Caderno SESUNILA n.03 - junho/2020

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ECOLOGIA E SOCIEDADE NA AMร RICA LATINA

caderno sesunila n o03

foz do iguaรงu JUNHO de 2020 ISSN 2675-5564


Imagem da capa

Artista Carolina Caycedo El Hambre Como Maestra instalação, 2017

caderno sesunila

Publicação semestral da Seção Sindical do ANDES Sindicato Nacional Docente na UNILA ISSN 2675-5564

SESUNILA Gestão 2018-2020 Andréia Moassab presidenta Clécio Mendes vice-presidente Senilde Guanaes secretária Patrícia Mechi secretária-adjunta Gilcélia Cordeiro tesoureira Juliane Larsen tesoureira-adjunta Colaboraram nessa edição Ana Silvia Fonseca, Andréia Moassab, Céline Veríssimo, Cláudio Ribeiro, Eduardo Forneck, Gabriel Cunha, Jaqueline Durigon, Kathiuça Bertollo, Leo Name, Leandro Neves, Luciana Ribeiro, Maria Lilia Macedo, Rodrigo Nogueira e Senilde Guanaes

Projeto gráfico e diagramação Maicon Rugeri

Organização Andréia Moassab e Céline Veríssimo

Curadoria de arte Maicon Rugeri e Andréia Moassab

SESUNILA - Seção Sindical do ANDES/SN na UNILA

Avenida José Maria de Brito, n° 1707, Anexo Alfa Coworking, Jardim das Nações, Foz do Iguaçu/PR, CEP: 85.864-320 e-mail: sesunila@gmail.com / telefone: (45) 99833-1074 Todo o material escrito pode ser reproduzido para atividades sem fins lucrativos, mediante citação da fonte.


editorial Este

caderno especial da Seção Sindical do ANDES/ SN na UNILA - SESUNILA faz parte da luta da seção sindical em defesa de um debate classista sobre as questões socioambientais, cada vez mais tema na ordem do dia. É, também, um registro do curso de formação “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA em parceria com o SINPREFI - Sindicato dos Professores e Profissionais da Educação da Rede Pública Municipal de Foz do Iguaçu. A partir de uma demanda por formação para professoras e professores da rede municipal de ensino, o curso ocorreu na Escola Pedro Viriato Parigot de Souza no centro da cidade, de setembro a novembro de 2019, com a participação das colegas da SESUNILA, Ana Silvia Fonseca, Andréia Moassab, Céline Veríssimo, Luciana Ribeiro e Senilde Guanaes e com o apoio das monitoras Karini Scarpari e Alondra Fernandez, estudantes de mestrado na UNILA. Participaram cerca de trinta professoras e professores de escolas da rede municipal, do IFPR, entre outras instituições de ensino da região e estudantes da UNILA, apontando um caminho importante do trabalho de base e formação política que um sindicato docente pode fazer em conjunto com outros sindicatos e movimentos sociais de sua região. O objetivo principal do curso foi desenvolver, por um lado, uma análise crítica sobre ambiente e sociedade e, por outro, avaliar alternativas para um mundo social e ecologicamente mais justo. Para tal, observou-se de perto


a América Latina e em particular a região transfronteiriça, interpretando as resistências ao colonialismo, ao capitalismo e ao patriarcado destas sociedades contra a opressão, a injustiça, a dominação e a exclusão, na busca de diálogos, trocas de saberes e transições que não sejam pautadas pela lógica do capital. Durante as aulas foram discutidas mudanças climáticas, desastres naturais e conflitos ambientais e foram desenvolvidas atividades práticas, como a oficina “Jardinagem de Guerrilha: ativismo e educação socio-ambiental pró-ativa com crianças nas escolas” e um debate sobre atividades didáticas para crianças do ensino fundamental voltadas para as questões socioambientais. Com base na ecologia política, demonstramos que a transformação desenfreada do planeta para atender as necessidades do capitalismo é suicida, colocando em perigo a natureza e ampliando cada vez mais as desigualdades no capitalismo dependente. Um dos desafios colocados é compreender como o conhecimento, a ciência, a tecnologia e a educação podem ser ferramentas para a transformação radical da sociedade. Organizado em plena pandemia COVID-19, o tema deste caderno denuncia o esgotamento e colapso do capitalismo, muitas vezes escamoteado pelos eufemismos como “crise ecológica” ou “crise social” que ocultam a extrema devastação capitalista. A pandemia trouxe luz sobre questões há muito veladas: a desigualdade social e a destruição da natureza são as duas faces da mesma moeda e que a vida dita “normal”, tem nos conduzido ao desastre total. O capitalismo não é “normal” tampouco “verde” e menos ainda “sustentável”! Este é o debate que propomos com o


Minha Linhagem Femenina da Resistência Ambiental, 2018 Carolina Caycedo

terceiro número dos Cadernos SESUNILA. Para este, além das colaboradoras do curso, contamos com demais professores da SESUNILA e também convidamos docentes que integram a base do sindicato nacional a partir de outras seções sindicais, tais como ADUFF, ADUFOP, ADUFRJ e APROFURG, totalizando 13 textos. Os apontamentos de Cláudio Ribeiro, Andréia Moassab e Gabriel Cunha tensionam o esvaziamento do termo sustentabilidade e seus desdobramentos, apropriados


pelo capitalismo, sobretudo para lavagem da imagem de grandes indústrias, conforme pode ser conferido em seus respectivos textos, que abrem o dossier: A Crise do capital e a superação da sustentabilidade; O capitalismo não é verde! Anotações para um debate sobre tecnologia e ambiente; e A colonialidade tecnológica e socioambiental: dos modos de morar hegemônicos e à falácia da sustentabilidade na América Latina. Na sequência, Leandro Neves, Céline Veríssimo e Luciana Ribeiro, tratam da destruição do planeta com o esgotamento dos sistemas naturais imposto pelo capitalismo. Em seus textos, o autor e as autoras apresentam um balanço atual sobre ecologia e sociedade, ponderando acerca da possibilidade de construção de um modelo de sociedade em que a racionalidade econômica esteja subserviente à vida, à ética e à equidade social. São os textos: Desastre em massa, aniquilamento das espécies e acumulação capitalista; Mudanças climáticas e conflitos ambientais: rumo ao ecofascismo ou à transição ecossocial? e Da questão ambiental na região trinacional à (re)construção participativa civilizatória. Em continuidade, a perspectiva ancestral de nuestra america, contrária à mercantilização da natureza, é tratada por Senilde Guanaes e Maria Lilia Macedo, em Cosmopolítica indígena e saberes ancestrais na América Latina: alternativas contra a mercantilização da natureza e Educación Popular y Ecofeminismo en América Latina: tejiendo rebeldía. Na última parte do dossier, estão temas mais específicos. A relação entre produção de alimentos, natureza e exploração capitalista podem ser conferidas nos textos Alimentação, sociedade e ambiente, de Ana Silvia Fonseca, e


geopolítica do alimento e a pedagogia do coronavírus: quem acessa um pé de manga ou tem uma horta é rei, de Leo Name. Extrativismo e crime socioambiental são o foco das reflexões apresentadas por Kathiuça Bertollo e Rodrigo Nogueira, em Os rompimentos-crimes das barragens de Fundão e Córrego do Feijão: Aportes críticos acerca da mineração extrativista em Minas Gerais que, de certa maneira, impulsiona o debate de Eduardo Forneck e Jaqueline Durigon sobre a Teoria de Gaia, ao mostrar os impactos da mineração nos pampas, em Ambientalismo, sindicato e luta de classes: experiências para o enfrentamento do capital e a defesa de Gaia. O último texto deste Caderno SESUNILA n. 03, de autoria coletiva, faz um breve histórico sobre a luta ambiental no ANDES destacando as atividades recentes promovidas pelo Grupo de Trabalho de Política Agrária, Urbana e Ambiental. Este dossier também é composto por uma curadoria de trabalhos de artistas visuais da América Latina que problematizam a exploração da natureza e colaboram com a luta pela superação do capitalismo por meio da produção de sensibilidades e da disputa estético-política de narrativas. Este é o caso dos trabalhos de Beatriz Aurora (Chile), Carolina Caycedo (Colômbia/UK), Cleiri Cardoso (Brasil), Djanira da Motta e Silva (Brasil), Karen Paulina Biswell (Colômbia/ França), Laura Gorski (Brasil), Manuela Ribadeneira (Equador), Maria Magdalena Campos-Pons (Cuba/EUA), Miriam Rudolph (Paraguai), Néle Azevedo (Brasil), Regina Galindo (Guatemala), Renata Cruz (Brasil) e Tatiana Arocha (Colômbia/EUA). Também compõe o dossier trabalhos coletivos realizados com as comunidades, como é o caso do


filme Arpilleras Atingidas por Barragens, produzido pelo MAB, das Oficinas Floresta de Pé Fascismo no Chão, de Denilson Baniwa, Ocupeacidade e Parquinho Gráfico, Botânica Ordinária, de Bruno Oliveira e Victor Torazin, Oficina Fotográfica com Jovens Ashaninka, de Pedro Kuperman e do Livro das Árvores, organizado por professores bilíngues Ticuna e Jussara Gomes Gruber, todos no Brasil. Trouxemos também o desenho o Colector Azteca de Ervas, que integra o Códice Florentino, de 1569. Ao final do volume estão os links para materiais do ANDES e da SESUNILA sobre ecologia e sociedade. Convidamos todos/as docentes a se apropriarem do debate e do acúmulo do ANDES Sindicato Nacional no debate ambiental, sobretudo nos tempos de COVID-19 que estamos vivendo. Afinal, cabe a nós docentes e, em específico, os e as docentes da UNILA, na luta organizada sob uma ótica latino-americana, avançarmos na compreensão de que a defesa da natureza é indissociável da defesa de uma sociedade livre das amarras do patriarcadoracista-capitalista. Face ao futuro incerto que se avizinha, é vital a luta sindical docente somar esforços cada vez maiores com outras lutas populares organizadas na direção de decrescer, destecnologizar, desurbanizar, despatriarcalizar, desmercantilizar e descolonizar as nossas vidas e as nossas sociedades.


Sustainable My Ass A la mierda la sustentabilidad, 2017 Carolina Caycedo


sum A Crise do capital e a superação da sustentabilidade por Cláudio Ribeiro O capitalismo não é verde! Anotações para um debate sobre tecnologia e ambiente por Andréia Moassab

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A colonialidade tecnológica e socioambiental: dos modos de morar hegemônicos à falácia da sustentabilidade na América Latina

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Desastre em massa, aniquilamento das espécies e acumulação capitalista por Leandro Neves

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Mudanças climáticas e conflitos ambientais:

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por Gabriel Cunha

rumo ao ecofascismo ou à transição ecossocial?

por Céline Veríssimo

Da questão ambiental na região trinacional à (re)construção participativa civilizatória por Luciana Ribeiro Cosmopolítica indígena e saberes ancestrais na América Latina: alternativas contra a mercantilização da natureza

por Senilde Guanaes

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ário Educación Popular y Ecofeminismo en América Latina: tejiendo rebeldía por Maria Lilia Macedo Alimentação, sociedade e ambiente por Ana Silvia Fonseca geopolítica do alimento e a pedagogia do coronavírus: quem acessa um pé de manga ou tem uma horta é rei

por Leo Name

Aportes críticos acerca da mineração extrativista em Minas Gerais e sua relação com a Universidade Pública por Kathiuça Bertollo e Rodrigo Nogueira

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Ambientalismo, sindicato e luta de classes: como chegamos até aqui e como podemos seguir daqui pra frente

por Eduardo Forneck e Jaqueline Durigon A luta ambiental no ANDES por Andréia Moassab, Eduardo Forneck, Jaqueline Durigon e Leandro Neves PARA SABER MAIS SOBRE A LUTA AMBIENTAL NO ANDES E NA SESUNILA

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A CRISE DO CAPITAL E A SUPERAÇÃO DA SUSTENTABILIDADE Cláudio Ribeiro - ADUFRJ

Doutor em Urbanismo. Professor do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente e do curso de pós-graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ.

Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. — Ricardo Salles em reunião ministerial de 22/04/20

As

afirmações feitas pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Partido Novo) na cristalina reunião dos representantes das frações burguesas hegemônicas no executivo, foram divulgadas de forma ampla pela imprensa nacional. Cada governo serve ao seu patrão com as armas que têm. Já houve quem aproveitasse da onda de aprovação popular para democraticamente retirar direitos de trabalhadores e trabalhadoras, houve golpista que usou 12


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e abusou da popularidade quase nula para propor as mais abjetas intervenções, já houve até intelectual que afirmou negar sua obra e aplicou os mais notáveis instrumentos de implementação de dependência através de privatização de estatais com dinheiro público. É fundamental destacar que todas estas criativas estratégias de ampliação do poder do capital sobre o trabalho foram realizadas em um período que, no Brasil, é identificado pelo importantíssimo marco da promulgação da Constituição Federal de 1988. De lá para cá, tantas PEC foram aprovadas que a Carta praticamente não pode ser mais reconhecida pela alcunha que tinha, a constituição cidadã. Este fenômeno – entendido como um pacto pós ditadura empresarial-militar – é percebido e combatido em diversas esferas, desde as forças organizadoras da classe que reivindicam o retorno da implantação nunca concretizada da Carta, até forças que seguem com um projeto classista que tenta construir uma agenda popular que ultrapasse os limites conciliatórios. O enfrentamento atual exige compreender que a fala de Salles carrega um sentido para além da tática eficiente na sua perversidade – como é, aliás, qualquer ação do capital; ela reúne e evidencia dois campos que costumam ser debatidos de maneira separada: as políticas de memória e as políticas ambientais. Dentre as diversas fronteiras comuns entre estes dois campos, destaco aqui o que mais interessa ao ataque ministerial: compõem lugares políticos de disputa aberta a respeito de bens não mercantilizáveis que interferem diretamente em setores estratégicos como a construção civil, junto ao turismo, e o agronegócio. A mercantilização 13


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de direitos, transformando-os em serviços, é uma tática tradicional do (neo)liberalismo e uma das trincheiras mais evidentes podem ser percebidas em três campos onde ocorre uma luta tradicional: educação, saúde e previdência social. A privatização, e consequente financeirização destes direitos, têm sido pauta da arena da luta de classes em todo o mundo, e a resistência crescente se afirma de modo a defender sistemas públicos e universais de educação, aposentadoria e, sobretudo em tempos de pandemia, de saúde. Luta com vitórias e derrotas, em todo o mundo, como afirmou o chigado-boy-bythe-book Guedes em uma das mais duras frases mencionadas na “trosobada” reunião: “aprovamos a reforma da previdência o ano passado, enquanto os franceses fizeram passeatas contra a reforma da previdência”. Acontece que a resistência à área de atuação de Salles guarda algumas peculiaridades, na medida em que a luta por justiça ambiental e pelo direito à memória não possuem pautas consagradas, melhor definidas e unitárias dentro da esquerda. Aparentemente, a adesão a um ideário liberal praticamente tratado como senso comum em variados espectros políticos garante essa indefinição: a noção de sustentabilidade. Contudo, isso não é exclusividade do campo ambiental e da memória. A adesão mais recente, sobretudo da última década, de parte da esquerda pelo projeto liberal de educação que “democratiza o acesso” ao invés de universalizá-lo é uma tendência muito danosa. A adesão à sustentabilidade está arraigada ao campo da esquerda de forma ainda mais profunda, talvez porque a pauta ambiental torna-se, de fato, uma arena de lutas concretas no mesmo momento em que a globalização, a pós-modernidade e o fim 14


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da história tomam conta do cenário político: o final dos anos 80. O conceito de sustentabilidade, derivado da ideia de desenvolvimento sustentável, surgiu em 1987, um ano antes da CF, a partir de um relatório encomendado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. O documento ganhou o sugestivo título de “Nosso Futuro Comum” e foi apelidado de Relatório Bruntland, em homenagem à primeira primeira ministra da norueguesa, do Partido dos Trabalhadores da Noruega, que presidiu a comissão. Tenho demonstrado que o conceito de sustentabilidade carrega uma faceta de fenômeno ideológico, uma força de poder simbólico capaz de transformar a poderosa tese liberal do “fim da história” em “mero” recorte de seu escopo de pensamento e ação. Dito de outro modo, não teria sido a tese de Fukuyama a metanarrativa predominante dos anos 90 capaz de mover corações e mentes, pelo contrário, a sustentabilidade é que teria assumido a hegemonia, sendo o fim da história apenas um caso particular. O relatório Bruntland consolidou a ideia de desenvolvimento voltado a garantir a manutenção das gerações futuras segundo as condições presentes. Aceitando que o futuro está ameaçado deveríamos, enquanto comunidade global, resolver o problema daqueles e daquelas que nos sucederão, garantindo sua sobrevivência em um mundo de recursos finitos. Ao assumir a finitude dos recursos naturais, deveríamos, então, ampliar o alcance sistêmico da economia como regulação da vida, estendendo-a definitivamente rumo à natureza para garantir a transmissão mais eficiente de seus usos para o futuro – sempre no singular, já que deverá ser comum. 15


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Terra, 2013 Regina Galindo


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Ao invés de anunciar um sintoma da mudança social em curso, como fez o fim da história, a tese da sustentabilidade apresentou de maneira mais direta e pragmática o rumo a se tomar. Esta visão da história que impõe um futuro comum exige também um presente uno que só poderá existir, paradoxalmente, se não houver mais história. Consequentemente, sem memória. Não há lugar para o passado enquanto alimentador de transformações, ou seja, a sustentabilidade altera a forma da relação temporal da modernidade ocidental. Ao invés de aprendermos com o passado, devemos “ensinar” ao futuro, garantindo que o sustentável deve ser, de fato, o desenvolvimento, tido aqui como algo próximo daquilo que Walter Benjamin chama de progresso. Tudo que ocorre sob a égide do “futuro comum”, portanto, é justificado em nome da salvação de uma geração futura e em sacrifício de inúmeras gerações passadas. Para o sucesso deste futuro único é preciso apagar os passados incomuns, homogeneizando a história e a geografia. Assim, a sustentabilidade foi assumida, inclusive pela esquerda, praticamente como equivalente universal de qualquer debate político ambiental, e não como uma forma liberal, bem elaborada, de tratar deste debate. Esta (meta)naturalização do conceito ambiental impede a compreensão da existência da luta de classes, da luta por espaços mais justos, solidários e socialistas. Mas Salles, assim como Guedes, não se esqueceu da necessidade de evitar essa luta. Eles sabem que é preciso enfraquecer a classe trabalhadora para apresentar a agenda mercantil agressiva que lhes coube implementar. A permanência e reprodução da noção de sustentabilidade lhes são fortes aliadas. 17


