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G. Gebhardt As religiões - incendiárias do ódio ou bombeiros da paz?
As religiões – incendiárias do ódio ou bombeiras da paz?
Gunther Gebhardt*
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A expressão “pregador do ódio” pertence, desde há alguns anos, ao vocabulário corrente. Designa aquele que utiliza o seu papel religioso preponderante para suscitar o ódio e a violência contra os membros de outras religiões, contra outras culturas e contra aqueles que têm opiniões políticas diferentes. As motivações religiosas desempenham, sem dúvida, um papel em numerosos actos terroristas, mas a violência motivada pela religião não começou com os atentados terroristas destes últimos anos e também se apresenta sob outras formas diversas.
Desde há algum tempo voltámos a interrogar-nos – sobretudo sobre o islão – sobre a relação entre a religião e a política, religião e violência e também nos questionamos se as religiões são capazes de viver em paz. Contudo, não se trata aqui, de forma alguma, de um problema puramente islâmico – uma tal opinião comportaria em si o germe do ódio e da violência! – uma vez que quase todas as religiões são afectadas por manifestações de violência. Na Índia, os hindus extremistas massacram tanto os muçulmanos como os cristãos. No Sri Lanka, o budismo, embora considerados pelo seu pacifismo, também se deixou fanatizar pelos nacionalistas cingaleses. Nesse país, os Tamiles hinduístas e cristãos entregam-se a terríveis actos de violência. Por fim, não esqueçamos que o cristianismo, por sua vez, manchou de sangue certos períodos da História e que, ainda hoje, pode levar à violência. Desta forma, frequentemente apresenta-se a guerra do Iraque, com as suas consequências, como uma manifestação do “choque de civilizações”, e isto, principalmente, desde que a Administração Bush lhe deu uma conotação cristã fundamentalista: como de Deus tivesse, por assim dizer, confiado aos Estados Unidos a tarefa de dividir o mundo entre o Bem e o Mal, e de lutar contra o pretenso Mal até à sua erradicação.
Como explicar que a religião seja ainda e sempre uma das causas da violência, e como podem os crentes contribuir, mais eficazmente, para a paz? Será que a ideia de uma etnia planetária, isto é, de um consenso moral baseados sobre alguns valores, normas e comportamentos éticos comuns, teria um papel concreto a desempenhar?
Fala-se facilmente de uma instrumentalização da religião para fins políticos. As religiões podem, em qualquer momento, atiçar o fogo dos conflitos que, contudo, causas bem diferentes – políticas, sociais, económicas, etc. As guerras dos
anos 1990 na ex-Jugoslávia ilustram bem e de maneira notável, e com que eficácia, como as diferenças religiosas foram utilizadas num conflito de interesses etno-políticos. Mas antes de nos precipitarmos sobre esta tesa da instrumentalização, poderemos interrogar-nos se as religiões são realmente pacíficas e se são os políticos sem escrúpulos e os fanáticos cegos que a instrumentalizam para fins pessoais. Se esse é o caso, então é bem necessário que elas se deixem instrumentalizar! Portanto, elas têm em si mesmas os primeiros elementos de uma predisposição para a violência e não são, em si mesmas, “inocentes”. No seu livro Die Gewalt der Frommen1, o psicanalista indiano Sudhir Kakar aborda a psicologia dos conflitos étnicos e religiosos. Analisa, em particular, o conflito entre hindus e muçulmanos radicados na Índia e faz a seguinte constatação: “A bem dizer, as concepções que as religiões têm do paraíso reflectem o sonho do homem desde sempre: estar liberto da violência. Mas a esta representação opõe-se a realidade segundo a qual é indesmentível que em todas as religiões a violência é necessária para impor os objectivos religiosos.2” Esta perpétua contradição transforma em tragédia a história das religiões e da humanidade.
