PVEC25Abril20

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Índice

3 editorial 4 poema de Joseph Brodski 6 Revolução, respiração, um conto de Jacinto Lucas Pires 9 poema de Franco Fortini 12 Tudo em particular, por José Smith Vargas 13 contribuições sobre liberdade, cultura e outras coisas mais, de... 14 Paolo Barbaro 17 Auretta Pini e Gianni Tamino 20 Gianfranco Azzali 21 Giuseppe Morandi 22 Regina Guimarães 24 Serge Abramovici 26 Yann Prost / Jorge Silva Melo 27 José Smith Vargas (quadrados desenhados) 30 Bertran Romero Sala 33 Sofia Ferreira Andrade (A vida é um acontecimento local) 34 Lamento em hora incerta, por José Smith Vargas 35 poema de Ernest Hemingway 36 Escadinhas do duque, por Mário de Carvalho 38 poema de Pier Paolo Pasolini 40 colagem de Pedro Rodrigues 41 banda desenhada de Diana Dionísio 46 mais um quadrado desenhado de José Smith Vargas 47 palavras cruzadas, por Eupremio Scarpa 48 soluções das palavras cruzadas 49 Disparates, por Pitum Keil do Amaral 50 descubra as diferenças, por Sónia Gabriel 51 O jogo do desconfinamento (e desenho) de Regina Guimarães 55 «Aquilo que é dito entre olhares»: entrevista a Luiz Rosas Casa da Achada – Centro Mário Dionísio Rua da Achada, n.º 11, 1100-004 Lisboa centromariodionisio.org


Editorial Os encontros do 25 de Abril na Casa e no Largo da Achada, em Lisboa, após a manifestação popular na Avenida da Liberdade, foram-se tornando ao longo da última década, para muitos de nós, um dos momentos mais vibrantes e emocionantes do ano: exposições, encontros, conversas, canções a rodos e copos ao alto, um mar de gente solidária em festa sob o sorriso das olaias e dos vizinhos do largo. Vem aí agora o 25 de Abril de 2020, esmagado pela quarentena, mas a Casa da Achada-Centro Mário Dionísio não se rende, mantém-se activa e mantém gentes em contacto digital: é publicado este jornal digital, o PVEC, Processo Viral Em Curso; haverá uma sessão especial da série «Ouvido de Tísico» dedicada ao 25 de Abril; poderão ser ouvidas três canções do Coro da Achada, possíveis pela maravilha do encontro digital; estarão no ar poemas de Mário Dionísio e leituras pelo Grupo de Teatro Comunitário da Casa da Achada; tudo sob a égide do sonho de um mundo com mais igualdade, mais justo, mais solidário. Não sabemos bem o que aí vem no pós-covid. Mas esperamos menos egoísmo, menos ganância, menos corrupção, menos racismo, menos exclusão, menos consumismo, menos frieza financeira a comandar a vida. E mais democracia verdadeira, mais liberdade de dizer, de fazer, de criar e de escolher. Teremos forças e coragem para isso? ●●●

«Anos e anos de crime, digamos o que dissermos, consentido. Até ao tal amanhecer: Aqui, posto de comando das Forças Armadas. Escancarado o portão de Caxias. O regresso dos exilados perante mares de gente gritante e confiante, até parecia um povo. O primeiro 1.° de Maio em liberdade, nas ruas, nas janelas, nos andaimes dos prédios em construção. Seria mesmo um povo?» Mário Dionísio, Autobiografia


Não saias do quarto um poema de Joseph Brodski

Não saias do quarto, não cometas o erro de fugir. Se fumas Shipkas, para que precisas de sol? Lá fora, nada faz sentido, especialmente o grito de alegria. Vai até à casa de banho e volta depressa, meu velho. Ah, não saias do quarto, não chames um táxi, meu amigo. Porque o espaço é um corredor que termina num contador. E se a tua querida, de ar sorridente, entrar, expulsa-a sem a deixares despir-se. Não saias do quarto. Finge que tens gripe. Quatro paredes e uma cadeira são o melhor que há no mundo. Para quê deixar este lugar apenas para regressar mais tarde à noite, tal como eras, só que mais abatido? Ah, não saias do quarto. Dança bossa nova com os sapatos calçados sem meias, com um casaco sobre o teu corpo nu. O átrio tresanda a cera de esqui e a couves. Escreveste muito. Mais será excesso de bagagem. Não saias do quarto. Deixa que o quarto te diga que ainda tens bom aspecto. Incognito ergo sum, disse o Conteúdo, insolente, à Forma. Não saias do quarto! Lá fora não encontrarás a França. Não sejas parvo! Sê o que outros não foram. Fica. Não saias do quarto! Deixa a mobília reinar livremente, tenta misturar-te com o papel de parede. Tranca a porta, barrica-te com um guarda-fatos contra cronos, cosmos, eros, raça e vírus. Tradução de João Rodrigues


Brodski escreveu este poema em 1970 (ele foi obrigado a exilar-se em 1972), ironizando sobre a situação dos intelectuais de Leninegrado que só isolados em casa podiam falar abertamente contra o que estava mal na sociedade. Apesar do seu aparente carácter profético nos pandémicos dias de hoje, este é de facto um poema contra o isolamento e a falta de liberdade de expressão, um poema para o pós-covid, que exigirá de todos nós uma grande participação cívica e política.


