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R. Torfs A identidade religiosa na Europa pós-moderna – tendências actuais A. Garay A laicidade, princípio como valor da Convenção
Rick Torfs**
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Introdução
O lugar da religião evolui no Ocidente, se bem que não se saiba exactamente em que sentido. Por um lado, o papel público da religião não pára de aumentar, como reacção ao terrorismo, e, de uma maneira mais positiva, devido à emergência de uma sociedade multicultural. Por outro lado, pelo menos na Europa Ocidental, não parece que as pessoas se tornem mais religiosas do que antes.
Esta ideia poderia ser resumida através desta frase assaz caricatural:
a religião torna-se mais importante para o Estado e menos importante para as pessoas.
Contudo, será que este slogan, que soa bem, reflecte a realidade? Ou deveremos ir para além das aparências e tentar descobrir o que é que na verdade está em jogo?
Gostaria, se mo permitirem, de fazer algumas observações metodológicas, tentando seguir esta linha de raciocínio. Esta tentativa levar-nos-á, sem dúvida, a raciocínios que nem sempre serão totalmente claros ou isentos de contradições, mas, suponho, que toda a abordagem credível leva a este género de conclusões, pela simples razão de que a época na qual vivemos está em constante mutação.
O início deste artigo será constituído por reflexões sobre a ausência de Deus. Elas servirão de catalizador para uma análise de cinco temas específicos, determinantes nas discussões actuais sobre a religião na Europa Ocidental. Na medida do possível, não me contentarei em expor os cinco temas; analisarei, igualmente, as consequências legais que eles podem arrastar.
A ausência de Deus
Não se enganem: Deus está, ainda, relativamente ausente na Europa Ocidental. A secularização ainda não acabou. São muitos aqueles que duvidam da existência de Deus. De facto, há cada vez uma maior tendência para não crer n’Ele. No decurso destes últimos anos, esta situação não mudou radicalmente. Numerosos crentes esperam que
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais a secularização chegue ao seu fim, mas não é correcto, de um ponto de vista científico, dar a impressão de que assim é.
No entanto, mesmo se Deus permanece ausente, está presente de uma outra maneira. A Sua ausência é mais doce, menos radical; envolve numa atmosfera de boa vontade e de compaixão.
Há vários séculos, até mesmo vários decénios, a ausência de Deus era considerada como uma vitória. Os cientistas tentavam demonstrar que Ele não tinha podido existir, ao passo que os filósofos negavam a Sua existência.
Por vezes, era na sequência de um longo conflito que a teoria da ausência de Deus era admitida. Era por isso que esta noção tinha a tendência de ser extremamente radical. Declarava-se que Deus estava ausente como se nunca tivesse existido. A Sua ausência e a Sua inexistência eram só uma e a mesma coisa. O raciocínio de então era mais ou menos este: antigamente as pessoas acreditavam na existência de Deus, mas nós encontrámos argumentos válidos que nos levam a pensar o contrário; logo, podemos daí deduzir que Deus não existe.
Por outras palavras, a ausência de Deus não sucede à Sua presença; ela não é senão a rejeição da Sua existência.
Hoje, no entanto, teria mais a tendência de pensar que esta teoria tradicional, e radical, da ausência de Deus perde terreno progressivamente. A “ausência” tem-se tornado, pouco a pouco, uma noção mais neutra; ela já não é racional, mas mais narrativa. Actualmente poder-se-á explicar a ausência de Deus da seguinte forma: Deus está ausente, Ele já lá não está, ou ainda não está lá. Poderá voltar e, de certa forma, temos pena de que Ele não esteja connosco. A ausência de Deus permanece, evidentemente, uma ausência, o que podemos lamentar, mas estamos menos seguros do que nunca antes, de que essa ausência seja eterna. Esta mudança subtil do paradigma, progressiva e, por vezes, apenas visível, pode ser ilustrado e concretizado através do seguinte exemplo. No passado, a ausência de Deus constituía uma vitória, uma forma de emancipação. Hoje, o contrário é que é verdade. Os não cristãos experimentam, muito frequentemente, uma ligeira tristeza. E chegam a dizer: “Vocês têm a sorte de serem crentes. Infelizmente, eu não recebi esse dom, ou essa graça.” Ao reagir desta forma, o não crente abandona incontestavelmente toda a superioridade intelectual. E a ausência de Deus torna-se então menos ontológica. Deus está ausente, é verdade, mas Ele poderá regressar mais cedo do que se pensa. Esta nova visão de ausência poderia – mas não necessariamente deveria – ser examinada à luz do pós-modernismo, transformando mesmo, a ausência numa noção menos radical do que antes. No entanto, poderia, também, tratar-se de outra coisa diferente de um sinal suplementar de pós -modernismo. Esta nova ausência poderia ser definida como um laço reaproximando a tese da presença da antítese da ausência radical. As consequências jurídicas desta nova ausência meio oculta poderiam ser observadas no quadro de uma abordagem contratual apropriada aplicando-se aos grupos religiosos em geral. Por outras palavras, o Estado deveria manter, com os grupos
religiosos, uma relação, um diálogo, como é mencionado no projecto da Constituição Europeia. De qualquer modo, os grupos religiosos não deveriam, necessariamente, gozar de um estatuto fixo e imutável.