I. As religiões “incendiárias” do ódio. 1. Profundidade e fanatismo
Qual a razão pela qual se chega a instrumentalizar a religião de uma forma terrível? Porque as convicções religiosas podem facilmente integrar-se, não importa em que objectivo, trazendo-lhe como acréscimo, uma profundidade particular e uma dimensão sagrada. A fé constitui, para numerosas pessoas, um marco na vida: dá respostas e procura, através dela, um sentimento de segurança. As pessoas chegam a ser manipuladas de tal forma que elas já não consideram um conflito político ou social, como tal, mas mais como um combate no qual os valores fundamentais da vida e o próprio Deus estão em jogo; atribui-se assim a um problema puramente material uma dimensão espiritual e cai-se no “fanatismo”. Se “Deus é por nós” logicamente não pode estar com os outros. Portanto, aqueles que estão contra nós pertencem ao “Reino do Mal”, ou ainda ao “Eixo do Mal”. Como consequência, a nossa guerra é comandada por Deus e todos os meios são bons para combater o Mal. Juntar uma dimensão religiosa e moral a conflitos meramente políticos e contribuir dessa forma para espalhar uma visão simplista do mundo em que tudo é ou negro ou branco, sem cinzento, sem cambiantes, constitui uma ameaça real para a paz. Desde logo, não precisamos de nos admirar pelo facto das piores crueldades serem precisamente perpetradas em nome da religião, nem que os dirigentes políticos e os demagogos os menos religiosos se sirvam da religião para atingirem os seus objectivos políticos.
Pode igualmente evocar aqui o culto dos mártires e os atentados suicidas, que se tornaram quase um fenómeno de massas, em particular no Iraque. Sacrificar a vida por uma ideia, religiosa ou não, também pode representar uma forma de fanatismo num caso isolado, mas este acto será classificado como nobre se
Günther Geghardt não toca senão a pessoa que o comete. Mártires como o teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, na Alemanha nazi, ou o padre católlico Oscar Romero, em El Salvador, são considerados, com justiça, como exemplos admiráveis porque morreram por outros uma vez que eles eram não-violentos. Mas o objectivo do sacrifício pode, facilmente, modificar-se para alguns: não será apenas o perder a vida, mas servir-se da sua morte para a causar noutros, bem entendido, num grande desígnio, se possível em nome de Deus, e com toda a terminologia e um simbolismo religioso. O mártir torna-se então o autor de um atentado suicida ou “kamikaze”. A etimologia deste termo é além disso interessante, porque está ligada à religião: “kami” representa, com efeito, a noção da divindade no shintoísmo japonês, e “kamikaze” significa “vento divino”. Mas é necessário sublinhar que nem todos os autores de atentados suicidas se baseiam na cultura japonesa ou sobre uma interpretação extremista e perversa do islão. No Sri Lanka, no seu combate contra o governo central, a maioria cingalesa, os Tigres Tamils apelaram a milhares de jovens autores de atentados suicidas, entre os quais numerosas mulheres. Estes actos são motivados, adornados pela religião. Vê-se como é fácil intrumentalizar a religião para suscitar a violência contra o outro, não apenas ao nível colectivo, mas igualmente ao nível individual.
2. As religiões como componentes da violência cultural
Nos seus trabalhos de pesquisa sobre as estratégias da paz, Johan Galtung, após trinta anos, estabeleceu uma diferença entre a violência directa e a violência estrutural. A violência “directa” ou “pessoal” é exercida por pessoas identificáveis contra outras pessoas. Mas a “violência estrutural” é gerada pelas circunstâncias; tem causas estruturais. A injustiça da economia mundial poderia, por exemplo, constituir uma forma de violência estrutural. As religiões têm recorrido sempre a estes dois tipos de violência. Ainda hoje, não é raro encontrar em certas comunidades religiosas formas de violência estrutural, por exemplo, contra as mulheres.
No início da década de 1990, Johan Galtung introduziu o conceito de uma terceira dimensão da violência: a violência cultural. Trata-se, segundo ele, de “aspectos da cultura da esfera simbólica da nossa existência – expressas pela religião e a ideologia, a língua e a arte, a ciência empírica e formal (a lógica, as matemáticas) – que podem ser utilizadas para legitimar a violência directa ou estrutural”3. Hoje dispomos de mais exemplos que não faltam para ilustrar este conceito: Igrejas ou guias religiosos que se apoiam em ditadores e em regimes que apenas têm desprezo pelos seres humanos – como no apartheid na África do Sul – ou introduzem mitos na História ou na religião e retomam-nos para justificar a violência em certas regiões da Europa, ou os conflitos armados nos territórios palestinianos, ou legitimam a guerra do Iraque invocando uma missão particular de que seria investido o actual fundamentalismo cristão, etc.