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No complexo campo ambiental, o debate a respeito do uso econômico em áreas a serem preservadas é contaminado pela sustentabilidade quando tratado pelo campo conservacionista, que impõe um futuro liberal a populações com um passado nada comum ao liberalismo. Ideias preservacionistas, que alimentam ações políticas contrárias à presença humana em áreas de floresta podem ser profundamente violentas com populações ancestrais muito menos predatórias à natureza. A contestação dessas políticas, ao tornarmo-nos reféns da sustentabilidade, abre a possibilidade de incorporar a finalidade liberal de exploração econômica do território. Dessa maneira, é exigido daquelas populações produtividades, métodos e tempos próprios do capitalismo, muitas vezes convertendo-as em parcerias de grandes empresas que mercantilizam o uso “sustentável” da exploração da força de trabalho barata. As comunidades perdem, assim, sua autonomia, seus saberes e a relação saudável com seu espaço ancestral de habitação. Consequentemente, é falsa a dicotomia entre a preservação total e a conservação sustentável, embora o debate geralmente seja limitado a esta esfera, como se o modo de produção e utilização do espaço “natural” não pudesse ser repensado. É preciso superar a sustentabilidade. O terreno da justiça/racismo ambiental tem dado rumos muito mais interessantes ao debate, incluindo a memória. É preciso incorporá-lo de forma mais aderente pelo campo da esquerda. Abrir disputas que reconheçam a diferença entre um passado de explorados, exploradas e de exploradores é tarefa teórica e política urgente, a qual exige a dissolução da hegemonia da sustentabilidade e de 18


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seus derivados “biofísicos” como é o caso da “resiliência”. Por isso, o exercício da memória como direito deve caminhar junto com a luta ambiental, dissolvendo a noção de imposição de um único futuro. Todavia, a sustentabilidade também atua de maneira perversa na pauta da memória. Retomemos a influência do Programa Monumenta, organizado pelo BID, iniciado no período FHC e incorporado pelo IPHAN posteriormente. Sem contratação de profissionais pelo regime jurídico único, isto é, por meio de terceirizados/as sem memória institucional, e desenvolvendo planos de preservação de sítios históricos organizados por parcerias público privadas, o Monumenta introduz de maneira abrangente a noção de sustentabilidade financeira dos sítios tombados. A memória, de forma deliberada, tornou-se investimento, um negócio fomentado com verbas públicas para alavancar desde pequenas empresas caseiras até ações políticas que aprofundam e naturalizam a assimilação da ideia de patrimônio histórico à de turismo nos programas governamentais de várias prefeituras. O passado tornou-se consumo, abrindo tempo e espaço para a construção de um pasteurizado “futuro comum”. Não é surpresa que o IPHAN, no recente fim do Ministério da Cultura, tenha tornado-se tutelado pela pasta do Turismo. O capital sabe a importância de embaralhar e enfraquecer a luta pela memória e pelo meio ambiente. Sempre esteve em seu projeto, como imposição de continuidade existencial do capital, a ampliação qualitativa de mercadorias. Tornar o meio ambiente e a memória expressões da hegemonia do valor de troca não são sua meta final, 19


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mas representam um passo fundamental para enfraquecer as fronteiras de resistência de sua ampliação concreta, territorial e ideológica. Bens ambientais e de memória não carregam, obrigatoriamente, valor de troca. Seu valor de uso, muitas vezes não podem ser mercantilizados sem que haja perda de seu sentido. A memória e a natureza têm aspectos cuja fruição ganha finalidade plena apenas quando está fora da esfera de circulação, em um tempo que escapa à captura da reprodução capitalista. Isso as tornam ameaças profundas à necessidade de aumento do fluxo e rotação do capital, fictício ou não. A luta em defesa da memória e a natureza, portanto, ganha contorno mais dramático em tempos de pandemia quando a crise do capital se torna mais profunda. As frações dominantes travarão uma batalha inevitavelmente fratricida para garantir o acúmulo e a reprodução de seu modo de existência. Salles compunha, naquela reunião, um lugar estratégico e apresentou suas artimanhas de modo objetivo para orgulho de seus chefes. Afinal, como conseguir ampliar um mercado que “não é legalização de jogos, não é bingo, não é caça-niquel, não é ... são resorts integrados”, como foi reivindicado pelo ministro do Turismo, se o campo ambiental e da memória não dialogarem com a sustentabilidade? Não por coincidência, foi o ministro do turismo a indicar a atual – e contestada – presidenta do IPHAN, uma turismóloga para gerir a memória. Lembremos da exposição de motivos da MP 759 – tornada a Lei 13.465/17, a qual reivindicava a exploração de faixas litorâneas por setores internacionais do turismo. O setor hoteleiro é um dos que apresenta maior 20


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crise na atualidade e apostará em expansões agressivas que implicarão em desmatamentos, expulsão de populações tradicionais, demolições e conversão de sítios históricos em publicidade turística. Da mesma maneira, outro “pacto com o diabo” serão queimadas ainda mais extensivas para garantir a competitividade do agronegócio que, aliás, a partir da supramencionada lei, ganha contornos mais complexos ao se articular com a ampliação da fronteira de urbanização da Amazônia Legal. O ministro sabe que simplificar normas será mais eficiente, mesmo porque a batalha se dará no campo do judiciário, e, nesta arena, ele não precisará sequer alterar a noção de sustentabilidade para atingir seus fins. A simplificação de normas pode ser realizada dentro de uma conceituação mais pura do sentido de sustentabilidade, vindo a ser, inclusive, apoiado por muitos setores que dominam a agenda verde. A esquerda precisa compreender que a luta pela sustentabilidade não carrega a radicalidade suficiente para enfrentar esta conjuntura. É necessário retomar o pensamento radical socialista para questões ambientais, culturais e urbanas, ou permaneceremos, no máximo, apenas como colaboradores jurídicos capazes de aplainar e melhorar o desenvolvimentismo predatório até que ele consiga se apresentar como sustentável. Da mesma forma que o fascismo deve ser chamado e enfrentado como tal, o capitalismo também deve ser percebido em sua forma plena, pois seus apelidos nunca serviram para a classe trabalhadora.

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De las dos aguas, 2007 Maria Magdalena Campos-Pons


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O CAPITALISMO NÃO É VERDE!

ANOTAÇÕES PARA UM DEBATE SOBRE TECNOLOGIA E AMBIENTE Andréia Moassab - SESUNILA

Doutora em Comunicação e Semiótica. É docente do ILATTI. Coordenou e participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA em 2019.

Este

texto é o desdobramento da aula que ministrei no curso de formação de professores e professoras da rede municipal, organizado pela SESUNILA em parceria com o SINPREFI. O curso tinha por objetivo propiciar ferramentas, às professoras e professores, para uma análise crítica sobre ambiente e sociedade, tema cada vez mais atual e relevante, sobretudo no contexto de pandemia que atravessamos. Buscamos usar nas aulas noções do senso comum, como desenvolvimento e sustentabilidade, para desconstruí-las e mostrar a contradição implícita nos termos da moda como “capitalismo verde”, acompanhado pelos “greenwashing” e “social washing” das empresas e corporações. Na minha aula, em específico, problematizei o que é tecnologia (e o que não 24


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é) conforme consolidado pela modernidade-colonialidade, mostrando que soluções construtivas simples e populares são, frequentemente, adaptáveis ao clima, aos materiais disponíveis localmente, de baixo custo e de pouco impacto ambiental. Para amparar o debate na experiência cotidiana dos e das presentes, usei material de uma pesquisa que fizemos na região e que resultou na cartilha “Morar na Barranca: habitação, desenvolvimento territorial e tecnologia social na região trinacional” (https://portal.unila.edu.br/editora/livros/ morar-na-barranca-argentina-brasil-paraguai). A questão ambiental foi um dos principais eixos daquele trabalho, na medida em que levantamos diversas soluções populares para a moradia na fronteira, com atenção especial para as áreas de risco de inundação. Foi com base nesse material que valorizamos o saber-fazer local e desconstruirmos as noções de tecnologia, progresso, desenvolvimento ou sustentabilidade, todas fagocitadas pelo capital. O impacto ambiental, a exploração e as condições precárias de trabalho são próprios do capitalismo, que opera como detentor do direito de dominação tanto da natureza quanto da classe trabalhadora. Ainda, a destruição da natureza implícita no modelo produtivo capitalista tem atingido de maneiras extremamente diversas os países e comunidades. Comumente, os crimes ambientais, as contaminações, as condições de trabalho sem segurança e degradantes estão nos países pobres. O descaso com a infraestrutura e manutenção de segurança que levaram à morte de centenas de pessoas em Brumadinho e em Bento Rodrigues, que devastou o Rio Doce, do interior de Minas 25


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Gerais até a foz no Espírito Santo se dá no Brasil, onde o ônus dessa exploração acontece, bem longe de onde são usufruídos os bônus. As pessoas pobres mais afetadas pela exploração capitalista e seus impactos têm cor e gênero: são as pessoas negras, indígenas e mulheres. O resultado da violência colonial subjacente à história da ocupação do território na América Latina leva, portanto, a que as áreas de risco sejam povoadas majoritariamente pela população não-branca e, desse grupo, as mais atingidas são as mulheres. Similarmente, há uma desvalorização das tecnologias construtivas não normatizadas, aquelas produzidas fora dos desígnios da ciência moderna, cujo saber-fazer é passado de geração em geração. A racionalidade cognitivainstrumental da ciência sob os auspícios da modernidade/ colonialidade monopoliza o debate sobre tecnologia com implicações devastadoras na sua convergência com a exploração capitalista. Também a formação da América Latina, sob estes termos, definiu as subjetividades, narrativas históricas, juízos de valores, enfim, todo um arcabouço que segue até hoje como justificativa para o genocídio da população negra ou da população indígena, para a espoliação da natureza e para o feminicídio. Junto com o patriarcado, que há milhares de anos subjuga as mulheres, o racismo será estruturante para o desenvolvimento e consolidação do próprio capitalismo. Não é casual, como já mencionei, que diversos governos nacionais acolham o concreto armado como sistema construtivo preferencial na segunda metade do século XX, o qual acarreta toda a implementação de uma estrutura econômica, produtiva e lobista, vinculada às elites nacionais. No caso do Brasil, o 26


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historiador Pedro Campos em seu doutorado demonstrou o vínculo indiscernível entre empreiteiras e o governo brasileiro, desde o período de Juscelino Kubitschek, apontando como a indústria do concreto, as empreiteiras e a ditadura militar montaram fortes esquemas de corrupção envolvendo dinheiro público e grandes obras encomendadas pelo Estado. Nessa equação, entendemos que o modelo produtivo que se materializa no território é um aspecto relevante. Ao mesmo tempo, é preciso compreender como a tecnologia, ciência e industrialização estão submetidos ao capitalismo, cuja exploração, por sua vez, atinge com mais intensidade a classe trabalhadora dos países dependentes e, mais ainda, nesse grupo, as pessoas negras, indígenas e mulheres. A almejada transformação da sociedade, com a superação do patriarcado-racista-capitalista e consolidação de uma outra relação com a natureza, só será completa se fizermos uma revisão cognitiva radical da tecnologia. É extremamente necessário questionar a racionalidade tecnológica capitalista, pois não bastam mudar os meios de produção e a propriedade, sem que a tecnologia seja cognitivamente repensada e o “resíduo capitalista” da tecnologia, combatido, conforme aponta Renato Dagnino. Por mais que reconheçamos os avanços tecnológicos da antiga União Soviética ou da China contemporânea, por exemplo, a racionalidade implicada nessa produção, mesmo em países não capitalistas, parece continuar reproduzindo condições bastante precárias de trabalho e de exploração da natureza. Dito de outra forma, precisamos construir historicamente condições para que estas formas de produção possam vir a ser superadas, 27


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sem negar a contribuição que os processos revolucionários no século XX já aportaram e tomando em conta as implicações de gênero-raça-classe nessa imprescindível revisão cognitiva da tecnologia.

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Operar em termos de “desenvolvimento sustentável”, “sustentabilidade”, “selo verde”, “ecocapitalismo” e outras maquiagens que apenas alargam os limites do capitalismo, está na contramão do enfrentamento necessário. Afinal, o capitalismo não é e nem nunca será verde!

Twinza Mon Amour Escala 1 1000, 2005 Manuela Ribadeneira

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A COLONIALIDADE TECNOLÓGICA E SOCIOAMBIENTAL:

DOS MODOS DE MORAR HEGEMÔNICOS À FALÁCIA DA SUSTENTABILIDADE NA AMÉRICA LATINA Gabriel Cunha - SESUNILA Doutor em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo. Docente do ILATTI.

Nos últimos anos, por conta da minha atuação em arquitetura

e urbanismo, tenho estudado os processos tecnológicos envolvidos na construção civil, e, como não poderia deixar de ser, os impactos socioambientais que eles geram. Em particular, na UNILA, e o seu viés latino-americanista obriga a observar como historicamente evoluíram as técnicas construtivas nos diversos povos deste continente, antes e depois da chegada dos Europeus. Culturas inteiras e, ao lado delas, os saberes construtivos dos povos que aqui estavam foram eliminados ou parcialmente absorvidos. Arquiteturas organicamente vinculadas ao meio ambiente, às diferentes geografias, 30


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cederam espaço às formas de construir e às arquiteturas que chegaram pelo Atlântico, muitas vezes inapropriadas às condições locais. Para citar um exemplo bem conhecido: as técnicas antissísmicas dos Incas em contraste com as formas de construir dos Espanhóis, que tiveram que reerguer, eventualmente, seus edifícios após cada grande terremoto, enquanto os remanescentes Incas – os quais muitas vezes serviam de fundação ou base para as edificações espanholas - permaneciam de pé. Para além das técnicas construtivas, há também diferenças na apropriação do território. O mundo urbano europeu se sobrepôs a outros modos de ocupar o território, como as aldeias ou as cidades indígenas, muito distintas tanto na forma e estrutura, quanto na dinâmica de vida, nas sociabilidades, na distribuição dos bens e da riqueza, na conexão entre os povos. Os impactos socioambientais como hoje o entendemos, têm suas origens nas Américas no momento da chegada dos europeus, ainda que incomparáveis com a aceleração promovida pelas primeira e segunda revoluções industriais. Pelo menos quatro séculos e meio se passaram sem que o ocidente se desse conta que suas ações engendravam uma interação negativa do ponto de vista socioambiental, até que a partir de meados do século XX aparecesse o ativismo ambiental, as preocupações ecológicas, e mais recentemente, a ideia de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável - termos esvaziados e a serviço do capital. A modernidade/colonialidade é, portanto, uma forma específica e determinada de interação ser humano-meio ambiente. Ou seja, é um fenômeno socioambiental que traz 31


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um modo particular de apropriação territorial (colonialidade territorial) e de viabilização do espaço edificado (colonialidade tecnológica). A colonialidade territorial pode ser definida como o conjunto de padrões de poder que na práxis territorial serve para estabelecer hegemonicamente uma concepção de território sobre outras que resultam “inferiorizadas”. Os autores Yasser Farres Delgado, cubano, e Alberto Mataran Ruiz, espanhol, no artigo “Hacia una teoria urbana transmoderna y decolonial”, apontaram três dimensões principais da colonialidade territorial: (1) colonialidade do saber territorial, (2) colonialidade do poder territorial e a (3) colonialidade do ser territorial. A colonialidade do ser territorial tem como ponto crítico a ideia da hegemonia do “ser-urbano”, do padrão de vida urbano. Em outras palavras, na modernidade/colonialidade, “viver” é sinônimo de “viver na cidade”, e estabelece uma hegemonia deste “ser-urbano” sobre o resto das formas de existência humana não-urbanas (“ser não-urbano”), consolidada por meio de mecanismos de organização da sociedade mundial que abrangem desde o comércio de imóveis, as bolhas imobiliárias, a desigualdade social e um modo característico de interação entre os mundo rural e urbano, entre as atividades produtivas agrícolas sobre as não agrícolas. E, de fato, na quase totalidade dos países latino-americanos já se verifica altos índices de urbanização, acima de 70% da população. No entanto, há inúmeras localidades e municípios rurais, não sendo nada desprezíveis as 285 milhões de pessoas que vivem em pequenas cidades. No Brasil, mais de 33 milhões de pessoas vivem em cidades com menos de cinco mil habitantes. Mesmo assim, o universo 32


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rural e das pequenas e médias cidades não recebem a devida atenção dos debates científicos. Na colonialidade do saber territorial, a hegemonia se coloca desde a concepção dos modos de habitar o território, a cidade e a arquitetura, geralmente com a exportação dos padrões ocidentais de vida urbana. Neste sentido, verifica-se a supervalorização do ensino urbano-arquitetônico nas universidades, com suas noções supostamente universais, de território, cidade e arquitetura em relação ao tradicional, vernáculo ou popular, invalidando-os como resposta válida aos problemas atuais. Por sua vez, a colonialidade do poder territorial é o âmbito da intersubjetividade na qual determinado grupo de agentes define o que é territorialmente correto, e consequentemente, sustentam o poder de enunciação e de decisão. A colonialidade do poder territorial se exerce tanto nos cenários territoriais globais - cujos agentes com poder de enunciação são transnacionais como os monopólios da exploração dos recursos naturais ou da construção, algumas fundações, organismos internacionais entre outros - como nos locais como os governos locais e outros atores com poder de decisão, ainda que cada vez mais sob influência dos agentes transnacionais, por não existir desconexão entre uma escala e outra. Analogamente, no que venho designando por “colonialidade tecnológica”, que incide nos saberes construtivos, as técnicas “convencionais” brancas representam um padrão evolutivo superior para o qual todas as outras técnicas construtivas representam “atraso”. As técnicas convencionais brancas são apartadas 33


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O campo de soja, 2017 Miriam Rudolph

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das técnicas dos povos não-brancos por uma linha abissal inconciliável. Acresce-se a isso, a “cooptação cognitiva” promovida pelo ideário do desenvolvimento sustentável, que tem substituído o determinismo tecnológico anterior do nacional-desenvolvimentismo.

