feminismos e emancipação caderno sesunila n o02 foz do iguaçu dezembro de 2019 ISSN 2675-5564
Imagem da capa Artista Rosana Paulino Proteção extrema contra a dor e o sofrimento grafite e aquarela sobre papel, 2011
caderno sesunila
Publicação semestral da Seção Sindical do ANDES Sindicato Nacional Docente na UNILA ISSN 2675-5564
SESUNILA Gestão 2018-2020 Andréia Moassab presidenta Clécio Mendes vice-presidente Senilde Guanaes secretária Patrícia Mechi secretária-adjunta Gilcélia Cordeiro tesoureira Juliane Larsen tesoureira-adjunta Colaboraram nessa edição Andréia Moassab, Dafni Marchioro, Élen Schneider, Elena Schuck, Francieli Rebelatto, Joice Berth, Qelli Rocha e Renata Peixoto
Projeto gráfico e diagramação Maicon Rugeri
Organização Andréia Moassab
Curadoria de arte Maicon Rugeri e Andréia Moassab
SESUNILA - Seção Sindical do ANDES/SN na UNILA
Avenida José Maria de Brito, n° 1707, Anexo Alfa Coworking, Jardim das Nações, Foz do Iguaçu/PR, CEP: 85.864-320 e-mail: sesunila@gmail.com / telefone: (45) 99833-1074 Todo o material escrito pode ser reproduzido para atividades sem fins lucrativos, mediante citação da fonte.
editorial Este
caderno especial da SESUNILA é um registro do minicurso “Feminismos e emancipação: a luta das mulheres em perspectiva”, organizado pela seção sindical para marcar o mês internacional de luta das mulheres. A atividade foi proposta com o intuito de promover discussões sobre os desafios à emancipação das mulheres do Sul Global no cenário político contemporâneo. Durante quatro encontros foram promovidas atividades de reflexão acerca do histórico de lutas sindicais das mulheres; do patriarcado capitalista na América Latina, do feminismo negro, marxismo e subalternidade; e dos desafios contemporâneos dos feminismos. Além das docentes da SESUNILA, Elena Schuck e Elen Schneider, pudemos contar com duas convidadas externas ao sindicato, Joice Berth, arquiteta e feminista negra, atualmente assessora na Câmara Municipal de São Paulo, e Bia Varanis, graduanda do curso de História da UNILA e idealizadora do projeto “As mina da história”. Os encontros contaram com ampla participação da comunidade acadêmica, tendo mais de 140 presenças registradas. Vale registrar que a luta feminista faz parte da gênese da SESUNILA, que tem tido mulheres feministas à frente da sua gestão, as quais compreendem que a luta laboral é indiscernível da luta contra o patriarcado e antirracista, uma vez que a exploração do trabalho incide com mais contundência sobre as mulheres, as pessoas negras e indígenas e, especialmente, sobre as mulheres negras. Foi nesse contexto, inclusive, que em setembro de 2017 a
SESUNILA lançou em Foz do Iguaçu a cartilha do ANDES “Contra todas as formas de assédio, em defesa dos direitos das mulheres, das/os indígenas, das/os negras/os e das/os LGBT”, com a presença de uma das organizadoras, a professora Adriana Dalagassa, da coordenação do GTPCEGDS - Grupo de Trabalho de Políticas de Classe, questões Étnicorraciais, Gênero e Diversidade Sexual. Ainda naquele ano a seção sindical fez uma opção pouco usual de marcar, no âmbito das comemorações dos 100 anos da Revolução Russa a participação das mulheres no processo revolucionário por meio do evento “A revolução russa e as mulheres”. Igualmente relevante tem sido a nossa participação ativa na organização da Marcha do Dia Internacional de Luta das Mulheres em Foz do Iguaçu, que teve uma edição histórica em 2019, envolvendo as três cidades da fronteira trinacional. No universo simbólico, a SESUNILA tem incentivado a divulgação de trabalho de mulheres em diversas expressões artíticas, como foi o ciclo de cinema “lute como uma menina” ou muitos dos posteres de nossas atividades que se inspiram na obra de mulheres artistas, sobretudo latinoamericanas como Ana Mendieta (Cuba), Anna Bella Geiger (Brasil), Lygia Clark (Brasil), Lygia Pape (Brasil), Margarita Flick (México), Nele Azevedo (Brasil), Olga Blinder (Paraguai), Rosana Paulino (Brasil) e Sandra Eleta (Panamá) ou ainda da russa Valentina Kolagina e da francesa Louise Bourgeois. Para esse segundo número do Caderno SESUNILA, além das colegas que ministraram o curso convidamos a professora Qelli Rocha, professora da UFMT, integrante da direção nacional do ANDES/SN, uma das responsáveis pela resolução aprovada no 38o Congresso do ANDES, realizado em janeiro de 2019,
que garante a paridade de gênero na formação da direção do sindicato nacional, uma importante vitória da luta feminista no sindicato docente. Também colaborou a arquiteta e escritora Joice Berth que propõe um debate sobre as dinâmicas das subopressões. Foram convidadas ainda as docentes Andréia Moassab e Francieli Rebelatto, atual presidenta e ex-presidenta da SESUNILA para comporem o dossier com uma versão reduzida do artigo que publicaram na revista Universidade e Sociedade n.64, no qual fizeram uma reflexão sobre a trajetória dessa luta na seção sindical e demonstrando que ter mulheres nas instâncias decisórias faz de fato diferença para o avanço das pautas feministas. O texto de Dafni Marchioro foi republicado do Boletim SESUNILA n.07, por registrar um momento histórico significativo para as mulheres no país e em Foz do Iguaçu reunidas no movimento #elenão, que levou pras ruas uma das maiores marchas já realizadas na fronteira, contra a eleição do então candidato misógino, machista e racista à presidência da República, Jair Bolsonaro. Renata Peixoto conta a sua formação como feminista e reivindica a necessária implantação da Secretaria Equidade de Gênero e Diversidade na UNILA. Ainda, Francieli Rebelatto relata a experiência, por opção política, de trabalhar quase exclusivamente com mulheres num set de filmagem cinematográfica. Portanto, com vistas a registrar mais um avanço no acúmulo da luta das mulheres na SESUNILA, os 08 textos que compõem o caderno trazem questões fundamentais da história da luta das mulheres contra o patriarcado capitalista sem perder de vista o contexto local e a atual conjuntura nacional, com os seguintes temas:
08 de Março: a luta das mulheres em perspectiva, de Elena Schuck; Patriarcado-racista-capitalista na América Latina, de Élen Cristiane Schneider; A importância das mulheres nos sindicatos a partir da experiência da SESUNILA, de Andréia Moassab e Francieli Rebelatto; O patriarcado e os limites para a luta democrática no meio acadêmico: um relato pessoal por Renata Peixoto; A Revolução das Mulheres, de Dafni Marchioro; A paridade de gênero na construção contra-hegemônica socialista, de Qelli Rocha; As dinâmicas das subopressões, de Joice Berth e Câmera na mão e ideias na cabeça: por mais mulheres contando histórias no cinema, de Francieli Rebelatto. Ao final do volume estão os links para materiais do ANDES e da SESUNILA sobre o tema. Convidamos a todos/as docentes, homens e mulheres, a se apropriarem do debate. Afinal, cabe a nós docentes e, em específico, os e as docentes da UNILA, na luta organizada, avançarmos na compreensão de como o machismo
e misoginia incidem sobre as condições laborais, no acesso a direitos e nas relações de trabalho locais, de modo a vislumbrar as estratégias para combatê-lo, em defesa da categoria docente na UNILA e no contexto nacional. O dossier é acompanhado de uma curadoria de trabalhos relacionados ao tema, todos realizados por artistas latinoamericanas que têm debatido em suas obras questões pertinentes às condições das mulheres e de enfrentamento ao patriarcado, como é o caso de Ana Mendieta (Cuba), Anna Maria Maiolino (Brasil), Leonilda Gonzalez (Uruguai), Lygia Clark (Brasil); María Evelia Marmolejo
Lavandera, 1961. Artista Olga Blinder.
(Colombia), Maria Luisa Bemberg (Argentina), Sandra Eleta (Panamá) e do coletivo feminista bolivano Mujeres Creando. Ainda constam no dossier importantes artistas que trabalham na intersecção do combate ao machismo e ao racismo como é o caso da boliviana Carmen Angola, da peruana Victoria Santa Cruz e das brasileiras Maria Auxiliadora e Rosana Paulino.
Sem tĂtulo (Glass on Body. Imprints-face), 1972. Artista Ana Mendieta.
sumário 08 de Março: a luta das mulheres em perspectiva por Elena Schuck Patriarcado-racista-capitalista na América Latina por Élen Cristiane Schneider
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A importância das mulheres nos sindicatos a partir da experiência da SESUNILA por Andréia Moassab e Francieli Rebelatto
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O patriarcado e os limites para a luta democrática no meio acadêmico: um relato pessoal por Renata Peixoto
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A Revolução das Mulheres por Dafni Marchioro A paridade de gênero na construção contra-hegemônica socialista por Qelli Rocha As dinâmicas das subopressões por Joice Berth Câmera na mão e ideias na cabeça: por mais mulheres contando histórias no cinema por Francieli Rebelatto Para saber mais sobre a lutas das mulheres no andes e na sesunila
48 50 66 74
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08 DE MARÇO: A LUTA DAS MULHERES EM PERSPECTIVA Elena Schuck - SESUNILA
Doutora em Ciência Política. Foi docente do ILAESP/UNILA (2017-19). Coordenou o mini-curso “Feminismos e Emancipação: as lutas das mulheres em perspectiva” organizado pela SESUNILA em 2019.