3. Os aspectos “duros” e “suaves” das religiões
É evidente que nenhuma religião pode ser considerada à partida, como a religião da paz, mas, por outro lado, também não é justo, denegrir as religiões classificando-as sistematicamente como violentas. Com efeito, elas não são blocos monolíticos imutáveis, mas correntes vivas, susceptíveis de evoluir no decurso da História, de oferecer diversas facetas, e pode haver diferentes fluxos na corrente. Uma vez mais, Johan Galtung aproximou-se da verdade colocando toda a sua atenção sobre a relação entre a religião e a violência. Ele observou os elementos “duros” e os elementos “suaves” de cada religião e classificou os primeiros de “religião pervertida” e os segundos de “verdadeira religião4”. Segundo ele, os elementos duros de uma religião são todas as doutrinas, as atitudes e as estruturas que criam a rejeição e a exclusão do outro. O lado macio representa os aspectos que encorajam a generosidade, a abertura e o acolhimento aos outros.
Johan Galtung pensa que estes mecanismos estão em estreita relação com o conceito que cada confissão faz de Deus. Este pode ser acima de tudo transcendente – Deus é o Tudo em relação ao homem – ou imanente – Deus está em cada um de nós. É bem evidente que alguns tipos de religiões têm mais tendência de representar um ou outro. De facto, chega a dizer-se que as que são monoteístas, em razão da sua concepção de um Deus único excluindo todos os outros, seriam mais inclinadas à violência do que as que admitem uma pluralidade de divindades. Mas não podemos deter-nos em tais categorias esquemáticas. É necessário, antes de mais, compreender que em todas as religiões existem noções de transcendência e de imanência, tal como correntes e elementos duros e suaves.
Por exemplo, nas religiões proféticas monoteístas representadas pelos judeus, os cristãos, os muçulmanos e os siks, um dos princípios fundamentais é que Deus seja o Deus de toda a criação, de todos os homens e de todos os povos. Todos crêem geralmente na imanência de Deus. A não ser assim, como se poderia dizer no islão: “Deus está mais próximo de nós do que a nossa veia jugular”? Mas também se encontram no conjunto das religiões, correntes místicas para quem o divino é a verdade situada no mais profundo do homem e que, por isso estão convencidos que todos os humanos estão profundamente unidos. Por fim, podemos encontrar nas religiões ditas místicas, como o budismo – que não conhece a representação de Deus – e o hinduísmo, elementos duros que excluem os outros quando alguns dentre eles se identificam, como sistema, a um grupo étnico oposto a outro grupo, como é o caso no Sri Lanka e na Índia.
4. Deter a verdade ou procurá-la?
A religião reivindica a busca da “verdade” sobre a última realidade, Deus, o sentido da vida e o universo. As três grandes confissões proféticas, judaísmo, cristianismo e islão, têm precisamente consignado estas verdades nas suas Escrituras. Mas os problemas surgem quando uma religião pretende ser a única a possuir toda a verdade – exclusivismo – e que, por causa disso, obriga os
seus adeptos a converter os outros, recorrendo, no pior dos casos, a coerção e à violência – universialização. Entregar-se a uma missão para levar outros a aderirem à sua religião (aquilo que se chama tradicionalmente “proselitismo”) pode igualmente levantar dificuldades, sobretudo se se é agressivo quando se procura convencer. Tais concepções da verdade assentam num grave mal entendido. Com efeito todas as religiões pretendem – com razão – que apenas Deus detém a verdade, sabendo, perfeitamente, que esta está para além de qualquer delas. Ninguém possui a Verdade. Pelo contrário: todos os crentes, seja qual for a sua confissão, deveriam considerar-se como um conjunto de peregrinos em busca da verdade. Isso teria repercussões não negligenciáveis sobre o comportamento de uns para com os outros. O pacifista belga Paul Lévy escreveu que os “detentores da verdade” se reconhecem na atitude agressiva que têm de uns para com os outros, enquanto os crentes seriam, como investigadores da verdade, muito mais dispostos a reconhecer os caminhos que os aproximam dos outros para chegar à verdade, a respeitá-los, a inspirar-se neles, seguindo o seu próprio caminho ao qual se sentem ligados. Aproximamo-nos muito mais da paz quando a compreensão estática da verdade dá progressivamente lugar a uma concepção mais dinâmica. As manifestações agressivas de uma religião não dependem unicamente de certos conteúdos marcados pela violência, mas essencialmente da forma de crer dos adeptos. Os fundamentalistas não são perigosos por veicularem mensagens fundamentais – podem existir fundamentalistas pacifistas, que preferem sacrificar-se mais do que fazer mal a outrem – mas mais porque são rígidos e convencidos de serem os únicos detentores da verdade.