Revolução, respiração um conto de Jacinto Lucas Pires De repente, está a correr como um perdido, a fugir deles, a pensar à velocidade do fogo: viro aqui?, onde é que me posso esconder?, eles serão quantos? Dobra a esquina das janelas entaipadas, vira pelo velho arco de pedra e enfia-se na reentrância que alguém escavou ali há uns anos. Algum ilegal, com certeza, ou um par de amantes desesperados. Não pode fazer barulho. Não pode respirar até que eles passem. Costumam ser de quatro os grupos da Polícia Médica, para poderem usar a tática do quadrado. Contra um quadrado, não há palavras que te salvem. Dentro de um quadrado, passas a ser um número. Roberto teve uma sorte danada em topá-los ao longe. Com as ruas vazias, os polícias deslizam silenciosos e matreiros, sem sirenes nem luzes, e apanham os suspeitos por trás. Quando estes dão por ela, estão na sala branca do Hospital Político, presos a uma cadeira, flashados por uma luz má, a tentar não responder às perguntas de um Inspetor-Protetor sobre as razões de andarem na rua, assim soltos e ilegais. Roberto nunca imaginou andar nestas correrias. Mas, passados três anos de isolamento, não aguentou mais e entrou para a Resistência. Faz o que sabe: vai para esquinas com janelas e põe em cena o seu repertório. Neste momento, tem três peças decoradas. À Espera de Godot (de Samuel Beckett, um autor muito famoso no longínquo século XX), Romeu e Julieta (de William Shakespeare, um autor muito famoso dos cada vez menos longínquos séculos XVI-XVII) e o Auto da Barca do Inferno (de Gil Vicente, um autor nada famoso dos séculos XIV-XV). Não sabe o que as pessoas dos prédios apanham dos espetáculos dele, mas sabe que não pode parar. O Estado tornou-se pandémico e não deixa ninguém juntar-se há tempo demais. Roberto não acredita que a peste ainda esteja “ativa”, como a propaganda não se cansa de repetir. “Cuidado, cidadã e cidadão: peste ativa, recolhimento obrigatório, ajuntamentos são crime, voltem para casa já!”, repete a voz maternal nos altifalantes das praças, estações, mercados. O mundo já estava fechado e a pandemia foi o pretexto de que o Estado precisava, na sua ânsia de controlo. Primeiro, Roberto teve medo. Depois, não teve outra saída. A coragem não será, por vezes, uma necessidade, uma fome? Ser ator na Resistência é ajudar a manter um vínculo entre as pessoas, entre as pessoas e as palavras, entre as pessoas e as ideias-emoções, entre as pessoas e o calor de uma voz não gravada, entre as pessoas e a permanente invenção que define o humano, entre as pessoas e o perigo que é estar verdadeiramente vivo. Enfiado na reentrância de pedra, qual Lázaro, Roberto pensa no espetáculo que fez hoje de manhã, numa esquina do Intendente. Um À Espera de Godot, em


que o Godot era o vírus. Para que os andares de cima possam apanhar alguma coisa da sua interpretação, o ator exagera os gestos, abre muitos os braços, abre muito a boca, interpreta as rigorosíssimas ações em traço grosso. De vez em quando, ouve uns aplausos abafados atrás das cortinas ou um “Bravo!” atirado sabe-se lá de onde. E, há uns meses, uma velha encostou a cara ao vidro de uma janela do primeiro andar para lhe dizer, “Precisamos de vós.” Nalgumas noites, Roberto acorda a pensar naquilo. Seria “vós” ou “voz”? Parece não fazer diferença, mas para um ator cada palavra é única e decisiva. Hoje, enquanto brincava a passar do Vladimir para o Estragon, viu uma cara a espreitá-lo do segundo andar de um velho prédio amarelo. Uns olhos pretos, castanhos, normalíssimos, tão bonitos. Uma rapariga de máscara na boca e no nariz, a olhá-lo muito quieta durante a peça toda. Roberto não lhe percebeu a cara, viu só os olhos; ou, menos ainda, percebeu-lhe apenas o tipo de olhar, de uma atenção feliz e inteligente. Mas ficou apanhado. Da próxima vez que sair, volta àquela esquina, está decidido.

