do Congresso, religião (uma fora 4 de Julho de 1776, permitindo a treze colónias americanas, separar-se da ma especificamencoroa britânica. Esta Declaração garantia aos cidadãos direitos fundamentais, te americana de tais como o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de aspirar à felicidade. cristianismo proA Constituição dos Estados Unidos foi assinada em Filadélfia, na Pensilvânia, a 17 de Setembro de 1787, mas não foi senão em 1791, nos Bills of Rights testante). (complemento de dez artigos que não figuravam na Constituição) que foi Huntington ingarantido, especialmente, o direito à liberdade religiosa. Foto Sigrid Büsch. siste na ideia de que para a América a religião é um valor fundamental. E classifica o século XX, como o “século da religião” e declara que nos Estados Unidos, “o cristianismo evangélico tornou-se numa força importante e que os Americanos poderiam, muito bem, estar a ponto de regressar à imagem do que eles representavam há três séculos: a de um povo cristão38”. Ele nota que um bom número de Americanos consideram os ateus de forma desfavorável e “parece, de acordo com os fundadores, poder dizer que o governo da sua república necessita de um fundamento religioso[…]39”, e afirma, pessoalmente, que a “religião civil” – como ele lhe chama – deste país “não é compatível […] com o facto de ser ateu40”. Segundo ele, mesmo se aquilo que se designa como “o credo americano” – um conjunto de ideais civis
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna e políticos asseguram as liberdades de imprensa, de reunião, de expressão, de religião, etc. à igualdade para todos os cidadãos – tem a sua importância, é, antes de tudo “a única criação de uma cultura protestante dissidente”. Em resumo: nada de protestantismo, nada de credo41 .
Para Huntington, dois elementos colocam hoje em perigo a identidade anglo-protestante, quaisquer que tenham sido historicamente, a sua unidade e a sua coerência42. À partida, a importante, e crescente presença de Latinos, em particular de Mexicanos. Estes últimos apresentam um conjunto de características que se opõem à identidade nacional americana de forma única na história da imigração americana. De forma diferente das outras imigrações, há poucas probabilidades de que os Mexicanos se adaptem à cultura americana. Há várias razões para isso: o número extremamente importante, o facto de que eles estão próximos da sua pátria, a sua tendência para se isolarem, uma vez nos Estados Unidos, e a sua atitude frequentemente “desdenhosa” para com a cultura americana. Teriam muito mais a tendência para tentar abalar a identidade americana43 .
O segundo desafio é representado por uma séria de “almas mortas” como lhes chama Huntington, que formam as “elites desnacionalizadas”. Esses Americanos fazem parte de uma “super-classe emergente” que rompeu com o vasto “público patriótico” por causa de um conjunto “de ideias transnacionais” partilhadas pelos seus membros, segundo os quais o nacionalismo é considerado como “mau, a identidade nacional suspeita e o patriotismo ultrapassado44”. Huntington evoca e aprova a seguinte descrição dos universitários e intelectuais, dirigentes políticos – sobretudo sob a administração Clinton – personalidades do mundo dos negócios, funcionários de organizações internacionais não governamentais, etc., que, segundo ele, pertencem a este grupo. Os cosmocratas estão cada vez mais à parte da sociedade. Estudam cada vez mais em universidades estrangeiras, partem para trabalhar algum tempo no estrangeiro e trabalham para organizações que têm uma dimensão global. Constituem um mundo, no mundo, ligados uns aos outros por uma miríade de redes locais, mas isolados dos membros das suas próprias sociedades cujas visões são mais estreitas… Terão mais possibilidade de comunicar com os seus pares pelo mundo – pelo telefone e e-mail – do que falar com os seus vizinhos de projectos próximos deles45 . Existem três categorias de Americanos desenraizados. Os “universalistas” crêem no “triunfo da América como a única superpotência global”, cujos valores e a cultura são largamente adoptados pelas outras sociedades e, dessa forma, fazem dela a “nação universal46”. Os adeptos da “abordagem económica” concentram-se na mundialização económica como força transcendente que quebra as fronteiras nacionais e mistura as economias nacionais de modo a formar uma só economia global, que, assim, erodirá rapidamente a autoridade e a função dos governos nacionais47 . Por fim, os adeptos da “abordagem moralista, que desacredita o patriotismo e o nacionalismo como forças do mal, e argumentam que o Direito, as instituições, os regimes e as normas, ao nível internacional, são moralmente superiores às suas equivalentes nacionais48”.