5. A memória colectiva de um grupo
A recordação de acontecimentos trágicos da História não integrados pode, numa situação de conflito, aumentar a tendência para a violência.
Por exemplo, não há qualquer dúvida de que as cruzadas, as colónias europeias e o domínio contínuo da política económica ocidental constituem traumatismos históricos, que formam, em numerosas sociedades árabes, o terreno fértil para o ódio, que se apoderam de grupos extremistas para a transformar em actos violentos. A guerra dos Balcãs é o exemplo típico da forma como as tensões religiosas enraizadas na História podem ressurgir em períodos de conflito político levando a recusar o diálogo e conduzir por fim à violência mais brutal. Seiscentos anos depois, evoca-se ainda e sempre, a recordação da batalha do Kosovo Polje (“campo de melros”) perdida em 1389 pelos sérvios cristãos contra os turcos muçulmanos, para justificar os medos e a separação de hoje entre os sérvios ortodoxos e os bósnios muçulmanos. Outro exemplo, ainda mais concreto: o conceito que um bom número de europeus tem ainda hoje dos turcos, não tem como origem, consciente ou inconscientemente, os conflitos dos séculos XVI e XVII? Não é o espectro dos turcos na batalha de Viena em 1638, quer se queira ou não, uma razão para explicar que trezentos anos depois, os turcos muçulma-
nos ainda encontrem frequentemente dificuldades para praticar a sua religião nos nossos países da Europa Ocidental porque temem uma nova “conquista islâmica” da nossa sociedade? Não seria esta velha recordação, em parte e de uma forma subjacente o que na União Europeia causa o receio de ver os turcos desencadear a “batalha de Bruxelas” e que a adesão da Turquia encontre tantos obstáculos?
Assim, para chegar à paz entre as diferentes religiões, é necessário que cada um comece por se “curar das recordações” ou, dito de outra forma, que integre os traumatismos do passado: esta é a condição prévia, essencial na via que permitirá travar a violência
6. O medo da perda da identidade
Também se pode explicar a tendência para a violência, tanto individual como colectiva, no domínio religioso por causa do medo de ver a sua identidade ameaçada, ou mesmo de a perder. Os movimentos migratórios e a multiplicação das deslocações têm trazido uma grande diversidade às religiões presentes nos nossos países. Este pluralismo é muitas vezes visto pelos crentes fiéis à sua doutrina como uma ameaça e um perigo, porque põe em questão as suas próprias certezas. Mas a minha religião não é a única possível? Poderia eu escolher outra? Mas então qual é o bom caminho? Uma tal incerteza arrisca-se a provocar um sentimento de pânico. A única forma de garantir a sua identidade seria, então, rejeitar a causa desta tensão: as outras religiões. Contudo a identidade de cada um deveria, em primeiro lugar, reforçar-se limitando-se, ao confrontar-se com outras ideias. Mas sentir que a sua identidade está ameaçada aumenta sensivelmente a propensão para a violência e é com razão que o escritor libanês Amin Maalouf, no seu livro epónimo5, fala de “identidades assassinas”.
Ao longo dos séculos, as Igrejas cristãs – tal como outras correntes religiosas – reforçaram teologicamente os limites que as separavam das outras religiões. Elas não podiam salvaguardar a sua identidade senão opondo-se. Não agir como os ditos pagãos, tal era essencialmente a definição da cristandade.
Hoje, devemos alterar a nossa concepção da identidade: quer se trate de um indivíduo, ou de uma colectividade, de um povo, de uma nação ou de uma comunidade religiosa, a identidade não pode, actualmente, ser vista senão como identidade plural. Isso implica, por um lado, compreender que cada pessoa vive adoptando várias identidades simultâneas, cada uma tomando de vez em quando a tomar o lugar das outras. Isso significa, por outro lado, que não se pode apreender a própria identidade sem a ver na sua relação com, e não contra, as dos outros. Nos nossos dias é precisamente no seio do pluralismo que se forja a identidade do ser humano. É necessário, portanto, passar de uma identidade definida por limites para uma identidade na sua relação com os outros.