O esquema, sugerido por mim, ajuda a compreender que as técnicas sustentáveis de construção ou até mesmo a “bioconstrução”, usualmente vistas como a salvação ambiental e tecnológica do futuro, são, de fato, versões suavizadas da modernidade/colonialidade tecnológica. Dito de outro modo, tais técnicas são soluções aceitas e não invisibilizadas pela modernidade, podendo constituírem-se como uma nova fronteira a ser explorada pelo capital. Não à toa que muitas destas propostas “sustentáveis” tem como seus adeptos e praticantes mais comuns as classes médias que, “cansadas” do padrão de vida urbano estressante, decidem viver em ecovilas e condomínios do tipo, próximos das grandes cidades, com casas feitas de madeira, terra crua, cisternas, banheiros 36


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secos e todas as benesses sustentáveis. Nada tem a ver, portanto, com a tentativa de promoção de uma ecologia de saberes que torne visível e enfrente a linha abissal racista implementada pela modernidade. Frequentemente, o grosso do trabalho de construção destas casas ecológicas mencionadas, fica a cargo de pedreiros, em sua maioria não-brancos, num esquema de organização e exploração de trabalho similar ao utilizado na maior parte dos canteiros de obra. O pressuposto destas experiências sustentáveis não é obrigatoriamente o resgate e o empoderamento de saberes ancestrais, populares, racialmente determinados e invisibilizados. Não se voltam contra o epistemicídio promovido pela modernidade. Tratase apenas de uma modernização “verde” que não enfrenta nem problematiza de fato, a colonialidade tecnológica e a territorial. A ideia de futuro sustentável, outrossim, esconde um silenciamento histórico de saberes construtivos do passado, de perda de identidades. Um futuro que faz tábula rasa do passado. Por isso proponho que a valorização de técnicas “alternativas” vai muito além da proposta no desenvolvimento sustentável. É preciso dar centralidade para outras formas de construir, outros saberes técnicos para a construção de novas espacialidades, novos territórios, especialmente num horizonte de superação radical do capitalismo. Permitir-se utilizar materiais de construção naturais encontrados no próprio local ou região onde habitam as comunidades, ou produzidos por eles, ao invés de simplesmente comprar os industrializados, por exemplo, não é apenas um dos caminhos possíveis, mas necessários neste processo de revisão cognitiva, de decolonização tecnológica. 37


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A ideia de democratização territorial e tecnológica, implica, nos países dependentes e mais particularmente na América Latina, no enfrentamento da colonialidade do poder tecnológico. Isto é, na diminuição das desigualdades tecnológicas, sobretudo no tocante ao poder decisório sobre a produção tecnológica, hoje também concentrado em grandes corporações e programado para atender interesses empresariais, seguindo uma racionalidade própria submetida ao capital. No caso latino-americano, tratam-se de grandes empresas de construção, do mercado imobiliário, dos monopólios de jazidas minerais para produção dos insumos da construção, que encontram respaldo nas formas de financiamento público, que entre outros aspectos, determina quais tecnologias construtivas são passíveis de receber tais recursos e quais ficam de fora. O uso de outras técnicas construtivas pode promover um descolamento deste circuito específico do capital. Se a colonialidade de poder tecnológico implica em formas próprias de divisão, organização e exploração do trabalho, geralmente marcada pelo racismo estrutural de tais sociedades, é a estes aspectos que necessitamos nos insurgir. Finalmente, a colonialidade do ser tecnológico atrela-se à hegemonia do ser-urbano e ajuda a determinar os modos de construir que serão hegemônicos, que respondem de forma bastante articulada com a dinâmica da vida urbana: o ser-urbano demanda habitar um espaço construído com modernas técnicas e materiais de construção, não apenas porque estas possuem preferência e hegemonizam as redes de transporte, a lógica de extração, manufaturamento e industrialização dos materiais e técnicas construtivas, mas 38


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também porque refletem um padrão “avançado” de vida, que tem como missão superar o “atraso” da vida tradicional, ancestral, do passado rural, que remeta às civilizações originárias. O “papel em branco” dos modos de existir é realizado pela adoção do estilo clean e refinado de ambientação que os materiais de acabamento comercializados são capazes de produzir, contrapondo-se ao rústico, ao “grosseiro”, ao “inapropriado” ambiente sem acabamentos, ou de acabamentos simples da vida “tradicional”. Sob esta perspectiva, uma casa urbana tem que necessariamente ser diferente e “superior” a uma oca indígena, ou a uma palafita amazônica, seja porque a estrutura da vida urbana assim o exige, seja porque estes modos de morar são considerados como “males” a serem evitados. Piscinas, academias, internet, lâmpadas LED, Smarts TVs, são itens indispensáveis que complementam a vida moderna cobiçada por nós, de preferência em condomínios horizontais ou verticais fechados. Todos estes itens e uma série de outros que desejamos demandam um padrão de construção, uma escolha tecnológica intrínseca, que normalmente naturalizamos. Concluo dizendo que na perspectiva de combate aos impactos socioambientais da sociedade, espero ter mostrado que é necessário levar em conta as colonialidades tecnológica e socioambiental que se fazem presentes no cotidiano. Penso que ao levarmos isso em conta, criamos uma alternativa válida aos países dependentes em contraponto aos modos de morar hegemônicos do sistema capitalista e à superficialidade da proposta “alternativa” do desenvolvimento sustentável que permanece operando dentro deste mesmo sistema de exploração. 39


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Monumento mínimo, 2005 Nele Azevedo

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DESASTRE EM MASSA, ANIQUILAMENTO DAS ESPÉCIES E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA Leandro Neves - ADUFF

Doutor em Psicologia Social. Professor do Curso Interdisciplinar em Educação do Campo/INFES/UFF.

tenho tido, com frequência, a oportunidade de viajar pelo

território brasileiro, o que me possibilitou constatar um processo de destruição das espécies vivas e não vivas, sobretudo da espécie humana. A partir de então, nos últimos anos, venho refletindo muito a respeito da destruição do planeta e comecei a discutir sobre o assunto em sala de aula com os e as discentes; inicialmente no curso de Psicologia na Universidade Federal Roraima e, posteriormente, no curso Interdisciplinar em Educação do Campo na Universidade Federal Fluminense. A ideia de destruição ou desastre em massa levou-me à primeira desconstrução, sendo esta a separação entre desastre em massa, o tempo presente e o território, tendo em vista que a ideia da destruição em massa nos parece distante no tempo e no território, mesmo recebendo informações diárias pela mídia das ocorrências dos desastres. 42


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Eu só consegui fazer essa desconstrução no momento em que adotei o pressuposto que o desastre pode ser entendido como sinônimo de crise do tempo social em que vivemos, advinda, sobretudo, das ações da esfera econômica e política. Obviamente que não descarto outras questões como a cultura e as relações sociais, mas o desastre explicita a crise do modelo de racionalidade econômica em que vivemos e leva à destruição das espécies. Desta forma, para contrapor esse processo de destruição, urge a construção de um novo paradigma de humanidade. A não preservação da vida no planeta e o modelo hegemônico de racionalidade econômica engendra o surgimento de uma “era não humana”. Essa é uma acepção futurista e intuitiva, merece mais atenção em função do ritmo acelerado de aniquilamento das espécies que a intervenção humana está provocando. Nesse sentido, compreendo como “era não humana” um período societário, em que a terra passará por constante destruição em massa causada por eventos antrópicos e naturais. Os seres humanos correm risco de extinção, assim como as outras espécies vivas e não vivas. Os avanços tecnológicos estão a caminho da produção de robôs com inteligência artificial e o projeto capitalista é a substituição do trabalho humano pelos aparatos tecnológicos. Dessa forma, a exploração do trabalho em todos os setores será intensificada, ao mesmo tempo em que haverá a utilização inconsequente dos recursos naturais, acarretando a eliminação gradual da vida humana em decorrência da pobreza econômica, violência, doenças e outros. Para fugir do caos e desastres diários do planeta, 43


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os humanos ricos concluirão um projeto de abandono do planeta, visto a insustentabilidade da vida na terra. Essa informação pode ser conferida nos projetos espaciais da NASA para os próximos 20 anos. Parto da constatação de que a sociedade capitalista é um sistema que produz crises cíclicas pela relação descontrolada e estratégica entre necessidades e produção de mercadoria, sendo impossível saciar todas as necessidades humanas criadas nessa lógica. A grande maioria da população é excluída desse processo. A produção incessante de mercadorias tem uma relação direta com a devastação ambiental e o tempo espoliado do trabalhador e da trabalhadora. Minha compreensão é que existe um esgotamento do sistema econômico, pautado puramente na racionalidade econômica; sistema esse que opera na contramão da preservação da vida no planeta. Entretanto, mesmo sendo uma racionalidade que promoveu avanços do ponto de vista tecnológico e no conforto das vidas humanas, no seu revés, promoveu muitas desigualdades sociais, econômicas e culturais e antecipa/acelera o desastre, que coloca em risco a diversidade biológica. Existem algumas estimativas para as próximas décadas que são alarmantes, tais como: A extinção de espécies, induzida pela atividade humana em uma velocidade cem vezes maior que extinção em condições naturais. Segundo dados do The Internacional Disaster Database, entre 1995 e 2015, foram registrados 6.457 desastres relacionados ao clima, que causou 606 mil óbitos e afetou mais de 4 bilhões de pessoas, entre feridos, desabrigados ou que precisaram de ajuda de emergência. No Brasil foram extintos centenas 44


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de povos originários, considerando o período do início da colonização europeia no território, e esse número aumenta a cada ano, em função da extinção das políticas públicas protetivas e do amparo aos povos indígenas, populações quilombolas e povos tradicionais. Esses são alguns dados, para nos alertar da crise sistêmica do capitalismo e da crise de paradigma da racionalidade econômica, pois tal sociedade tem uma escala, de intensidade e ritmo, cuja preocupação central não é a vida em conformidade com a natureza. Esse modelo de sociedade claramente nos mostra um “impulso de destruição”, orquestrado pelas ideologias economicistas e militares, que invadem boa parte das visões atuais dos governantes mundiais e das empresas transnacionais. Assim, nessa reflexão, faço o esforço de circunstanciar uma ideia de desastre como um evento de destruição de massa que acontece. Entretanto, só têm visibilidade os episódios transmitidos nas mídias, mas a destruição em massa ocorre diariamente, com a população morrendo de fome, sede, com a exploração do trabalho, com a destruição das políticas de proteção social, entre outros eventos críticos do dia-a-dia. Todavia, quase todos os desastres, derivam direta ou indiretamente da atividade humana no planeta, e muitas vezes poderiam ser tipificados como crime contra a espécie humana, e um crime do humano contra outras espécies, pois na relação humana com a natureza existe uma apropriação destrutiva. Nesse momento histórico, vivemos a pandemia da COVID-19, associado ao novo coronavírus; estima-se a morte de centenas de milhares de pessoas pelo mundo até a pandemia “acabar”. Percebemos que a COVID-19, 45


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ligou um alerta para o mundo, denunciando a fragilidade das políticas públicas e o fracasso do sistema neoliberal. No Brasil, temos um governo que se alinha às ideologias militares e economicistas, colocando em risco a vida de milhares de pessoas. A pandemia é o desastre do dia, e o avanço dela no mundo nos mostra que estamos em um sistema econômico e societário suicida, considerando que a acumulação de capital está na contramão do equilíbrio natural. Estamos acelerando a catástrofe natural de destruição de massa e diariamente produzindo crimes contra a humanidade, em escalas catastróficas, que põem a vida humana em alerta, caminhando para o que estamos chamando de uma “era não humana”. Urge um paradigma a ser construído, centrado na preservação da vida no planeta terra, na equidade social, no respeito à diversidade das espécies, na alteridade, ou seja, um paradigma no qual os seres humanos e a natureza estejam interligados, tornando possível a construção de um modelo de sociedade em que a racionalidade econômica esteja subserviente à vida, à ética e à equidade social. Oficina Botânica Ordinária, 2016 Bruno O. e Victor Tozarin

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MUDANÇAS CLIMÁTICAS E CONFLITOS AMBIENTAIS: RUMO AO ECOFASCISMO OU À TRANSIÇÃO ECOSSOCIAL? Céline Veríssimo - SESUNILA Doutora em Planejamento do Desenvolvimento. É docente do ILATTI. Coordenou e participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.

As

causas da devastação ambiental, esgotamento dos sistemas naturais, mudanças climáticas, aquecimento global, trabalho precário, pobreza, fome, migrações forçadas e conflitos armados não residem, como alguns neomalthusianos acreditam, no fato de o planeta ter demasiada gente concentrada no Sul nem nas capacidades limitadas da Terra. Pelo contrário, são as forças econômicas e políticas do capitalismo ultraliberal que produzem a desigual distribuição de recursos e o acesso limitado a direitos. Definitivamente, não se trata de uma questão de população, visto que se toda a gente organizasse o seu próprio trabalho e tivesse acesso à terra para cultivar a sua comida olhando pelo bem-estar uns dos outros e da natureza, estaria garantida a continuação segura de uma sociedade mais justa 47


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e da regeneração da vida no planeta. Lamentavelmente, o discurso hegemônico do “desenvolvimento sustentável”, inerente ao sistema capitalista-colonial-patriarcal, serve à exploração de classes, sobretudo negros, indígenas e mulheres; cria as discrepâncias entre centro e periferia, campo e cidade, aumentando a alienação entre a natureza e a sociedade, e a sociedade em si mesma. A construção do habitat humano faz parte dos processos históricos da sociedade, como qualquer outro ser vivo, pois também somos parte da natureza. Desde as casaaldeia no Alto Xingu em Mato Grosso e do povo Yanomami na Amazônia, às de outros povos tradicionais da América Latina, e outras partes do mundo, a história antiga da humanidade e os povos mais resistentes de hoje, mostram que a sociedade e a economia têm estado fortemente ligados à natureza para benefício mútuo, das comunidades e da natureza. Estruturas sociais não-capitalistas fomentam o sentido de comunidade, vizinhança, ajuda mútua e reciprocidade, onde as decisões da comunidade são apresentadas, discutidas e resolvidas pela própria comunidade. Nesses contextos, e ainda hoje, predomina a passagem oral do conhecimento sobre cultura e educação, sobre relação da humanidade com a natureza, onde tudo se interconecta entre si. O comportamento inato e dialético entre os humanos e a natureza, que tem vindo a guiar sociedades não hierarquizadas e não-capitalistas ao longo da história, tem sido ameaçado e modificado por influência de processos de aprendizagem civilizatórios altamente hierarquizados e predatórios.

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O colonialismo europeu iniciou um processo civilizatório caracterizado por invasão, exploração, violência e epistemicídio, que perdura replicado à escala mundial. As rotas de mercado do séc. XVII mostram a era colonial descrita na movimentação de bens e de pessoas de todas as partes do hemisfério Sul para as coroas de Portugal e Espanha na Península Ibérica e pouco depois, para as coroas de toda a Europa, marcada pelo extrativismo desenfreado para exportação, genocídio dos povos originários que se opunham, cristianização, escravatura e tráfico negreiro. Iniciou-se assim uma era de racismo, de capitalismo e de patriarcado judaico-cristão pela supremacia branca ocidental. A revolução industrial na Europa, a partir do séc. XVIII, consolidou a divisão da sociedade por classes sociais pela lógica do trabalho-capital, exploração da classe operária, onde negros/as e asiáticos/as ganhavam menos que os homens brancos, e mulheres e crianças recebiam os salários mais baixos e tinham jornadas mais longas. A desigualdade e a segregação social/racial/espacial causadas pela exclusão e marginalização resultam na pobreza, na violência e criminalidade, mas são contrapostas por insurgência popular, organização dos movimentos sociais e organizações sindicais pela luta de direitos. A continuidade hegemônica de dualismos “formal” e “informal”, “ricos” e “pobres”, “branco” e “negro”, “campo” e “cidade”, “homem” e “mulher”, entre outros, marca a diferença entre os poucos que detêm o poder, em detrimento da maioria governada num padrão civilizatório que se mantém atualmente. Nesta relação ‘centro-periferia’, a periferia é sempre profundamente marginalizada para que o centro consiga continuar a acumular riqueza. 49


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Cartaz da Oficina conduzida por Denilson Baniwa, Ocupeacidade e Parquinho Grรกfico

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O controle do habitat humano por forças de poder impulsionadas pela dominação capitalista-colonialpatriarcal, resultou na acentuada desigualdade social, crescente sofrimento humano e crise ecológica de hoje. Mais recentemente, a exaltação da tecnologia inteligente recorre cada vez mais a matérias-primas de recursos distantes e de forças de trabalho subalternizadas onde se praticam modernas formas de escravatura, no Sul Global. A forma tripla de dominação impõe-se como um modelo cultural cujas concepções estéticas, formas de habitar e trabalho hierárquico são formas de vida universalista, em que aqueles/as que forem diferentes são excluídos/as e passam a ser considerados/as sub-pessoas, os outros e outras, em detrimento de valores culturais locais, desconsiderando quaisquer pré-existências. Rapidamente, o modelo civilizatório eurocêntrico do extrativismo, da industrialização e da urbanização propagouse globalmente, levando à massiva privatização da terra, à expulsão de indígenas e camponeses dos seus territórios ancestrais, migrações forçadas e destruição da natureza. No atual momento de agudização do sistema capitalistacolonial-patriarcal, o papel da educação provavelmente nunca foi tão intelectualmente desafiante, socialmente vital e ecologicamente urgente como agora. A mercantilização da natureza, do conhecimento e das pessoas para produção e acumulação de capital implica o empobrecimento crescente de pessoas com trabalho escravo e trabalho precário, e a degradação e o esgotamento da vida na Terra.