«Uns olhos pretos, castanhos, normalíssimos, tão bonitos. Uma rapariga de máscara na boca e no nariz, a olhá-lo muito quieta durante a peça toda.» Passados três dias, lá está ele, para uma apresentação especial. Vai fazer Shakespeare mas com uma novidade. No clímax da história, interrompe o texto e canta sem instrumentos uma tradução livre de Ain´t No Cure For Love, de Leonard Cohen (um autor do século XXI, menos e mais que famoso). Depois volta ao texto e diz as falas das diferentes personagens, tentando viver mas não comentar, tornar presente mas não normal, aquele amor de teatro. Quando acaba, espera algum sinal dos olhos do segundo andar. Mas, nada, não vem nada. As cortinas de várias janelas fecham-se e Roberto vai-se embora, desiludido. Até que ouve um barulho. Uma coisa mínima; um talvez-som quase metálico, como o ranger de uma porta imaginária. Ele pára, vira-se para trás, vê: a rapariga abrindo a janela, aproximando-se do varandim e retirando a máscara que lhe tapava o nariz e a boca. Milagre! Roberto é um ator pasmado na esquina. No ar livre de Lisboa, a cara nua. A cara da rapariga — nua. De uma nudez impensável, intraduzível, sem fim. Se a rapariga rasgasse a camisa oferecendo o peito à cidade, se soltasse os cabelos e gritasse segredos


inconfessáveis e levantasse as pernas e as abrisse contra o céu, não seria mais nua. Milagre, meu amor! De imediato, Roberto trepa pelo tubo da fachada como um ginasta, como um Romeu, e os dois — atenção, hesitação, inquietação, excitação, resolução — beijam-se. Nessa noite, Roberto sonha que a vida tem sentido. Imagina países distantes que nunca visitou nem visitará. Vê palavras em fogo viajando pelas ruas da cidade. No dia seguinte, há de voltar lá, à esquina do prédio amarelo. Nem que encham as ruas com tanques da Polícia Médica, há de voltar. Mas, quando volta, o lugar está tomado por um silêncio esquisito. Um silêncio que cheira a desinfetante. Um silêncio que é um nó, uma mancha mais densa, no silêncio geral de Lisboa. Na porta está afixado um papel oficial a dizer que o prédio foi evacuado, desmantelado, desinfetado, e é agora “espaço morto”, vedado a todos e cada um por ordem superior. “Cidadã e cidadão: peste ativa!” O ator corre dali com uma energia que não sabia que tinha. Corre, sofrendo como um rei shakespeariano e o seu coração não aguenta. O ator sente que não tem coração que chegue para aquilo. E corre ainda mais, como se quisesse fazê-lo rebentar. O seu pobre coração falhado, oh. Até que chega ao lugar que chama casa e cai de joelhos (o gesto de quem, desavisado, dá de caras consigo próprio). Na colina das hortas junto a via-rápida, no seu casinhoto de madeira, Roberto pensa na nudez da rapariga. Nem lhe perguntei o nome. Matei-a com aquele beijo, se calhar, e nem lhe perguntei o nome. Deitado no seu colchão de todos os dias, o homem pensa na rapariga, presa a uma cama nalguma sala de hospital, a sofrer, a delirar a partir de bocados de palavras, imagens rasgadas. Afinal a pandemia ainda funciona, será? Ele não sabia, não sabia, não sabia. Caem-lhe lágrimas pela cara: lágrimas grossas, salgadas, puras, lágrimas a sério, como não lhe acontecia desde criança. Roberto não sabe o que fazer. Olha para as mãos, toca nos lábios secos. Não sabe o que fazer. Tenta acalmar telepaticamente a rapariga, dizendo-lhe o que lhe vem à cabeça com o máximo de franqueza. Falas que disse mil vezes surgem-lhe agora novas e limpas, tomadas de um espanto que as intensifica e revela. Nunca Gil Vicente lhe pareceu tão vivo. Chh, não tenhas medo, eu salvo-te das barcas más. Chh, chh. O ator da Resistência adormece assim, embalando a rapariga sem nome, lá longe. Sonha que o seu corpo se confunde com o dela, que doença e amor se confundem numa esperança revolucionária, sonha que Romeu e Julieta vivem encaixados na reentrância do arco, respirando boca a boca, enquanto o mal do mundo mirra e morre.