o 8 de março, data internacional da mulher, foi a razão pela
qual em março deste ano, nós professoras da SESUNILA, propusemos um minicurso aberto à comunidade sobre as origens do movimento feminista no mundo, sobre a especificidade desta pauta política e reflexiva (pois feminismo implica ação política, mas também reflexão teórica) e sobre os muitos desafios atuais que vislumbramos para a emancipação das mulheres latino-americanas enquanto sujeitas políticas. Apesar daqueles e daquelas que têm maior familiaridade com movimentos sociais e estudantis estarem atentos às armadilhas de comercialização da data, é sempre necessário fazer uma leitura crítica das diversas manifestações publicitárias e que pulsam no mês da mulher: promoções de serviços estéticos, anúncios comerciais da indústria da moda, ou ainda manifestações espontâneas das pessoas nas ruas com “parabéns pelo seu dia” ou “feliz dia da mulher para você”. Antes de mais nada, deixo claro que sou feminista, não sou 10
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contra serviços estéticos, contra o consumo de produtos da moda, tampouco contra a cordialidade pública. A leitura crítica que proponho diz respeito à frequente imbecilização da ideia de mulher nesta data. É como se as mulheres fossem seres ainda incapazes de refletir sobre significados históricos para além do consumo imediato de serviços e produtos. Ao retirar os signos de luta contra opressão da data, a publicidade, com grande poder sobre o inconsciente coletivo, reduz uma data política a mais uma data festiva, e pior, reduz a mulher a estereótipos opressores e cruéis: mulheres cuja feminilidade está sempre associada ao grau de enquadramento aos padrões de beleza e comportamentais, devem ser magras, sorridentes e silenciosas, e quase que por consequência, terem o instinto reprodutivo-heterossexual da maternidade como sua principal meta de vida. O que acredito ser necessário é o resgate do caráter político da data, a qual simboliza a luta por igualdade social entre homens e mulheres. Suas origens são marcadas por fortes movimentos de reivindicação política e trabalhista, com a organização de greves e passeatas, que no início do século XX eram ilegais e, portanto, passíveis de perseguição e violência policial. A história que circunda a definição do 8 de março tem versões estadunidenses e russas, e remonta à transição entre os séculos XIX e XX, período no qual as lutas sindicais por igualdade entre os sexos e os movimentos sufragistas eclodiam no mundo. Os Estados Unidos, desde o início do século XIX, foram marcados por um forte movimento de industrialização, onde o trabalho fabril seria a oportunidade para imigrantes 11
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vindos/as da Europa. As condições de trabalho de então eram bastante precárias, com jornadas de até 14 horas, em semanas de seis dias inteiros e frequentemente incluindo as manhãs de domingo. Os salários eram muito baixos, justificados pelo grande fluxo migratório ao país, acompanhados de condições laborais precárias e insalubres. É nesse contexto que têm início as reivindicações por melhores condições de trabalho, as quais contavam com o contato prévio de trabalhadoras/es com movimentos sindicais e ideologias marxistas e anarquistas na Europa. Naquele tempo era comum cobrir os relógios para que os trabalhadores e trabalhadoras não pudessem saber há quanto tempo estavam trabalhando, e de mesmo modo comum era trancafiar as portas das fábricas para que nenhuma distração prejudicasse a produção das operárias. Devido a tais circunstâncias, em 1911, um incêndio tomou conta de uma grande fábrica têxtil em Nova York, a Triangle Shirtwaist Company, deixando 146 vítimas, dentre as quais 125 meninas e mulheres entre 13 e 23 anos de origem judaica e italiana. A tragédia que assolou a cidade suscitou a necessidade de se criar uma data para lembrar as mulheres trabalhadoras. Em 8 de março 1917 trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve, tendo como demanda questões trabalhistas e do sistema político, e pediram apoio 12
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aos metalúrgicos. Para Trotski, este seria primeiro momento da Revolução de Outubro. Para além de tais preocupações, temas relativos ao corpo, à sexualidade, à reprodução humana, relação afetiva entre homens e mulheres, e aborto também ocupavam pautas de debates das mulheres organizadas. Estes últimos, no entanto, só foram retomados 40 anos mais tarde pelo movimento feminista. Subjacente aos grandes movimentos sindicais e políticos do início do século XX, emergia também uma nova consciência do papel da mulher como trabalhadora e cidadã. Clara Zetkin e Alexandra Kollontai, atuantes na Alemanha e Rússia, militaram através da causa socialista e dedicaram suas vidas ao que posteriormente se tornou o movimento feminista. Na ocasião do II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagen em 1910, ambas propuseram a criação de uma data internacional das mulheres. Já nos EUA, destacaram-se Clara Lemlich, cuja atuação sindical instigou
Tierra Purpúrea, 1973 Artista Leonilda González.
uma das mais longas greves no país, e Emma Goldman, ferrenha crítica das concepções de Estado e matrimônio, assim como uma grande referência para o pensamento anarquista. O Brasil, em sintonia com os demais movimentos políticos da Europa e EUA, inaugurava suas reivindicações sufragistas com a liderança de Bertha Lutz, a qual criou a Fundação para o Progresso Feminino em 1919. No mesmo período, mulheres 13
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trabalhadoras também manifestavam suas inquietudes, denunciando abusos e violências. A União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas denunciavam em seu manifesto de 1917 a situação precária das mulheres nas fábricas. Apesar dos ecos do movimento sufragista brasileiro serem muito mais audíveis às elites políticas do que as demandas trabalhadoras, o direito ao sufrágio feminino foi conquistado apenas no início da Era Vargas, em 1932, e confirmado pela Constituição de 1934. Tal direito ainda era bastante restritivo, sendo concedido apenas a mulheres alfabetizadas. Vale lembrar que o sufrágio universal no Brasil foi somente incluído na Constituição de 1988. A partir da década de 1960, ocorre o fortalecimento do movimento feminista na Europa, nos EUA, e também na América Latina. Em nosso continente, em virtude dos golpes militares instaurados, a principal bandeira do feminismo era o combate à ditadura e luta pela redemocratização dos Estados. Na década de 1960, o 8 de março foi sendo constantemente escolhido como o dia comemorativo da mulher e se consagrou nas décadas seguintes. A data foi institucionalizada pela ONU em 1975, na ocasião da criação da década internacional da mulher. Embora exitosos em parte de seus propósitos, sabemos que os desafios de nosso tempo requerem constante vigilância e combate. Apesar de as mulheres terem obtido igualdade formal, com igualdade salarial no serviço público, direito ao sufrágio e à representação, o panorama da luta feminista é enorme: combate às desigualdades salariais, ao trabalho 14
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informal, não regulamentado e escravo, à dupla jornada, aos assédios e violências, às mulheres imigrantes, ao racismo, às lgbtfobias, assim como à baixíssima representação política. Estes desafios, assim como os inúmeros outros não citados, são decorrentes de um longo processo de opressões sistêmicas que impedem o entendimento da mulher enquanto ser humano e sujeita de direitos. As políticas emancipatórias, capazes de combater opressões sistêmicas, conferem cidadania às mulheres e outras minorias políticas, através de três eixos: reconhecimento, a redistribuição e a representação. Pensando na universidade pública, podemos entender as ações afirmativas como políticas emancipatórias. Há nessa política o reconhecimento de que existem grupos que ainda têm dificuldade em acessar a universidade, há a redistribuição de curto prazo (auxílios estudantis) e longo prazo (qualificação profissional), bem como a representação de grupos sociais que antes não se faziam presentes no ambiente universitário. Por certo, os desafios que as ações afirmativas trazem se multiplicam, pois ao mesmo tempo que emancipam, também revelam muitas outras opressões, de gênero, de raça, que antes eram invisibilizadas. Nesse sentido, surgem uma série de grupos estudantis preocupados com o assédio sexual na universidade, com o racismo e a discriminação de minorias, que podem resultar inclusive em políticas universitárias. Estejamos atentas, sejamos vigilantes, nós professoras/es sindicalizadas/os, para que consigamos identificar e combater as opressões patriarcais, racistas e capitalistas, começando pela universidade, mas indo muito além dela. 15
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Patriarcadoracista-capitalista na América Latina Élen Cristiane Schneider - SESUNILA
Doutora em sociologia. Docente do ILAESP. Ministrou a aula “O patriarcado capitalista na América Latina” no mini-curso “Feminismos e Emancipação: as lutas das mulheres em perspectiva” organizado pela SESUNILA em 2019.
El colonialismo produce una combinación particular de la jerarquía varón-mujer, con la jerarquía racial étnica dando como resultado la existencia de una compleja tipología racializada de hombres y mujeres. Esta fusión entre colonialismo y patriarcado es una matriz estructuradora de todas las relaciones sociales sin que ninguna quede a salvo. — Maria Galindo
Pensar as relações sociais patriarcais, racistas, capitalistas e
coloniais, durante o mini-curso “Feminismos e Emancipação”, promovido pela SESUNILA, contribuiu para refletirmos que a definição de emancipação é inseparável da luta concreta por ela. Emancipação não pode ser simplesmente uma crença, mas sim um estado de luta por transformações profundas nas relações sociais. Emancipar-se não é uma realização possível no capitalismo, pois os meios de produção não serão das trabalhadoras, mesmo que tenham condições menos 16
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exploradas de trabalho. Será menos possível emancipar-se se consideramos o patriarcado, o racismo e as marcas coloniais despóticas de terra e de vida comunitária. Nessa conjuntura, os corpos das mulheres, principalmente das mulheres originárias, mulheres negras, mulheres racializadas e mulheres trans, são apropriados - de forma gratuita ou mal remunerada - para a manutenção da divisão social do trabalho, das hierarquias sexuais e raciais. Enquanto o trabalho sexual e o trabalho doméstico não forem valorizados nas reflexões críticas e no ciclo do capital, nem o horizonte de “conquistadoras” poderá se abrir completamente às mulheres, já que terão que cumprir múltipla jornada, ou delegar a outras mulheres a tarefa de cuidar, satisfazer e limpar, a fim de poderem estar no espaço público. Embora muitas mulheres, após 1970, tenham sido socializadas com as ideias de que: era importante entrar no mercado de trabalho em posições de gestão, destaque e sucesso; de que seria essencial representar sua diferença ou reparar as desigualdades estando em espaços de poder; de que poderiam escolher serem mães ou não serem, etc, todas essas são formas individuais de realização. São passos importantes, mas insuficientes para uma transformação radical, já que muitas mulheres compulsoriamente ainda serão mães e trabalharão de forma superexplorada, para que outras as representem ou obtenham suas conquistas, seguindo o modelo patriarcal de busca do poder. Além disso, em cenários de crise, as mulheres estão sendo novamente convocadas, quase que sem exceção, a cuidar, harmonizar e organizar, mesmo que não sejam mães nem trabalhadoras. 17
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Além disso, a liberdade do corpo das mulheres ainda é despolitizada e não é incluída nas questões centrais e estruturantes das sociedades. Os temas são relegados à esfera privada, pessoal, particular: do amor, das paixões e emoções. Percebemos esse descaso em pelo menos cinco fatores: 1 - As mulheres ainda não poderem decidir sobre a interrupção de uma gravidez na maioria dos países da América Latina, a despeito de muita luta; e em alguns países, como El Salvador, elas são condenadas à prisão, mesmo em caso de aborto espontâneo; 2 – Não poderem eleger se terão e com quem terão relações sexuais, mesmo que algumas escolhas sejam feitas, há possibilidades de: (a) um estupro dentro de um relacionamento estável – 70% dos estupros são cometidos dentro de casa; (b) assédios, violações e estupros quando menos se espera, em espaços públicos e meios de transporte; (c) estar limitada na própria concepção do ritual sexual, no qual as mulheres são incentivadas a satisfazer os desejos de outrem, em especial em relações heterossexuais. Em resumo: o corpo das mulheres ainda é um território de conquista, bem como nas terras coloniais-patriarcais, conforme as ideias de Silvia Federici. 3 – A reprodução e o trabalho de cuidado são compulsórios para as mulheres. Mesmo as mulheres nãomães serão convocadas, nas suas profissões, para exercer papéis e aptidões “ditas femininas”. Caso decidam serem mães, correrão o risco de sofrerem violência gestacional, obstétrica e no puerpério. Havendo, assim, uma submissão das mulheres e seus corpos ao trabalho de reprodução gratuito e uma divisão sexual do trabalho e dos tempos. 18