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O grande problema perante o qual nos deparamos, é que a atual disjunção entre a sociedade humana e a natureza foi causada pelas três grandes formas de dominação: o capitalismo, a modernidade-colonialidade ocidental e o hetero-patriarcado. Evidências atuais na relação entre a sociedade e a natureza, apontam que provavelmente a proporção privilegiada da população humana já esgotou a capacidade de auto-regeneração da Terra. Os consumidorespoluidores são os EUA, a Europa, o Japão e uma elite na China, em detrimento da maioria da população mundial que vive em países do Sul Global, consumindo e gastando incomparavelmente menos. O Norte depende de energia e matérias-primas vindas de ecossistemas que ficam nos países do Sul, destruindo a natureza e empobrecendo as populações nessas regiões. O ritmo moderno do crescimento econômico neoliberal tem sido acompanhado de violências e conflitos, provocando o aumento da desigualdade, como por exemplo as zonas de sacrifício que se geram onde comunidades tradicionais e originárias em situação de vulnerabilidade, são as mais atingidas por riscos sócio-ambientais, causados por indústria e/ou grandes empreendimentos. A busca extrativista na América Latina, África e Ásia para consumo nos países ricos, reproduzem padrões colonialistas em pleno séc. XXI, provocando sérios conflitos, desastres e crimes socioambientais. O Brasil é dos países mais violentos contra ambientalistas e lideranças indígenas protetoras da floresta, mais fustigado por desastres sócio-ambientais, recorrendo a políticas públicas que ignoram os direitos dos indígenas e os direitos ambientais, privilegiando ruralistas, madeireiras, 52


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mineradoras, hidroelétricas e armamentistas. Alguns exemplos disso são a tragédia da construção da Usina de Belo Monte no Pará para mineração; o rompimento da barragem do Fundão afetando povos originários e tradicionais e toda a Bacia do Rio Doce em dois estados - Minas Gerais e Espírito Santo; e mais recentemente, outro trágico rompimento de barragem em Brumadinho, Minas Gerais; o flagelo dos incêndios na Amazônia, Mato Grosso do Sul e Paraguai; e o vazamento de petróleo nas praias do Nordeste. O acesso desigual ao bem comum, é causado por forças políticas e econômicas regidas pelo mercado para o desenvolvimento capitalista. O capitalismo precisa que outros sejam empobrecidos e excluídos, para poder subsistir. Essa pressão que resulta na crescente degradação ambiental, ocorre por falta de vontade e inércia política, incapacidade das instituições governamentais, e, sobretudo, pelo modelo de desenvolvimento predatório e excludente para servir a economia de mercado, mercantilizando a vida e incapacitando assim a pluriculturalidade no mundo. O discurso bélico e sanitário no contexto da pandemia COVID19, tem sido uma estratégia convenientemente despolitizada para que o sistema ultra-liberal em momento algum seja posto em causa, centralizando as atenções para o regresso à “normalidade”, priorizando a economia em vez das pessoas. A ânsia desesperada de “salvar a economia e os empregos” vai desafiar os limites de atuação do capital financeiro e os limites biofísicos da Terra com um ainda maior extrativismo e trabalho ainda mais precário, para permitir retomar e crescer ainda mais. Por isso, queremos tudo menos 53


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Oventic, 1999 Beatriz Aurora

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“normalidade”! A fase pós-COVID19 será necessariamente acompanhada de picos intermitentes, deste ou de outros vírus, causando muitas fatalidades nas periferias do sistema, como que uma espécie de extermínio dos mais vulneráveis. A expansão do teletrabalho e ensino à distância aumentarão a precarização do trabalho e da educação, e vão fragmentar mais ainda as classes sociais, com conseqüências desastrosas. A recente queda do valor do petróleo é mais um sinal que o sistema em que vivemos, cuja economia é altamente dependente dos combustíveis fósseis, está evidentemente em crise. Nesse momento de grandes incertezas, o pós-COVID19 poderá causar uma agudização das atuais crises, com mais repressão, violência e controle de uma classe dominante sobre a grande maioria trabalhadora. No calor da recessão econômica global, podemos vir a deparar-nos com um ainda maior avanço da direita, numa sociedade assustada e desorientada que se apoia no discurso nacionalista de lideranças “salvadoras da pátria”, que inevitavelmente caminham na direção de um fascismo social. Perante uma eco-ansiedade cada vez mais consciente da escassez geral dos sistemas naturais e desesperada em proteger o planeta, para controlar os escassos bens naturais e frear novos surtos pandêmicos, poderão emergir formas radicalmente repressivas de proteção ambiental e higienização violenta contra os setores populares, na forma de um fascismo ecológico ou eco-fascismo. Por outro lado, a pandemia também tem sido vista como uma janela de oportunidade para cuidar do planeta e transformar a sociedade. Estamos num 56


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momento estratégico de descoberta de formas populares de construção de uma sociedade ecossocial, mais solidária e empática, sem classes sociais oprimidas pela burguesia, na qual a humanidade se entende como integrante da natureza. No passado, momentos de adversidade foram acompanhados pela busca por autonomia coletiva (na alimentação, na energia, na habitação, no cuidado). A pandemia, despoletou simultaneamente a necessidade de autonomia e um retorno à terra, visível, por exemplo, no aumento de hortas urbanas individuais e comunitárias, e ocupação ou negociação de terras para produção alimentar. Um outro aspecto muito importante é o fortalecimento do vínculo entre as pessoas, o sentido comunitário, a ajuda mútua e solidária – despontaram redes auto-organizadas de distribuição de alimentos comprados diretamente dos produtores, redes de assistência a idosos/ as, redes de apoio a moradores/as de rua, restaurantes comunitários, entre muitas outras, maioritariamente lideradas por mulheres. O caminho para uma transição ecossocial depende do fortalecimento e expansão dos movimentos populares, lideranças comunitárias, lideranças dos povos tradicionais e sindicatos laborais, aqueles que, organizados e articulados entre si, emergem das bases com um posicionamento mais firme anti-capitalismo, anti-racismo e anti-hetero-patriarcado-branco-cristão, porque entendem que, para ficar tudo bem, é preciso termos esperança para lutarmos unidas e unidos por um mundo melhor.

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DA QUESTÃO AMBIENTAL NA REGIÃO TRINACIONAL À (RE)CONSTRUÇÃO PARTICIPATIVA CIVILIZATÓRIA Luciana Ribeiro - sesunila

Doutora em Educação Brasileira. É docente do ILAESP. Participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.

Minha aula sobre a questão ambiental na região trinacional

no curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” pretendeu contextualizar, brevemente, quanto aos principais problemas ambientais vividos em nossa região, aproveitando para pensá-los em suas raízes civilizatórias, de modo a subsidiar a atuação das professoras e professores da rede municipal de ensino. A perspectiva de onde parto para abordar a questão é a da Educação Ambiental, doravante apenas EA. Sua origem se dá nos idos da década de 1970, com as Conferências Intergovernamentais de Estocolmo (1972), de Belgrado (1975) e de Tbilisi (1977), organizadas 58


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pela ONU. Em Tbilisi, foram organizadas 41 Recomendações em nível mundial, endossadas por 150 países. Os fundamentos da então nascente EA foram essas recomendações, entre as quais destaco sucintamente as bases principais: (a) educar indivíduos e coletividades de modo participativo e interdisciplinar; (b) partir de problemas da realidade local (c) tomados ao modo de temas geradores, no sentido freireano. Pretende, com isso, desenvolver (d) o pensamento complexo, conforme Edgar Morin e, posteriormente, Enrique Leff; e (e) a ética da sustentabilidade, tendo em vista a (f) construção de uma nova ordem internacional responsável, cooperativa e solidária, garantidora da qualidade ambiental para todos e todas. Aqui faço um parênteses, pois cabe diferenciar essa proposta da agenda desenvolvimentista neoliberal da maioria das empresas e de setores do governo, derivada da ideia de desenvolvimento sustentável, cunhada pelo Relatório Brundtland e apresentada durante a Rio-92, explicitada na Agenda 21. Neste mesmo evento, paralelamente, o Fórum Global de ONGs e Movimentos Sociais propunha o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Este é o documento inspirador do movimento e das políticas de EA na América Latina. De modo que a palavra sustentabilidade assume significado diferente para os educadores e educadoras ambientais (proveniente de sociedade sustentável) e para o empresariado (proveniente de desenvolvimento sustentável). Finalizando o parênteses, segundo Tbilisi e documentos posteriores, a EA deve ter (g) caráter permanente, (h) abranger a educação não-formal, todos níveis de ensino formal e os meios de comunicação 59


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de massa; (i) dirigir-se a todas as categorias profissionais e idades; (j) vinculando-se à legislação, às políticas e às decisões relativas ao ambiente adotadas pelo governo. Estes fundamentos da EA voltam-se à construção de conhecimentos, valores, comportamentos, habilidades e práticas, indissociáveis entre si, capazes de fortalecer comunidades e pessoas a fim de que participem ativamente na construção de soluções e de medidas de prevenção aos problemas ambientais, bem como da gestão da qualidade ambiental. O documento de Tbilisi enfatiza a necessidade de mostrar claramente as interdependências econômicas, políticas, sociais e ecológicas, as quais levam a consequências de alcance internacional. Posteriormente, outros documentos incorporaram estas recomendações em seus princípios, objetivos e estratégias, como podemos ver no Tratado já mencionado, na Lei Nacional de EA e nos consequentes Política e Programa Nacional de EA, no Brasil, de 2005. Segundo os documentos, o ambiente deve ser entendido indissociavelmente em seus aspectos ecológicos, sociais, econômicos, científicos, tecnológicos, políticos, culturais, éticos e estéticos. Portanto, o “ambiental” da EA se refere a este conjunto de processos indissociáveis, nunca tendo sido restrito a tratar apenas aspectos ecológicos ou geográficos, como ainda se costuma imaginar. Com base nesse entendimento, que fundamenta meu trabalho como educadora ambiental, iniciei a aula diferenciando problemas de conflitos ambientais, frequentemente confundidos entre si. O problema ambiental pode estar ocorrendo, com amplo e intenso impacto, sem ter 60


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se tornado conflito. Já o conflito ambiental se dá quando os interesses relativos ao uso ou à posse de bens ambientais são disputados explicitamente, usualmente contrapondo a sobrevivência de povos e comunidades a interesses do capital. Importa, ainda, diferenciar os problemas de seus efeitos e causas. Abordamos, na aula, os conflitos e problemas na região. A situação ambiental de Foz do Iguaçu foi analisada a partir de dados de recente pesquisa realizada pelo Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, da UNILA, em parceria com o Coletivo Educador Municipal, sobre a percepção ambiental no município. De acordo com habitantes de Foz, os problemas ambientais se concentram em três temas: desmatamento, lixo, água (incluindo infraestrutura, disponibilidade e contaminação). Os principais conflitos lembrados em Foz do Iguaçu são a contaminação por agrotóxicos (na água, no solo, no ar, nos trabalhadores e nos consumidores), prejudicando a pequena produção orgânica local, e a disputa em torno da reabertura ou não da antiga Estrada do Colono, cujos dezessete quilômetros cortariam o Parque Nacional do Iguaçu em dois. Em Puerto Iguazu, também se destacam os mesmos três temas: (a) resíduos: queima, falta de separação; (b) vegetação: queimadas, falta de arborização urbana; (c) água: moradias próximas de rios, falta de rede esgoto e de tratamento da água. Os conflitos ali se dão em torno das terras indígenas, disputadas pelos grandes empreendimentos hoteleiros internacionais e, do uso de agrotóxicos, sobretudo pela multinacional ARAUCO, monocultivadora de pinus. Na outra borda da fronteira, em Ciudad del Este, a 61


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situação não difere. A questão da moradia dos indígenas e da produção alimentar orgânica afetada pelas monoculturas de soja são os conflitos mais expressivos. Com relação aos problemas ambientais da Grande Ciudad del Este, novamente são mencionados os resíduos e a poluição em geral, os efeitos das mudanças climáticas sobre a infraestrutura urbana e a habitação, principalmente devido a enchentes e granizo. No tocante à habitação, sobretudo às ocupações irregulares, os três municípios a apontaram como problema, por razões diferentes: pressão sobre os rios, resíduos, insegurança da população. Como se vê, a região trinacional padece de problemas e conflitos similares e, diante deles, é fundamental construir soluções conjuntas e/ou integradas, especialmente do ponto de vista das populações mais afetadas. Se os problemas e conflitos ambientais são similares em geral, as formas de lidar com eles, no entanto, podem ser bastante distintas. Historicamente, há abordagens meramente tecnicistas, limitadas aos efeitos dos problemas ambientais. Há também abordagens conservacionistas, que apostam na superação do antropocentrismo por meio do cultivo da sensibilidade, da reconexão com a natureza e da difusão de informação ecológica. Finalmente, as abordagens ambientalistas críticas reúnem as soluções tecnológicas e educativas anteriores, mas sob outra ótica e finalidade, pois dirigem-se à origem da questão, isto é, o modelo de sociedade predominante, construído na Modernidade ocidental. A economia, a política, a construção e a difusão do conhecimento, são pilares estruturadores da sociedade. 62


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Jagua, 2015 Karen Paulina Biswell

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Importa saber que a forma como funcionam é apenas uma construção, cabendo, portanto, outras possibilidades. O formato atual surgiu na busca de resolver problemas do contexto histórico feudal. De fato, houve avanços. A nova liberdade econômica então instaurada rompia com a imobilidade e conservadorismo feudal; a política representativa e tripartite buscava superar os autoritarismos dos regimes monárquicos, absolutistas, imperialistas e teocráticos; a ciência construiu possibilidades explicativas inéditas ao substituir a estruturação dogmática do conhecimento; a educação bancária alcança hoje populações antes inimagináveis, chegando a 90% da humanidade. Contudo, tais avanços também trouxeram problemas. A democracia representativa não tem dado conta de representar os diversos interesses, necessidades e setores da sociedade, os quais permanecem majoritariamente alienados e alijados dos processos decisórios. O capitalismo neoliberal, voraz e excludente, tem demonstrado sua crueldade socioambiental a pretexto da defesa da liberdade, na prática restrita e dirigida apenas ao mercado. Em sua ilusão de crescimento inesgotável, explora a base material da vida no planeta, exaurindo ecossistemas, trabalhadores e trabalhadoras, restando um rastro de corrupção, individualismo e desigualdade. A ciência ultra especialista promove ganhos no conhecimento dos detalhes, porém perde de vista a complexidade da realidade. Pretendendo-se neutra e objetiva, equivoca-se, servindo à estrutura político-econômica como se acima dela estivesse. A educação bancária contribuiu para a escolarização de bilhões de pessoas, mas à custa de um caráter autoritário, 64


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conservador e frequentemente desconectado da realidade estudantil, sendo útil à manutenção do status quo. Neste momento de crise civilizatória da Modernidade, quando os problemas e conflitos ambientais se agudizam e crescem exponencialmente, se explicitam as raízes da questão na falta de cultivo da ética. Nosso limite, o individualismo. Nossa necessidade, a autonomia e a interdependência. O que fazer: enfrentar as deficiências históricas da estruturação da sociedade. Nos reconstruir subjetivamente para construir intersubjetivamente. A reinvenção da política exige o desenvolvimento de uma lógica cooperativa e instrumentos ampliadores da co-responsabilidade lúcida. Considerar a vida como valor soberano e o atendimento às necessidades reais a partir dos limites da biosfera, permitirá à economia conquistar abundância e universalizar o bem estar social. A perspectiva inter e transdisciplinar, sistêmica e complexa, bem como a superação do mito da neutralidade ética, dará à ciência condições de melhor aproximar-se da realidade, além de possibilitar a releitura de conhecimentos hoje periféricos dos diversos povos originários e populações tradicionais. A universalização real da educação, indo além da socialização inicial, exige compromisso com a humanização, com o senso de pertencimento à Terra, com a liberação dos potenciais das comunidades, com o respeito às singularidades simultâneo ao apreço pelo patrimônio acumulado pela humanidade. Em síntese, a resolução dos críticos problemas e conflitos socioambientais da atualidade, seja em nível local ou global, exige da sociedade a perspicácia e a profundidade de buscar as causas da situação nesse modelo de sociedade 65


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pautado pela exploração capitalista, que ignora o fato dos processos basilares do planeta sustentarem também a vida humana. A transição para um novo mundo possível está em curso. Em meio aos efeitos danosos do modelo de sociedade hegemônico, vem se delineando um novo experimento de humanidade, integrada ecológica e socialmente. Pode ser exemplificada, entre diversos outros, em saberes e práticas como a permacultura; a agricultura sintrópica; a agroecologia; o design regenerativo; a educação crítica e humanista; a atuação em redes solidárias e cooperativas; as empresas B; a democracia pura; a economia do bem comum; as ecovilas; os territórios sustentáveis; a democracia ecológica radical; a justiça restaurativa; as décadas de propostas participativas de uma Constituição Planetária; o resgate cultural do bem viver. O longo momento de transição que vivemos no século XXI nos desafia e nos convida a superar a alienação em todas as suas formas, construindo a integração de si, a integração com o outro e a integração com o mundo. É um processo de auto-reeducação, ao mesmo tempo que um investimento coletivo e confiante, construindo participativamente políticas públicas e fortalecendo redes comunitárias, a partir dos elementos que nos unem – na condição de humanidade.

O livro das árvores -Ticuna, 1999 Desenhos da Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues e Jussara Gomes Gruber

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COSMOPOLÍTICA INDÍGENA E SABERES ANCESTRAIS NA AMÉRICA LATINA:

ALTERNATIVAS CONTRA A MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA Senilde Guanaes - SESUNILA Doutora em Antropologia. É docente do ILAACH e do PPGICAL. Participou como professora do mini-curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.

Entender

as distintas concepções e relações entre os seres humanos e o que entendemos como “mundo natural” é fundamental para nos situarmos em relação às políticas e questões socioambientais contemporâneas, em especial para a compreensão da dimensão econômica e política da natureza. Sabemos que a ideia de natureza, paisagem e civilização depende muito das noções de cultura e natureza construídas ao longo da história, assim como as políticas ambientais. O presente texto traz um resumo dessas reflexões desde a perspectiva antropológica, apresentando uma visão crítica do capitalismo, que mercantiliza a natureza e a vida. 68


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Os deslocamentos forçados, a expropriação territorial de comunidades rurais, tradicionais e indígenas e a produção da pobreza são exemplos de como o mercado lida com os grupos sociais que resistem e ou que estão excluídos desses processos. De acordo com Joán Martinez-Alier, no livro “O Ecologismo dos Pobres”, de 1992, a expansão do capitalismo nas sociedades globalizadas faz com que essas relações sejam sempre desiguais e conflituosas, devido à apropriação e exploração predatória da natureza, fazendo com que alguns grupos tenham maior disponibilidade e mais acesso, enquanto outros sofrem com os danos, a poluição e a escassez dos recursos naturais. São relações marcadas por disputas entre os grupos sociais que defendem diferentes lógicas em condições estruturais de profundas desigualdades econômicas, étnicoraciais e de gênero. Esse debate, a partir da Ecologia Política, teve origem nos trabalhos do antropólogo Eric Wolf, e outros autores e autoras das décadas de 1970 e 1980. A maioria dos estudiosos e estudiosas da área provém da antropologia, geografia, ciência política, e de outras ciências sociais, que buscavam entender as relações sociais, econômicas e políticas que determinavam o acesso, uso, apropriação e gestão dos recursos naturais sob o marco do capitalismo e da sociedade de classes, especialmente após o processo de globalização ou mundialização da lógica neoliberal, como denominam alguns autores e autoras. Na perspectiva antropológica, a noção de natureza sempre variou de acordo com os contextos históricos e com as transformações da sociedade, trazendo desde visões monistas a dualistas, como a ideia de natureza em oposição à 69


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civilização e à cultura, que prevalece na concepção moderna de civilização e de ciência. Contudo, a biodiversidade, o acesso a recursos genéticos e as mudanças climáticas elevaram as questões ambientais a uma escala mundial, transcendendo os contextos locais e colocando em diálogo distintas ideias e práticas relacionadas à natureza. A discussão sobre natureza e cultura, na qual a antropologia sempre esteve envolvida, pode contribuir para a compreensão das diversas noções de natureza coexistentes na sociedade, que ora entram em negociação, ora entram em conflito e disputas. O movimento ambientalista, em todo o mundo, tem criticado a estratégia global de crescimento econômico ilimitado e a racionalidade moderna, que subordina, conquista e domina a natureza. Por outro lado, nas últimas décadas a luta pela democratização do debate sobre a crise ambiental, o desenvolvimento, os direitos humanos e luta das mulheres tiveram grandes avanços. O movimento feminista demonstrou que as relações produzidas com base no gênero são resultado de processos sociais e não naturais e que as ciências reproduzem valores sexistas, racistas e classistas. Guillermo Foladori e Juan Taks, no artigo “Um Olhar Antropológico Sobre a Questão Ambiental”, de 2004, destacam duas vertentes para a compreensão da problemática ambiental contemporânea: a primeira é informativa, e nela seu papel é desmistificar os preconceitos sobre a relação das sociedades com seus ambientes naturais, tais como os mitos da existência de um vínculo harmonioso entre sociedade e natureza nos tempos pré-industriais, o da tecnologia moderna como causa última da crise ecológica, ou o do papel sacrossanto 70


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da ciência como guia em direção à sustentabilidade. A segunda é metodológica, e concerne à questão de como abordar os problemas ambientais de modo a caminhar rumo a sociedades mais sustentáveis. Para os autores, podemos construir um olhar sobre a relação sociedade-natureza que não caia nem no romantismo ambientalista daqueles que veem em algumas sociedades pré-capitalistas um modelo de sustentabilidade ambiental, nem na apologia modernista do capitalismo, baseada na aplicação da ciência e da tecnologia hegemônicas, que se tornam ainda mais imperativas a partir dos anos 80 com a mudança climática, que rapidamente se transformou no denominador comum de toda a problemática ambiental, junto com o aquecimento global. Tudo passa a ser ligado ao clima e à mudança climática: a biodiversidade, as florestas, as atividades produtivas humanas, as doenças infecciosas, tudo é unificado em torno do clima e seus impactos e soluções estão concentrados em um grupo seleto de cientistas e seus sofisticados equipamentos. De acordo com a visão antropológica trazida pelos autores, a forma de conceber a natureza e os problemas que a natureza impõe não podem ser isolados dos agentes que criam essa consciência. Não se trata simplesmente da “sociedade”, mas de povos, grupos e contextos específicos. Perguntas como “O que é sujo ou limpo?”; “quando uma espécie ou recurso está em extinção?”, têm respostas dependentes de critérios relativos à cultura, que dependem de um sistema de valores. É preciso, em outras palavras, desconstruir a ideia de universalidade e da globalidade no debate das questões ambientais.