Partindo, implicitamente, da noção de ausência meio oculta, tentarei descrever cinco características de identidade cultural e religiosa na sociedade pós -moderna actual da Europa Ocidental.
Primeira tese: a religião como arma dos fracos
Esta ideia parece mais divulgada na Europa de Leste, ou central, do que na Europa Ocidental. Muitos factores explicam este fenómeno.
Em primeiro lugar, as Igrejas Ortodoxas pensam, talvez, ser objecto de uma certa discriminação, após os escritos de Samuel Huntington, mas igualmente por causa da União
Europeia, frequentemente atendida como um projecto católico ou simultaneamente católica e protestante. Em segundo lugar, numerosos cidadãos da Europa Oriental ou Central vivem em países menos prestigiosos – a Rússia, por exemplo – ou menos populosos do que no passado – a Ucrânia é um exemplo marcante. O Império soviético não era, talvez, o melhor sítio para viver, mas, apesar de tudo, sempre era um Jornada mundial da juventude católica em Colónia, Alemanha, em Agosto de 2005. Foto churchphoto/Matthias Mueller império. É necessário não excluir um sentimento de frustração se combinarmos os dois aspectos aqui mencionados, a saber, a posição minoritária dos ortodoxos na Europa e a perda geral de prestígio sofrida por vários países, muitos deles ortodoxos. Podemos ainda questionar se este
sentimento de pertencer a uma
minoria que reforçaria os laços entre identidades cultural e religiosa, não desempenharia, igualmente, um papel na Europa Ocidental. Em todo o caso, a situação nesta parte do mundo, difere da que se vive nos antigos Estados soviéticos, ou nos Estados dominados, ou influenciados, pelos soviéticos. Todavia, as minorias agarram-se mais ainda do que antes, à sua identidade religiosa. Dois exemplos ilustram este ponto. a) Os muçulmanos de hoje afirmam mais claramente a sua identidade do que no passado. As mulheres usam o lenço com mais frequência. Podemos perguntar se é uma reno-
vação religiosa que está na base desta mudança de atitude. Será que não podemos argumentar que uma integração na sociedade ocidental não será, parcialmente responsável por um sentimento de humilhação que não pode ser contradita senão afirmando ostensivamente a sua pertença a uma religião? O raciocínio subjacente poderia ser: quanto mais as pessoas têm a impressão de estar em posição minoritária, mais a adesão a um grupo religioso será expresso em público. Os fracos não são mais religiosos do que os fortes, mas necessitam mais da religião para reavivar a esperança. b) Os europeus de origem, que se sentem marginalizados pelas exigências imperiosas da sociedade, procuram – e encontram – um conforto na religião. Os êxitos e os resultados têm uma importância capital na moderna sociedade neoliberal. Contudo, as Igrejas que cuidam dos pobres oferecem uma alternativa a estes imperativos tirânicos. Um grande número de Igrejas concorda em dizer que a personalidade de alguém não depende, unicamente, dos resultados obtidos. Esta atitude clemente atrai, porque põe em causa a aparentemente inevitável corrida ao dinheiro e à glória. Por outro lado, as Igrejas conseguem acolher duas categorias de pessoas, que são, por vezes, distintas, a saber, as que procuram o sentido profundo da vida e os que desejam sair do turbilhão da sua vida quotidiana.