Duas questões merecem ser salientadas a propósito destes pretensos desafios à identidade nacional americana. Uma diz respeito às consideradas ameaças representadas pelos imigrantes mexicanos e os membros das elites desnacionalizadas. Um certo número de críticos têm atacado a descrição que Huntington faz dos imigrantes mexicanos, apresentando provas de que estes últimos têm uma atitude mais favorável para com a cultura americana, e que estão, desde logo, prontos a aprender o inglês e a participar na sociedade, do que este autor admite49. A mesma objecção foi apresentada em relação à sua descrição das opiniões das elites desnacionalizadas. Segundo um dos seus detractores, “a erosão da identidade nacional causada pelos multiculturalistas e as elites culturais constituem um assunto de preocupação há cinco ou dez anos”, mas “esta convicção perdeu sentido após os ataques do 11 de Setembro”. Este acontecimento despoletou simultaneamente um forte sentimento de patriotismo e de unidade nacional, assim como uma convicção partilhada de que “o pluralismo cultural que nos tinha parecido ameaçador no passado, tornou-se, de hoje em diante, um atributo que não tinha nada de evidente da identidade nacional50”.
Mas suponhamos que as descrições de Huntington sejam – mesmo parcialmente – findadas e que pelo menos alguns Mexicanos -Americanos e algumas elites desnacionalizadas possam gerar o tipo de problema que ele descreveu. A segunda questão permanece: o que deveremos fazer?
Como devemos proceder exactamente a fim de decidir se devemos acolher ou resistir ao desafio – se é que realmente o é – representado pelos Mexicanos-Americanos e as elites desnacionalizadas, ou por alguém?
A forma como o próprio Huntington aborda esta segunda questão é pouco clara. Por um lado, parece agir como um especialista em ciências humanas independente e desinteressado que se limita a listar as diversas opções de que os Americanos dispõem sobre a sua identidade. Estas opções são descritas no seu último capítulo, naquele em que ele nomeia as alternativas “cosmopolita”, “imperialista” e “nacional”. Pode ver-se como de simples generalizações descritivas, baseadas em factos históricos e sociológicos, que representam as escolhas maiores às quais os Americanos fazem face hoje, em termos de identidade51. De igual forma. O facto de Huntington consagrar a maior parte do seu livro à alternativa nacional e às suas características anglo-protestantes poderia simplesmente ser considerado como um argumento empírico sem mais nada.
Por outro lado, Who Are We? parece não relevar, simplesmente, de um puro exercício descritivo. É impossível não chegar à conclusão de que o próprio Huntington passa em revista as diferentes opções e julga, mais favoravelmente, a alternativa nacional. Com efeito, escreveu: “A alternativa ao cosmopolitismo e ao imperialismo é um nacionalismo consagrado à manutenção e ao reforço destas características que definem os Estados Unidos desde a sua fundação52.” “A América cultural está em estado de sítio.” O povo americano poderia “retardar o seu próprio fim e impedir a sua desintegração revivendo o seu sentido de identidade nacional, o seu objectivo nacional e os valores culturais comuns53”.
Os elementos que suportam a tese favorita de Huntington – infelizmente sem nunca o desenvolver nem apoiar – são, parece, de duas naturezas: maioritário e funcional. O argumento maioritário retoma a ideia de que aquilo que aos olhos da “maior parte das pessoas”, segundo os factos sociológicos históricos e contemporâneos, constitui a identidade nacional de um país, o é realmente; em resumo, a maioria decide. Segundo o argumento funcional, se a identidade nacional – determinada pela “maioria” – não é preservada e valorizada, a nação desintegra-se.