Pierre Claverie, o padre católico de Oran, na Argélia, assassinado por terroristas a 1 de Agosto de 1996, formulou de forma notável, a sua visão da relação
e da dinâmica entre identidade e verdade, por ele próprio ter vivido e sofrido sob as tensões entre cristãos e muçulmanos. Eis como ele testemunha da sua experiência:
“Descobrir o outro […] deixar-se afeiçoar pelo outro, isso não quer dizer, perder a sua identidade, rejeitar os seus valores, isso quer dizer conceber uma humanidade plural, não exclusiva. […] Adquiri a convicção pessoal que não há senão humanidade plural e que, desde que pretendamos […] possuir a verdade ou falar em nome da humanidade, caímos no totalitarismo e na exclusão. Ninguém possui a verdade, todos a procuramos. Há certamente verdades objectivas mas que nos ultrapassam a todos e às quais não se pode aceder senão através de um longo caminhar e recompondo pouco a pouco, essa verdade, e rebuscando nas outras culturas, nos outros tipos de humanidade, aquilo que os outros também adquiriram, procurando no seu próprio caminho em direcção à verdade. Eu sou crente, creio que há um Deus mas não tenho a pretensão de possuir esse Deus, nem pelo Jesus que m’O revela, nem pelos dogmas da minha fé. Não se possui Deus. Não se possui a verdade e tenho necessidade da verdade dos outros6.”
Contudo seria verdadeiramente partidário e injusto na nossa busca do aspecto “violento” da religião e dos indícios que explicam o seu papel, de esquecer, ou mesmo de minimizar o seu lado “benevolente”. As religiões não são apenas incendiárias do ódio, elas também “bombeiros da paz”.
II. As religiões, “bombeiros da paz”
As religiões proclamam igualmente que uma das suas missões centrais é a paz: os textos, a doutrina, os ritos, as práticas espirituais e sociais indicam o caminho que permite viver em conjunto e em paz. Hoje ainda, como no passado, as religiões e os seus fiéis, são consideradas como forças que trabalham para a paz.
Entre os inúmeros pacifistas, podemos citar S. Francisco de Assis, os Quakers e outras Igrejas pacifistas, o muçulmano indiano Abdul Ghaffar Khan assim como o seu movimento não violento baseado no Corão e, bem entendido, Gandhi e Martin Luther King. Todas as iniciativas sociais procuram reduzir o sofrimento e os movimentos que têm como objectivo erradicar a injustiça e a opressão são meios para atingir a paz. As personalidades religiosas ou os grupos religiosos que intervêm – a mais das vezes com sucesso – como mediadores em muitos conflitos políticos, por todo o mundo, desempenham um papel importante. Markus Weingadt, investigador para a paz natural de Tubingen, publicou recentemente um estudo aprofundado que descreve – ao analisar, entre outros, mais de trinta situações concretas em todo o mundo – como a religião pode contribuir para instaurar a paz7. Nos anos 1990, eu próprio apresentei um estudo inter-religioso que mostrava o potencial pedagógico de certos movimentos religiosos pacifistas8 .
Proporei a seguir, comportamentos e meios que permitem fortalecer a capacidade das religiões a trabalharem pela paz.
1. Enriquecer-se sobre o plano pessoal através do pluralismo
Trata-se, desde logo, de compreender a diversidade e a diferença, não como ameaças, mas como oportunidades de enriquecimento e de viver outras experiências. Esta procura por uma personalidade relativamente forte, e, neste mundo cheio de incertezas, este elemento não deve ser substimado, quer se trate de indivíduos ou de grupos. Se desde logo crentes de todas as religiões chegam a considerar os outros como vizinhos com os quais partilham a mesma parcela de terra – que cada um trata à sua maneira – poder-se-á então triunfar sobre a rivalidade e a hostilidade. É igualmente essencial compreender que os membros das outras religiões têm algo enriquecedor para nos transmitir, sem que tenhamos por isso, de abandonar as nossas próprias convicções. Tais são as duas atitudes que permitiriam criar novos modos de diálogo. Aprendemos realmente a conhecer os nossos vizinhos se os descobrirmos, se nos aproximamos, se formos ao seu encontro. A coexistência inter-religiosa não se pode fazer se as pessoas não se aproximarem realmente. É necessário, portanto, aproveitar todas as ocasiões que se apresentem, na Europa e noutras regiões do mundo. As Igrejas cristãs oferecem, para isso, muito boas oportunidades, e não apenas pela sua infra-estrutura. Nada pode substituir os contactos humanos.