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– O trabalho doméstico, feito com cansaço do corpo e dispêndio emocional, que é feito por mais de 90% da população de mulheres, reproduz gratuitamente a força do trabalho, a principal mercadoria do capitalismo, pois é a única capaz de gerar outras mercadorias [futuros trabalhadores e trabalhadoras]. 5 – Ainda e talvez não por fim: Não poder viver, como demonstram os dados de feminicídio atuais e os históricos, através do fenômeno da caça às bruxas na Europa, conforme demonstra Silvia Federici e o do estupro colonial, na América Latina, debatido por Sueli Carneiro. Resistir, portanto, significa lembrar-se do passado, historicizando a opressão. Emancipar-nos passará por reconhecer a luta das ancestrais contra as opressões, não somente por presença e participação, mas na sua luta contra o extermínio constante, de seus corpos, territórios e comunidades, já que o extermínio de mulheres foi fundamental para a derrota do campesinato na Europa e condição patriarcalracista que possibilitou a colonização e a acumulação primitiva do capital, nas palavras de Silvia Federici. Nesse sentido, a emancipação tem um significante coletivo de resistência! Pela comunidade e pela força que nós mulheres tivemos e temos para a existência de estruturas coletivas de sociedade! Ela é um horizonte no sentido do tempo circular e da “memória larga”, termo de Silvia Riveira Cusicanqui. Horizonte de enfrentamento das relações sociais patriarcais-racistas-capitalistas-coloniais. 19
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Encontramos a existência patriarcal há pelo menos seis mil anos, datando a invenção da agricultura, segundo as pesquisas de Heleieth Saffioti. Patriarcado é “um território ou jurisdição governado por um patriarca”, na definição de Christine Delphy. A escravização dos povos dominados faz parte dessa forma de conquista de terras, através das guerras. A estratégia se transfere para as colônias, forjando uma simbiose histórica entre patriarcados e o capitalismo, que aprofundou e criou outras formas de escravização, como a baseada na subalternização racial. Ao ignorar essas relações sociais hierarquizadas da divisão social, racial e sexual do trabalho, as opressões das mulheres, como numa armadilha, passam a ser vistas de forma secundária na luta de classes e das lutas trabalhistas. Sem nenhum respeito histórico às milhares de mulheres assassinadas em crimes hediondos. As pautas das mulheres são atribuídas a distorções do ideológico e do cultural, ignorando a dimensão material das relações. As mulheres são responsáveis pela reprodução gratuita da principal mercadoria do capital! Entre tantas outras tarefas! Esse patriarcado foi se transformado no decorrer da história e carregando com ele outros sistemas, modos de relações sociais e econômicas e foi criando pelo menos três mitos atuais: 1 - De que haveria uma separação entre o pessoal e o político, reprodutivo e produtivo, privado e público, entretanto, toda relação no ambiente doméstico é também política e as relações entre homens e mulheres e gêneros são políticas; 20
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2 - De que há um ideal de imparcialidade do público cívico e a busca pela integridade dos indivíduos, um mito que propaga outro, o da democracia racial na América Latina, desmascarado por Lélia Gonzalez. Essa sustentação moral das estruturas sociais e políticas, a de que as pessoas podem ter pontos de vistas imparciais e impessoais, nega que a democracia nasce de um estupro das mulheres originárias e africanas, conforme relembra Sueli Carneiro. Imparcialidade e integridade não foram valores respeitados para as mulheres, desde a colonização de America Latina; 3 - O de que há um Contrato Social, no qual as pessoas fariam acordos e concessões para aceder a liberdade civil. Para Heleieth Saffioti a liberdade civil deriva justamente de um direito patriarcal, e, portanto, é por ele limitada. As mulheres ainda vivenciam massivamente um “Estado Proxeneta” (cafetão), nos termos de Maria Galindo, que deseja mantê-las em um estado de natureza, de trabalho sexual, trabalho doméstico e de cuidado. Uma das maiores falácias é a da igualdade entre homens e mulheres, da libertação de ambos pela via do trabalho assalariado. As mulheres precisam cumprir pelos menos quatro jornadas de trabalho no marco das relações históricas em que vivemos: 1) a jornada de trabalho doméstico, de limpeza e cuidado de crianças, adultos capazes e idosos; 2) a jornada produtiva; 3) a jornada militante – para quem se engaja na mudança dessas relações sociais; 4) a jornada cotidiana de pedagogia – para as mudanças micro, nas relações com esposos, companheiros, amigos e filhos homens. 21
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Assim, a luta de classes se forja na norma da heterossexualidade, pois se funda na herança da propriedade privada patriarcal e na submissão das mulheres à reprodução desses herdeiros e da força de trabalho. Portanto, não há luta primária e secundária. É preciso ter memória histórica entendendo essas relações como um nó, uma simbiose, ou, como nas palavras de Julieta Paredes e Adriana Gusmán: um entronque patriarcal entre o patriarcado europeu e o patriarcado ancestral, o racismo e o capitalismo. É necessário fazer a genealogia das guerras e da colonização, da acumulação primitiva do capital, e encontrar aí as relações históricas despóticas que afetaram as mulheres e a humanidade. Mas, a emancipação é um horizonte! Pois a despatriarcalização também é um horizonte que se constrói na prática diária de lutas! Acessando a memória larga dos povos ancestrais, constantemente. Segundo Maria Galindo, a despatriarcalização é a ousadia de conceber o patriarcado como uma estrutura suscetível de ser desmontada. Os sindicatos podem ser espaços que gestem a despatriarcalização já que representam lutas pelo comum. Mas devem contribuir para politizar as existências e as 22
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pautas de sobrevivência e resistência das mulheres em suas diversidades de ser; (re)politizando as relações de reprodução/produção. Os caminhos de despatriarcalização exigirão, ainda, enfrentamento ao Estado, em suas estruturas proxenetas. Como fala Maria Galindo, desde latino-america:
“Despatriarcalizar [...] es uma palabra que también nos sirve para designar um estado de ánimo: La impaciência. No nos hemos resignado, conformado o adaptado”. Intervenção urbana, s/d. Coletivo Mujeres Creando.
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A importância das mulheres nos sindicatos a partir da experiência da SESUNILA1 Andréia Moassab - SESUNILA Francieli Rebelatto - SESUNILA
Doutora em Comunicação e Semiótica e doutoranda em Cinema, docentes do ILATTI e do ILAACH, respectivamente.
Tenho todos contra mim. Os homens, porque peço emancipação da mulher; os proprietários, porque reclamo pelos assalariados. — Flora Tristán (1848)
O 38º Congresso Nacional do ANDES/SN, realizado em
Belém do Pará em janeiro de 2019, representa um marco na luta pela igualdade de gênero no contexto sindical nacional. Apesar da paridade na conformação da direção nacional tenha sido aprovada por imensa maioria, foi possível ainda sentir aqui e ali, reminiscências de argumentos contra a paridade
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Versão reduzida do texto publicado na revista Universidade e Sociedade n.64.
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que têm mais de cem anos, como “este não é o momento”; “a paridade vai dificultar formar chapas” ou “na minha época não foi preciso medidas como essa”, proferidos tanto por homens quanto por mulheres - no congresso e há mais de cem anos… A luta das mulheres nas organizações políticas não é recente e, infelizmente, em plenos 2019 ainda precisamos resgatar feitos para demonstrar que, na verdade, estamos há mais de cem anos atrasados/as no avanço das políticas para garantir o protagonismo das mulheres no movimento sindical: este é o momento, a hora é agora! Em 1891, Clara Zetkin fundou a revista A Igualdade, formada por mulheres, que teve vigência até 1917. Foram 26 anos de publicação buscando, especialmente, pautar a luta das mulheres no seio da Internacional Socialista. Não por acaso, no Congresso da Internacional Socialista, em 1907, a mesma Clara Zetkin, condenou alguns socialistas que colocavam no centro de suas reivindicações o voto masculino e relegavam para um segundo momento a luta pelo voto feminino. No ano seguinte, a questão do voto permanece uma das dificuldades centrais das mulheres europeias, conforme relatou Anna Kalmànovitch, no seu texto de 1908, “O movimento feminista e a relação dos partidos com ele”, no qual aponta com clareza como os partidos – de todos os espectros ideológicos – diferem pouco no que tange ao cerceamento das condições para a inserção política das mulheres. Por este motivo, Kalmànovitch anseia “convencer as mulheres a não esperar a liberdade dos homens, não importa como eles se nomeiem: liberais, conservadores ou sociais democratas. Enquanto homem tiver oportunidade de oprimir e humilhar, ele o fará”. 25
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A feminista russa demonstra a semelhança dos argumentos dos mais variados vieses políticos, muito semelhantes àqueles por nós testemunhados durante o debate da paridade de gênero para a direção do Sindicato Nacional Docente, mais de 109 anos depois! Ainda como no 38º Congresso do ANDES, Kalmànovitch no início do século passado relata o fato de algumas mulheres, delegadas na Conferência Internacional Social-Democrata, “dominadas pela forte influência de seus companheiros homens, [estarem] prontas, caso necessário, a sacrificar seus interesses em favor do raciocínio tático”, ou, em Belém, concordando, lamentavelmente, “que não era o momento” para a paridade de gênero na direção nacional do ANDES/SN. Com dificuldades semelhantes, Dorothy Montefiore, socialista anglo-australiana, afirma numa carta para Kalmànovitch, sem muita esperança, que “o futuro do socialismoseráosocialismodoshomense,consequentemente, terá um valor muito pouco diferente para a humanidade do que a ordem social vigente”. No mesmo sentido, Madeleine Pelletier, psiquiatra e ativista francesa responde à Kalmànovitch que “ao ingressar no partido, a mulher – se não estiver acompanhada do marido – encontra hostilidade”. No Brasil, o trabalho incansável de revolucionárias brasileiras, de mesma forma, não tem sobrevivido ao ethos patriarcal do registro histórico: pouco ou quase nada se sabe da participação das mulheres nas principais lutas e transformações sociais no país, não obstante sua participação ativa em greves e motins de trabalhadores/as desde sempre. 26
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Este foi o caso da anarquista Espertirina Martins, em 1917, contra a Brigada Militar no episódio conhecido como “Batalha da Várzea”, em Porto Alegre/RS. No PCB, somente em 1954 haveria uma pequena mudança na composição das direções partidárias, o que acabou se refletindo no IV Congresso do partido, ao final daquele ano, quando, pela primeira vez, as mulheres teriam alguma participação e seriam eleitas para o Comitê Central. Décadas mais tarde, em 1981, o Movimento de Mulheres de São Paulo é criado, agregando mulheres em torno de diversas pautas com vistas a sanar o silenciamento usual dos partidos e demais movimentos sociais. No documentário em comemoração aos trinta anos do movimento, diversos relatos explicam que sua criação foi devido à dificuldade das mulheres conseguirem avançar com as suas pautas e serem ouvidas nos sindicatos. Criméia de Almeida e Amelinha Teles relatam que “Os partidos de esquerda não aceitavam o feminismo… eles achavam que a gente tava dividindo a força dos trabalhadores. E que a gente fosse apanhando até o socialismo, né?”. Se por um lado há um deliberado esquecimento histórico da luta das mulheres, mesmo no campo progressista - há, também, uma intencionada usurpação de sua capacidade de trabalho. Certo está que o capitalismo se apropria do trabalho reprodutivo feito pelas mulheres. Há milhares de anos nossos corpos são submetidos à reprodução no sistema patriarcal e, com a transição para o patriarcadocapitalista, o trabalho reprodutivo é gratuito, conforme aponta Silvia Federici. O trabalho de manutenção e dos 27
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cuidados dos/as filhos/as configuram a dupla e tripla jornada de trabalho às quais as mulheres são submetidas pelo patriarcado-capitalista. Muitas vezes, parte desse trabalho é externalizado, delegando as funções da casa e filhos/as para
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outras mulheres. Esse cenário leva muitas mulheres a um profundo esgotamento físico e mental, reforçado, no caso das mulheres-militantes, pelo desdém e relutância sistemática dos homens nos espaços da militância, inclusive sindicatos, em compreender o patriarcado-capitalista. A militância se configura, nesse contexto, na quarta jornada, inclusive bastante extenuante já que é necessário se fazer ouvir nos espaços democráticos, desenhados sob os auspícios do patriarcado e, portanto, pouco aptos a formas de comunicação não androcêntricas e, muitas vezes, belicosas e viris. Do ponto de vista feminista, são evidentes os dilemas internos da luta anticapitalista na sua interseccionalidade antipatriarcal e antirracista. Na medida em que o ANDES/SN é um sindicato que se constrói pela base, alertamos que à incorporação das docentes nos quadros da direção nacional deve acompanhar uma maior presença de mulheres em todas as suas instâncias deliberativas, especialmente nas direções das seções sindicais. Acreditamos que a experiência positiva da SESUNILA com sua direção sindical composta majoritariamente por mulheres feministas tem trazido consideráveis aportes para esse debate.