Huntington toma estes argumentos a sério. Tira estas lições de dois recentes casos legais que ilustram a profundidade do seu envolvimento com a lei da maioria, tanto como o seu grau de apreensão face às tendências que ameaçam as convicções maioritárias54. O primeiro desses casos foi
o de uma acção intentada na justiça, em 2002, por Michael Newdow, um ateu declarado, visando retirar as palavras under God (sob a protecção de Deus) do juramento de fidelidade. Um primeiro tribunal da Califórnia deu-lhe razão, depois esse julgamento foi anulado por um tribunal superior baseado no Ground Zero, Nova Iorque: Em memória da catástrofe mais horrível e mais facto de Michael indefensável que tocou a nação americana, a 11 de Setembro de 2001. Newdow não ter Foto churchphoto/Rolph J. Poehler o estatuto legal adequado. O se-gundo caso diz respeito a um certo Brian Cronin que, em 1999, procurou fazer com que fosse retirada de um terreno municipal uma cruz com 18 metros de altura levantada em Boise, no Idaho, há 43 anos. Relativamente ao primeiro caso, em que Newdow pretendia que as palavras under God do juramento de fidelidade lhe davam o sentimento de ser “um outsider” ponto sobre o qual o primeiro tribunal estava de acordo – Huntington escreveu o seguinte comentário: “Michael Newdow e o tribunal têm razão: os ateus são outsiders na comunidade americana. Como não crentes não devem prestar o juramento nem participar de uma cerimónia que tenha carácter religioso. Eles também não têm o direito de impor o seu ateísmo a todos os Americanos cujas convicções, na hora actual e no passado, definiram
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna os Estados Unidos como uma nação religiosa.
“Os Estados Unidos são uma nação cristã? Sim, de acordo com as estatísticas: 80 a 85% dos Americanos declaram-se regularmente cristãos55”.
A propósito do caso Brian Cronin e a sua tentativa de fazer retirar a cruz de 18 metros de altura de um terreno municipal em Boise, Idaho, Huntington permanece nas suas posições. Em resposta à afirmação de Cronin onde este último pretendia que a cruz dava a entender aos budistas, aos judeus, aos muçulmanos e a outros não cristãos, que eram estrangeiros num país estrangeiro, Huntington escreveu:
“Como Michael Newdow, Brian Cronin viu de forma correcta. Os Estados Unidos são uma nação de predominância cristã provida de um governo secular. É legítimo que os não cristãos se considerem como estrangeiros porque eles – ou os seus antepassados – se instalaram num ‘país estrangeiro’ fundado e povoado por cristãos, tal como os cristãos se tornam estrangeiros quando se mudam para Israel, para a Índia, para a Tailândia ou para Marrocos56.”
As respostas de Huntington a estes casos, mostra bem que a sua posição contém vários erros. No caso Newdow, por exemplo, é incorrecto dizer que o facto de retirar do juramento as palavras under God equivale a impor o seu ateísmo. Isso seria verdade se elas fossem substituídas por outras palavras na frase actual, por exemplo “not under God” (pois que Deus não existe). Simplesmente suprimir a referência a Deus, ou deixa aberto o envolvimento ou o não envolvimento religioso. No caso Cronin, o próprio Huntington parece inquietar-se, indirectamente com a discriminação. Ele indica, de passagem, que nessa ocasião ocorreram outros casos semelhantes noutras cidades: as pessoas que desejam a presença de uma cruz num terreno público “têm tentado conservá-la transferindo a propriedade do terreno para grupos privados, reconhecendo, portanto,
implicitamente, que a exposição flagrante, pelo governo, do símbolo de uma única religião não estava isen-
ta de problemas57.” Poderia então deduzir-se que Huntington é sensível ao facto de que o “governo secular”, ao qual ele faz referência, deve tratar todas as religiões de igual maneira, mais do que favorecer injustamente a maioria. Perante estas faltas de sensibilidade de Huntington, é ainda mais perturbador ver como ele destrói com um gesto determinado, as inquietações de Cronin e Newdow que se sentem como “outsiders” ou “estrangeiros”. Deveremos considerar como derivando da sua própria natureza que pelo facto de eles serem membros de uma “religião ou convicção” minoritária não têm o estatuto cultural ou religioso, permitindo pôr em questão aquilo que eles consideram como o domínio arbitrário da maioria, seja qual for a decisão dos tribunais? Não se deve então, com razão, temer que aceitar julgar este tipo de assuntos seguindo o princípio da maioria soberana volta a exercer uma real discriminação política e jurídica? Será realmente necessário que tais defensores das posições minoritárias saibam que, não sendo membros da “maioria anglo-saxónica” não são cidadãos americanos por inteiro e que, portanto, devem aceitar para sempre o seu estatuto de “outsiders” e de “estrangeiros”?