2. Autocrítica e trabalho para a paz no seio de uma religião
Num primeiro momento é muitas vezes necessário que as religiões se familiarizem com os direitos do Homem, o pluralismo e a não-violência desde logo para o seu funcionamento interno. Com efeito se se deseja uma sociedade pluralista, na qual as pessoas de horizontes culturais diferentes vivam em paz e comuniquem, na qual se respeitam os direitos do Homem e as liberdades e obrigações que daí derivam, então não é necessário senão que as comunidades religiosas não violem esses princípios no seu próprio seio. Uma religião que deseja contribuir para a paz entre os homens deve, ela própria, abrir-se ao diálogo, e desmantelar as estruturas que tomam as decisões hierárquicas e autoritárias. Deve promover o pluralismo interno e praticá-lo. As religiões têm ainda um outro dever, o de enfrentar a sua própria violência no decurso da História e de se arrependerem. Os actos de crueldade cometidos em seu nome – ou pelo menos por elas tolerados – não podem ser minimizados invocando o contexto histórico. Estes últimos anos, as Igrejas têm progredido no caminho do arrependimento e têm procedido a confissões públicas importantes, que têm desde logo, um carácter simbólico que não se deve subestimar, mas que exprimem, também, que tais actos não se devem voltar a produzir. Estes exemplos ilustram as dimensões do trabalho para a paz, no seio das Igrejas.
3. Sublinhar os aspectos “suaves”
Mas as religiões não devem parar nessa autocrítica. Se querem servir a paz, é necessário desde logo identificar os seus aspectos “agradáveis” – para retomar a terminologia de Johan Galtung. Isto é redescobrir nos seus escritos os textos que encorajem a resolução dos conflitos, sem violência, a generosidade e a abertura para com os estranhos e os outros; as passagens que falam de reconciliação e que perante uma injustiça cometida procurar um novo caminho. Trata-se também de redescobrir e de valorizar as correntes teológicas correspondentes, e, sobretudo, de procurar na História da nossa própria religião as vitórias conseguidas nesse domínio e de as contar aos outros: tentar saber qual a razão porque uma iniciativa em favor da paz foi coroada se sucesso, porque é que uma reforma pacifista deu frutos. Assim, poder-se-ão encontrar modelos, não para os copiar tal e qual (o contexto histórico é diferente) mas mais para descobrir os mecanismos que, adaptados à nossa época, serviriam hoje, para resolver situações de conflito. Desde há alguns anos, o Conselho Ecuménico das Igrejas de Genebra fez progressos importantes nessa direcção. É revelador constatar que é na busca de uma teologia da Igreja Menonita, que faz parte das Igrejas pacifistas históricas – como os Quakers e a Igreja dos Irmãos (Church of Brethren) – que foi lançado no início de 2001, uma “Declaração para vencer a violência”: um apelo lançado a todas as Igrejas membros do CEI em todo o mundo para que desenvolvam, na medida das suas possibilidades, iniciativas e programas visando reduzir a violência a todos os níveis da sociedade. Há já vários anos, as acções das Igrejas têm, pouco a pouco, unido o principal movimento das actividades do Conselho Ecuménico no domínio da promoção da paz.
A partir desses elementos, há uma vasta missão pedagógica para as religiões. Nos sermões, na educação religiosa das escolas, na catequese, nos textos litúrgicos, nos cânticos, no ensino da História – em tudo podem sublinhar-se os aspectos “suaves” e fazer assim um trabalho decisivo em favor da paz.
4. Colocar a ênfase sobre os pontos comuns entre as religiões e a partir daí, organizar a sua contribuição para a paz no mundo
Com efeito, se o diálogo entre as religiões tem como objectivo promover a sua coabitação no seio de uma sociedade e de um mundo pluralistas, deve partir dos seus pontos comuns. O mais evidente dentre eles é que os humanos são responsáveis bem bem-estar e o futuro do nosso planeta. Todas as religiões devem, portanto, reunir-se e juntar igualmente os grupos não religiosos para encontrar os meios de se envolverem e de investir nessa tarefa. O diálogo tomará, então, a forma de uma cooperação prática para a paz e a justiça, ou os pontos de desacordo – principalmente a doutrina e os ritos – podem ser, por assim dizer, postos em paralelo, colocados entre parêntesis, sem apesar disso, serem nega-
dos ou apagados. Colocar em primeiro lugar os pontos comuns e cooperar não significa propor uma “unidade” religiosa ilusória e, em caso algum, desejável. As diferenças, as separações e o pluralismo existem sempre, mas isso não impede de, em conjunto, fazer o que é possível e necessário. Todos os seres humanos, sejam quais forem as suas convicções religiosas, ou não religiosas, partilham um destino comum e, portanto, uma mesma responsabilidade.