Em resumo, a religião como arma dos fracos não é, certamente, um fenómeno unicamente presente na Europa Ocidental. Manifesta -se abertamente noutras regiões do mundo. E assim, a religião como arma dos fracos não é sem importância. Pode ajudar os muçulmanos do Ocidente a afirmar a sua dignidade. Pode também ajudar os cristãos a criar uma identidade não directamente ligada aos seus êxitos económicos.
A propósito da liberdade religiosa, a religião como arma dos fracos necessita de uma estratégia cuidadosa por parte das autoridades seculares. Enquanto a religião apenas servir de fachada para actividades tais como o terrorismo, o pôr em perigo a ordem pública, são necessárias restrições à liberdade religiosa. No entanto, as manifestações imprevistas ou não habituais da liberdade religiosa deveriam ser aceites. O uso do véu pelas alunas nos estabelecimentos escolares foi entendido em França como incompatível com o papel da escola como “santuário republicano”, como o Presidente da República, Jacques Chirac declarou em Dezembro de 2003, alguns meses antes da promulgação de uma lei interditando o uso nas escolas de sinais religiosos ostensivos. O discurso de Jacques Chirac foi provavelmente demasiado ideológico e demasiado emocional. Por outro lado, a aplicação de normas proibitivas priva as autoridades de informações. Com efeito, interditando, às jovens o uso de véu, as autoridades não têm meio de saber quem são as que o usariam se fossem autorizadas.
No entanto, a liberdade religiosa tem os seus limites, mesmo no que concerne ao uso de sinais e de roupa religiosa. As mulheres que na rua usem a burca não podem ser identificadas. Esta situação põe em perigo a segurança pública e leva, justificadamente, a tomar medidas restritivas.
Segunda tese: a religião torna-se, cada vez mais, emocional
Os sociólogos interrogam-se, frequentemente, sobre a razão pela
qual a religiosidade da Europa difere tanto da dos Estados Unidos. Estas diferenças não podem ser sempre analisadas de forma adequada. Seria simplista afirmar que a Europa está profundamente secularizada enquanto os Estados Unidos, por qualquer razão desconhecida, não estão. A situação é bem mais complexa. Para aqueles que vivem na Europa Ocidental, a religião tem um sentido tradicional diferente da dos americanos. A religião na Europa tinha grandes ambições. Procurava explicar a vida e o mundo no seu conjunto. Em contrapartida, para numerosos americanos, a religião preocupava-se com a vida, certamente, mas ainda mais com o estilo de vida e as emoções. As actividades religiosas representavam e representam sempre uma parte da vida, relativamente bem separada dos outros aspectos da existência humana. Os europeus são, talvez, mais secularizados porque encaram a religião muito a sério. Porque praticamente todos a vêem com um motor e uma explicação da vida no seu conjunto. Se isso é verdade e se as expectativas perante a religião também são elevadas, a decepção poderá ser muito cruel.
No entanto, temos observado, estes últimos anos, uma mudança do paradigma quanto à vida religiosa na Europa Ocidental. Os jovens seriam cada vez mais ou não crentes, ou crentes emotivos, isto é, praticam uma forma de fé que vai “direito ao coração”. A fé torna-se, então, mais “carismática” no sentido amplo do termo.
O fenómeno não deveria surpreender ninguém. Os Estados Unidos incarnam o poder dominante nos planos político, económico e militar. Este tipo de situação arrasta sempre consequências culturais. A Europa segue, portanto, com um certo atraso, a tendência americana que vai na direcção de uma abordagem mais emocional da fé e da religião.
Por vezes, esta evolução progressiva e implícita, aparece claramente e de forma inesperada. Por exemplo, pode argumentar-se que o novo sumo pontífice, o papa Joseph Ratzinger, suscita indirectamente e, certamente contra a sua vontade, uma abordagem emocional da religião. Esta opinião pode parecer estranha, uma vez que o papa é geralmente considerado como um intelectual afirmado. Como peritus, durante o Concílio Vaticano II, foi conselheiro do cardeal Frings. Foi professor universitário de grande renome, em Münster, Tübingen e Ratisbona. Podemos, por conseguinte, perguntar, e com razão, como é que a sua abordagem da religião poderia ser emocional.
Esta vez ainda, se as intenções do novo papa não dependem da emoção, o que emana da sua abordagem, no entanto, vai nesse sentido.