Jacinto Lucas Pires


La gioia avvenire um poema de Franco Fortini Potrebbe essere un fiume grandissimo Una cavalcata di scalpiti un tumulto un furore Una rabbia strappata uno stelo sbranato Un urlo altissimo Ma anche una minuscola erba per i ritorni Il crollo d’una pigna bruciata nella fiamma Una mano che sfiora al passaggio O l’indecisione fissando senza vedere Qualcosa comunque che non possiamo perdere Anche se ogni altra cosa è perduta E che perpetuamente celebreremo Perché ogni cosa nasce da quella soltanto Ma prima di giungervi Prima la miseria profonda come la lebbra E le maledizioni imbrogliate e la vera morte Tu che credi dimenticare vanitoso O mascherato di rivoluzione La scuola della gioia è piena di pianto e sangue Ma anche di eternità E dalle bocche sparite dei santi Come le siepi del marzo brillano le verità.



A alegria por vir Poderia ser um rio grandíssimo Um tropel de cascos um tumulto um furor Uma raiva rasgada um caule devorado Um grito altíssimo Mas também uma minúscula erva para os regressos O desmoronar de uma pinha queimada na chama Uma mão que roça ao passar Ou a indecisão que fita sem ver Algo que de qualquer forma não podemos perder Mesmo que qualquer outra coisa esteja perdida E que perpetuamente celebraremos Porque cada coisa nasce apenas daquela Mas antes de chegar aí Antes a miséria profunda como a lepra E as maldições emaranhadas e a verdadeira morte Tu que acreditas esquecer vaidoso Ou disfarçado de revolução A escola da alegria está cheia de choro e sangue Mas também de eternidade E das bocas desaparecidas dos santos Como as sebes de Março brilham as verdades.

Franco Fortini tradução de Serena Cacchioli Franco Fortini (1917-1994) foi um poeta, tradutor e ensaísta italiano. Este poema faz parte do seu primeiro livro de poesia «Foglio di via» publicado em 1946. São poemas marcados pela Segunda Guerra Mundial, pela experiência de soldado e de exilado.



Pusemos algumas perguntas a amigos e amigas da Casa da Achada sobre a situação actual, e à volta de duas palavrinhas um pouco difíceis:

“liberdade” e “cultura” .

Gente de várias partes do mundo

(Itália, França, Portugal, Catalunha...)

respondeu-nos de maneiras muito variadas, como é natural. Mas todas elas nos ajudam a pensar e a agir nos tempos que correm. Aqui vão as respostas de... Paolo Barbaro, do arquivo fotográfico do Centro Studi e Archivio della Comunicazione da Universidade de Parma; Auretta Pini, ambientalista e Gianni Tamino, biólogo; Gianfranco Azzali, presidente da Lega di Cultura di Piadena; Giuseppe Morandi, fotógrafo e cineasta, também da Lega di Cultura; Regina Guimarães, escritora e videasta; Saguenail, cineasta e escritor; Yann Prost, animador cultural reformado, sindicalista; Jorge Silva Melo, encenador, cineasta e escritor; José Smith Vargas, artista plástico e ilustrador; Bertran Romero Sala, professor de literatura e tradutor; Sofia Ferreira Andrade, professora de literatura e tradutora;


Paolo Barbaro O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Posto que fomos subitamente catapultados para uma situação completamente nova e inesperada, estes dias estranhos são, certamente e acima de tudo, uma oportunidade para pensar com uma certa radicalidade – ou seja, para pensar, mesmo que em casa sozinhos – sobre as raízes do nosso agir, lá fora, em conjunto. Quanto à liberdade:

é preciso deixar de pensar na liberdade como algo que se mede e se procura a partir do seu limite. Se o limite é imposto por algo que nos pareça justo e razoável – evitar que nos coloquemos em perigo a nós próprios, e que ponhamos em perigo os outros – temos de estender a nossa liberdade a territórios novos, territórios a repensar: de estudo, de reflexão, de comportamentos individuais ou de comunidades mínimas.

Muitos de nós terão também de pensar em formas livres de enfrentar o medo, a dor pelas pessoas que adoecem e morrem. Isto não significa que se invista tudo no individualismo – o horizonte é social, ainda que estejamos sozinhos. Há instrumentos de comunicação muito úteis, e cada acto, mesmo o mais pessoal, tem a ver com todos. Cada acto se exprimirá porventura de maneiras inesperadas e talvez leve a diferentes formas de liberdade quando sairmos à rua e nos voltarmos a encontrar de novo. Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Por enquanto, há a nostalgia de estarmos próximos e sermos muitos, de nos tocarmos. Depois há que compreender de maneira diferente o que é o medo dos outros, a desconfiança de que inevitavelmente todos sofreremos um pouco, e combater essa desconfiança percebendo melhor de que se trata. Teremos aprendido uma forma mais clara de pensar a globalidade e a globalização, as responsabilidades e irresponsabilidades dum modelo em que as pessoas circulam como e enquanto mercadoria,


quando a circulação da mercadoria é deveras indiferente à vida ou à morte das pessoas. Politicamente,

esta situação deveria ter-nos levado a entender que as pessoas têm direito à subsistência, a uma vida decente, independentemente do funcionamento do mercado, ou então ninguém se salvará... Foi boa a decisão tomada pelo governo português de regularizar todos os que estão no território. Foi muito mau o facto de praticamente nenhum outro governo europeu ter feito o mesmo – nem sequer as esquerdas mais ou menos desbotadas falaram disso. Poderemos igualmente afirmar com ainda mais veemência que a economia não coincide com a finança.