5. Ética planetária
É aqui que intervém o projecto da “ética planetária”. Esta compreende-se pela ideia de contribuir para a paz entre as O Professor Hans Küng (3º a partir da esquerda) religiões a fim de servir a paz no e Günther Gebhardt (à sua direita) por ocasião mundo: respeitando plenamente da abertura da versão chinesa da exposição e tomando em consideração as movel da Fundação Ética Planetária intitulada diferenças e as particularidades “As religiões do mundo – a paz mundial” em de cada religião, salientar uma Kuala Lumpor, na Malásia (Dezembro de 2005). posição comum a todas, é essa Foto Soka Gakkai, Kuala Lumpur. a responsabilidade e a acção em favor do mundo que nos envolve. A ética não compreende, bem longe disso, toda a complexidade de uma religião, mas procura muito mais, um comportamento responsável.
O teólogo suíço Hans Küng, que é professor em Tübingen (na Alemanha), desenvolveu, sistematicamente, este conceito fundamental num projecto de “ética planetária” a partir da sua convicção de que “a paz entre as nações não é possível, sem a paz entre as religiões”. Em 1990, apresentou ao grande público, pela primeira vez, este conceito no seu livro Projecto da ética planetária. A paz mundial através da paz entre as religiões. 9 a fase decisiva deste projecto foi atingida quando a “Declaração para uma ética planetária”, que ele redigiu em colaboração com os representantes de todas as religiões, foi adoptada pelo Parlamento das religiões do mundo em Chicago, em 1993. Mais de duzentos representantes de diferentes religiões dos cinco continentes assinaram esta declaração, dando assim um impacto mundial ao conceito de ética planetária. 10
A declaração de Chicago resume os pontos comuns que as religiões têm ao nível ético sob a forma de dois princípios, que se subdividem em quatro “directivas”.
1. Exigência fundamental – O princípio da humanidade: que toda a pessoa humana seja tratada humanamente
Este princípio fundamental deriva do carácter inalienável da dignidade do Homem, que advém da sua própria humanidade, e baseia-se, bem entendido, na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por agora permanece, acima de tudo, formal, mas, em quase todas as culturas e todas as religiões do mundo, encontra-se um segundo princípio que o desenvolve: é aquilo a que chamamos a “regra de ouro da reciprocidade”: 2. “Não faças aos outros o que não queres que eles te façam” ou de uma forma mais positiva, “Age para com os outros como gostarias que agissem para contigo!”
Esta regra de ouro existe desde o tempo de Confúcio, o grande sábio chinês, quinhentos anos antes da nossa era. E é comum a todas as religiões. Foi também retomada por Emmanuel Kant, e por outros filósofos sem nenhuma ligação com a religião. Poderia, portanto, servir de base a uma concepção ética em que todos os humanos, crentes ou não, se poderia encontrar.
Estes dois princípios englobam directrizes muito concretas, que se referem a quatro domínios essenciais da coabitação entre os homens e que se encontram, também, na maior parte das religiões. A Declaração de Chicago formula-os como compromissos pessoais: – O compromisso em favor de uma cultura da não violência e do respeito pela vida, baseado no mandamento “Não matarás” ou, mais positivamente: Respeita a vida! – O compromisso em favor de uma cultura da solidariedade e de uma ordem económica justa; “Não furtarás” ou: Age com correcção e honestidade! – O compromisso em favor de uma cultura de tolerância e de uma vida segundo a verdade, “Não mentirás” ou: Fala e actua de boa-fé! – O compromisso em favor de uma cultura da igualdade dos direitos e da parceria entre os homens e as mulheres, “Não terás relações sexuais ilícitas” ou, Respeitem-se e amem-se uns aos outros!
O pensamento da ética planetária quer-se uma contribuição para a promoção da paz na sociedade e no mundo, particularmente para uma melhor compreensão entre as próprias religiões. No entanto, não se limita às religiões. Alimenta-se também, da ética humanista sem base religiosa. Ela convida à aliança entre as pessoas, crentes ou não, que se unem em busca da paz. A ética planetária demonstra que os valores fundamentais, as normas e as práticas que já existem são comuns às diversas religiões: é uma ética global, não uma ética específica.
Cabe a cada cultura e a cada religião encontrar o meio de aplicar concretamente estes princípios aos seus campos de acção e à vida quotidiana.