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Na cosmopolítica indígena, a Pacha Mama ou Madre Tierra, por exemplo, implica numa relação simbiótica com o ecossistema. O conceito se origina das cosmovisões andinas e tem sido utilizado por ambientalistas e organizações campesinas em toda a América Latina, tendo sido consagrado pela nova Constituição do Equador e da Bolívia. O conceito Pacha Mama, além de fundamentar o biocentrismo, tem enorme potencial político porque permite integrar a visão de culturas subordinadas e silenciadas por anos e abre perspectivas alternativas ao antropocentrismo europeu, que concebe a natureza apenas como objeto de valor, agudizado sob o capitalismo. O biocentrismo, presente na cosmovisão indígena, tenta combater a ideia de uma natureza externa aos seres humanos. Este é o caso das antigas crenças dos Guarani, povo que acredita que seu conceito sobre simesmo (como pessoa) está intimamente ligado ao ambiente (habitat) em que vivem. Ou seja, sem um habitat natural não pode existir a pessoa: sem “teko-ha” não pode haver um “teko”. O “teko-ha” é, além disso, um espaço comunal com água, árvores e outros recursos que permitem o sustento da vida como um todo, incluindo o mundo da cultura, como as normas morais (o ethos) expresso no “teko ñemboro’y” ou na noção de uma boa vida, expresso no “teko bratu” ou “teko porã”. Os povos Guarani já formaram uma das maiores extensões territoriais alcançadas pelos falantes de uma só língua pré-colombiana na América. O chamado território Guarani compreende atualmente quatro países: Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai, ainda que uma pequena parcela 72


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transite em outros países, como o Uruguai. São cerca de cem mil pessoas distribuídas em aproximadamente quinhentas aldeias e/ou comunidades, incluindo os habitantes do litoral sudeste do Brasil, da região do Chaco no Paraguai, do noroeste da Argentina e do leste da Bolívia, os Guarani constituem uma das maiores populações indígenas da América do Sul. Além de um território extenso, os Guarani acreditam também nas afinidades culturais, linguísticas e cosmológicas que podem conferir o sentido de “nação” ao seu povo, fortalecendo os processos de retomada do território ancestral e das práticas ambientais que são fundamentais para a manutenção e preservação desses territórios. A ideia de uma “nação Guarani” é hoje uma das estratégias de preservação do seu território ancestral, porque reforça suas origens comuns, as relações de parentesco e consanguinidade, os rituais e crenças, e as redes sociais e políticas. Entretanto, o território Guarani só pode ser compreendido a partir da trajetória de deslocamentos forçados impostos aos povos indígenas de modo geral, mas principalmente àqueles situados em regiões de fronteira, como os Avá Guarani na tríplice fronteira sul, por exemplo. Esses deslocamentos foram provocados por projetos conservacionistas, empreendimentos econômicos e de expansão territorial, e por regimes ditatoriais que expropriaram populações tradicionais, indígenas e rurais das suas terras originárias. O pesquisador Bartomeu Melià, que convive com os Guarani desde 1969, os define como “grandes caminhadores”. Segundo Melià, o caminhar é provavelmente um hábito “que rememora a migração” e faz parte da vida espiritual dos 73


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Guarani. Se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiowá, o ‘mborahéi puku’, o ‘canto longo’, é uma marcha durante treze ou mais céus para assim entrar na casa do “Nosso Avô” no final da vida. Na mitologia Guarani, a terra sem males (Yvy marã e’ỹ, em tupi yby marã e’yma) faz referência ao mito de uma terra onde não haveria fome, guerras ou doenças. De acordo com Melià, esta seria “a terra da liberdade de todos os homens”, cujo caminho “era um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão”. Essa terra era para onde os falecidos iam, e os tupis acreditavam poder encontrá-los. O mito foi um dos principais instrumentos de resistência utilizados pelo povo guarani contra o domínio dos espanhóis e portugueses. Os movimentos pela busca da “terra sem males” eram articulados pelos pajés. Em 1549, sofrendo com a colonização portuguesa, 15 mil índios e índias partiram do litoral rumo aos Andes, buscando a “terra sem males”. Apenas trezentos chegaram a Chachalpoyas, no Peru, onde, ao invés de bonança, teriam sido capturados e presos. A história dos Guarani representa a história de todos os povos originários na América Latina, que expulsos das suas terras durante séculos de invasão, esbulho, exploração e apropriação dos recursos naturais e dos seus conhecimentos, tentam retomá-las a partir de litígios acirrados, violentos e desiguais. Especialmente na América Latina, a disputa pelas terras e os bens naturais, convertidos em recursos e em mercadorias pela lógica capitalocêntrica, é também pelo controle do conhecimento, da etnobiodiversidade e dos saberes e práticas dominados pelos povos indígenas. Nesse 74


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sentido, a cosmopolítica indígena e os saberes ancestrais, por um lado desafiam os poderes hegemônicos e os seus saberes eurocentrados, e por outro, abrem perspectivas de um mundo “pluriverso”, conceito tomado de Arturo Escobar, que em seu artigo “Territórios de diferença: a ontologia política dos ‘direitos ao território’”, defende a existência de outros mundos ou “ontologias relacionais” perante a crise social, territorial e ecológica promovidas pelo capitalismo. Sem título (habitar a paisagem), 2014 Cleiri Cardoso

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Educación Popular y Ecofeminismo: tejiendo rebeldía en América Latina Maria Lilia Macedo - UNILA Mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento pela UNILA. Militante social na Argentina, educadora popular e ecofeminista.

¡A la Matria que nos parió!

En el camino de resistencia, luchas y cuestionamientos los

movimientos sociales rurales supieron posicionarse contra las políticas establecidas por el modelo colonial, capitalista y patriarcal generadores de opresión, desigualdad y marginalización en la sociedad. Las Mujeres Rurales tuvieron y tienen un rol destacado en ese recorrido histórico como principales protagonistas de los cambios que se vienen dando en América Latina y el Caribe. Las Mujeres Rurales van tejiendo entre el campo y la ciudad lazos de rebeldía que les permite construir desde el ecofeminismo y la educación popular un camino hacia la emancipación colectiva. La apuesta en ese emblema simbólico “mujeres del campo y la 76


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ciudad” es necesaria para, la permanencia de las comunidades en el territorio–Pachamama del Abya Ayala; el cuidado de la biodiversidad e identidad, y, fundamental para el desarrollo rural, conforme apuntan Silvia Ferro y Ciclana Chiarulli. Desde esa perspectiva, planteada desde ese amplio mundo denominado ruralidad es que los movimientos sociales rurales proponen y promueven la educación popular y el ecofeminismo en contraposición al modelo hegemónico occidental instaurador de un modelo educativo bancario, capitalista y eurocéntrico. El filósofo Enrique Dussel, en 1994, destacou las falencias e inequidades que ha generado el modelo europeo/norteamericano bajo su paradigma único, moderno y eurocéntrico que en su totalidad es la negación de un otro diferente. Ese otro es el sujeto nativo, indígena, campesino, afrodescendiente que viven en territorios rurales/ urbanos y presentan un paradigma alternativo desde la América profunda según Mignolo 2009. En ese contexto, el giro descolonial es una herramienta de transgresión y alternativa para pensar el mundo desde el pluriverso/ pluralidad y romper con los esquemas impuestos por las elites colonial, neocolonial y neoliberal, para poner fin al patriarcado y epistemicidio que la globalización genera e impone. La Educación Popular en América Latina y el Caribe constituye un encuentro de conocimientos, saberes y experiencias donde se piensa y se plantea la pedagogía decolonial de la liberación en su multiplicidad conceptual, histórica, de resistencia y de luchas. Este modelo pedagógico emerge en Brasil en los años 70 como alternativa a la educación 77


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moderna bancaria/tradicional, conforme muestra Paulo Freire. El pedagogo ve a la educación como una herramienta hacia la emancipación de los pueblos y comprende que “enseñar no es transferir conocimientos, sino crear las posibilidades para su producción o construcción”. Esto supone que el “oprimido” descubre por él mismo y con orientación/servicio descolonizador del pedagogo crítico, cuál es la realidad interior, exterior y contexto social, en la cual el ambiente es inherente. La pedagogía freiriana de la educación popular se basa, por lo tanto, en cuatro pilares: (1) Crítica y dialéctica - el oprimido debe tener condiciones adecuadas para descubrirse y reconocerse mediante la reflexión y comprensión; (2) Contexto - cualquier persona siempre se sitúa en relación con un contexto social para entender el universo. La lectura del mundo, precede siempre de la lectura de la palabra y la lectura de ésta implica la continuidad de la lectura de aquel; (3) Método - el diálogo y la reflexión son fundamentales en los procesos de enseñanza y aprendizaje, sin él diálogo no hay comunicación y sin esta no hay verdadera educación; e (4) Praxis - es la reflexión y acción de los hombres y mujeres sobre el mundo para transformarlo, sin ella es imposible la superación de la contradicción opresor-oprimido. Al dedicar este texto à la Matria, quiero marcar un horizonte posible, una lógica que plantea una igualdad, sororidad y empatía, con la intención de recuperar y reapropiarse de la riqueza “Madre tierra” desde una emancipación femenina con foco en América Latina. Entonces, en ese contexto de desigualdad social/cultural, político/ideológico, productivo/ económico es que las mujeres rurales y urbanas alzan su 78


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voz para desmantelar la opresión recibida por el modelo occidental bajo los parámetros capitalista, patriarcal/ eclesiástico y colonial/neoliberal y neocolonial. Deolinda Carrizo, integrante y referenta del Movimiento Campesino de Santiago del Estero, Argentina - MOCASE VC), recientemente declaró que: las mujeres en el campo y la ciudad son atravesadas por dos sistemas malignos que las golpea constantemente. La activista ecofeminista afirma que hay una necesidad de organizar la lucha contra el capitalismo, colonialismo y patriarcado para recuperar nuestra autonomía, territorio, cuerpo y espacios públicos, como así repartir las tareas y desconstruir una lógica impuesta. Esto implica el derecho a cómo vamos a producir alimentos, comercializarlos y distribuir las tareas de los hogares y movimiento.

Deolinda Carrizo también afirma que las mujeres son las principales cuidadoras de las semillas nativas y productoras de los alimentos que se consumen en el mundo, tienen presente la reivindicación por, agricultura familiar/ campesina/indígena, soberanía alimentaria y agroecología, reforma agraria integral y saberes ancestrales y economía popular ecofeminista. El ecofeminismo y feminismo popular tienen la intención de desarmar la construcción social de género que asocian únicamente a las mujeres con el cuidado, sensibilidad o intuición y sumisión. Esta connotación no es inocente porque responde a parámetros enfocados a generar desigualdad. El ecofeminismo debe enfatizar libertad, emancipación e igualdad. Estefanía García Fores, experta en soberanía alimentaria y estudios de género, afirma que:

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Sí ser ecofeministas significa amar la tierra, luchar por nuestros derechos como productoras, mujeres y amantes de nuestros pueblos y entornos naturales, luchar por ser visibles y que se reconozca nuestro trabajo (como agricultoras, cuidadoras de la salud, transformadoras), estar en contra de los transgénicos, de las nucleares, querer vender nuestros productos directamente y que las cooperativas nos permitan acceder a los puestos organizativos al igual que las organizaciones agrarias a las que pertenecemos, en ese caso, somos ecofeministas.

Las mujeres son sujetas transformadoras que pueden alzar la voz, mujeres del Abya Yala, de diversos territorios que construyen saber popular y tejen redes de resistencia y, como dicen las mujeres zapatistas “no queremos más un mundo sin nosotras”. Aunque occidente quiso, y en cierta medida lo hizo, dominar el mundo y con ello colocar una historia, cultura e ideología colonial/patriarcal, estamos asistiendo al fortalecimiento de movimientos de mujeres que cuestionan la razón masculina/capitalista de la modernidad y proponen alternativas descoloniales desde el ecofeminismo en conjunto a los movimientos de base territorial. En ese transitar, la pedagogía de las oprimidas se hizo escuchar, sentir y proclamar. La educación popular con perspectiva ecofeminista es herramienta de transformación del movimiento de mujeres feministas/ecofeministas y de emancipación del mundo con Pachamama: la construcción de conciencia, fortalecimiento del movimiento, reflexión colectiva y, a la vez esta lucha popular en construcción es indispensable a la concepción y experiencia de una educación pública popular, de una escuela nueva que incorpore todos los desafíos de su tiempo histórico. La historia nunca empezó a ser contada con la participación de las mujeres y mucho menos desde los espacios del ABYA YALA, es por ello que las mujeres rurales – ecofeministas se abrazan para escribirla desde la fuerza e interpelación interseccional. 80


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Igarapé, 2017 Laura Gorski e Renata Cruz

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ALIMENTAÇÃO, SOCIEDADE E AMBIENTE Ana Silvia Fonseca - SESUNILA

Doutora em Linguística Aplicada. É docente do ciclo comum de estudos. Participou como professora do curso “Educação para a Ecologia e Sociedade na América Latina” organizado pela SESUNILA e SINPREFI em 2019.

A maior mudança que temos de fazer é ir do consumo para a produção, mesmo que em pequena escala, em nossos jardins. Daí a futilidade de revolucionários sem jardins, que dependem do próprio sistema que atacam, que produzem palavras e balas, mas não comida e abrigo. — Bill Mollison

A alimentação é um dos fatores mais determinantes da

sociedade humana contemporânea, pois se alimentar, hoje, é um ato político de grande envergadura, que envolve escolher quem vai viver e quem vai morrer, e como. O que comemos está por trás da maioria das doenças que mais têm nos levado à morte, conforme recentes estudos junto aos sistemas de saúde do Brasil e dos EUA. Uma dieta rica em proteína de origem animal, açúcares e alimentos ultraprocessados predispõe a doenças do sistema circulatório e cardiovascular, 82


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cânceres e diabetes. O modo como o alimento é produzido também diz muito sobre como vivemos e morremos: não precisamos ser grandes especialistas para saber que, quanto mais agrotóxicos, antibióticos, excesso de transporte e de embalagens, e processamento industrial com aditivos químicos, mais doenças teremos, mais letais, e mais cedo. Comer carne animal, por exemplo, além de favorecer doenças como as cardiovasculares, as endócrinas, os tumores malignos e as do aparelho digestivo, é a causa da proliferação de vírus como os do tipo Corona, responsável pela atual pandemia de COVID-19 e de duas SARS anteriores, e também de vírus como H1N1, ou gripe suína, Ebola e o da gripe aviária. Esse consumo não é apenas uma adversidade para a saúde pública, mas também um dos maiores problemas ambientais da atualidade, junto à utilização de combustíveis fósseis. O impacto da produção de proteína animal é sentido em toda a cadeia da vida na Terra, interferindo na biodiversidade e consequentemente nos serviços ecossistêmicos. Mudar esse hábito traria consequências positivas em todas as esferas, sobretudo se associado a técnicas agroecológicas de produção de alimentos: preservação, ou baixa intervenção humana, de ambientes naturais e de sua biodiversidade; diminuição dos gases de efeito estufa e consequentemente das mudanças climáticas; diminuição de agroquímicos e medicamentos tóxicos utilizados na criação de animais, inclusive de antibióticos que nos têm tornado insensíveis aos antibióticos de uso humano; diminuição da crueldade animal, ambiental e social, observada no confinamento de animais e péssimas condições a quem trabalha em fazendas 83


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e frigoríferos; diminuição da interferência hormonal no corpo humano em função do abate de animais cada vez mais jovens e, portanto, ainda repletos de hormônios de crescimento; e, consequentemente, aumento da saúde humana e da qualidade de vida da maioria das espécies do planeta. Alimentar um contingente de quase 8 bilhões de seres humanos tem se mostrado como uma questão central em nível mundial. A verdade é que, além da desigualdade econômica aparecer também na produção, distribuição e consumo de alimentos, com divisão extremamente desigual de proteínas, os impactos ambientais advindos da agricultura, da pecuária e da pesca predatórias têm colocado em risco diversas formas de vida na Terra, inclusive a humana. Essa conta não fecha: comemos carne e alimentos produzidos com excesso de agroquímicos para sobreviver, mas esse consumo nos coloca em risco de morte. E ainda causa extinção em massa de diversas outras espécies por variados motivos, inclusive pelo declínio dos recursos hídricos. A produção de alimentos corresponde a cerca de 30% das emissões de gases de efeito estufa no mundo, a maioria dela vem da pecuária. Rachel Nuwer, em matéria para a BBC, afirmou que “nos EUA, por exemplo, uma família de quatro pessoas emite mais gases de efeito estufa por comer carne do que por dirigir dois carros. Mas, em geral, são os veículos motorizados - e não os bifes - que aparecem como vilões nas discussões sobre o aquecimento global”. Por que então come-se ainda tanta carne? Por que tantos agrotóxicos? E por que tanto processamento industrial? A resposta pode estar no fato de a alimentação ser multidimensional. 84


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As pesquisadoras em nutrição humana Inês Castro, Luciana Castro e Sílvia Gugelmim sistematizaram a multidimensionalidade da alimentação em: 1) Dimensão do Direito Humano - trata da alimentação adequada como direito previsto pela Organização das Nações Unidas, sendo que assumir esse direito é promover a sua exigibilidade e explicitar a obrigação do poder público em garantir seu cumprimento; 2) Dimensão Biológica - abarca aspectos fisiológicos da alimentação, elementos nutricionais e sanitários necessários ao pleno desenvolvimento e funcionamento do corpo humano, uma dimensão imprescindível mas que não dá conta de toda a complexidade da questão alimentar na contemporaneidade, pois coloca em segundo plano o contexto de vida de cada ser humano, sua subjetividade, sua história e sua inserção numa coletividade; 3) Dimensão Psicossocial e Cultural - reúne aspectos simbólicos da relação de indivíduos e sociedades com os alimentos e o ato de se alimentar, incluindo rituais diários ou específicos e sistemas de valores tanto sociais quanto subjetivos, englobando, portanto, no contexto contemporâneo, a relação das pessoas com o tempo, o trabalho, o corpo, o significado de saúde, a comunicação de massa e o ato de consumir; 4) Dimensão Ambiental - trata dos impactos ambientais dos modos de produção, transporte, comercialização e consumo dos alimentos hoje hegemônicos, e abrange também as relações da sociedade com o planeta que sejam sustentáveis, preservem e promovam a dignidade humana e a vida em toda a sua expressão; 5) Dimensão Econômica - de dupla vertente, enfoca tanto o sistema alimentar no contexto de 85


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uma economia de mercado, com vencedores e perdedores e instabilidades periódicas, quanto as relações de trabalho, seja no âmbito da produção, armazenamento, transporte e comércio de alimentos, seja as que ocorrem no âmbito da produção de refeições coletivas, inclusive em programas do poder público, como o de alimentação escolar. O trabalho das autoras também apresenta sugestões de ações de incentivo, proteção e monitoramento para promoção da saúde através da nutrição, mas reconhecer os cinco pontos do aspecto multidimensional da alimentação já responde aos nossos questionamentos: em larga medida nos alimentamos mal porque nem sempre temos o pleno poder de escolha ou controle sobre a produção e distribuição de alimentos, sobre os interesses por trás dessa produção, sobre quem ganha dinheiro com isso, e sobretudo porque ignoramos quase que em sua totalidade o que ocorre nos bastidores da produção de alimentos, que vão dos aspectos jurídico-legislativos do que é permitido, à fabricação de agrotóxicos; do desmatamento para fins de agricultura ou pecuária extensivas, à contaminação do solo, da água e do ar; da perda de biodiversidade, ao ultraprocessamento industrial; e dos custos humanos e ambientais do armazenamento, transporte e distribuição, à toxicidade das embalagens, desde sua produção até a utilização e o descarte.