A homilia que pronunciou em Agosto de 2005 em Colónia, por ocasião de missa de encerramento da Jornada Mundial da Juventude, ilustra perfeitamente esta tese. O Papa analisou em detalhe o sacramento da eucaristia, o que se passa exactamente ao nível do pão e do vinho, incluindo explicações etimológicas de certas noções fundamentais.
Aos olhos do papa, a sua exposição não pretendia ser, simultaneamente, racional e teológica. Porém, como é que esta audiência constituída por jovens interpretou a alocução papal? A maior parte dos jovens participantes tinha conhecimentos teológicos muito limitados. Paradoxalmente, doze anos de ensino
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais religioso na escola não levam, geralmente, a uma forma de conhecimento aprofundado. Os jovens presentes em Colónia não eram entusiastas, que se alegram em partilhar a sua fé e a sua alegria com os outros. De facto, a maioria dentre eles não tinham compreendido correctamente a análise teológica apresentada pelo papa. Simplesmente gostaram dela. Gostaram também do “amor do momento”, como escreveu a autora britânica Evelyn Waugh.
Em resumo, enquanto o papa procurava transmitir a sua análise de forma racional, numerosos membros da audiência gostaram muito do que sentiram emocionalmente como uma forma de linguagem religiosa codificada. Não compreenderam o sentido real do seu discurso, mas gostaram dele e apreciaram-no. Noutros termos, o papa queria apresentar a sua homilia de uma forma racional, enquanto que o público a entendeu de uma forma emocional.
Será que esta nova tendência para com a religião na Europa Ocidental deveria ter consequências jurídicas? Parece claro que a liberdade religiosa permite a coexistência de uma versão racional e de uma versão emocional da religião. Apesar disso, devemos preocupar-nos com um ponto importante: uma abordagem mais emocional da religião pode, facilmente, conduzir a certas “características sectárias”. Prefiro usar a noção de “características sectárias” à noção dura e brutal de “seita”. As características sectárias não são inaceitáveis como tal, enquanto não estiverem ligadas a actividades ilegais como o recurso à força ou o atentado à liberdade física. Elas não necessitam da criação de novas leis, mas, acima de tudo, a aplicação de regras jurídicas gerais – e não tendo por objecto específico a religião – já existentes.
Terceira tese: a religião tende a tornar-se um conceito. A religião “conceptual” acompanha a arte conceptual.
A terceira tendência encontrada na sociedade europeia difere da anterior e, por vezes, opõe-se-lhe. Esta tendência assaz presente nos círculos políticos e intelectuais de primeiro plano, caracteriza-se por uma visão muito conceptual da religião. A religião torna-se então um conceito, uma ideia, cuja forma não depende de factores exteriores ao domínio religioso. Admitindo este ponto de vista, a ideia de Revelação não tem nenhum sentido. Nada pode ser revelado às pessoas, se isso não faz já parte delas, intrinsecamente, e da sua imaginação. A religião não resulta daquilo que Deus revelou, mas muito mais daquilo que as pessoas definem como religião.
A religião acompanha a arte. Com efeito, também no domínio das artes os pontos de referência exteriores – tais como o conceito de beleza, ou as teorias e normas tradicionais que suportam a estética – tornaram-se, pelo menos suspeitos. No momento actual, a arte é aquilo que nós decidimos que o seja. A arte tornase convencional ou formal. Resulta de um acordo e de um processo de decisão humano. Ele existe por si mesmo e já não depende de critérios exteriores.
Este fenómeno pode ou poderá ser encarado como uma vitória do poder humano – que, sob certo aspecto, é claramente desprovido de emoção. Contudo, empobrece a experiência humana. O controlo absoluto apa-
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais renta-se com uma forma de pobreza, com uma diminuição das capacidades humanas. Associa-se uma falta de abertura para o inesperado e talvez mesmo um ligeiro espírito pequeno burguês. Em primeiro lugar, os termos de arte conceptual e de religião conceptual soam bem. Contudo, é possível que escondam uma forma de decadência. Imaginemos um instante, que a noção de amor conceptual faça a sua aparição. Isso poderia ser tudo, menos amor, e esta ideia não apresenta nada de sedutor.
Entretanto, encontram-se traços de religião conceptual um pouco por todo o lado. Acontece que as pessoas finas, muito qualificadas, ocupando postos importantes, praticam a feitiçaria ou participam nos rituais druídicos em Stonehenge ou em qualquer outro lugar. Alguns cultos religiosos têm uma abordagem geral conceptual: a cientologia, é disto um perfeito exemplo. Somos aqui confrontados com um estranho paradoxo: quanto mais a religião é humana e conceptual, mais ela desperta a desconfiança.Areligião como realização conceptual ultrapassa as suspeições. A cientologia é confrontada com numerosos problemas jurídicos, em diversos países europeus.