Sem título, 1973. Artista Maria Auxiliadora.
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LUTA CONCRETA DAS MULHERES NA SESUNILA Fundada em 2015, a SESUNILA tem origem a partir da transição da antiga ADUNILA - Associação Docente da UNILA para a Seção Sindical do ANDES na UNILA e não será coincidência que a associação já tinha em sua origem um grande protagonismo de mulheres, o que segue como prática até hoje na conformação da direção que tem como princípio tácito, a paridade. todas as gestões, tanto da ADUNILA quanto a gestão de implantação da SESUNILA e as duas direções eleitas foram presididas por mulheres. Não será, portanto, um acaso que desde a sua implantação, a SESUNILA teve importante participação na organização da Marcha das Mulheres em Foz do Iguaçu, sempre acompanhado por debates significativos em parceria com demais entidades sindicais e movimentos populares da cidade e região. Ainda em 2016, a gestão provisória da seção sindical promoveu a roda de conversa “Dia de Mulher, dia de luta”, com a participação de docentes, discentes e TAEs, com o intuito de uma produção horizontal coletiva sobre os enfrentamentos de gênero na universidade, o que mais adiante terá sido fundamental para culminar na aprovação da Política de Gênero na Universidade. No ano seguinte, na concentração da marcha das mulheres, a roda de conversa organizada pela SESUNILA teve como tema “Mulheres e Trabalho”. Em outras palavras, desde o início da criação da seção sindical ficou evidente que a questão da luta 30
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das mulheres seria um enfrentamento central para os sindicalizados e sindicalizadas. O período após o Golpe de 2016, mas antes da guinada ultra-conservadora no contexto das eleições nacionais do ano passado -, foram particularmente significativos para a luta em defesa das mulheres na região. A SESUNILA teve que vir a público para defender docentes nas suas atividades acadêmicas relacionadas à luta das mulheres, como foi o caso das ameaças sofridas pelas docentes organizadoras da atividade “Corpo, Arte e Política” realizada no mesmo momento em que avançava o projeto da “Escola sem Partido” na cidade, também combatido pela SESUNILA e diversos movimentos sindicais e sociais locais. O combate à “Escola sem Partido” está intrinsecamente relacionado ao debate feminista, um dos “inimigos” centrais escolhidos, junto com a educação - pela direita conservadora em ascensão desde o golpe - cujo episódio já continha evidentes traços de uma misoginia exacerbada. Ainda em 2017, pudemos lançar em Foz do Iguaçu a cartilha “Contra todas as formas de assédio, em defesa dos direitos das mulheres, das/os indígenas, das/os negras/os, e das/os LGBT” do ANDES/SN. Mais do que o lançamento, a presença dos quadros do Grupo de Trabalho de Políticas de Classe, questões Étnicorraciais, Gênero e Diversidade Sexual foi fundamental numa reunião previamente marcada com a reitoria pro-tempore para conseguirmos aprovar a licença maternidade de uma professora mãe adotante, cuja negativa institucional e tratativas de solução arrastada durante meses foi profundamente estressante para a mãe, com 31
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graves impactos na sua saúde, e ao mesmo tempo, uma luta significativa para o nosso jovem movimento sindical. Sem adentrar as minúcias do caso aqui, merece destaque a extrema misoginia institucional nos documentos que acompanhavam o processo. Na peça jurídica do procurador da universidade notava-se claramente a biologização da maternidade e o profundo desconhecimento sobre a complexidade que envolve a educação e cuidados de crianças, inclusive amparados em termos legais pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Com base no senso comum pautado pelo patriarcado, a instituição negou-se a reconhecer o direito ao tempo equivalente de licença maternidade às mães biológicas e adotantes, a despeito de jurisprudência já consolidada nessa direção. É nesse contexto de centralidade das lutas feministas que no marco das comemorações do centenário da Revolução Russa, a opção da SESUNILA, pouco usual, foi pautar a participação das mulheres no processo revolucionário por meio do evento “A revolução russa e as mulheres”, realizado no final daquele ano, com exposições, exibição de filmes e debate sobre mulheres, arte e resistência. No ano seguinte, em 2018, Foz do Iguaçu realizou uma marcha histórica no dia de luta internacional das mulheres, com quase três mil mulheres nas ruas do centro da cidade e presença marcante da SESUNILA. Seis meses depois estivemos à frente da marcha #elenão, igualmente bemsucedida, destacando os principais motivos pelos quais as mulheres não deveriam votar no candidato misógino e racista à presidência da república. Nos dias seguintes à marcha que 32
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aconteceu no país inteiro, de modo infeliz e equivocado, não foram poucos os textos publicados - escritos por homens - a culpabilizar as mulheres pela subida do candidato Jair Bolsonaro nas pesquisas eleitorais. De Ciro Gomes a Fabio Porchat, passando por acadêmicos e militantes, os argumentos giravam em torno do quanto a marcha #elenao teria sido responsável por uma maior visibilidade do candidato. As mulheres da SESUNILA se manifestaram fortemente contra este tipo de circulação de análise de conjuntura junto à nossa base, culminando no texto “A Revolução das Mulheres”, escrito por Dafni Marchioro, republicado nesse dossier. Finalmente, em 2019, a conjuntura política aponta para a dilaceração ainda mais profunda dos direitos das mulheres no Brasil, desde a alteração das pastas ministeriais e ampla nomeação de setores da igreja evangélica às perseguições mais acirradas à educação e docentes, sobretudo mulheres e trabalhos feministas. Enquanto encerravamos a marcha do dia internacional de luta das mulheres, uma docente estava sendo ameaçada de morte pelo seu ex-companheiro, levando a a SESUNILA à delegacia da mulher e ao CRAM. Em todo o país se constata um aumento assustador na taxa de feminicídio, violência e abuso contra as mulheres nos primeiros meses do ano, do qual os sindicatos não podem se furtar, já que violência contra a mulher tem relação direta com a defesa dos direitos trabalhistas, em vários aspectos. Nesse cenário de maior exposição e risco à vida e perda de direitos das mulheres, a SESUNILA entende ser primordial seguir construindo espaços de formação no sindicato em diálogo com demais frentes dentro e fora da universidade. Por 33
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este motivo promovemos o curso “Feminismos e Emancipação: a luta das mulheres em perspectiva”, registrado nesse Caderno SESUNILA n.02. No mesmo período, produzimos um folheto contra a reforma da previdência a partir exclusivamente do seu impacto para as mulheres trabalhadoras da educação, em parceria com as companheiras dos demais sindicatos da educação da região. Nesse sentido, ao longo de nossa curta trajetória temos preferido destacar a produção científica das mulheres nos diversos eventos e atividades do sindicato, mesmo quando o tema central não é gênero. Ademais, tem sido nossa preocupação fortalecer outros espaços das lutas feministas na cidade de Foz do Iguaçu e região, como é o caso da participação da seção sindical no Observatório de Gênero e Diversidade na América Latina e Caribe, da UNILA e no coletivo Mulheres sem Fronteira responsável pela organização de diversas entidades, coletivos e movimentos para a realização da Marcha das Mulheres em 2019, ou quando apoiamos atividades como “CRAM em Cores” que buscava dar maior visibilidade ao Centro Referência em Atendimento à Mulher em Situação de Violência em Foz do Iguaçu e a luta feminista estudantil, por meio do apoio aos coletivos organizados da universidade. Em simultâneo ao histórico de debate e atividades descritas acima e pautadas pela indissociabilidade da luta material do universo simbólico e cultural, as gestões da SESUNILA têm proposto novas formas de articulação entre arte e política com a luta das mulheres e a luta sindical, conforme se verifica, sobretudo, pela nossa comunicação visual sindical. São diversos os desafios postos para responder 34
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às questões de representação das mulheres seja no âmbito do fazer - das mulheres artistas usualmente invisibilizadas seja nos modos de representar o corpo feminino em diferentes expressões da linguagem, que muitas vezes, atravessados pelo patriarcado aprofundam a objetificação e desumanização das mulheres na sociedade. Não é possível desvincular a arte da luta de classes, na medida em que a classe trabalhadora além de gênero e cor, têm sensibilidades, as quais estão permanentemente em disputa. É necessário, portanto, um aprofundamento dos debates sobre a comunicação e arte sindical, com vistas a construir um caminho em favor da arte militante, aquela que denuncia e sensibiliza, agrega e organiza a classe trabalhadora, como é o caso da indissociabilidade entre arte e política característica do movimento Zapatista no México. Por este motivo, além do debate permanentemente realizado, as mulheres estão também presentes na comunicação visual da SESUNILA por meio de seus trabalhos que ilustram diversos cartazes e campanhas sindicais. Tratase de uma escolha política de priorizar o uso de trabalhos de artistas mulheres, preferencialmente latino-americanas. Ou seja, há uma opção clara da direção sindical pela valorização da produção artística e intelectual das mulheres que colabora, nas mais diversas frentes, para uma maior compreensão transversal e interseccional da importância do debate de gênero na luta sindical. Que este possa ser um desafio para o ANDES-SN, isto é, trazer para a centralidade da luta as questões estético-políticas, vinculando-as à luta de classes, antipatriarcal e antirracista. 35
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A NOSSA LUTA É TODO DIA... Procuramos mostrar, ao longo do texto, a partir das práticas cotidianas da luta sindical na SESUNILA, a importância da representação de mulheres nos sindicatos para o enfrentamento às opressões de gênero - o que acreditamos que também trará resultados expressivos para a luta das mulheres trabalhadoras a partir das próximas eleições para a direção nacional do ANDES/SN de composição paritária. Contudo, é fundamental fazer a ressalva de que a representatividade é um critério quantitativo e não qualitativo, o que significa que não necessariamente as mulheres eleitas terão qualquer ligação com o movimento ou com a causa feminista, contradição que vem sendo tratada no feminismo há muitas décadas, justamente por conta das aprovações de cotas partidárias para a participação de mulheres na política no mundo todo. Anne Phillips, importante referência na teoria política feminista, já demonstrou que é necessária uma relação entre idéias e presenças para alcançar “um sistema justo de representação, não numa oposição falsa entre uma e outra”. Em outras palavras, não é apenas o fato da SESUNILA ter sido historicamente presidida por mulheres que possibilitou o acúmulo significativo no debate de gênero e contra o patriarcado na nossa seção sindical, mas na relação justaposta entre os corpos e as ideias: são mulheres feministas na presidência, nos demais cargos da direção sindical e, inclusive, fortemente presentes na base da SESUNILA. 36
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Sem título, s/d. Fotógrafa Carmen Angola.