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Para assumirmos a alimentação como ato político de grande envergadura, é necessário agir em três direções: Conhecimento - conhecer os sistemas produtivos

agropecuários (por exemplo, a diferença entre agronegócio e agroecologia) e industriais (processamentos), seus métodos, técnicas e consequências à saúde e ao meio ambiente, e conhecer minimamente o metabolismo humano e a fisiologia dos nutrientes; Responsabilização - tomar as rédeas da própria alimentação em todo seu espectro, da produção ao consumo, incentivando a produção de alimentos de baixo impacto social e ambiental, escolhendo de quem comprar e onde comprar, sempre o mais local possível e preparando, sempre que viável, os alimentos em casa; e Organização - formar grupos, ou engajar-se a grupos já existentes, de consumo consciente e/ou em defesa do meio ambiente nas mais diferentes frentes, atuando também em

termos de comunicação e educação dentro e fora das famílias e das escolas. Essas direções também podem nos ajudar na conscientização sobre a desigualdade social e alimentar em que vivemos e sobre a padronização, que se dá através da comunicação de massa, de comportamentos de consumo, seja pela divulgação de pesquisas que servem aos interesses de grandes conglomerados produtivos, seja pela publicidade ou pelos valores simbólicos que nos chegam via indústria cultural. Piratas do Tietê, Sem data Laerte

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Sem título, Sem data Beatriz Aurora

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GEOPOLÍTICA DO ALIMENTO E A PEDAGOGIA DO CORONAVÍRUS:

QUEM ACESSA UM PÉ DE MANGA OU TEM UMA HORTA É REI Leo Name - SESUNILA

Doutor em Geografia. Professor do ILATTI.

Escrevo

esse texto em 6 de junho de 2020, quando a COVID-19, uma pandemia mundial sem precedentes na história da humanidade, já matou mais de 35 mil pessoas no Brasil e quase 400 mil em todo o mundo – segundo dados muitíssimo contaminados por subnotificação. Peço licença a esses e essas que perderam suas vidas para evocar duas narrativas sobre alimento, que indiretamente delas e deles se acabará por também falar.

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#1 Certa vez, assisti a Shark Tank, um show de horrores televisivo em que empreendedores e empreendedoras apresentam suas ideias a potenciais investidores e investidoras a fim de obter financiamento. Um rapaz pedia dinheiro para incrementar sua produção artesanal de uma pizza, com base numa antiga receita secreta da vovó. Um dos “tubarões” condicionou sua “ajuda” à mudança para ingredientes que possibilitassem o armazenamento de um sem-número de unidades congeladas da iguaria. Não importava que fossem perdidos qualidade e sabor, adicionados conservantes que comprometessem a saúde ou que se anulasse a dimensão afetiva do segredo de família. O investidor ensinou: “o motivo para que produzamos em massa é porque é assim que ganhamos mais dinheiro”. #2 Semana passada li um artigo ainda inédito do Gabriel Cunha, um colega sindicalizado e professor de arquitetura no CAU UNILA, no qual ele relatava duas de suas experiências de assessoria técnica. Numa delas, junto a um acampamento de reforma agrária, ele verificou que em cinquenta metros quadrados que restavam livres de lotes muito pequenos os assentados e assentadas produziam hortaliças suficientes para a alimentação de mais de uma família. No entanto, numa ocupação urbana, com lotes três vezes maiores, pouquíssimos moradores e moradoras produziam alimentos nos espaços livres de edificação: não o faziam simplesmente porque não detinham o conhecimento necessário para fazê-lo.

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Volto à COVID-19. Suspeita-se que o novo coronavírus tenha sido transmitido, no final de 2019, por um pangolim. Trata-se de uma espécie de tatu – Manis javanica –, em vias de extinção em muito devido a ser apreciada como alimento na China, sendo por isso seu consumo punido com prisão. O animal teria cumprido o papel de hospedeiro intermediário entre um humano que mesmo assim o devorou e um morcego que originalmente albergou o vírus e o transmitiu ao raríssimo tatu – conforme hipótese apontada por Els Lagrou, professor de antropologia da UFRJ. No Brasil, a doença chegou em 26 de fevereiro de 2020. Depois de mais de três meses de uma necropolítica com desestímulo ao isolamento social, com ajuda financeira a bancos e sem garantia de salários aos trabalhadores e trabalhadoras – além da dificuldade de acesso das parcelas mais pobres da população a um auxílio emergencial de seiscentos reais, fraudado pelos estratos mais ricos –, a fome já é uma realidade em muitas comunidades pobres do país, por exemplo nas favelas de grandes cidades. O que o programa de tevê e a experiência do Gabriel têm a ver com isso? Nada mais involuntariamente pedagógico do que a frase do investidor-tubarão no Shark Tank: se o ato de comer está inserido na lógica capitalista de produção de mercadorias, variadas vezes ingeriremos alimentos pobres em nutrientes e, pior ainda, nocivos à saúde. O capitalismo desenha a insegurança alimentar e nutricional em escala mundial. Em nome da quantidade e da rentabilidade, monoculturas promovem a biopirataria, a apropriação de saberes autóctones e muitos danos à biodiversidade, conforme demonstram autoras e autores há décadas. Além disso, a 92


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experiência de meu amigo Gabriel com pessoas que tinham o espaço para plantar, mas não sabiam como fazê-lo, nos reporta às questões de soberania alimentar: somos cada vez mais dependentes desses alimentos massivamente produzidos e de qualidade duvidosa, com aditivos, conservantes e agrotóxicos, porque crescentemente diferentes grupos perderam contato com os saberes alimentares concomitantemente à diminuição das alternativas de consumo – e isso, evidentemente, é ainda mais dramático para as pessoas de menor renda. Carlitos apertando parafusos em Tempos Modernos, alienado do saber-fazer da totalidade do produto que depois pagará para adquirir, não deve ser restringido ao mundo da fábrica ou à produção de objetos. Em uma entrevista que Gabriel e eu fizemos com o arquiteto cubano Yasser Farrés Delgado, ainda inédita, ele comenta o avanço do capitalismo na produção de certa ideologia territorial de sobrevalorização do que é entendido como urbano e cosmopolita: isso presta enorme auxílio à indústria de alimentos e ao agronegócio, na medida em que plantar, semear e colher deixam de ser atividades triviais para se tornarem saberes progressivamente perdidos – e em muito porque sua lógica produtiva é tachada como ligada ao atraso de um mundo rural que deve se manter a serviço do mundo urbano. Finalmente, cozinhar com uma ampla variedade de alimentos que se tem certeza da procedência e da qualidade atualmente parece ter se tornado uma atividade gourmet ao estilo Master Chef – mais um reality show, aliás, que é involuntariamente pedagógico ao expor perversidades capitalistas –, o que obviamente envolve gastos impossíveis para a esmagadora maioria das pessoas. 93


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Mas eu ainda não relacionei tudo isso ao coronavírus... É importante lembrar que a indústria de alimentos e o agronegócio destroem centenas de hectares de florestas que deixam de abrigar animais silvestres que podem portar muitos vírus ainda desconhecidos e que passam a ter mais possibilidades de contato com humanos. Acrescentese a essa receita indigesta o confinamento de frangos e porcos, por exemplo, em condições sanitárias que ajudam a disseminação de vírus entre esses animais. Há muito tempo o biólogo Rob Wallace já vem alertando que essa forma de criação pecuária, além da extrema crueldade animal, aumenta as chances de transmissão de novos vírus aos humanos – sendo mais suscetíveis a isso os trabalhadores e as trabalhadoras rurais. Não esqueçamos da gripe suína, da gripe aviária, da vaca louca... Em 2016, escrevi sobre o que chamei de “paisagismo comestível”, isto é, o uso de plantas alimentícias na atividade projetiva do paisagismo. Nesse texto também mencionei a importância dessa alternativa de acesso a alimentos nos países da América Latina, que somam ao problema da pobreza, inerente à exploração capitalista, os eventos naturais extremos: terremotos, tempestades que provocam inundações e deslizamentos de terra ou erupções vulcânicas podem vir a isolar comunidades ou populações inteiras, por grandes períodos. Em meio a uma pandemia de vírus mortal, tive mais a perceber sobre o paisagismo comestível que eu mesmo propus, já que o coronavírus tem isolado e matado mais que terremotos. O isolamento social, aliás, é mais perverso para as pessoas mais pobres e vulneráveis. Seja porque as obriga 94


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a trabalhar com risco de contaminação; seja porque, sem que sejam dadas condições, as condena a ficarem isoladas em casas no mais das vezes inadequadas para a convivência de uma ou mais famílias por longos períodos, sob ameaça de perderem o emprego e, consequentemente, a renda. A pandemia ampliou as possibilidades de passar fome daquelas e daqueles que já eram antes suscetíveis a isso. Sendo assim, que refaçamos o ditado popular: em terra de coronavírus, isolamento e necropolítica, quem acessa um pé de manga ou tem uma horta é rei. Volto às narrativas que abriram esse texto para contar que, no referido episódio de Shark Tank, o rapaz da pizza artesanal não aceitou a proposta do tubarão. Voltou para casa sem um centavo de investimento, mas provavelmente tendo a certeza da manutenção da qualidade do que produzia, eventualmente comia e dava a muitos e muitas para comer. Em relação à experiência de meu amigo Gabriel, quando a pandemia passar, se passar, perguntarei a ele sobre o quanto auxiliaram e ainda podem vir a auxiliar as hortas do grupo campesino assentado que conheceu, e se fizeram falta às moradoras e aos moradores da ocupação urbana que, como muitos e muitas de nós, não sabiam produzir seu próprio alimento. A pedagogia da pandemia mostra claramente a importância da soberania alimentar, pois nunca antes foi tão fácil perceber a desigualdade social por meio do alimento. Afinal, se por um lado para alguns e algumas o isolamento tem podido propiciar tempo para cozinhar sem pressa, por exemplo fazendo seu próprio pão e exibindo seu momento a la Paola Carosella no Instagram; por outro, temos podido ver 95


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também que falta faz o saber-produzir seu próprio alimento ou ter o tempo para isso num contexto no qual conseguir receber um auxílio emergencial parece mais uma prova do líder no Big Brother Brasil ou, mais ainda, uma armadilha mortal elucubrada por Jigsaw. Sou professor e arquiteto. E vejo muitos de meus e minhas colegas se envolverem em discussões legítimas sobre o direito à moradia para as pessoas mais pobres, mas que muitas vezes ocorrem de forma monotemática. Tanto quanto assim o fazem conjunto significativo de economistas, cientistas sociais, partidos e governos que se mantêm preocupados com as desigualdades sociais unicamente focados ao acesso ao emprego ou à renda. O coronavírus nos alerta, afinal, sobre o quanto é crucial debater a superação do capitalismo tendo em conta que as dimensões ambientais são tão estruturantes quanto as econômicas. O quanto, também, a discussão sobre o meio ambiente precisa albergar um debate sobre a geopolítica do alimento, que envolva a soberania alimentar como horizonte fundamental. E o quanto, ainda, superar o capitalismo exige superar a transformação do alimento que nos mantém vivos em uma mercadoria de rentabilidade a todo custo. Não pretendo aqui, nesse pequeno espaço, propor soluções, apenas apontar para a necessidade de abordagens mais multitemáticas e sistêmicas, já que são inúmeras as desigualdades, também sistêmicas. Sendo assim, a gente não quer só comida, diversão e arte mas, além de emprego e moradia, a gente quer também comida, diversão e arte – e não esqueçamos que trabalhadoras e trabalhadores da 96


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cultura, inclusive, são parte do contingente desassistido do agora. Está difícil sonhar no Brasil de 2020. Desejo, contudo, que esse momento nos faça vir a pensar e propor políticas e estratégias de acesso à renda e moradias cujos desenhos também possibilitem a produção individual ou conjunta de alimentos, tomando em conta o resgate de saberes relacionados à lida com a terra e o preparo de refeições, para que todas e todos possam compartilhar um pé de manga ou uma horta. E que isso instigue a pensar, no caso dos cursos de arquitetura e urbanismo, do ensino de projeto às lutas nos mutirões autogestionados. Talvez seja o caso de repensarmos, ainda, os significados de revolução em sintonia com a natureza... Sem que um morcego, um tatu, uma galinha, um porco ou uma vaca, devido à exploração a que são submetidos, resolvam nos ensinar mais alguma coisa. Que as mortas, os mortos e nós, ainda vivos e vivas, possamos ter paz. E que vivamos para poder sonhar futuros.

Colector azteca de ervas, 1569 Códice Florentino

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APORTES CRÍTICOS ACER EXTRATIVISTA EM MINAS COM A UNIVERSIDADE PÚ Kathiuça Bertollo - ADUFOP Rodrigo Nogueira - ADUFOP

Doutora em Serviço Social; doutorando em Urbanismo. Docentes do Departamento de Serviço Social e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFOP, respectivamente.

O Maior Trem do Mundo O maior trem do mundo Leva minha terra Para a Alemanha Leva minha terra Para o Canadá Leva minha terra Para o Japão O maior trem do mundo Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel Engatadas geminadas desembestadas Leva meu tempo, minha infância, minha vida Triturada em 163 vagões de minério e destruição O maior trem do mundo Transporta a coisa mínima do mundo Meu coração itabirano Lá vai o trem maior do mundo Vai serpenteando, vai sumindo E um dia, eu sei não voltará Pois nem terra nem coração existem mais. — Carlos Drummond de Andrade

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CA DA MINERAÇÃO GERAIS E SUA RELAÇÃO BLICA

Minas Gerais, um território nas Américas, se torna conhecido

mundialmente pelo seu passado rico em ouro e diamantes, que vivenciou fortemente as anti-humanas marcas da escravidão e devastação no período colonial. No tempo presente a região tem na extração de minério de ferro a perpetuação destas mesmas marcas em seu chão, suas gentes e sua história. Do Brasil colônia ao país que ocupa as primeiras posições dentre as economias mundiais, mesmo sob os auspícios do capitalismo dependente, são séculos que separam temporalmente uma condição da outra e que conformam este território, a geografia local, os modos de vida, os interesses e as relações que ali são construídas. Mariana e Brumadinho são municípios mineiros que carregam estas cicatrizes. Mariana é a “primeira capital, primeira vila, sede do primeiro bispado e primeira cidade a ser projetada em Minas Gerais. [...] A extração do minério de ferro é a principal atividade industrial do município, forte geradora de empregos e receita pública”. São cerca de 54 99


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Mina de Ferro, 1976 Djanira da Motta e Silva

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mil habitantes, com R$ 48 mil de PIB per capita em 2017 e um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0,742, em 2010. Por sua vez, Brumadinho “começa com a ocupação dos bandeirantes no fim do século XVII [...] A partir de 1917, com a inauguração da Estação Ferroviária, muitos trabalhadores vieram para o povoado. E em 17 de dezembro de 1938, Brumadinho recebeu o status de Município”. Com uma estimativa de aproximadamente 40 mil habitantes em 2019, a cidade apresentou em 2017 um PIB per capita foi de R$ 51mil e um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, em 2010, de 0,747. Lamentavelmente, estes municípios têm em comum, em suas histórias recentes, os rompimentos criminosos de barragens de rejeitos pertencente a grandes mineradoras, vinculadas a conglomerados internacionais e atuantes no estado. Os dias cinco de novembro de 2015 e vinte e cinco de janeiro de 2019 se inscrevem como duas dolorosas páginas da história local e mundial. Em Mariana, o rompimento/crime da barragem de Fundão, de propriedade das mineradoras Samarco Mineração, Vale e BHP Billiton, despejou 43,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia hidrográfica do rio Doce, deixando um lastro de vinte mortes entre moradores do distrito de Bento Rodrigues, que foi imediatamente atingido, e trabalhadores que estavam no canteiro de obras da barragem. A lama também destruiu e matou a fauna e a flora ao longo dos mais de 600 quilômetros de rios até chegar e adentrar o oceano no estado do Espírito Santo. Foram atingidos 36 municípios mineiros e 03 capixabas. Em Brumadinho, o rompimento/crime da barragem da 102