Por outro lado, deve esperar-se que eles se submetam, se forem informados de que as alterações que desejavam se arriscam a levar “ao fim” e “à desintegração” de certos aspectos da identidade nacional dominante? Não se deveria, muito mais, esperar que eles adiram a uma perspectiva de uma ruptura e de uma transformação dos modelos religiosos e culturais dominantes, como tantas outras minorias têm feito no decurso da História neste país, ou noutros? Não é esse – não sem razão – o objectivo dos seus protestos? Desde que eles se conservem nos limites do debate livre e justo, não têm eles o direito de continuar a bater-se como membros da comunidade nacional em regra e iguais aos outros?
Por outro lado, Huntington pretende que os membros das minorias em Israel, na Índia, na Tailândia ou em Marrocos deixem de ter razões para se preocuparem por serem qualificados de “outsiders” ou de “estrangeiros” como não têm os não cristãos nos Estados Unidos. Este ponto não joga a seu favor. Com efeito, em cada um destes países, tal como nos Estados Unidos, o estatuto jurídico e cultural das minorias religiosas e outras constitui um problema espinhoso e persistente. Resta-nos esperar que este problema seja debatido e discutido de maneira aberta e justa, em vez de pôr rapidamente fim ao debate em nome do domínio pela maioria, com o pretexto que uma mudança conduziria a um fim iminente.
Em resumo, os argumentos principais de Huntington não colhem, porque não têm em conta os três pontos fundamentais sobre a cultura, a religião e a identidade nacional, que vamos agora demonstrar: 1. estes temas estão sujeitos a um pluralismo irredutível e continuamente sujeitos a controvérsia; 2. têm a tendência de ser dominados arbitrariamente – como é evidente, pela maioria –; 3. eles necessitam, urgentemente – perante os dois pontos precedentes – de um sistema de normas cujo melhor modelo seria os direitos do Homem, e mais particularmente a liberdade de convicção, que assegura um máximo de abertura e de justiça, logo que se trata de debater e de contestar o carácter cultural e religioso da identidade nacional.
Conclusão
Se bem que não tenha tido o tempo de reflectir sobre isto ou de o formular de forma conveniente, proponho a seguir um esboço de uma visão alternativa da identidade nacional americana como resumo do esquema de pensamento apresentado neste ensaio. Admito, bem entendido, que isto constitui apenas uma proposta entre outras e que deve ser apresentada e argumentada de acordo com as normas nacionais e internacionais de debate livre e justo, essenciais, segundo penso, para a identidade nacional americana.
Os Americanos formam um povo que discute e contesta de forma livre e justa a questão da sua identidade cultural e religiosa e estão de acordo em aceitar respostas provisórias conformes com um conjunto de princípios garantidos pela Constituição – aquilo a que se chama o “credo americano”. Estes princípios (assim como as instituições e costumes que os incarnam) têm sido fixados com cuidado e precisão, ao longo da História – o que é, sem qualquer dúvida de uma importância capital para a identidade nacional americana. Contudo, por causa dos compromissos internacio-
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna nais assumidos pelos Estados Unidos (para com a carta das Nações Unidas e para com os direitos do Homem e outros acordos) e à luz das normas dos direitos do Homem, em geral e especialmente religiosos, têm de ser modificados.
* Discurso pronunciado por ocasião de uma conferência do Comité de especialistas da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa em Siguenza, em Espanha, de 12 a 16 de Novembro de 2005.