E a cultura fica sempre para depois? O que é que tem a ver a cultura com tudo isso? E se a finança é apenas uma parte da economia, a economia é por sua vez uma parte da cultura, uma parte dos instrumentos de que os homens dispõem – eu diria mesmo todos os seres vivos – para compreender e relacionar-se com o meio ambiente, com os outros semelhantes e diferentes. A cultura não vem depois, vem antes de tudo. Um ministro italiano – e muitos depois dele – gaba-se de ter dito que a cultura não se come. Não é verdade: como comer e o quê é cultura, qualquer acto é cultura. Claro que os chamados intelectuais terão de colocar a si mesmos algumas questões, de entender a que ponto o próprio trabalho – o nosso – acaba por ser reduzido a um entretenimento nos dias de aborrecimento, antes de se voltar às coisas sérias. A cultura é uma coisa séria, a história da Casa da Achada demonstra-o. Se depois nos debruçarmos sobre a cultura científica e o seu uso nestes dias, há mais de um motivo para activar rapidamente um pensamento crítico e consciente. Uma última reflexão, não sei se tem a ver com o assunto.


Aqui continuam a dizer que estamos em guerra, e é um grande disparate (uma solene treta proferida de má-fé...): a guerra é quando nos mandam matar pessoas que poderiam ser nossos irmãos, é quando, em nome de um princípio abstracto e de outros interesses concretos, nos ensinam a eliminar, ou pelo menos derrotar, os nossos semelhantes. A metáfora militar revela-se muito útil para varrer qualquer sentido crítico e denunciar como traidor aquele que vê as coisas segundo ópticas

diferentes. Não é só uma questão de palavras: se falarmos de luta, expressaremos melhor a ideia de que é uma luta também de classes. Aqui em Itália, morrem mais os pobres. Vemos, por exemplo, que na rica Lombardia, lugar de exaltada, porque privada, excelência sanitária, os mais indefesos – que moram em lares de idosos privados donde os sindicatos dos médicos e dos enfermeiros foram escorraçados – caem como moscas. A excelência sanitária só é excelente se gerar lucro... Quem não se pode defender nem é politicamente influente morre – e esta é uma questão política. Paolo Barbaro Abril 2020


Auretta Pini e Gianni Tamino O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? A liberdade é um direito, mas a saúde (nossa e dos outros) também é um direito. Portanto temos que juntar Liberdade, Saúde e respeito pela Constituição (no nosso caso, italiana). Como manter juntas estas três questões fundamentais? Garantir saúde e liberdade é um pouco como garantir a própria liberdade respeitando a dos outros e a salvaguarda da saúde de todos. Somos livres de fazer o que não põe em causa a liberdade dos outros e, neste caso, temos que limitar a nossa liberdade para garantir a nossa saúde e a dos outros. O problema está em avaliarmos todos em conjunto até quando e quanto um governo pode limitar a nossa liberdade para garantir o bem comum e quando, pelo contrário, estamos perante escolhas autoritárias. Garantir a saúde colectiva, mesmo que com limitações de liberdade e movimento numa situação de particular gravidade e risco, pode ser aceitável, mas as medidas têm que ser limitativas para todas as pessoas da mesma forma. Quem é encarregado de controlar o respeito pelas restrições não pode agir de modo arbitrário e vexatório e as autoridades têm de ser capazes de salvaguardar o direito à expressão, à informação, à

manutenção das relações humanas, à instrução dos nossos filhos, ainda que em condições de parcial isolamento, bem como o direito de poder conservar o emprego e os recursos económicos necessários para a família. Acima de tudo, o Estado tem de garantir direitos iguais a todos os cidadãos, não permitir situações de empobrecimento e salvaguardar o direito à saúde para todos os cidadãos através do sistema de saúde público. Em Itália pararam todas as actividades – excepto os sectores que têm que garantir os alimentos, os serviços de saúde, os desinfectantes, etc. –

mas infelizmente também foram consideradas essenciais as indústrias de fabrico de armas. Portanto, será que continuar a abastecer o mercado com as armas que alimentam as guerras faz parte das liberdades a salvaguardar em situações de emergência como a desta pandemia? A imposição do distanciamento social para garantir a saúde colectiva − se mal gerido ou gerido