Poder-se-á perguntar se a religião conceptual está protegida pela lei da liberdade religiosa. A resposta é, sim. Colocando como condição para a fruição de uma liberdade religiosa colectiva, uma forma de revelação divina ou a existência de um Deus, infringe-se já a liberdade religiosa. As definições podem constituir um meio subtil de restringir a liberdade. Reconhece-se que alguns receiam-nas porque são pós -modernos. Outros rejeitam-nas por melhores razões: porque as definições geram a discriminação.
Quarta tese: o regresso do cristianismo frágil
Permitam-me que explique desde já a noção de cristianismo frágil ilustrando-a com um exemplo concreto. Em 2005, a realizadora francesa Coline Serreau rodou um filme intitulado “Saint-Jacques… La Mecque”. Nesse filme, nove personagens diferentes, representando, mais ou menos, a sociedade francesa no seu conjunto, empreendem uma peregrinação até Santiago de Compostela, em Espanha. O motivo da sua peregrinação não era, na verdade, religiosa. Fizeram-na com o objectivo de herdarem a fortuna da sua mãe. Esta exigência estava estipulada no seu testamento. Contudo, no decurso da peregrinação, as nove personagens, põem-se, pouco a pouco, em certos factos e conceitos da vida. Acabaram por concluir que todas as religiões são intermutáveis. Na realidade, nenhuma diferença real as separa. A ideia parece sedutora. Contudo, quando se olha para ela um pouco mais de perto, a aparente mensagem de tolerância não é tão neutra como parece. A noção de “tolerância” é utilizada por oposição aos valores muçulmanos patriarcais e discriminatórios. Por conseguinte, o filme luta por valores cristãos leves, sem um sentimento religioso real, sem uma fé concreta e, sem dúvida, sem nenhuma Igreja institucional. As instituições não são muito populares na maior parte dos países europeus. Esta abordagem é, provavelmente, emblemática de uma nova tendência em certos países da Europa Ocidental. É possível que as Igrejas tenham perdido muito da sua credibilidade, e que as pessoas tenham, também elas, perdido, em grande parte, a sua fé pessoal, mas uma forma de
cristianismo frágil permanece, apesar de tudo, na base do sistema de valores dominante.
Por momentos, este sistema de valores não está senão implícito, não passa de um elemento escondido da identidade europeia. Porém, logo que elementos de identidade escondidos são confrontados com outros, incluindo, bem entendido, o Islão, se tornam presentes e visíveis na Europa actual, esses elementos concretizam-se. Por vezes, esses “valores cristãos” sinais da identidade religiosa europeia, conduzem a paradoxos. Esse poderá ser o caso do cristianismo frágil, evocado por Coline Serreau no seu filme: ela serve-se do conceito de “tolerância” como de um instrumento para demonstrar uma certa tolerância para com a minoria muçulmana.
O cristianismo frágil nem sempre está consciente dos seus propósitos profundos e também não se inspira na sua própria tradição; e é aí que está o perigo. Muitas vezes reduz-se o cristianismo a um conjunto de valores petrificados. Baseandonos na primeira teoria exposta, pode
deduzir-se que o cristianismo pode servir de placebo para as pessoas fracas e pouco seguras de si mesmo. No plano jurídico, o cristianismo frágil, como forma de identidade cultural e religiosa, não deveria conduzir a um alargamento do conceito de ordem pública que se arrisca a limitar a A mesquita Yavuz-Sultan, em Mannheime, é a maior mesquita construída na Alemanha. Foto Immanuel Giel liberdade religiosa. Arriscar-se-ia, então, a que as actividades que se afastam do cristianismo frágil sejam consideradas como incompatíveis com os valores fundamentais da sociedade, e, consequentemente, como ilegais. Outra questão legítima: será que o cristianismo frágil ameaça sempre, a liberdade religiosa dos outros, mais do que o cristianismo forte? Por exemplo, na Polónia, ou na Itália, a Igreja Católica Romana procura, o melhor que pode, influenciar o debate político. E que dizer da participação activa de grupos religiosos na discussão sobre o casamento homossexual civil (e portanto, não religioso)? Não tenhamos dúvidas de que este assunto será de novo objecto de discussão nos próximos anos.