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O patriarcado e os limites para a luta democrática no meio acadêmico: um relato pessoal Renata Peixoto - SESUNILA
Cientista Política docente do ILAESP. Membra do CEEGED-UNILA.
Se a gente se torna mulher, também se torna feminista. Foi
assim, cerca de três anos atrás que fiz meu movimento como mulher, pesquisadora, educadora, cientista política e agora feminista. Sempre fui simpatizante das lutas de mulheres e das lutas feministas, me orgulhava das colegas e dos colegas que no doutorado pesquisavam o tema. Achava necessário e se me perguntassem se era feminista, achava a resposta óbvia, como ser mulher e ser contrária as lutas destes movimentos?
Este texto é dedicado a todas as mulheres e a comunidade LGBTQ da UNILA vítimas de violência e em especial à Martina Piazza, estudante uruguaia vítima de feminicídio em 2014. 1
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Durante minha vida inteira e nos momentos em que o acadêmico e o pessoal se misturaram ao machismo, ao sexismo e a misoginia eu não percebia. Acho que queria negar para mim mesma que no meio científico e acadêmico tivéssemos o império do machismo. Como no século XXl, homens com curso universitário, ávidos leitores, profissionais reconhecidos por suas capacidades intelectuais, pessoas gentis, educadas, muitas vezes de esquerda, pudessem ser contaminados pelo machismo tóxico muitas vezes atribuído aos homens da classe trabalhadora que realizam serviços braçais, são iletrados, assalariados e, muitas vezes, pelas circunstâncias mais adversas de uma vida subalterna e marginalizada são dependentes do álcool? É como voltar em um túnel do tempo e ver reflexões sobre as classes perigosas e os atuais debates sobre o tal cidadão de bem. De alguma maneira, a impressão era a de que o machismo fosse coisa do passado e só as gerações mais velhas ou pessoas pouco instruídas ainda cometessem alguns deslizes, por assim dizer. Avaliações repletas de ignorância, ingenuidade e, até preconceito. Durante vários anos, o machismo nas práticas cotidianas da universidade foi minimizado por mim e a violência institucional era uma simples desconhecida, por que eu (e muitas) não sabia como identificar ou reconhecer que ela sequer existisse. Tudo sempre esteve ali, gritando na minha cara. Desde os colegas homens que tinham prioridade em bolsas, grupos de pesquisa e mais espaço de fala nas aulas de professores homens que liam homens. Até aquele ar de superioridade blasé de amigos ou do namorado que comparativamente 39
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Por um fio, 1974. Artista Anna Maria Maiolino.
a nós mulheres se colocavam em um pedestal de pretensa genialidade. Eu só ouvi um elogio de um namorado, colega de universidade, no sentido intelectual, depois de cinco anos de namoro e no dia em que ele terminou comigo depois de uma traição por que “são coisas que os homens fazem, mas digo que você é brilhante”. Você passa anos achando que tem algo de errado com você ou que tem o dedo podre, pura falta de sorte. Nem sei se isso se compara ao sentimento corriqueiro que nós mulheres temos, muito característica da síndrome da impostora, aquela de que não somos boas o suficiente e um dia vão descobrir isso. Por isso, você cala, consente e se sente um lixo a cada reunião de orientação já que seu orientador nunca reconhece seus esforços, deprecia seu trabalho e não demonstra a menor empatia. Mesmo que uma banca inteira te abrace e elogie muito o seu trabalho, depois da sua defesa você não receberá nenhum e-mail de parabéns no dia seguinte. O sofrimento mental era uma constante durante anos a fio de faculdade, pós-graduação e depois isto se alastrou para os anos de docência. Cantadas, assédio, convites, tiradas de 40
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casquinha, relacionamentos abusivos e paqueras cafajestes (bem à moda antiga e no sentido clássico do termo), são uma constante no universo feminino universitário (em qualquer universidade). Não importa se você é docente, técnica ou discente. Além disso, precisamos falar que as mulheres são as maiores vitimizadas por assédio moral por parte de colegas e superiores. Isto também pode ser percebido quando as mulheres realizam grande parte do trabalho de formiguinha, o burocrático desvalorizado, enquanto os colegas homens perdem os prazos, se esquecem, são desorganizados, estão muito atarefados em serem simplesmente brilhantes e não cooperam ou colaboram. Infelizmente este é o cotidiano das universidades. Mas foi a partir de uma vivência muito dolorida com um relacionamento abusivo que me levou a me afastar do meu trabalho por depressão que passei a me atentar mais para o ciclo da violência, os aspectos em relacionamentos tóxicos e outras questões. Foi revelador e mudou minha vida por completo. Foi difícil também este aprendizado e ainda é, por que não é fácil perceber algumas coisas e ver que a 41
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luta feminista é uma luta pelo simples direito de fazer parte da própria humanidade (oi, eu sou gente como você!!!), já que como segundo sexo, existimos apenas para servir, agradar, concordar, enaltecer os homens e sermos medíocres para que se sintam superiores. Em 2018, dei um importante passo e me tornei membra do CEEGED-UNILA, o comitê executivo de equidade de gênero e diversidade que reflete a conquista dos movimentos feministas dentro da universidade pela implementação de uma política de equidade de gênero que foi aprovada em 2017. Ainda temos muitas limitações por sermos um comitê e não uma secretaria. É importante ressaltar que apesar da luta conjunta de vários coletivos feministas estudantis, junto com a SESUNILA e SINDITEST, a aprovação da política de gênero e diversidade só foi aprovada no CONSUN com a retirada da secretaria. É uma necessidade cada vez mais presente de seguirmos nesta luta com o sindicato, com as companheiras docentes, com o CEEGED, com as TAEs e as estudantes para a efetiva implementação da secretaria que responda pela política aprovada. Um ambiente universitário justo, democrático e equitativo só vai ser possível a partir dos debates, da conscientização e da democratização com um viés interseccional de gênero. Fora desta realidade, a academia e o meio científico continuam sendo o império da misoginia ególatra do patriarcado. Radical? Radical são as bruxas de ontem e hoje queimando na fogueira porque queriam ser livres e por sede de conhecimento.
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Diálogo das mãos, 1966. Artista Lygia Clark (com Hélio Oiticica).
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A REVOLUÇÃO DAS MULHERES Dafni Marchioro - SESUNILA
Possui graduação, mestrado e doutorado em Física. É docente do ILACVN.
Desde a Primavera das Mulheres contra Cunha em 2015,
quando milhares de mulheres foram às ruas contra Eduardo Cunha, temos observado a capacidade de mobilização das mulheres no país e na América Latina, como foi o recente caso da votação para legalização do aborto na vizinha Argentina. Nas eleições nacionais de 2018 a única força realmente contundente a mandar seu recado contra a eleição de Bolsonaro foram as marchas #elenão realizadas em setembro e outubro, que levaram centenas de milhares de mulheres às ruas do país, das quais a SESUNILA teve forte participação em Foz do Iguaçu. 44
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No entanto, não foram poucos os homens a se manifestarem contra a marcha do dia 29 de setembro, julgando-a equivocadamente como um “erro”. De Ciro Gomes a Fábio Porchat, passando por acadêmicos e militantes, o que se viu foi uma ação lamentável do patriarcado vocalizada numa sequência de “chororô de esquerdo-macho”, como se diz nas redes sociais. É deprimente para todas as lutadoras que tiveram a coragem de se erguer mesmo em face à violência que sofrem - o Brasil é o 5o país em feminicídio no mundo - e virão a sofrer mais ao se deparar com este tipo de análise. Os esquerdomachos, ao invés de avaliarem a conjuntura em toda a sua complexidade, preferiram a facilidade preguiçosa de apontar o dedo para o primeiro bode expiatório que justificasse o resultado das eleições. Essa esquerda ignora ainda que a democracia que conhecemos é uma construção histórica masculina, branca e heterossexual. É fundamental que o campo progressista entenda de uma vez por todas que não há como chegar ao socialismo apenas pela via da luta de classes: a luta deve ser em todos os campos, ou seja, de classe, antirracista e antipatriarcal. Não há como nos entendermos iguais sem fazer a discussão conjunta. Mais do que isso, a esquerda tem perdido cada vez mais a adesão das mulheres por insistir nessa cegueira, por praticar o machismo estrutural e por adotar um modelo de organização coletiva com base na opressão de gênero, sexualidade e raça. As “conclusões” a que esquerdo-machos chegaram sobre o #elenão, culpabilizando mais uma vez as mulheres, decorre de uma arrogância da esquerda brasileira (e mundial, possivelmente) em relação às lutas de gênero, raça e sexualidade. 45
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No livro “Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista”, Robert Gellately mostra como o povo alemão respondeu à ascensão e manutenção do nazismo. Por meio de documentos históricos o autor revela que as pessoas estavam cientes e eram coniventes ao que acontecia nos campos de concentração. Importa trazer o livro e a Alemanha nazista não só pelo fascismo, mas pelos paralelos com nosso momento atual. Hitler inicia sua escalada de ódio a partir do que ele chamava de traidores do Tratado de Versalhes, creditado, em boa medida, à República de Weimar. A princípio, portanto, não é a ameaça comunista o foco discursivo, mas o fim da Primeira Guerra. A vergonha da perda da guerra e a rendição na surdina é sentida por boa parte do povo alemão, um dos motivos pelo qual Hitler ascende paulatinamente nos anos 1920, como líder político. O discurso nazista vai ganhando novas cores quando associa a República de Weimar e do estado socialista aos judeus e à teoria de Marx. A partir daí, Hitler caracteriza “o judeu” como um ser degenerado, que colaborou para a ruína e a vergonha da Alemanha, encontrando eco numa sociedade impaciente frente à instabilidade da República de Weimar (eleições constantes para o Reichstag e sua dissolução inúmeras vezes durante curto período de tempo), e a incapacidade do governo de reconstruir a Alemanha no pós-guerra, não obstante ter sido muito mais por culpa das cláusulas impostas pelo Tratado de Versalhes. Nesse sentido, crise econômica e instabilidade política foram centrais para a simpatia ao discurso nazifascista. O nosso paralelo aqui é claro: crise econômica e a Lava Jato. 46
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Série La servidumbre Carmen, 1976. Fotógrafa Sandra Eleta.