de forma desigual dependendo de quem for encarregado de fazer respeitar as normas (papel da polícia local ou nacional), ou do território (papel das diferentes autoridades regionais que podem estabelecer nos diversos territórios regras diferentes) − pode despoletar um clima de medo, de suspeita, de delação (logo, de controlo social) relativamente a quem possa presumir-se ser passível de não respeitar as regras de restrição e, por conseguinte, traduzir-se por uma grave perda de liberdades. Deveríamos interrogar-nos sobre estas coisas. O risco é a perda gradual dos direitos constitucionais com a desculpa da pandemia, como aconteceu na Hungria. Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Para muitos a esperança é que, uma vez terminada a emergência, tudo possa voltar a ser como dantes o mais cedo possível, para que sejam retomadas as actividades com base num modelo de desenvolvimento que favoreceu a destruição do ambiente e o empobrecimento de populações inteiras, bem como dos sectores mais frágeis das sociedades mais ricas. É impensável sair da crise sanitária, económica e social induzida pela pandemia permanecendo agarrados – ou até prisioneiros – do mesmo modelo de

desenvolvimento e de consumo que contribuiu para a provocar.

Nós, pelo contrário, pensamos que nada poderá nem terá que voltar a ser como antes porque, se assim fosse, quereria dizer que (enquanto colectividade) não desejamos procurar perceber como tudo isto pôde acontecer e como vamos preparar-nos para eventuais novas crises. Já fizemos esse erro em relação a outras epidemias recentes, embora menos graves, e em relação à crise de 2008, o que resultou num aumento das desigualdades sociais e no surgimento de novas pobrezas. São necessários grandes investimentos em fontes energéticas renováveis com baixo impacto, para sistemas de produção industriais e agrícolas que se inspirem na economia circular, com reciclagem total dos recursos, sem produção de resíduos e de poluição. Há que defender as florestas, os rios, os bosques, os oceanos e cada habitat que está em risco de ser destruído. Todavia é preciso dar igual atenção aos tipos de ajuda e cooperação destinados aos países mais pobres: nenhuma ajuda militar, nenhum «apoio» que consista em transferir para lá


indústrias poluentes dos países ricos, mas antes financiamentos que permitam o desenvolvimento de uma economia sustentável para produzir o que for necessário às populações locais, a partir duma agricultura biológica e de estruturas sanitárias adequadas para fazer frente às frequentes epidemias, como a de de diarreia infantil, que todos os anos fazem mais de meio milhão de vítimas. E a cultura fica sempre para depois? O que é que tem a ver a cultura com tudo isso? Mudar o sistema que causou crise e pandemia significa ir até à origem do nosso modo de agir a nível político, económico, social, ou seja, questionar de novo o paradigma cultural actualmente dominante. Sem uma revolução cultural, as coisas ficarão como dantes.

Adoptar um novo paradigma passará por reavaliar todos os saberes, e não apenas o técnico-científico, a partir da filosofia, das artes e sobretudo dos saberes populares transmitidos de geração em geração (tais como os cantos populares e as narrações típicas das várias tradições). A revolução cultural, a mudança

de paradigma, também requer uma capacidade de prever um futuro diferente, com bases solidárias e igualitárias e para tanto temos que exercer, como explicava Gramsci, «hegemonia cultural». Uma cultura que, de qualquer modo, não poderá circular sobretudo através da internet, como acontece agora em situação de emergência, pois terá de voltar a ser baseada num confronto com o real e nas relações dentro das comunidades. Auretta Pini e Gianni Tamino


Gianfranco Azzali (Micio) Nas actuais circunstâncias, a liberdade está suspensa. Passado este período, há duas possibilidades. A primeira hipótese é que a pandemia se torne permanente. Desse modo mantêm-se as pessoas divididas e escravas do medo. A pouca socialidade que ainda sobrava vai desaparecer. Já há muitas pessoas entusiasmadas com o trabalho e o ensino à distância. Não compreendem que isso vai servir para as dividir e as reprimir. Depois há os que acham que a socialidade via internet se tornará muito mais forte. Esses são doidos varridos. A outra possibilidade é que as gerações jovens intuam que lhes estão a roubar a vida e se revoltem, o que seria sinal de uma boa mudança. Há, por exemplo, as pessoas que cantam juntas a partir das janelas, há formas de solidariedade nos prédios, há pessoas na casa dos noventa que tiraram do armário a velha máquina de costura e fazem máscaras porque já não se encontram em lado nenhum, há cozinheiros que preparam comida para quem não a tem, há pasteleiros que preparam

croissants para médicos e enfermeiros nos hospitais e outras iniciativas deste tipo. Tudo isso gratuitamente. Se isso também continuar a seguir, quer dizer que fizemos um passo à frente para um mundo mais justo.