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Mina Córrego do Feijão despejou cerca de treze milhões de metros cúbicos de rejeitos, tendo sido considerado o maior acidente de trabalho com perdas de vidas humanas do país. Foram causadas, imediatamente, cerca de 300 mortes de trabalhadores da mineradora que naquele momento cumpriam expediente e, também, de moradores e moradoras locais. As buscas por corpos continuam até os dias de hoje, fazendo com que as famílias vivenciem cotidianamente o luto, ainda na espera de que o corpo de seu ente querido/a seja encontrado. No que se refere aos danos ambientais, além de destruir fortemente o município de Brumadinho e o distrito de Córrego do Feijão, o rompimento/crime atingiu diretamente vários municípios ao longo da bacia do rio Paraopeba causando danos irreparáveis à fauna e flora. Em ambos os casos foram atingidas áreas urbanas, áreas rurais, comunidades quilombolas, ribeirinhas e populações indígenas. A destruição se manifestou e se manifesta em perdas materiais e imateriais. Por onde o lastro de rejeitos passou tudo foi modificado, agravado e arrasado, resultando num forte processo de desterritorialização dessas comunidades e perda forçada de suas referências culturais e religiosas. No período em que este texto é escrito, completamse 4,5 anos do rompimento/crime de Fundão, e 1,3 ano do rompimento/crime do Córrego do Feijão e permanece o cenário conformado pela dor, destruição e pelas árduas lutas no que se refere ao processo de indenização. Em Mariana, no contexto pós-rompimento/crime, as mineradoras responsáveis pelo rompimento/crime criaram a Fundação Renova, com a finalidade de implementar e gerir os programas 103


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El sauco de Ananse, 2019 Tatiana Arocha

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do processo de reparação. Com um expressivo montante de recursos financeiros e humanos, a Fundação é controlada majoritariamente por representantes dos interesses das mineradoras, apesar da aparência democrática e de contar com a participação dos atingidos e atingidas nas suas instâncias de gestão. Ocorre que, no cotidiano, os processos institucionais dificultam o atendimento das demandas legítimas e a própria organização das comunidades atingidas. Ademais, em âmbito municipal, as políticas sociais, especialmente a saúde, a assistência social, a habitação e a educação acabam sendo fortemente influenciadas pela Fundação, o que limita qualquer avanço pela perspectiva dos direitos sociais. Pelo contrário, o controle exercido pela Fundação impõe uma lógica de funcionamento fragmentada, despolitizada e sob a perspectiva das mineradoras – no limite, do capital. Ressalta-se que a interferência das mineradoras nos âmbitos de atuação e na própria conformação dos governos municipal, estadual e federal não é algo que passou a acontecer somente após o rompimento/crime. O financiamento de campanhas, tanto de cargos do executivo como do legislativo, é a estratégia historicamente utilizada para perpetuar e consolidar o poder das mineradoras nos territórios. Nessa mesma perspectiva, pode-se também perceber investidas das mineradoras sobre o poder judiciário, no sentido de tornar brandas ou de não punir quando constatadas irregularidades ambientais, laborais, entre outras. Vale mencionar que pós rompimento/crime o estranhamento, o estigma, as falsas acusações e a apartação entre a população local aumentaram expressivamente. 105


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Assistiu-se à conformação de dois grandes grupos: de um lado, o comércio local que teve impacto financeiro negativo em seus negócios com a interrupção das atividades da mineradora e os trabalhadores e trabalhadoras que ficaram desempregados/as pedindo “Volta Samarco!”. De outro lado, as populações atingidas, que perderam tudo, pedindo “justiça e celeridade no processo de reparação/indenização”. Estas árduas condições configuram diretamente o contexto das lutas sociais e da resistência popular na região. Nessa direção, destacamos a relevância da organização coletiva através dos movimentos sociais e sindicatos, dentre os quais destacamos: o MAM, o MAB, o Sindicato Metabase Inconfidentes e a ADUFOP. Merece destacar que os três primeiros pautam e operam diretamente na questão da mineração, já a ADUFOP é por natureza um sindicato que atua na área da educação, que organiza e pauta sua luta entorno da categoria docente do ensino superior público. No entanto, esta entidade vem construído e consolidando um entendimento e posição de que é impossível construir as lutas e enfrentamentos na área da educação e em defesa da universidade pública e da categoria docente se não for considerado também o contexto local e regional em que a atuação acontece. Assim, o domínio que a mineração exerce sobre os âmbitos da educação, da formação profissional e da universidade pública é também um âmbito em que a entidade tem construído enfrentamentos com e a partir da comunidade acadêmica de modo articulado com demais entidades sindicais, movimentos sociais e com a comunidade local e regional.

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Dando ênfase ao âmbito educacional, pode-se destacar que as Instituições de Ensino Superior – IES e as empresas públicas são, atualmente, o centro da produção científica nacional e com expressão internacional. Inclusive, a participação docente na produção científica foi fruto de lutas das décadas de 1970 e 1980, assegurada pela Constituição Federal de 1988. A defesa de uma universidade pública, autônoma e com liberdade de pesquisa obteve algumas conquistas desde então. Contudo, desde a década de 1990, com a criação das “fundações de apoio” (Lei 8.958/1994), e a partir de 2016, com o “Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação” (Lei 13.243/2016), o avanço conquistado vem sendo ameaçado. As fundações de “apoio”, criadas no governo de Itamar Franco, significaram uma primeira abertura do direcionamento dos interesses públicos para atender demandas do setor privado. O “Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação”, aprovado no governo golpista de Michel Temer, teve o objetivo de aumentar a produtividade das empresas e, consequentemente, a competitividade do país no mercado internacional, por meio do argumento de desburocratização no acesso a recursos públicos e de incentivar parcerias do setor público com a iniciativa privada. Desta forma, “Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação”, abre espaço para uma subordinação das pesquisas desenvolvidas nas universidades públicas – portanto, desenvolvidas por servidores e servidoras públicas –, aos interesses privados de empresas e não às demandas da sociedade brasileira. A chave do processo de subordinação dos interesses públicos aos privados está na alteração da Constituição, pela 107


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Emenda Constitucional 85/2016, que introduz o conceito de “Inovação” ao de “Ciência e Tecnologia”, o que possibilitou o compartilhamento de recursos públicos – pessoal, estrutura física de laboratórios e recursos financeiros – com o setor privado. No que se refere ao trabalho docente, tal subterfúgio cria um incentivo ao “empreendedorismo” dentro das IES, possibilitando que docentes direcionem suas pesquisas às conveniências das empresas em troca de bolsas, equipamentos ou materiais. Assim, as medidas contidas no Marco Legal de Ciência, Tecnologia, e Inovação, através das fundações de apoio desviam as IES de sua função social para atender a interesses privados. Esse uso de verba pública para fins privados é exatamente o que tem acontecido nas cooperações entre empresas de Mineração e as universidades federais, como é o caso da parceria entre a Vale S/A e a Universidade Federal de Ouro Preto, contribuindo para o desenvolvimento do setor minerário nos últimos anos. Os rompimentos das barragens de Fundão e do Córrego do Feijão destruíram territórios, causaram a morte de pessoas, atingiram as formas de viver e de (re)existência de milhares de brasileiros e brasileiras. Constituindo-se como crimes socioambientais no cenário mundial, ambos episódios explicitam o poder destruidor dos modelos de desenvolvimento das mineradoras, e consequentemente, do risco do alinhamento das pesquisas nas IES direcionadas para o setor privado. Ironicamente, ao mesmo tempo em que servem a este tipo de desenvolvimento, as universidades também são chamadas para propor soluções de mitigação dos danos gerados pelas próprias empresas, como fica explícito nos editais de pesquisa 108


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lançados pela UFOP e pela prefeitura de Mariana. Por meio das parcerias financeiras com estas empresas danosas, as IES tornam-se atores chaves na coalização de forças que visa o aumento do lucro, a impunidade aos danos e, consequentemente, a reprodução do modelo predatório de desenvolvimento no capitalismo dependente. No governo Bolsonaro, a ofensiva sobre a educação superior pública ganhou um novo formato: trata-se do programa Future-se, lançado em julho de 2019. O programa do Ministério da Educação propõe, de forma “inovadora”, destinar a responsabilidade de gerir a educação superior brasileira ao setor privado, através de entidades privadas denominadas Organizações Sociais - OS. A inovação do modelo de “privatizações” das IES se dá através da introdução de um órgão privado, as OS, para gerir as universidades públicas e direcioná-las para atender aos interesses do mercado. A proposta é passar para as OS a gestão da instituição e seu patrimônio, dos/as servidores/ as e docentes – e, finalmente, do ensino, da pesquisa e da extensão. Mesmo em meio aos contínuos ataques e desmontes, as IES ainda lutam por sua autonomia e pelo direcionamento de suas atividades para o desenvolvimento da sociedade, alinhadas com os legítimos interesses da classe trabalhadora, não do capital e seus expoentes, como é o caso das mineradoras. Nesse sentido, reivindica-se a articulação orgânica entre ensino, pesquisa e extensão, âmbitos que são os pilares da universidade pública. Mesmo em meio às fortes e constantes investidas que objetivam a privatização do direito à educação e o desmonte dos bens públicos, em um 109


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movimento de resistência crítica e socialmente referenciada, a universidade pública segue buscando exercer sua função social. São inúmeros grupos de estudos e pesquisas, de ações extensionistas, de disciplinas que desenvolvem seus conteúdos em articulação com a comunidade local e regional e seus dilemas e potencialidades, com o intuito de produzir conhecimento para os enfrentamentos necessários à efetivação da educação superior pública enquanto uma ferramenta de transformação social. Feitas essas breves considerações apontamos para a urgência de se construir resistências orgânicas, sólidas, amplas ao contexto da mineração extrativista em Minas gerais, no país, na América Latina, e que vislumbrem uma outra forma de produção do conhecimento, de relação com a natureza, de relações laborais, de produção e apropriação da riqueza, de respeito à vida e de liberdade.

Queda Livre, 2019, de Nele Azevedo. Instalação efêmera com a lama tóxica dos crimes ambientais ocorridos em Brumadinho, Bento Rodrigues e Barão de Cocais em Minas Gerais. As figuras congeladas, suspensas por fios, derretem lentamente e desaparecem. O som do derretimento é amplificado por microfones.

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AMBIENTALISMO, SINDICATO E LUTA DE CLASSES: COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI E COMO PODEMOS SEGUIR DAQUI PRA FRENTE Eduardo Forneck - APROFURG Jaqueline Durigon - APROFURG

Doutor em Ecologia. Doutora em Botânica. Professor do curso em Tecnologia em Gestão Ambiental e professora do curso em Licenciatura do Campo, ambos na FURG Campus São Lourenço do Sul.

Não é novidade para mais ninguém de boa-fé que o mundo

encontra-se em uma severa crise ambiental. Na origem desta crise está a nossa espécie com seu comportamento desvirtuado, caracterizado pelo excesso de exploração e pela má gestão dos recursos naturais conduzidos pelo capitalismo globalizado. A ação irresponsável, planejada e, sobretudo, ecocida que o sistema nos impõe, gera a necessidade de entendimento claro e imediato para que possamos agir coletivamente em tempo apropriado, rompendo a estrutura que o mantém. Jared Diamond, no livro Colapso: como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso, nos indica pistas relacionadas ao meio ambiente e a exploração (ou sobreexploração) de seus recursos para ajudar na compreensão da 111


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atual crise ambiental. Estamos vivenciando o limite provocado por gerações de ignorância e descaso sobre a importância das relações ecológicas para sobrevivência de Gaia. Referindose ao planeta Terra, na teoria proposta por James Lovelock nos anos 1970, Gaia constitui-se em uma complexa rede que integra todos os seres vivos existentes, sem exceção, que ao relacionarem-se entre si e com o meio ambiente, mantém as condições de vida em nosso planeta. Por sua vez, Alfred Crosby, no livro Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900, mostra que as grandes navegações levaram ao início da destruição dos ambientes ao longo dos continentes. A colonização europeia destruiu biodiversidade local e forjou a cultura de destruição e homogeneização da natureza aliada à expropriação dos recursos naturais, como minérios e commodities agrícolas. Nesse contexto, a América Latina e a África estão entre as regiões mais cobiçadas e, portanto, mais duramente assaltadas pela dominação colonial. No primeiro caso, Eduardo Galeano, autor do livro As veias abertas da América Latina, oferece uma excelente análise sobre a colonização europeia em nosso continente e as consequências desastrosas sociais, culturais, econômicas e ambientais. Contudo, foi a Revolução Industrial que nos trouxe à encruzilhada em que nos encontramos hoje. E com o objetivo de aprofundar o acúmulo de riqueza, a publicidade inventou e impôs no centro da felicidade a necessidade de comprar e consumir. Passamos a percebê-la pela lente disforme dos grandes grupos econômicos, o que nos tornou “reféns” do capital. 112


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Diante deste cenário devastador, uma parcela da população acabou por se organizar para enfrentar a ação do capital sobre o ambiente, os povos originários e as populações tradicionais. O aumento da degradação ambiental impulsionou o início do movimento ambientalista organizado. Seja com a contribuição de Rachel Carson a partir do livro Primavera Silenciosa de 1962, que denunciou o grave problema dos agrotóxicos organoclorados nos EUA, seja pela Declaração de Estocolmo, produzido pela ONU em 1972, da qual o Brasil é signatário, a sociedade civil passou a pressionar por formas e regras de controle das ações humanas sobre a natureza. Em força oposta a este movimento, o capital e o seu aparato repressor passaram a criticar, perseguir e violentar ambientalistas com o intuito de desqualificar e demonizar o movimento. No Brasil, o golpe e o endurecimento da ditadura nos anos 1970 trouxeram tempos sombrios à luta da esquerda nacional. Nas décadas seguintes, um dos casos emblemáticos relacionado ao movimento ambientalista e sindical foi a luta de Chico Mendes – seringueiro, sindicalista e ambientalista – contra o avanço do agronegócio e o desmatamento da Floresta Amazônica iniciado e promovido pela ditadura militar. Seu assassinato, em 1988, exemplifica a violência que seguiu (e segue) nos anos seguintes da “redemocratização”. Um dos principais legados deste ícone foi a demonstração de que a comunhão entre o movimento sindical, o movimento ambientalista e os povos originários e populações tradicionais era uma poderosa parceria no enfrentamento do aparato repressor do sistema capitalista. Por isso mesmo, tornou-se alvo do capital. A violência contra 113


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ambientalistas, como o caso da missionária Dorothy Stang em 2005, nunca cessou. Fazendo uma ponte para os dias atuais, em 2017 e 2018, o Brasil foi considerado o campeão mundial em assassinatos de ativistas ambientais; em 2019, fomos o 4o colocado, segundo dados da GlobalWitness. Nas últimas duas décadas, muitos e muitas indígenas foram assassinados, assassinadas, violentados e violentadas em todos os biomas do Brasil, com destaque para Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica, conforme mostra a Cartografia dos Ataques Contra Indígenas, publicado em 2018. Nas décadas seguintes, à exceção de alguns avanços tímidos em políticas públicas relacionadas ao meio ambiente dos governos Lula e Dilma, muito pouco melhorou concretamente na qualidade dos ambientes. Uma exceção foi a vitória pela suspensão da construção da hidrelétrica de Paiquerê, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, por pressão do movimento ambientalista, sobretudo, do Movimento dos Atingidos por Barragem e de alguns poucos sindicatos. Apesar disso, a luta do movimento ambientalista seguiu à margem do interesse da sociedade urbanizada, o que gerou muito pouca efetividade e visibilidade em suas ações. Paralelamente, muitos e muitas ambientalistas seguiram a via institucional, o que influenciou na publicação de relatórios como Nosso Futuro Comum da ONU, de 1987, e na elaboração da Agenda 21, lançada na ECO-92, no Rio de Janeiro. Apesar destes esforços, escassos resultados concretos foram obtidos na melhoria da qualidade ambiental. O movimento sindical e o movimento ambientalista fracamente se articulam para o enfrentamento do capital. Uma 114


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das maiores dificuldades talvez esteja no entendimento da luta de classes e como ela determina, ou deveria determinar, as estratégias de luta e resistência de movimentos sociais, como o ambientalismo. Ainda que o sindicato surja como uma resposta do oprimido e oprimida na luta contra capital e, portanto, na luta de classe, a consciência de classe que levaria ao entendimento de que opressor e o sistema mantido por ele são os mesmos enfrentados pelos dois movimentos, parece ser condição ausente, ou em construção. Os grandes grupos transnacionais, o financeirismo, o agronegócio e a mineração são todos agentes principais ou secundários deste capitalismo moderno e globalizado. Enquanto o movimento ambientalista não internalizar a luta de classes em suas de estratégias de enfrentamento e luta, veremos ambientalistas de direita e indígenas concorrerem à eleição por partidos reacionários. Da mesma forma, ao tratar as pautas ambientais de forma periférica, o movimento sindical acaba por negligenciar a força da luta coletiva e importância do ataque sistêmico ao capital. A nova crise recente do capital levou o sistema a forçar golpes de Estado ao longo de toda a América do Sul, como no Brasil, Paraguai e Bolívia. Tal violência foi necessária para poder aniquilar os direitos trabalhistas e previdenciários, aumentar os ganhos (ou compensar os prejuízos) do capital, em especial do capital financeiro, e acelerar a expropriação dos recursos naturais. O atual governo brasileiro de ultradireita intensifica a perseguição aos e às ambientalistas, povos originários e populações tradicionais para viabilizar sua agenda entreguista e subserviente aos interesses do capital. Ou ainda de forma 115


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mais perversa, incentiva e autoriza, em seus discursos de ódio, a perseguição e o assassinato destas pessoas. Aos e às sindicalistas, os mesmos tratamentos, para transformar trabalhadores e trabalhadoras em escravos e escravas; aposentados e aposentadas em miseráveis. No âmbito da “institucionalidade”, Jair Bolsonaro tenta destruir toda norma que assegure o mínimo de humanidade, solidariedade e preservação da natureza nas ações de regulação do Estado. Infelizmente, ainda não temos respostas definitivas para solucionar essa crise. Gostaríamos aqui de trazer alguns tímidos exemplos de como é possível articular parte da luta sindical com a luta ambiental e, assim, apoiar a resistência de povos originários e populações tradicionais. Um possível caminho está no enfrentamento desta nova fase de expropriação dos recursos naturais, denominada neocolonialismo, e a resistência de grupos que são ameaçados pelas grandes mineradoras. Em específico no Rio Grande do Sul, três grandes projetos assolam o horizonte próximo: extração de chumbo, de titânio-rutilo-zircônio e de fosfato. Em todos esses casos, indígenas, quilombolas, pescadores e pescadoras artesanais, agricultores e pecuaristas familiares, Unidades de Conservação, espécies de plantas e animais foram invisibilizados nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental disponibilizados à sociedade. A necessidade de contraponto ao posicionamento técnico-científico precariamente empregado pelos empreendedores e suas assessorias incentivou a parceria entre sindicalizados e sindicalizadas da APROFURG e os ameaçados e ameaçadas por estes projetos. 116


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A demanda social era de contra-laudos e pareceres contrários ao diagnóstico falho e insuficiente dos estudos ambientais. Estes “contra-estudos” foram produzidos e integram parte do processo administrativo do licenciamento ambiental, tentando contrabalançar e relativizar a posição dos estudos apresentados pelos empreendedores. Por entender que a institucionalidade não resolve a maioria dos casos de injustiça ambiental, pois o capital também controla (ou tem grande poder de influência sobre) boa parte das instituições do Estado, o ANDES/SN, através da sua Regional RS e em parceria com a APROFURG e demais seções sindicais do Rio Grande do Sul, investiram na divulgação destes projetos e suas consequências negativas. Foram dois seminários promovidos para discutir os impactos da mineração sobre os territórios, realizados em 2017 e 2018, com a participação de sindicalizados e sindicalizadas de diversos sindicatos, em especial da educação, pesquisadores/as, indígenas, quilombolas, pescadores/as artesanais, agricultores/as e pecuaristas familiares, estudantes e público em geral. Tais eventos geraram o livro Impactos dos Projetos de Mineração: O que queremos? O que sabemos? Pra onde vamos?, publicado pela APROFURG em 2020. Estas ações pretendem denunciar mazelas dos projetos de mineração e subsidiar o planejamento de estratégias para o enfrentamento do movimento ambientalista junto às populações e aos povos mais vulnerabilizados pelo avanço deste setor, mostrando possibilidades de esforços conjuntos da luta sindical com o movimento ambientalista.