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O discurso nazifascista de Hitler, a princípio moderadamente voltado aos traidores de Versalhes, se transforma e abarca o racismo e o antissemitismo à medida em que percebe a adesão da população. Os primeiros campos de concentração abrigavam comunistas, e somente alguns anos depois, um pouco antes da Segunda Guerra, é que começa a receber judeus e ciganos/as. Vale lembrar que o discurso antissemita não era condenável naquela época, aliás comum na Europa. E aqui o nosso paralelo vem a ser o discurso contra homossexuais, negros/as e mulheres, não como minorias, mas como pessoas degeneradas que não sabem que lugar devem ocupar na sociedade. É necessário o resgate dos valores morais: o lugar da mulher como procriadora e submissa ao homem, os LGBTs “dentro do armário”, as pessoas negras na subserviência histórica. E por que são estes os “degenerados” e “degeneradas” da história? Durante os governos do PT, houve o sequestro da luta de classes na cooptação dos sindicatos e dos movimentos sociais. Infelizmente, o PT tinha um papel fundamental na articulação da esquerda enquanto formador de base em massa, tendo deixado de fazê-lo durante seus governos porque tal não coadunava com sua postura neoliberal. No entanto, há que se reconhecer que o governo petista privilegiou as lutas feministas e antirracistas, o que junto com a maior acessibilidade das tecnologias em rede, potencializou o protagonismo dessas lutas no Brasil, as quaissocuparam espaços importantes, construídos e demandados historicamente por estes movimentos sociais. 48
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Desse modo, as lutas antipatriarcais e antirracistas se intensificaram na última década e, inclusive, em alguns aspectos, se radicalizaram, causando desconforto numa sociedade que não estava preparada para isso, por ser machista, racista e gozar de privilégios históricos. Com menos espaço para expressar o ódio estrutural àquilo que não é homem, heterossexual e branco, uma parcela da população foi se envenenando – o cenário perfeito para um candidato homofóbico, machista e racista. Somado à crise do capitalismo e à corrupção, o emudecimento em relação ao machismo, o racismo e a LGBTfobia causou esta fúria incontrolável, que agora foi liberada através da campanha de Bolsonaro. O ódio aos degenerados e degeneradas enfatiza a polarização bem/ mal, nós/eles, aliado/inimigo. Uma luta animalesca pela sobrevivência; na verdade, para manutenção de privilégios. É apenas com um inimigo a combater, um inimigo identificado com a deterioração moral, que Bolsonaro consegue se sobressair, já que o discurso anticorrupção estava presente, afinal, na maioria dos candidatos e candidatas. Se é verdade que chegamos a esse resultado eleitoral pela falta de conscientização da luta de classes, também é fato que própria esquerda se retraiu e aproveitou os tempos de bonança, se omitindo de realizar seu papel. Colocar mais este fardo na conta das mulheres é desonestidade. Estamos perdendo companheiras por causa da cegueira de esquerdo-machos. A revolução será feminista, antirracista e socialista, ou não será.
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AS DINÂMICAS DAS SUBOPRESSÕES1 Joice Berth
Arquiteta e escritora. Ministrou a aula “Subalternidade e luta de classes: uma perspectiva a partir do feminismo negro” no mini-curso “Feminismos e Emancipação: as lutas das mulheres em perspectiva” organizado pela SESUNILA em 2019.
Falo de milhões de homens em quem deliberadamente inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a prostração, o desespero, o servilismo. — Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo
O
argumento que sempre salta nas discussões sobre machismo e racismo é: Negros são racistas entre eles mesmos. Mulheres são mais machistas que os homens. Estamos em um período da história onde a impaciência em se debruçar com mais critério sobre os assuntos mais complexos e se aprofundar antes de emitir opiniões ou formar argumentos, acaba por gerar conflitos e entendimentos duvidosos e incompletos, que impossibilitam a coerência em assuntos onde ela é fundamental e abre as portas para as manipulações lamentáveis que se consolidaram como modus operandi de nossos meios de comunicação.
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Adaptado de publicação anterior no portal Justificando..
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Devemos considerar que essas afirmações, na verdade derivam de percepções que acabam por se apresentar nas nossas (com)vivências cotidianas, embora tenha uma linha de pensamento técnico e teórico que a princípio desmente essas conclusões. Elas definitivamente não estão certas. Mas também estão longe de serem erradas. Oprimidos também oprimem. Mas é inegável que quando uma pessoa diz isso está no mínimo mal intencionada. Um erro não justifica outro, ainda que isso fosse uma verdade absoluta não poderia jamais ser usada como álibi para machistas e racistas. Por definição prática e sucinta, racismo é o conjunto de práticas sociopolíticas e culturais que visam manter a supremacia de uma raça em detrimento de outra. Sendo assim, no sistema racista temos alguma raça que explora e outra que é explorada e uma gama de atitudes e comportamentos que possibilitam essa dinâmica. Tivemos quase quatro séculos de escravização de pessoas negras e um pós-abolição bastante desonesto. Logo, racismo é essencialmente dirigido ao negro (e ao indígena também historicamente explorado e extorquido dentro de seu próprio território de origem). O machismo é em teoria, muito parecido com o racismo só que aplica-se a supremacia no assunto gênero, tendo o homem a garantia de todos os benefícios e segurança que o mundo pode proporcionar em detrimento da mulher. A exploração por motivação de gênero se dá por outros meios, equivalentes, porém diferentes do racismo, mas tão eficazes na alienação e subjugo de indivíduos de outras representações de gênero. 51
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Chamamos de opressão pois, uma vez estabelecidos, esses mecanismos segregam, excluem, limitam, humilham, corrompem, cerceiam a permanência das pessoas que não estão em situação de domínio e não permitem que esses atuem nas decisões e articulações que influem nos rumos de nossa sociedade. Em ambos sistemas de opressão dessa natureza encontramos a possibilidade de estabelecer uma hierarquia social entre pessoas, sendo que no sistema machista ser um homem negro possibilita alguma vantagem com relação a mulher de qualquer etnia, sobretudo quando aliado a ascensão social se elevando a classes mais altas. Por sua vez, no sistema racista, ser uma mulher branca, principalmente de classes mais altas estabelece privilégios que a distanciam de mulheres de outras etnias e na maioria das vezes, do próprio homem negro. Reparem que assim se desenha uma base na pirâmide social, onde encontramos mulheres negras e outros componentes sociais como indígenas, transexuais (homens e mulheres) por exemplo. Um homem negro que corrobora com a condição de preterimento da mulher negra e se une a uma mulher branca está sendo opressor com ambas, pois objetifica a mulher branca tratando como status e rejeita a mulher de sua raça em uma atitude clara de racismo internalizado (auto ódio velado). Ao passo em que uma mulher branca oprime uma mulher negra em diversas situações, envolvendo classe ou não, como no ambiente de trabalho por exemplo mantendo as escolhas focadas na “boa aparência” ou explorando a empregada doméstica ao delegar múltiplas funções independente da remuneração paga. 52
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As duas opressões, racismo e machismo, são estruturantes sociais. São elas que delimitam o lugar social, as oportunidades de ascensão, a valorização de pessoas e traça os caminhos que a sociedade segue e ainda constitui as bases institucionais, sendo observado sem muito esforço os seus mecanismos de atuação nos meios de comunicação, dentro das famílias, no mercado de trabalho, na política, nos hospitais, nas artes, etc. Nesse aspecto, todos os grupos oprimidos estão em desvantagem. Mas, como essas estruturas estão naturalizadas e perpetuadas pela atuação brilhante dos mecanismos de manipulação, muitas pessoas que pertencem a esses grupos acabam por internalizar os conceitos negativos acerca de si mesmo. De mesmo modo em que muitas vezes a classe trabalhadora apoia medidas e políticas que a prejudica. É como se desenvolvessem uma espécie de repulsa a tudo que possa lembrar quem realmente são. E agem da mesma maneira que os grupos sociais dominantes agem com pessoas que passam pelas mesmas situações de opressão que ela. Elas se acostumam com o lugar de inferioridade e seu subconsciente passa a ser conduzido por uma distorção sobre quem ela é e que papel e lugar social lhe foi imposto. E a maneira mais espontânea de se expressar isso é a rejeição a tudo que remete a imagem negativa que a pessoa tem si mesmo e a maneira (quase sempre) agressiva com que se opõe a tudo que possa lembrar de sua identificação com aquele grupo e com aquelas vivencias. Com o tempo, acabam por esquecer completamente seu lugar social e quanto mais almejam se distanciar de suas próprias realidades, mas agressivos e descaracterizados ficam. 53
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As subopressões não são estruturantes sociais, uma vez que seus atores não possuem poder político que os beneficiem plenamente. Entretanto, elas são um facilitador e servem a manutenção das opressões estruturais ao se abster das posturas de combate aos efeitos nocivos e reforçarem os sistemas machistas e racistas fornecendo um poderoso escudo: a culpabilização do oprimido. Há poucos anos tivemos um texto publicado na Folha de São Paulo, na coluna “Agora que são elas”, um bom exemplo disso, pelos escritos equivocados de uma atriz global de grande projeção. Ela afirmou categoricamente que o machismo não a incomoda, chamou feministas de vitimistas e elogiou o comportamento opressor de algumas figuras masculinas que fizeram parte de sua vida, definindo as respectivas atitudes machistas como charme (“charmosos até nos preconceitos”). O mesmo se observa na postura alienada de mulheres brancas, feministas ou não, que fecham os olhos para os problemas enfrentados por mulheres não brancas e/ou de classe social inferior à sua, como as patroas que defendem o trabalho doméstico ignorando a impossibilidade de suas empregadas de ter acesso as escolhas que ela teve. Evidentemente, nenhuma mulher é obrigada a abraçar a causa feminista. Mas também não tem porque demonstrar uma oposição tão incisiva a quem se posiciona como feminista. Qual seria o motivo da repulsa cega e sem o menor embasamento lógico que justifique essa atitude? Por que mulheres não feministas em geral se sentem tão incomodadas com mulheres que lutam por assuntos que atingem a todas? O mesmo se dá quando encontramos uma pessoa negra, 54
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que assim como um dos nossos grandes talentos do futebol, se declara como “moreninho” por ser um negro de pele mais clara e demonstra, como muitos outros homens negros, uma aversão a relacionamentos com mulheres de sua própria raça, deixando nítido uma repulsa por si mesmo e por tudo que o lembre de sua negritude. Mulheres como a atriz que escreveu esses equívocos (e que se desculpou depois) e pessoas negras de pele mais clara (e até mesmo muitos de pele escura como Pelé, por exemplo) nos levam a estabelecer uma divisão importante resultante da internalização do machismo e racismo que podemos denominar de sub-opressões. Elas derivam de opressões históricas e estruturantes da nossa formação social, como uma espécie de efeito colateral, porque estão internalizadas, ou seja, a mulher crê que o machismo não existe ou não a prejudica ao passo que o negro acha que racismo é algo que não existe ou que não lhe atinge e ao mesmo tempo, reproduz essas opressões com seus semelhantes. Isso ocorre principalmente quando essas pessoas estão em vantagem econômica e/ou destaque social, não apresentando as mesmas vivências e as mesmas relações cotidianas que outras pessoas que também se encaixam nos grupos oprimidos. E não para na simples negação dos problemas a que estão sujeitos, vai além, porque os transforma em reprodutores dessas opressões e de seus mecanismos de exclusão e segregação social, facilitadas pela posição socioeconômica mais confortável. Ou seja, quanto mais alta a classe social a que ascendem, maior a execução desses mecanismos para com os seus correspondentes na pirâmide social. 55
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Mas essa vantagem em algum momento não será suficiente para livrá-los dos inconvenientes de pertencer ao grupo dos oprimidos. Uma mulher rica, ainda é subjugada pela supremacia masculina. Uma grande atriz tem uma significância profissional claramente inferior a um grande ator. Na cerimônia de entrega do Oscar, em 2015, atrizes denunciaram publicamente o quanto a indústria hollywoodiana é machista, limitando a atuação e a remuneração de mulheres. Nunca houve uma mulher cineasta ou atriz com o mesmo prestígio e destaque que cineastas e atores homens. Até nas entrevistas, as perguntas dirigidas as atrizes são fúteis e demonstram um desinteresse e até desrespeito pelo trabalho que elas produzem. Isso é machismo. Esse mesmo brilhante jogador “moreninho” teve seu pai barrado em um hotel de luxo, sem explicação satisfatória, segundo foi noticiado em alguns jornais escritos. Negros conscientes sabem os motivos. Muitos outros dos nossos jogadores e outros negros de destaque, apesar da fama e prestígio que alcançaram em suas admiráveis carreiras, são alvos constantes de ofensas e xingamentos de cunho racista, dentro e fora de seu ambiente de trabalho, não importa quão ricos sejam. Mas essas pessoas, embora vítimas dos efeitos da estrutura que oprime por raça e gênero (mas não só), não oprimem quando reproduzem com seus funcionários as mesmas atitudes, como no caso da atriz que tem uma doméstica “mulata” que ela carinhosamente chama de mãe social, ou quando esses jogadores “moreninhos” humilham e segregam mulheres de sua própria raça em detrimento 56
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de brancas preferencialmente loiras? Claro que sim. Cabe salientar que quanto maior o auto ódio internalizado da sua raça e/ou gênero, mais veemente será a reprodução do comportamento opressor. Essas opressões acontecem com frequência. Mas elas não estruturam a sociedade, porque vem de pessoas que sendo parte do grupo oprimido não tem poder político para ter isenção das manifestações racistas ou machistas que reproduzem. Por isso são sub, porque estão abaixo, sem poder estruturante, embora sirvam de braço forte fundamental que ampara e consolida essas estruturas. Em geral, as classes sociais são um bom parâmetro para definir o potencial de sub-opressão, pois, quanto maior o poder socioeconômico, mais estarão preservados de muitos dos problemas causados pelo machismo e/ou racismo. Mulheres brancas ricas, estão muito distantes da realidade de mulheres negras ou pobres, portanto, o assédio é muito diferente e o acesso a informação aliado ao poder de compra do conhecimento irá preservá-la, na maioria das vezes, dos perigos de andar pelas ruas com roupas curtas, da violência doméstica em determinado nível, da permanência dentro de relacionamentos abusivos, possibilitam tratamento para o emocional abalado pela exposição a alguma violência psicológica, entre outros inúmeros privilégios. Mas no seu nicho social o machismo estará presente também. Ser rica e famosa não livrou Luana Piovani de ser agredida pelo seu ex-namorado. Daniela Perez foi vítima de feminicídio mesmo sendo filha de influente personalidade global e ela própria uma das estrelas em ascensão da emissora.