Não é verdade que estamos todos no mesmo barco e que já não há classes. Pelo contrário, as diferenças de classe acentuaram-se ainda mais. Na zona de Bergamo, onde não fecharam a tempo as fábricas, a mortalidade foi mais alta. Se para o capitalismo a coisa mais importante é o lucro, para a maioria da população é a vida, e a cultura faz sempre bem. Mas qual? Vejo como os fanfarrões estão a gerir a pandemia. O que de mais notável conseguiram foi espalhar o medo. Tudo o resto é muito questionável… face aos dados que nos são comunicados, ninguém sabe quantos mortos foram causados pelo vírus. Gianfranco Azzali (Micio) – Lega di Cultura di Piadena Abril 2020


Giuseppe Morandi Queridos companheiros da Casa da Achada de Lisboa, temos sempre muito gosto em trocar cartas convosco e falar da situação em que nos encontramos, não apenas nós, mas o mundo inteiro. Por enquanto é o corona vírus que nos preocupa, mas, com esta organização social mundial, a situação tornar-se-á cada vez pior, porque esse é o resultado do desenvolvimento industrial, comercial, dos transportes e dos meios de transporte que poluem o ar que nós respiramos. Houve tãosomente pequenos grupos a opor-se a esse desenvolvimento, mas por meio de palavras, papel impresso, declarações públicas.

É preciso pôr nas praças o nosso corpo, a nossa voz, a nossa presença física. A menina do Norte da Europa entendeu isso e, como um gigante armado de calma e inteligência, disse ao mundo inteiro: estais a destruir o planeta. Na cara dos chefes do mundo, recusando os meios de transporte que poluem a Terra. Sim, foi aplaudida, porém é considerada louca pelos chefes de Estado. A modéstia da menina não usa a violência para afirmar que

estão a destruir o mundo. Agradecemo-la em nome dos trabalhadores e dos cientistas que já disseram tantas coisas, mas que ainda não colocaram o seu corpo em campo. Pois é, queridos companheiros, não vamos festejar o fim da Segunda Guerra Mundial [que em Itália se comemora no dia 25 de Abril], mas os companheiros desse tempo estão no nosso coração e na nossa memória. Quem manda no nosso mundo é a tecnologia a trabalhar para o maior lucro. E nós adaptamo-nos aos meios de comunicação que eles nos propõem. O mundo novo não existirá se utilizarmos os meios de comunicação e de trabalho deles. O homem e a mulher estão cada vez mais isolados porque nas relações humanas já não há solidariedade, nem socialidade na vida em comum. Contudo, sem querer ser retórico, toda a gente sabe que uma família de bergamini 1 – a família do Micio – criou ao longo dos anos laços de solidariedade e amizade que já não existem na actual vida política. Continuemos a seguir os ensinamentos desta família que propaga a solidariedade, a humanidade. Giuseppe Morandi – Lega di Cultura di Piadena Abril 2020


Regina Guimarães O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? A liberdade (como aliás a fraternidade e a igualdade) é um conceito farol que magnetiza o pensamento e a acção das pessoas que apreciam a sua violenta luz em todas as circunstâncias. Existem pessoas encarceradas que gozam de mais liberdade do que outras que, no mesmo tempo e lugar, circulam «livremente». Neste momento, paradoxalmente, há quem se confine livremente e quem não tenha propriamente a liberdade de se confinar embora desejasse porventura fazê-lo. O que mais muda com o confinamento sanitário é o modo como vivemos o tempo. Ora nos parece alongar-se, ora nos tira o tapete debaixo dos pés. Estudar o estar é um bom programa para o confinamento, sobretudo se acharmos que o estar é mais exaltante do que o ter.

Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Esta mudança – que não se me afigura radical, apenas dolorosa por causa da privação da presença de amigos, companheiros, filhos, netos, irmãos, mãe – pode servir a cada um de laboratório para introduzir na sua própria vida mais apego ao presente, à palavra, à frugalidade, à festa da conversa e do passeio.

E mais empenhamento nas lutas pelo trabalho que liberta do trabalho. E a cultura, é sempre pra depois? O que tem a cultura a ver com isto? Se com esta pergunta querem a minha opinião sobre a situação dos agentes


culturais que ficaram súbita e gravemente privados de meios de subsistência, a minha proposta é estabelecer um rendimento mínimo decente a atribuir a artistas, técnicos e afins da área da cultura, bem com a todos os trabalhadores na mesma situação de todas as outras áreas. Se com esta pergunta me estão a inquirir acerca das letras, das artes e das ciências, julgo que um interregno deste tipo é uma oportunidade de parar para pensar o que cada um e cada conjunto de muitos uns anda a fazer e como perspectiva o seu fazer num mundo mudado, espera-se que para melhor (o que não é certo, o populismo está aí à porta, tipo terrífico popup).