Quinta tese: a religião rompe os laços com a ciência e abandona a discussão racional.
Durante muito tempo, a eterna (mas por vezes implícita) discussão entre a religião e a ciência tem servido de impulso ao pensamento filosófico assim como de motor para o progresso social na Europa. Não
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais é este o caso dos nossos dias. Nos últimos anos, o debate entre ciência e religião tem sido um pouco negligenciado.
Pode considerar-se este fenómeno de duas formas diferentes, uma positiva, outra negativa.
Comecemos pela análise positiva: pode argumentar-se que hoje uma discussão viva entre a religião e a ciência já não é necessária. A ciência e a religião já não são rivais, uma vez que não se preocupam com as mesmas questões. Como a questão científica seria a primeira, ainda que porque a questão religiosa seria fundamental. As duas questões cobrem os mesmos domínios da existência humana; não há uma linha de demarcação entre a ciência e a religião sob esse ponto de vista. Contudo, mesmo se elas se atacam num terreno idêntico, as questões diferem: como, por oposição ao porquê. Eis a explicação positiva do enfraquecimento do diálogo entre a religião e a ciência.
Não esqueçamos que uma análise mais negativa é igualmente possível. O declínio do diálogo assinala, talvez, uma degradação da religião. Para um bom número de europeus sérios, implícita ou implicitamente guiados por uma ideologia neoliberal, a religião não é tão importante que constitua um verdadeiro assunto de discussão na sociedade. Podemos exprimir este problema de uma maneira mais positiva: a religião é por de mais sagrada para ser incluída nas discussões científicas, políticas e concretas vulgares. Mas nos dois casos, o resultado é o mesmo, a saber, por um lado, a ausência de um diálogo real entre a ciência e a religião e, por outro lado, a supremacia da vida prática. O carácter sagrado dá origem a muitas manifestações de respeito e o respeito leva à exclusão.
O diálogo entre a religião e a
ciência é muitas vezes substituído por aquilo a que se chama o diálogo inter-religioso. Muitos governos encorajam o diálogo inter-religioso, uma vez que ele desempenha um papel importante seja para a segurança quer para a elaboração de uma verdadeira sociedade multicultural. Contudo, apenas este conceito basta para ilustrar até que ponto a religião perdeu o seu estatuto. Ela não é senão um factor que se pode revelar determinante para a política governamental. Contudo, não desempenha o papel principal na descoberta da verdade. O inverso também é verdade: a noção de verdade pode constituir um obstáculo incómodo na busca de um diálogo inter-religioso construtivo. De certa forma, o diálogo inter-religioso permanece necessário. Contudo, alguns erram criando um falso dilema: por um lado, o diálogo entre a ciência e a religião; por outro, o diálogo inter-religioso. Uma falta de diálogo com a ciência poderá conduzir a Europa a interrogar-se, também ela, sobre o verdadeiro fundamento do ensino do darwinismo e do criacionismo, na escola, um problema que não se punha antes. Neste domínio, a Europa poderia, mais uma vez seguir os Estados Unidos. Nos Países Baixos, levantam-se já as primeiras questões sobre o criacionismo na escola. Isso poderá marcar o início de uma … evolução, uma vez que as ideias americanas chegam frequentemente à Europa através do Reino Unido, da Escandinávia ou dos Países Baixos.
Conclusão
Será que a religião está em crise, na Europa? Sem dúvida que sim. Ela tem estado sempre. Todavia, as
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais novas tendências e formas de religião são igualmente um sinal de vigor e de vitalidade.
A liberdade religiosa na Europa estará ameaçada? A liberdade está continuamente ameaçada. A liberdade religiosa representa uma forma de liberdade suprema. Como consequência, ela corre mais riscos que outros direitos e liberdades. Contudo, ao descrever correctamente os riscos, contribui-se, desde logo, para procurar soluções. Importa estar vigilante. Vigilante na medida certa. Um excesso de pessimismo torna a vida triste. Um excesso de optimismo ameaça a liberdade.
*Exposição apresentada em Novembro de 2006, por ocasião de em encontro de especialistas em Sigüenza, Espanha. ** Professor na Universidade Católica e deão da Faculdade de Direito Canónico em Lovaina, Bélgica.