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Filme Arpilleras: atingidas por barragens bordando a resistência, 2017 Movimento dos Atingidos por Barragens MAB

Para finalizar, gostaríamos de compartilhar uma angústia: a ideia de que a solução da crise ambiental passa, prioritariamente, pela busca e o desenvolvimento de tecnologias altamente dependentes de complexos processos industrializados e que demandam grandes quantidades de matéria-prima, especialmente da mineração e de energia, para funcionarem. O recente documentário de Jeff Gibbs e Michael Moore, intitulado Planet of Humans (2020), nos mostra uma armadilha do capital, uma vez que ao perseguir a implementação de tecnologias como eólica, fotovoltaica e biomassa em larga escala, seguiremos demandando matériaprima e sustentando o poder das grandes corporações. Pior, faremos isso aceitando o frágil verniz verde deste braço do capital, perpetuando o sistema responsável pela atual crise. O capitalismo produz o problema e, de forma perversa, apresenta “soluções” e lucra com elas. Ao contrário, a saída está, obrigatoriamente, na redução 118


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drástica do ritmo de consumo, sobretudo dos países ricos, vinculada à construção de uma consciência de classe dentro do movimento ambientalista e da classe trabalhadora como um todo. Complementarmente, o fortalecimento de sistemas agroalimentares, assim como luta pela soberania na mineração, tal qual defende o Movimento pela Soberania Popular na Mineração — MAM, são respostas possíveis à crise ambiental e na direção da superação do capitalismo. Se estas pautas não forem consideradas essenciais à sociedade como um todo, será muito difícil desconstruir este sistema. Assim, tão essencial como ter apoio e solidariedade entre nós oprimidos e oprimidas pelo mesmo capital, é sindicalizarse, manifestar-se e juntar-se às manifestações e ações dos movimentos socais, do ambientalismo e do sindical com a consciência de classe que enfrentamos diferentes agentes e braços do mesmo sistema capitalista, neoliberal, ecocida, racista, machista e genocida. Vamos à luta por Gaia! 119


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A LUTA AMBIENTAL NO ANDES Andréia Moassab - SESUNILA Eduardo Forneck - APROFURG Jaqueline Durigon - APROFURG Leandro Neves - ADUFF

O

ANDES Sindicato Nacional se organiza por meio de diversos Grupos de Trabalho, que são espaços não deliberativos de formação política sindical sobre assuntos concernentes às suas temáticas. Nacionalmente, têm por finalidade contribuir na formulação da política nacional do sindicato e auxiliar a Diretoria Nacional. Os GTs têm ainda como objetivo contribuir para a formação de GT locais, nas seções sindicais que a partir do acúmulo das bases, contribua com as formulações nacionais. A organização e o funcionamento dos GT locais são da responsabilidade e autonomia das seções sindicais que participa periodicamente com representantes nas reuniões nacionais do GT. A luta ambiental é pautada, no sindicato nacional, principalmente pelo Grupo de Trabalho de Política Agrária, Urbana e Ambiental – GTPAUA, que foi criado inicialmente para debater a questão agrária e com o tempo foi sofrendo alterações a partir do acúmulo do Sindicato Nacional, no que tange à necessária e indispensável articulação entre a temática agrária, urbana e ambiental. O GTPAUA trata das 120


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temáticas relacionadas à degradação ambiental, à destruição da natureza e às consequências para a vida na cidade e para as comunidades e povos originários e populações tradicionais, como quilombolas, indígenas, ribeirinhos, entre outros, e discute as repercussões da apropriação privada da terra, nos meios urbano e rural e seus impactos para a vida no campo e na cidade. Foi por volta de 2005 que se iniciou o debate, no antigo GTPA Grupo de Trabalho de Política Agrária, para a inclusão, no GT, primeiramente de questões relacionadas ao Meio Ambiente, passando o GT a designar-se Grupos de Trabalho de Política Agrária e Meio Ambiente. Alguns anos depois, com a realização de diversos seminários, encontros e reuniões foi aprovado que o GT acolhesse as pautas relacionadas à política urbana, passando a ter sua designação atual Grupo de Trabalho de Política Agrária, Urbana e Ambiental. Sobre a questão ambiental, a revista Universidade e Sociedade n. 59 teve como tema central “Limites do capital; questões urbanas, agrárias, ambientais e de ciência e tecnologia”, reunindo quinze artigos sobre biocombustíveis, dependência tecnológica, consequências da flexibilização da lei ambiental no país, entre outros. Além disso, vale a pena destacar algumas das atividades promovidas pelo GT na última década, resultando em várias TRs aprovadas e pautas importantes da luta sindical como o problema da demarcação das terras indígenas e quilombolas, os processos de espoliação perpetrados pelas corporações capitalistas que se apropriam dos recursos naturais, energéticos e da biodiversidade, o uso de agrotóxicos, entre outros. 121


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Além dos encontros nacionais e regionais, os GTPAUAs das diversas seções sindicais têm sido bastante ativos para o acúmulo do debate no seminário nacional. Em 2013, o GTPAUA da ADUR realizou o Fórum Meio Ambiente, Bioética e Bem-Estar Animal, com questões sobre os direitos dos animais e da necessidade de construção de uma política institucional de proteção e bem-estar animal nos campi universitários, em consonância com deliberação do Congresso do ANDES daquele ano. Em 2015, o GTPAUA da ADUFES organizou a Jornada de Debates Universidade e Conflitos Territoriais no Campo, articulando e apresentando projetos dos/as docentes e discentes da UFES com diversas comunidades no Espírito Santo, como as mulheres pescadoras, comunidades quilombolas, Movimento dos Pequenos Agricultores, MST, Via Campesina, entre outros movimentos sociais e comunitários. A América Latina teve espaço no debate com a apresentação de dados que evidenciam os avanços das atividades extrativistas na América Latina nas últimas duas décadas e as mudanças nas legislações dos Estados Nacionais que incentivam o setor e também os processos de resistências e as alternativas que vêm sendo construídos por movimentos sociais no subcontinente. Nos anos seguintes, especialmente após o Golpe de 2016, foi intensificada a retirada dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e o congresso brasileiro acelerou a aprovação de vários projetos de leis e emendas parlamentares que favoreciam o capital financeiro, capital imobiliário e o agronegócio, em detrimento da preservação dos recursos ambientais no país. Vale ressaltar que no período 122


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aumentaram significativamente os assassinatos no campo e nas periferias urbanas. Em resposta a essa conjuntura o GTPAUA afirmou a posição de articulação com os movimentos sociais e populares para a realização de protestos e eventos em defesa das questões ambientais e do trabalho, de forma a levar para dentro da universidade a demanda das minorias sociais e a questão da terra com as especificidades do contexto urbano e rural. A estratégia sugerida foi que os eventos fossem também protestos e que saíssem do roteiro tradicional acadêmico. Sob esta perspectiva foram realizados eventos dos GTPAUA das seções sindicais em diversos estados e regiões. Em Roraima, o GTPAUA da SESDUF organizou a Oficina de Políticas Agrícolas, Agrárias, Indígenas e Educação do Campo no Contexto das Reformas de Estado, com o objetivo de debater, compreender e analisar as questões políticas agrícolas e agrárias enfrentadas pelos moradores e moradoras de assentamentos. A mesa principal debateu as reformas trabalhistas e previdenciárias para os trabalhadores e trabalhadoras do campo, educação do campo e políticas agrícolas e agrárias. O evento teve a participação de mais de 200 pessoas, sendo estes assentados e assentadas da reforma agrária, professores e professoras da rede pública de ensino, alunos e professores da UFRR. Na regional Rio Grande do Sul, destacam-se dois seminários regionais sobre os impactos dos projetos de mineração, realizados em 2017 e 2018, coordenados pela APROFURG e em parceria com as seções sindicais locais. No primeiro, realizado em São Lourenço do Sul, as perguntas eram: O que sabemos? O que queremos? O evento atendeu 123


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Jovens Ashaninka em oficina fotogrรกfica, 2017 Foto de Pedro Kuperman

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à necessidade do movimento docente em se apropriar criticamente do conjunto de projetos de mineração pretendidos para o estado do Rio Grande do Sul, cuja implementação teria efeitos negativos sobre a qualidade de vida de sua população. Um destaque importante deste evento foi a participação massiva da população, com cerca de 400 participantes, sendo grande parte destes integrantes de movimentos sociais e sindical. No II Seminário Regional Sobre Impactos dos Projetos de Mineração, realizado em Rio Grande e na comunidade de pescadores artesanais Z2, em São José do Norte, dando prosseguimento aos debates do ano anterior, o centro da discussão foi a “soberania popular e nacional”. Nas diversas mesas foram levantadas questões como os impactos socioambientais do vazamento da lama tóxica da barragem da Samarco/Vale, em Mariana/MG; as pretensões do Programa Nacional de Mineração e foram feitas análises da conjuntura sobre o setor mineral no Brasil, denunciando sua expansão em direção às terras da Amazônia legal e os conflitos de terra na região Norte. Em especial, foi debatido o avanço em direção a regiões sem um amplo histórico de exploração mineral, como a região Sul. Em ambos encontros regionais a mineração foi contextualizada no cenário latino-americano, explicitando-se os danos ambientais gerados aos camponeses e camponesas de outros países, como Peru e Chile, e a importância da resistência dos povos originários e populações tradicionais frente aos projetos de mineração. Como resultado do II Seminário Regional, a APROFURG acaba de lançar 2020 o livro: Impactos dos Projetos de Mineração: O que queremos? O que sabemos? 125


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Pra onde vamos? (disponível em http://www.aprofurg.org.br/ novo/) Além das atividades locais e regionais, o GTPAUA organizou importantes seminários nacionais: Desafios atuais das questões agrárias, urbanas, ambientais, indígenas e quilombolas, em São Luis do Maranhão, em 2017; Agro_ TÓXICO: contamina, envenena e mata!, em Curitiba, em 2018, e, ano passado, o Seminário Nacional Direito à Cidade, realizado em Rio das Ostras. No Maranhão, o seminário contou com a participação nas mesas das lideranças indigenas, quilombolas e integrantes do MST, para debater os impactos do sistema econômico sobre a vida de parcelas consideráveis da população, notadamente as periferias dos centros urbanos, agrupamentos camponeses, quilombolas, indígenas e demais populações tradicionais, além, é claro, dos impactos sobre a natureza. O evento teve dois momentos, o primeiro interno ao campus da Universidade Federal do Maranhão e o segundo realizado nas comunidades quilombolas e indígenas. No debate acadêmico mereceu destaque a presença de Henri Acserald, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ na mesa “Capitalismo e Natureza”. Para o pesquisador, enquanto o crescimento é justificado como necessário ao combate à pobreza, serve para encobrir, por outro lado, sua ação na produção para a geração de lucro. A noção de desenvolvimento sustentável e o conceito de reflorestamento, para a monocultura do eucalipto, foram colocadas em xeque. Acserald demonstrou ainda, na ocasião, como a lógica do deslocamento do dano para as áreas pobres é aprofundada 126


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com o neoliberalismo, por volta da década de 1980, naquilo que ele chamou de “economia política da vida e da morte como justificativa teórica da desigualdade ambiental”. No ano seguinte, o Seminário Nacional Agro_TÓXICO: contamina, envenena e mata! abordou temas relacionados à saúde; legislação, meio ambiente e ideologia; e agroecologia e educação do campo, com o objetivo de propor soluções para a redução do uso de agrotóxicos no Brasil. Foram discutidos os efeitos da aplicação de agrotóxicos para quem consome esses produtos e ressaltados os problemas para os trabalhadores e trabalhadoras do campo que entram em contato com o veneno e os impactos socioculturais e ecológicos de uma possível flexibilização das leis que regulam a questão. No último dia de evento, os e as participantes visitaram o Assentamento do Contestado, no município da Lapa, onde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desenvolve um forte trabalho de agroecologia e fizeram uma roda de conversa sobre o funcionamento da Escola Latinoamericana de Agroecologia, que funciona dentro do assentamento em parceria com o Instituto Federal do Paraná de Campo Largo. Em dezembro de 2019, o GTPAUA organizou o Seminário Nacional de Direito à Cidade, que contou com a participação da SESUNILA. O seminário, sediado pela ADUFF, foi realizado no Campus da Universidade Federal Fluminense em Rio das Ostras, litoral norte do Rio de Janeiro e abordou principalmente as questões ligadas à precarização das relações de trabalho, na atual conjuntura de ataques e conflitos. Durante os três dias, foram realizadas cinco mesas de debates que discutiram a situação da classe trabalhadora 127


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na cidade contemporânea, favelas e periferias; o acesso dos estudantes de origem popular à universidade pública; o direito à cidade: mobilidade urbana, mulheres e questão racial; o domínio da cidade por grupos econômicos e armados, além dos ataques e contrarreformas promovidas pelos governos federal e estaduais. Além de abordar os ataques a direitos promovidos pelo Executivo federal, o seminário foi uma oportunidade de refletir sobre as desigualdades urbanas, que incluem a luta por serviços básicos de qualidade, como moradia, transporte, mobilidade urbana, entre outros. A professora Andréia Moassab, representando a SESUNILA, levou para o debate questões concernentes à Mobilidade [Urbana] e o patriarcado-racista-capitalista. Finalmente, em plena pandemia podemos afirmar que os desafios que se impõem à luta sindical e às questões ambientais são imensos e assolam nosso horizonte imediato. Não há estratégia pronta para isso. Devemos ser capazes de construir múltiplos cenários frente a esta realidade complexa e desigual. A unidade da classe trabalhadora deve passar, obrigatoriamente, pela construção de uma consciência de classe, de forma que a luta dos trabalhadores e trabalhadoras englobe a luta dos ambientalistas e vice-versa, pois somos todos oprimidos e oprimidas pelos diferentes braços do capital. Em outras palavras, um dos principais papéis do GTPAUa é colaborar para reafirmar, dentro do sindicato, a importante parceria com os diversos movimentos sociais do campo e da cidade em combate a retirada de direitos sociais e degradação ambiental. Esta tarefa hercúlea passa por uma série de ações e atividades que devem ser promovidas 128


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ou incentivadas, pelo ANDES/SN e seu GTPAUA. Entre as ações, destacamos: (1) cursos de formação sobre Marx e o Meio Ambiente (ou a luta ambiental); (2) seminários e eventos de denúncia da expropriação da natureza e sua decorrente violência imposta aos povos originários e populações tradicionais; (3) apoio às ações dos movimentos sociais relacionados às pautas ambientais e à produção de alimentos; (4) incentivar, sempre que possível, projetos de pesquisa e extensão acadêmicos vinculados à defesa incondicional do meio ambiente; (5) ampliar a discussão e articulação entre as questões urbanas e ambientais e a lógica de expropriação do trabalho; (6) estabelecer parcerias que colaborem para monitoramento, fiscalização e ação de combate aos inúmeros projetos de leis e emendas parlamentares que assolam a vida dos povos originários, populacões tradicionais, trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade; (7) reafirmar a luta contra os agrotóxicos e em defesa da produção de alimentos saudáveis; (8) albergar na luta em defesa da natureza o debate sobre a geopolítica do alimento, tendo a soberania alimentar como horizonte fundamental, entre outras. Estas são algumas sugestões para o futuro próximo. Enquanto as questões ambientais e seus povos e populações forem considerados secundários na luta sindical contra o capital, seremos ineficientes como um formigueiro sem coesão, especialmente na atual e severa crise mundial do capital. A luta sistêmica requer a união de todos os trabalhadores e as trabalhadoras na defesa da vida.

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Sem tĂ­tulo, Sem data Beatriz Aurora

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PARA SABER MAIS SOBRE A LUTA AMBIENTAL NO ANDES E NA SESUNILA seminários e mesas-redondas Seminário Regional Sobre os Impactos dos Projetos de Mineração https://www.youtube.com/watch?v=WI-4CrzWmnc

Dependência, Desenvolvimento e Política de Ciência e Tecnologia na América Latina https://www.youtube.com/watch?v=5TPm1jjjGKI

Universidade, Ciência e Classe em uma era de Crises https://www.youtube.com/watch?v=EAEDaLA8roU https://www.youtube.com/watch?v=qyc7r8UnmIU&t=8s https://www.youtube.com/watch?v=7tv3QrRfJAk&t=2s

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Neoliberalismo e Política de Ciência e Tecnologia no Brasil https://www.youtube.com/watch?v=OB36Y-hR978

revistas, relatórios, cartilhas e livros Revista Universidade e Sociedade n.59 dossier limites do capital: questões urbanas, agrárias, ambientais e de ciência e tecnologia

https://www.andes.org.br/img/midias/7b58579d 29466efd39d459fd4dcc3260_1548264693.pdf

Relatório do Seminário Nacional do GTPAUA sobre Agrotóxicos https://www.andes.org.br/setores/detalhe_ grupo/11

Cartilha Marco Legal de C&TI: Riscos e Consequências https://issuu.com/andessn/docs/impdoc-1508946885

Cartilha Conhecendo o ANDES https://issuu.com/andessn/docs/cartilha_ apresandes_2020_web

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livro Impactos dos Projetos de Mineração: O que queremos? O que sabemos? Pra onde vamos?

http://www.aprofurg.org.br/novo/index. php/joomla-pages/about/163-livro-digitals ob re - o s - i mp ac to s - do s - p roj e to s - de mineracao-e-lancado

contatos sesunila Celular e WhatsApp (45) 99833-1074 SESUNILA no Facebook e-mail: sesunila@gmail.com

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