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A classe social e poder financeiro atenuam as manifestações de racismo e machismo em um determinado meio de convivência, porém não as anula totalmente. Daí, muitas vezes feministas acham que devem sororidade com mulheres que reproduzem comportamento e ideias machistas, ignorando o fato de que podem estar diante de sub opressoras, que em seu reduto social causam estragos legítimos, apoiando abusos e cerceando a autonomia de outras mulheres, quando muito atuando conscientemente na perpetuação da condição de subalternidade de mulheres de classes sociais inferiores, agindo como verdadeiras sinhás contemporâneas de atuação aparentemente passiva, como o faz Dona Bárbara, a patroa do filme ‘Que horas ela volta’, sem empatia para com a condição de mulher pobre e não branca, alvos certeiros dos efeitos do machismo que atua livremente na camada social a que essas mulheres pertencem. E o que dizer de um certo militante neoliberal do principal partido direitista da política nacional, que desmerece por completo todas as conquistas do Movimento Negro, persegue ativistas negros de outras vertentes políticas e insulta negros cotistas, servindo com frequência ao deboche velado de brancos que o usam de escudo para reafirmar suas opiniões racistas, com a desculpa de que ele seria um negro não vitimista? Causa igualmente repulsa e compaixão, estranhamento e deboche, mas devemos ter o entendimento de que são produtos de um sistema muito bem articulado que necessita de oprimidos cordatos que possam contribuir para naturalização de suas ideias criminosas. 58
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Me gritaron negra, 1978. Poeta Victoria Santa Cruz.
São mentes colonizadas por ideias e ideais racistas e machistas, seriamente comprometidas e demandam muita paciência e tato para que acordem para a realidade que os cercam e enxergam seu lugar de oprimido. E são também, um dos maiores obstáculos para a eficiência das lutas sociais, pois, com frequência servem de álibi para machistas e racistas mal intencionados e que dificilmente irão mudar de postura, atuando firmemente como mantedores das estruturas que também os vitimam, às vezes de forma fatal.
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A PARIDADE DE GÊNERO NA CONSTRUÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA SOCIALISTA Qelli Rocha - ADUFMAT
Assistente social, doutoranda em Política Social. 1ª vice-presidenta do Andes-SN.
indiscutivelmente,
o estudo aprofundado da categoria gênero tem se tornado indispensável não apenas para a compreensão imediata da realidade concreta, como também do conjunto de determinações que incidem sobre a dinâmica de funcionamento da sociedade em que vivemos. No entanto, os estudos sobre gênero datam de um período recente da história, desde o início da década de 1960. Essa categoria possibilita a compreensão das origens de identidade de homens e mulheres e, segundo cientista política Cristina Buarque, há uma a dicotomia existente entre o sexo (relacionado ao corpo biológico) e gênero (relacionado à cultura, às formas de ser), portanto, trazendo elementos importantes para uma discussão atual sobre as manifestações da exploração, expropriação e opressão capitalista sobretudo, sua incidência sobre as mulheres. 60
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Desta forma, pensar os campos de atuação e a ocupação das mulheres e dos homens na sociedade capitalista, é pensar a construção social das identidades destes sujeitos. Além disso, é também evidenciar como nos processos de exploração instaurados pelo modo de produção capitalista, às mulheres foram e ainda hoje são atribuídos papeis reservados à esfera privada, enquanto historicamente aos homens os espaços públicos. Dentro desse sistema que explora a força do trabalho feminino existe “a divisão sexual do trabalho que resulta de um sistema patriarcal/capitalista que por meio da hierarquização entre os sexos, confere às mulheres salários baixos e as submetem aos trabalhos mais precarizados e desvalorizados”, como aponta Mirla Cisne em seu livro “Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social”. Cabe salientar que, não foi a sociedade capitalista que criou o sistema patriarcal, mas fora esta que ao lançar mão sobre aquela simbioticamente articulou os dois sistemas (patriarcal-capitalista) de forma consubstancial, inscrevendo materialmente a primeira divisão do trabalho, que forjou as bases e a gênese para que, como afirmou Engels, o primeiro antagonismo de classe na história coincidisse com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opressão de classe coincidisse com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. Assim, sequestrada em sua condição de “procriadora” a mulher foi rebaixada, reduzida e circunscrita à natureza fisiológica de reprodutora biológica, ao mesmo tempo, tendo nesta condição, dualizada sua identidade, ou seja, ora sendo sacralizada, ora sendo coisificada. A apropriação 61
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capitalista desta condição fisiológica, reduzida ao campo da natureza, impôs a mulher à condição inata de cuidadora, neste sentido, passamos muito tempo sozinhas, responsáveis pelo cuidado com as crianças, mais velhos e incapazes. Refletindo numa sociabilidade ceifada, incompleta e incapacitante, na medida em que outros múltiplos aspectos de nossa vida foram irrestritamente negados, amputados, negligenciados, quando não efetivamente proibidos. Ora, se todas as tarefas por nós assumidas, foram escamoteadas a uma natureza, antinatural, porque totalmente desenvolvida socialmente, a quem serviu e a quem serve nossa amputação? Os donos dos meios de produção- brancosheterossexuais - imperialistas, são eles, pois, quem lucram com o trabalho de cuidado atribuído às mulheres. Marina Machado Gouveia, membra do grupo de trabalho crise e economia mundial do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais – CLASCO, aponta que a subtração dos trabalhos domésticos e relacionados aos cuidados executados por mulheres, contribui para nossa exploração e possibilita os baixos salários de toda a classe trabalhadora. Segundo ela, ao não se contabilizar o dispêndio de tempo destinado aos trabalhos domésticos, o valor pago ao salário em sua modalidade mínima, para recomposição da força de trabalho e reprodução das vidas dos trabalhadores/as, expressa-se num duplo movimento de desvalorização deste trabalho. Primeiro porque não é visto como trabalho, segundo que por assim ser visto, não lhe é atribuído um valor, exemplo evidente é dificuldade ainda hoje de regulamentação no Brasil do trabalho domésticos. 62
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Mas o que a paridade de gênero tem a ver com isto? Tem a ver, que o impacto da simbiose, patriarcado/ capitalismo sobre a vida das mulheres não múltiplos, embora nem todas as mulheres os sintam da mesma forma, o pertencimento à classe social, ao grupo étnico, racial e de orientação sexual não heteronormativa, reproduz essas opressões de formas particulares. Por serem concretas, as relações sociais patriarcais de gênero, raça e sexualidade manifestam as contradições do sistema de exploração que é universal de forma acentuada sobre estes sujeitos sociais, seja na apropriação privada de seus corpos, na objetificação, ou mercantilização de suas vidas. Por estar baseada numa série de valores sociais, morais e políticos, o capitalismo consegue agir sob a consciência dos sujeitos sociais, de modo “autônomo”, fazendo-os crer que suas ideias individuais correspondam à soma das partes, ou seja, que a cidadania advinda das revoluções burguesas, personifica o Homem, na ideia universal do proprietário, homem, branco, heterossexual. Além disto, um dos elementos que identifica de maneira mais evidente o atraso na organização social, político partidária e sindical é a incipiência da consciência de classe do trabalhador e trabalhadora brasileira, em função do Estado autocrático, violento, patriarcal, machista, sexista, racista e misógino, nossa taxa de sindicalização é uma das mais baixas do mundo. Dos 91,4 milhões de pessoas ocupadas em 2017 no Brasil apenas 14,4% eram associadas a algum sindicato. Se analisarmos a sindicalização por grupamentos 63
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da atividade na economia, veremos que os empregados e empregadas na Administração Pública apresentam o maior grau de sindicalização, seguidos pelos trabalhadores e trabalhadoras na agropecuária, os empregados e empregadas nos transportes armazenagem e correios, na indústria em geral e na área de comunicação, atividades financeiras e imobiliárias. Ainda, o menor nível de sindicalização, está entre os trabalhadores e trabalhadoras domésticas, apenas 3,1% domésticos, são sindicalizados/as. Ao contrário do que pontuam os pós-modernos, no Brasil, assim como no mundo, o Trabalho é uma categoria central, neste sentido, não há luta de classe que não perpasse esta contradição. Neste sentido, construir novas relações sociais de gênero, raça e sexualidade, dentro ou a partir do sindicato, é romper com engodo que historicamente construiu justificativas para a inferiorização das mulheres em relação aos homens. É claro que, a paridade de gênero não rompe com um sistema que se fundamenta na desigualdade e iniquidade, mas os sindicatos são importantes espaços de organização e luta das classes trabalhadoras, neles podemos lutar para elevar o nível de organização e consciência das massas, contribuir para o enfrentamento desta conjuntura reacionária, conservadora que ora se manifesta de modo ainda mais acirrado com o governo protofascista. Por serem espaços plurais, politico e ideologicamente, podem dar vazão à construção contra-hegemônica socialista e feminista. 64
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Neste sentido, a conquista da paridade de gênero na diretoria nacional do Andes-SN é significativa, pois demonstra internamente à nossa categoria profissional, como também aos técnicos e discentes das universidades públicas, a necessidade de combater as opressões atreladas, consubstancialmente, às lutas anti-capitalista e antiimperialista.