** Professor em Harvard Divinity School, nos Estados Unidos.
1. Não nos esqueçamos que os textos pós-modernos têm a reputação de serem irrepreensíveis, como está resumido nesta adivinha satírica: O que é que se passa se um membro da Máfia, de conivência com o pós-modernismo se vos dirige? Resposta: oferece-vos algo, que não podem compreender. 2. University Press, Princeton, 2004, p. xii. 3. Seguindo sempre os pós-modernistas, pelo menos até certo ponto, estes tentam ligar -se ao laço entre “cultura”, “religião” e “identidade nacional”. Como disse Wolin, a corrente pósmodernista é profundamente influenciada pelo pensamento de F.G.Herder que sublinhou a importância de contexto nacional da vida cultural e religiosa (o papel crítico da das Volk), ideia varrida pelo cosmopolitismo da Luzes (idem p. 113-118). Não é necessário estar completamente de acordo com esta interpretação (eu não estou) para aceitar como uma evidência hoje, que a ideia do contexto de nação serve de ponto de partida para a análise da cultura e da religião. Paralelamente, "cultura" significa aqui "o conjunto de concepções e de ideais partilhados, escolhidos para descrever uma dada nação e o que ele deveria ser". (Não temos necessidade de fornecer uma definição da palavra "religião" uma vez que, segundo a prática dos direitos do Homem, deveríamos interessar-nos por todas as crenças conscientes, sejam elas religiosas ou não, e na sua contribuição para a formação da cultura nacional. (Ver nota nº 5) 4. Idem, p. 22. Ver Talal Assad, Formations of the Secular; Christianity, Islam and Modernity. University Press, Stanford, 2003, sobretudo o capítulo 4, para mais detalhes sobre esta atitude céptica dos pós-modernistas para com a linguagem dos direitos do Homem. Assad conclui que os direitos internacionais do Homem não passam de instrumentos usados como estratagema ao serviço do sistema de Estados-nações. São, segundo ele, "marcadores flutuantes que podem ligar-se, ou desligar-se de diversos assuntos e classes constituídos segundo o princípio do mercado e pelos Estados-nação mais poderosos" (p. 158). Estabeleci 70
a crítica completa às opiniões de Assad no meu ensaio a publicar, "Human Rights and the Three Faiths" in Humanity Before God: Contemporary Faces of Jewish, Christian and Islamic Ethics, editado por Win Schweiker, Michael Johnson e Kevin Jung, Fortress Press, Filadélfia, Maio 2006. 5. Criei este termo para exprimir da forma mais satisfatória a interpretação mais vasta da noção de "liberdade religiosa" fornecida pelo Comité dos Direitos do Homem na sua Observação Geral sobre a aplicação do artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (ICCPR). Nesta interpretação, todas as convicções conscientes, sejam elas quais forem, "teístas, não teístas (ou) ateias" estão incluídas sob a protecção do artigo 18 que estipula: "Toda a pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha." Ver Tad Stahnke e J. Paul Martin, editores, Religion and Human Rights: Basic Documents, Center for the Study of Human Rights, Columbia University, 1998, par.2, p. 92. O termo “direitos religiosos” frequentemente utilizado, parece-me muito restritivo e inapropriado, porque parece favorecer a religião. Penso que “liberdade de convicção” incluiria todas as convicções conscientes, religiosas ou não, colocando-as em plano de igualdade. Ver Little, "Studying ‘Religious Human Rights’: Methodological Foundations”, in Johan D. van der Vyver e John Witte, Jr., editores, Religious Human Rights in Global Prespective: Legal Perspectives, Martinus Nijhoff Publishers, Haia, 1996, p. 45-77, e sobretudo a nota de rodapé nº 12, p. 50. 6. Nesta secção. Retomo as ideias do meu ensaio "Rethinking Religious Tolerance: A Human Rights Approach”, in David Little e David Chidester, Religion and Human Rights: Toward an Understanding of Tolerance and Reconciliation, Emory University Humanities Lectures, nº 3, 2001, p. 3-30. 7. Citado in Alan Bullock, Hitler, Harper & Row, Nova Iorque, 1962, p. 401. 8. Mary Ann Glendon, A World Made New: Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration os Human Rights, Random House, Nova Iorque, 2001. 9. “É necessário portanto recordar que: apesar de facto da Constituição alemã de 11 de Outubro de 1919 garantir a todos os cidadãos uma plena liberdade de crença e de consciência, e permitir a cada comunidade religiosa organizar e administrar livremente os seus assuntos, o regime nacional-socialista inverteu, completamente, a atitude do Estado perante as religiões e as convicções. […] Gradualmente restringiram as actividades da Igreja Católica, no domínio das boas obras, da educação, dos desportos e do enquadramento dos jovens. Paralelamente, esforçaram-se com determinação, em assimilar a Igreja Protestante à sua organização, e chegaram, a pouco e pouco, a controlá-la completamente recorrendo a métodos terroristas." Arcot Krishaswami, "Study of Discrimination in ter Matter os Religious Rights and Practices", Sthnke and Martin, in Religion and Human Rights: Basic Documents, p. 10. 10. Johannes Morsink, no seu livro, excelente no geral, The Universal Declaration of Human Rights: Origins, Drafting and Intent (University of Pennsylvania Press, 1999) é excepcionalmente pouco atento ao envolvimento fascista dos artigos relativos à liberdade de convicção, exceptuando as proibições de discursos incitando ao ódio; ver p. 69-72. Como já disse na nota 9, Krishaswami é bem preciso a este respeito. 11. Artigo 18, par. 2, ICCPR; cf. artigo primeiro par. 2 da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. 12. O Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas, no seu Observatório Geral sobre a aplicação do artigo 18 do ICCPR, Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, p. 92, par. 2 13. Artigo 18, par. primeiro, ICCPR; cf. artigo primeiro, par. primeiro da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção.
14. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 4 p. 92. 15. Artigo 18, par. 3. ICCPR; cf. artigo primeiro, par. 3 da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. 16. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 8, p.93 17. Idem par. 8, p. 93. 18. Enquanto que "intolerância" e "discriminação" pareçam ser equivalentes aqui, não o são na Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção, art. 4, par. 2, que requer que os governos "se esforçam por adoptar medidas legislativas ou repor as que estão em vigor, segundo o caso, com o objectivo de impedir toda a discriminação deste género" e de "tomar todas as medidas apropriadas para combater a intolerância". Isso implica, portanto, que a intolerância e a discriminação (assim com a tolerância e a não-discriminação) não sejam uma só e a mesma coisa. Ver o meu raciocínio in Little, "Rethinking Religious Tolerance", op. cit., p. 4-17. 19. Artigo 2, par. 2 da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. Cf. artigos 2 e 27 do ICCPR, e artigos 2 e 7 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (UDHR). 20. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 9, p.94 21. Artigo 27, ICCPR; cf. artigo 27, par. Primeiro, UDHR. O artigo 27 da UDHR eliminou completamente qualquer referência à protecção das minorias, facto que foi recuperado, até certo ponto, no artigo 27 do ICCPR. No entanto, o Observatório Geral do Comité vai bem mais longe do que as prescrições do artigo 27 do ICCPR. 22. Ver Morsink, The Universal Declaration of Human Rights, p. 269-280. 23. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 6.2, p.99 24. Ver Morsink, The Universal Declaration of Human Rights, p. 272-274. 25. Artigo 20, par. 2 da ICCPR. Cf. artigo 7 da UDHR. 26. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 2, p. 96. Bem entendido introduzir as noções de autodefesa e de autodeterminação é fonte de perplexidade, uma vez que é necessário estabelecer a distinção entre o uso da força legítima ou ilegítima. 27. Morsink, The Universal Declaration of Human Rights, p. 69-72. 28. Este assunto é muito bem exposto, mesmo se, por vezes, faltam as conclusões, segundo penso, por Natan Lerner in Religions Beliefs, and International Human Rights, cap. 3. Ver o meu raciocínio in Little "Rethinking Religious Tolerance”, ob. cit. 29. Por exemplo, o Comité dos Direitos do Homem, que está autorizado a interpretar e a aplicar o ICCPR, pediu em 1993 que os governos da Bósnia Herzgovina, da Croácia assim como da Sérvia e de Montenegro tomem medidas para lutar contra todo o apelo ao ódio nacional, étnico e religioso, visando incitar à discriminação, à deslocação, pela força, de populações e outras formas de "violência étnica e religiosa" características do conflito que se desencadeou na ex-Jugoslávia de 1992 a 1995 (ver Natan Lerner, Religion, Beliefs and International Human Rights, Nova Iorque, Orbis Books. Marynoll, 2000, p. 78). Logo que este pedido, em pouco tempo, se manifestou "ineficaz", a sua pertinência e a sua validade são indiscutíveis perante as trágicas consequências que o desrespeito por elas demonstrou. 30. Ler particularmente a obra de Ted Ribert Gurr, sobretudo o seu livro Peoples versus States: Minorities at Risk in the New Century (U.S. Institute of Peace Press, Washington, DC, 2000) Nesta obra, Gurr relata que "as perspectives [sobre a frequência da violência etnonacional no mundo] são, acima de tudo, positivas" (p. xv), e que "o número de grupos que recorrem à violência armada tem diminuído após decénios de crescimento" (p. 275). De uma forma significativa, segundo Gurr, estas evoluções encorajadoras são, num grau não negligenciável, o resultado do reconhecimento e da protecção activa dos direitos dos povos minoritários: a liberdade face à discriminação baseada na raça, na origem nacional, na língua, ou na religião,