A Fundação ética Planetária de Tübingen, presidida por Hans Küng, consagra-se à realização e à promoção da busca da investigação, da formação e à realização de encontros interculturais e inter-religiosos no quadro do Projecto Ético Planetário11. Isso supõe um trabalho pedagógico junto da base da sociedade, isto é, na escola, em cursos de formação contínua, nos media e junto da grande público, assim como em discussões com os decisores nos domínios económico e político.
O conceito de ética planetária é presentemente reconhecido como um dos elementos do diálogo intercultural no seio das Nações Unidas: em 2001, Ano Internacional do Diálogo entre as Civilizações, Kofi Annan, o secretário geral, formou um grupo de viste especialistas de grande prestígio e de todos os horizontes (dos quais Hans Küng) que redigiu uma declaração para a Organização das Nações Unidas12. Os autores pleiteavam em favor de um novo paradigma, de uma nova maneira de encarar as relações internacionais, baseada no diálogo e não na confrontação. Para atingir esse objectivo, é necessário que a diversidade e a diferença deixem de ser vistas, nestes tempos de mundialização, como ameaças, mas antes como oportunidades de enriquecimento no plano pessoal. Isso aplica-se, muito particularmente à diversidade de religiões e de culturas. As ideias do Projecto Ética Planetária têm um lugar importante nesta relação para as Nações Unidas, justamente graças à colaboração de Hans Küng e da Fundação Ética Planetária. Numa resolução oficial, a Assembleia Geral das Nações Unidas sublinhou que o diálogo entre as culturas era um excelente meio de desenvolver normas éticas comuns, o que vai, claramente, no sentido de uma ética planetária.
No Projecto Ética Planetária, o papel das religiões como “bombeiros da paz” consiste essencialmente em suscitar uma mudança na consciência dos indivíduos e estimular a sua vontade de trabalhar para a paz. A Declaração para uma Ética Planetária de Chicago, em 1993, refere-se a isso na seguinte passagem: “É ilusório querer tornar este planeta melhor sem mudar à partida a consciência dos indivíduos.” Se o potencial de paz das religiões deve ter desde logo peso num mundo em que a violência se manifesta, é necessário que os membros de todas as religiões e todos os que estão dispostos a dialogar tomem a decisão de se reunir e de trabalhar em conjunto. Os fanáticos não devem ser os únicos a ocupar o primeiro plano na cena religiosa!
* Conselheiro especial da Fundação Ética Planetária e vice-presidente de “Religiões para a Paz (RfP)/Europa”, Tübingen, Alemanha.
Notas: 1. NTD: ou “Colors of violence”, não traduzido em português 2. Sudhir Kakar, Die Gewalt der Frommen. Zur Psychologie religiöser und et nischer Konflikte, Beck, Munique, 1997, p. 297. 3. Johan Galtung, “Cultural Violence” in, Journal of Peace Research, vol. 27, nº 3, 1990, p.291-305, cit. p. 291. 4. Johan Galtung. “Religious Hard and soft” in Cross Currents, vol. 47, nº 4 Nova Iorque, Inverno 1997-98. 5. Ver Amin Maalouf, Las Identités merutrières, Grasset, Paris, 1998. 6. Pierre Claverie, “Humanité Pluriel, in Le Monde, 4-5 de Agosto de 1996, pág. 10. http://www.ada.asso.dz/Histoire/Figures/Claverie/humanite.htm 7. Markuz Weingardt, Religion Match Freiden, Kohlhammer, Estugarda, 2007, Religião poder e paz (título traduzido do sitio da Fundação Ética Planetária www.weltethos.org). 8. Günther Gebhardt, Zum Frieden bewegen. Friedenserziehung in religiösen Friedensbewegungen, EB-Verlag, Hamburgo, 1994. 9. Hans Küng, Projekt Weltethos, Piper Munique, 1990. Versão francesa: Project d’éthique planétaire. La paix mondial par la paix entre les religions, L Seuil, Paris, 1991. 10. Hans Küng, Dokumentation zum Weltethos, Piper, Munique, 2002, p. 15-96. 11. Endereço da Fundação alemã Weltethos (Fundação Ética Planetária): Waldhäuser Strasse 23, D-72076, Tübingen. Sítio Internete www.weltethos.org. 12. Crossing the Divide. Dialogue among Civilizations, Seton Hall University/ EUA, 2001, (Em alemão: Brücken in die Zukunft. Ein Manifest für den Dialog der Kulturen. Eine Initiative von Kofi Annan. S. Fischer, Francfort-sur-Main, 2001).