Perfomance Anónimo 1, 1981. Artista María Evelia Marmolejo.
Assim, o Andes-SN busca, por meio do limite corporativista desta instância sindical corroborar para ampliação e visibilidade da luta das mulheres instituindo, organicamente e qualitativamente, sua participação nas instâncias deliberativas e executivas do nosso sindicato e, portanto, contribuindo significativamente para reconstrução social e cultural dos lugares por nós ocupados. 65
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CâMERA NA MÃO E IDEIAS NA CABEÇA: POR MAIS MULHERES CONTANDO HISTÓRIAS DO CINEMA Fran Rebelatto - SESUNILA
Docente do ILAACH. Sindicalista e cineasta, também militante da Unidade Classista/Fração Andes-SN.
Recentemente, ao finalizar a gravação do primeiro longa-
metragem sobre mulheres trabalhadoras paraguaias e brasileiras da região da fronteira, fui instigada a aprofundar algumas questões em torno da configuração laboral de um set de filmagem na qual historicamente nós mulheres fomos minoria, sobretudo em funções ‘cabeças’, ou seja, funções com maior visibilidade do processo de realização cinematográfica como na direção, roteiro e direção de fotografia. Ao me reconhecer como mulher feminista, sindicalista e realizadora cinematográfica, consciente da exploração das mulheres no mundo capitalista, acredito que me cabe apontar como o trabalho na área de cinema impõe mazelas sobre os corpos das mulheres. É fato que ao ver um filme não se tem ideia do tempo de produção, da quantidade de profissionais envolvidos/as ou dos custos financeiros. Por esse motivo são 66
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quase totalmente desconhecidos do público em geral como se dão os recortes de classe, gênero e raça inerentes ao ofício e como há um cristalizado privilégio do homem branco, de classe média e/ou alta e heterossexual como o rosto principal que ainda perfila, em grande parte, os tapetes vermelhos do cinema. Em 2016, a Agência Nacional de Cinema – ANCINE realizou uma pesquisa com a produção de filmes lançados no Brasil naquele ano. A pesquisa “Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016”1 apontou dados alarmantes sobre a representação de gênero e raça na direção dos 146 filmes analisados. Mais de 75% dos filmes nacionais de 2016 foram dirigidos por homens brancos e 19% por mulheres brancas, a participação de mulheres negras era nula. Mesmo que a ANCINE – hoje seriamente ameaçada pelo novo governo protofascista de Jair Bolsonaro–, tenha empreendido esforços nos últimos anos para mudar estes dados por meio de políticas específicas que ampliassem as possibilidades de novos rostos estarem à frente da cinematografia nacional, sabe-se que ainda em 2019 o quadro não mudou tanto para que nós mulheres pudéssemos estar celebrando a equidade de gênero em detrimento dos mais de cem anos da história do cinema dominada por homens brancos. Pesquisas da ONU Mulheres ainda apontam que “embora as mulheres representem metade da população mundial, menos de um quarto da força de trabalho fictícia no cinema é composta A pesquisa completa pode ser encontrada neste link; https://www.ancine.gov. br/sites/default/files/apresentacoes/Apresentra%C3%A7%C3%A3o%20Diversidade%20FINAL%20EM%2025-01-18%20HOJE.pdf 1
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de mulheres (22,5%). Quando têm empregos, as mulheres normalmente estão ausentes das posições de poder”2. No primeiro set de filmagem de um longa-metragem em que pude participar profissionalmente, em meados dos anos de 2010, me impressionou como a divisão do trabalho por gênero seguia uma lógica muito estrita3. As mulheres estavam relegadas às funções relacionadas ao cuidado ou às possíveis “habilidades femininas” como de organizar espaços. Elas se concentravam basicamente na direção de arte, na produção de figurino, na maquiagem ou na figura da continuísta/assistente de direção em que é sabido que muitos homens diretores preferem ali ter a figura feminina para o resguardo da atenção dos detalhes do filme. Assim é até hoje. Naquela oportunidade, me chamou atenção que na área que mais me interessava dentro do set de filmagem – a direção de fotografia–, a equipe era composta exclusivamente de homens. Num primeiro momento até considerei “compreensível”, ao ver estacionar no set das gravações três caminhões de equipamentos de iluminação. Na ocasião, reproduzindo sem perceber um imaginário construído pelo patriarcado, parecia razoável pensar que para carregar aquela quantidade de maquinaria e de luzes e até mesmo o tripé, a câmera e os kits de lentes,somente a força física masculina daria conta. Com o passar dos anos, no entanto, a partir de novas vivências Mais informações em: http://www.onumulheres.org.br/noticias/industria-cinematografica-global-perpetua-a-discriminacao-das-mulheres-aponta-estudo-da-onu-mulheres-geena-davis-institute-e-fundacao-rockefeller/ 2
Importante destacar também que neste set os/as negros/as correspondiam a menos de 5% da equipe técnica do filme. 3
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profissionais, com a aproximação do meu próprio corpo ao aparato técnico da câmera e, especialmente, consolidando minha perspectiva classista e feminista de mundo, fui conseguindo desconstruir aquela naturalização histórica de que uma equipe da direção da fotografia ou um set de filmagem teria que ser composto majoritariamente de homens brancos. Diante deste quadro na qual a direção de fotografia está comumente associada ao gênero masculino, as trabalhadoras mulheres do setor audiovisual criaram em 2016 o Coletivo de Mulheres Diretoras de Fotografia do Brasil – DAFB, a fim de pensar novas estratégias de formação de mulheres para área, bem como para mapear às profissionais pelo país, no sentido de promover a possibilidade de ampliação da atuação de mulheres no setor. Por conseguinte, nos dois últimos trabalhos em que fiz a direção cinematográfica, assumi o desafio pessoal de reverter esta configuração do set de filmagem, construindo caminhos para que mais mulheres pudessem estar atrás das câmeras, como ‘cabeças de equipe’ – termo comumente usado no cinema para pessoas no lugar de poder. Também tenho buscado criar possibilidades de troca entre profissionais atuantes com professoras e acadêmicas do curso de Cinema e Audiovisual da UNILA, no sentido de vivenciarmos uma configuração laboral em que nós mulheres possamos ser protagonistas do fazer nas mais diferentes áreas do cinema. Tal desafio inclui pensar num modo de produção mais colaborativo e não pautado único e exclusivamente pela hierarquia das funções. Nesta nova configuração de set 69
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Set de filmagem Pasajeras, 2019. Direção Fran Rebelatto.
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de filmagem estávamos todas aprendendo a conviver num espaço de mulheres, a não ter medo e limitações ao tocar nos equipamentos, de nos apropriarmos dos aparatos, das histórias e das narrativas, ao mesmo em que encorajávamos as estudantes a traçar uma trajetória profissional mais pautada pela generosidade e partilha e menos na usual hierarquia do set de filmagem. As reflexões sobre o set são paralelas e complementares às narrativas dos dois últimos trabalhos Fronteira-mulher: um ensaio (2018) exibido pelo Canal Futura e o longa-metragem Pasajeras recentemente filmado com previsão de estreia para 2020. Ambos trazem relatos sobre os universos de trabalho das mulheres na fronteira, uma reflexão sobre os trânsitos, as lutas e todas as inquietações que nos movem como mulheres neste mundo patriarcal e machista, na qual somos parte basilar do sistema de superexploração capitalista. Como vem demonstrando o Coletivo Feminista Ana Montenegro, a classe trabalhadora não é uma massa homogênea e, para entender o mundo do trabalho na sociedade capitalista, há a necessidade de se observar as várias formas de exploração da força de trabalho, uma delas – e uma das mais substanciais para os pilares do lucro e da extração da mais valia – a exploração da força de trabalho feminina4.
Fragmento do texto ‘A mulher e a exploração no mercado de trabalho’ disponível em https://pcb.org.br/portal2/22918/a-mulher-e-a-exploracao-no-mercado-de-trabalho/ 4
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Ao mesmo tempo é fundamental perceber que esse sistema de exploração nos nega o direito de estar equitativamente em lugares que nos permitam contar nossas histórias. Compreendi, nos últimos tempos, a importância de levar ao ‘tapete vermelho’ rostos de mulheres cineastas.
Cineasta Maria Luisa Bemberg
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PARA SABER MAIS SOBRE A LUTA DAS MULHERES NO ANDES E NA SESUNILA debate feminista no canal youtube da SESUNILA Em defesa da paridade na direção do sindicato nacional https://www.youtube.com/watch?v=18qCN6Lnp2U
A importância do feminismo negro para a luta sindical e classista https://www.youtube.com/ watch?v=d687Y1Qj2BQ&t=34s
subalternidade e luta de classes: uma perspectiva a partir do feminismo negro https://www.youtube.com/ watch?v=0JHxwoOyvyU&feature=youtu.be
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marcha do dia internacional de luta das mulheres 2018 https://www.youtube.com/ watch?v=wJN38S5Y60s&t=16s
marcha do dia internacional de luta das mulheres 2019 https://www.youtube.com/watch?v=j6i25KEhk7k
aulas do mini-curso “feminismos e emancipação” subalternidade e luta de classes: perspectivas a partir do feminismo negro por joyce berth https://www.youtube.com/ watch?v=0JHxwoOyvyU&t=331s
a luta das mulheres hoje por Elena De Oliveira Schuck
https://www.youtube.com/watch?v=16C5YnDV8I0
Ativismo gordo por bia varanis https://www.youtube.com/watch?v=nTdE4PUogP0
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Campanha ANDES Aborto: uma questão de saúde pública https://www.youtube.com/watch?v=UaiGQiQ1RRY
É pela vida das mulheres https://www.youtube.com/watch?v=VtsErOb3dmc
Contra o assédio sexual https://www.youtube.com/watch?v=quRFEdgyBpo
Cartilha contra todas as formas de assédio Para acessar, clique na imagem ao lado ou use o link:
http://portal.andes.org.br/imprensa/ documentos/imp-doc-1669293546.pdf
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Revista Universidade e Sociedade n.64: dossier transformações no mundo do trabalho e opressão de gênero Para acessar, clique na imagem ao lado ou use o link:
https://www.andes.org.br/img/midias/ a452f279df0114a269920b82dd61b091_ 1563379753.pdf
Documentário “Narrativas Docentes: Memória e Resistência LGBT” https://www.youtube.com/watch?v=m69O_gMDbCg&t=42s
contatos sesunila Celular e WhatsApp (45) 99833-1074 SESUNILA no Facebook e-mail: sesunila@gmail.com 77