completada pelos meios institucionais de proteger e promover os interesses colectivos (p. 278). A obra de Gurr sublinha a correlação entre a aplicação dos direitos do Homem e a paz justa. 31. Random House, Nova Iorque, 2005 32. Idem, p. 79. 33. Idem, p. 88 34. Idem, p. 90 35. Permitam-me que sublinhe que ao citar aqui o terrorismo islâmico, não procuro isentar as forças de ocupação, como Israel e os Estados Unidos, de responsabilidades associadas aos "nacionalismos patológicos" na medida em que eles têm violado normas legais internacionais, incluindo os direitos do Homem e o Direito humanitário. 36. Morsink, Universal Declaration of Human Rights, p. 91. Supõe-se aqui – com razão, segundo penso – que exprimir a sua revolta moral em resposta aos actos de Hitler constitui, em si mesmo, uma característica importante – se bem que mínima – daquilo que é "um ser humano moralmente são". Em caso de dúvida sobre este assunto, "recomenda-se ao cepticismo que passe algumas horas no Holocaust Memorial Museum de Washington, D.C.", como já escrevi, (Little, "Tolerating Intolerance: Some Reflections on the Freedom of Religion as a Human Right", in Reflections, vol. 90, nº 2, Verão/Outono, 1995, p. 23) 37. Simon & Schuster, Nova Iorque, 2004 (Qui sommes-nous? Identité nationale et choc des cultures, Odile Jacob, Paris, 2004). 38. Idem, p. 15 39. Idem, p. 88 40. Idem, p. 103 41. Idem, p. 68 42. Huntington parece ter aplicado a sua teoria anterior do conflito mundial das civilizações, exposta no seu livro Clash of Civilizations: The Remaking of World Order (Simon & Schuster. Nova Iorque, 1996), àquilo que ele pensa serem as fissuras profundas da América. Pelas razões enumeradas no texto, ele considera desde logo, que os imigrantes mexicanos criam um "choque cultural" entre os seus valores e a identidade americana estabelecida (p. 299, 300). A segunda fissura, vindo, como veremos, das "elites desnacionalizadas", que renunciam à identidade tradicional americana em favor das diversas formas de cosmopolitismo, da internacionalização e do transnacionalismo, representam, para Huntington, uma ameaça bastante profunda para a cultura e a civilização da América tradicional. 43. Who Are We?, p. 254,255. 44. Idem, p. 273. Ver p. 263-274 para uma exposição sobre as "almas mortas". 45. Extraído de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, A Future Perfect, p. 241,242 citado em Idem, p. 269. 46. Idem. p. 266 47. Idem. 48. Idem, p. 270. 49. Ver Louis Menand, “Patriot Games: The New Nativism of Samuel P. Huntington”. In New Yorker, 17 de Maio de 2004, p. 96,97 e David Brooks, “The Americano Dream”, New York Times, 24 de Fevereiro de 2002, p. 27. Esta reacção foi confirmada pelo meu colega de Harvard, o professor David Carrasco, por ocasião de uma discussão pública de Who Are We? Com o professor Huntington que teve lugar na Harvard Divinity School, no Outono de 2004. Devemos, também, acrescentar que os elementos fornecidos pelo próprio Huntington para apoiar a tese explosiva (ver p. 254-256) segundo a qual os Mexicanos-Americanos "adoptam frequentemente uma atitude desconfiada para com a cultura americana" são espantosamente frágeis.
50. Louis Menand, "Patriot Games", op. cit., p. 92. 51. Huntington, Who Are We?, p. 362-366. 52. Idem, p. 365. 53. Idem, p. 12. 54 IdemI, p. 81-83. 55. Idem, p. 82. 56. Idem, p. 83 57. Idem, p. 83; sublinhado nosso.