É vital valorizar o que é gratuito para não ficar nas garras do mercado e dos mercadores.

Ontem decidi que, para não chorar baba e ranho, só muito longinquamente me iria interessar pelas reivindicações dos «trabalhadores da cultura» cujo discurso parece ser, quase unissonamente, «venha o guito de que necessitamos para que tudo fique como dantes...».


Serge Abramovici (Saguenail) O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Em 1924, há quase um século, numa época em que gozava como qualquer outro bicho careta da licença de circular, André Breton escrevia no «Manifesto do surrealismo»: «A simples palavra liberdade é tudo o que ainda me exalta. (…) Responde porventura à minha única aspiração legítima. No meio de tantas desgraças que herdámos, há que reconhecer que nos concedem a maior liberdade de espírito.» Nesta perspectiva, a situação de confinamento não muda nada. As restrições incidem sobre as possibilidades de consumo e distracção, eventualmente de labor. Em nenhum caso a liberdade de pensamento é atingida, podendo, bem pelo contrário ser estimulada pela reclusão que nos confronta com nós mesmos, confrontação da qual nos desabituámos e que só pode revelar-se positiva.

Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Parece-me que quem não foi capaz de construir alternativas quando tinha à sua disposição mais meios e mais ferramentas não haverá de se mostrar mais eficaz quando as restrições impostas lhe fornecem um álibi perfeito. A consciência é fruto das condições materiais exteriores no seio das quais se elabora. Talvez as populações confinadas se apercebam de que se pode viver sem consumir tanto, que

é possível ocupar o tempo com actividades que não as que a classe dirigente lhes impõe, que o contacto, única fonte de eclosão dos sentimentos (sair de si próprio,


projectar-se no outro) e da reflexão (conhecer-se a si próprio graças à imagem que o outro nos devolve) é o acto (e o valor) supremo. Após a catarse e o arrebatamento que o fim do confinamento desencadeará, poderemos fazer balanços. E a cultura, é sempre pra depois? O que tem a cultura a ver com isto? A palavra «cultura» remete para muitas noções e isso permite fugir com o rabo à seringa. Convém pois definir os termos:

a cultura é o que se transmite, o que se debate, o que serve de referência (positiva ou negativa), o que alimenta a memória social. A «arte», palavra que adquire a sua actual acepção há três séculos atrás quando o mercado se abre às produções que dela emanam, não tem nada a ver. O «divertimento», que nos permite esquecer, pelo menos provisoriamente, os verdadeiros problemas a

resolver, também nada tem a ver. Criar consiste em transformar positivamente – sublimar – um sofrimento tal que o acto de criação se torna vital, independentemente de qualquer consideração mundana; a «cultura» leva geralmente algum tempo a assimilar essas criações. Os «artistas», que formam uma casta privilegiada, herdeiros da função outrora exercida pelos bobos e as cortesãs, que querem a receita das vendas e a subvenção do Estado, são globalmente agentes destruidores da cultura, submetendo-se aos imperativos da cultura de massa – aquela que é concebida pelos «decisores» para os «consumidores» ‒ ou protegendo o seu domínio como «coutada privada» – quando «a poesia [deveria] ser feita por todos, não por um». Pelo que não choraremos pela sua sorte. A cultura em tempo de confinamento consiste em divulgar e discutir as obras, no sentido mais lato, a fim de repensar o presente, numa situação que não é tão nova quanto pretendem fazer-nos crer.


Grand Loup (Yann Prost) Tendo em conta a situação de confinamento prolongado até 11 de Maio [em França], sou incapaz de alinhavar opiniões precisas sobre assuntos tão vastos como a liberdade e a cultura. Nestor Makhno dizia em 1924 que «a liberdade de cada um é responsabilidade de todos». Belo princípio filosófico desse comunista libertário ucraniano, mas o que resta dele hoje quando a economia capitalista se apoderou em seu proveito das liberdades de cada um, controlando a cultura, entre outras coisas? Os Estados e os seus governos estão às ordens da Organização Mundial do

Comércio e do Fundo Monetário Internacional. Para mim, é evidente que a cultura se deve exprimir com toda a liberdade em todas as suas formas. Actualmente,

seria preciso talvez vislumbrar a criação de mil núcleos de liberdade e de cultura situados localmente e independentes de todos os poderes vigentes. Grand Loup (Yann)

Jorge Silva Melo O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Para nós, burgueses que podemos estar confinados, é simples: acordar, lavar corpo e casa, pensar, ler, discutir, pensar, contrapropor, falar com outros por todos os modos possíveis, dormir. Mas somos poucos. Para a imensa maioria não é nada. Nem nunca foi. Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Não sei. Não sei.

E a cultura, é sempre pra depois? O que tem a cultura a ver com isto?

Não sei o que é a cultura. São as artes? O entreteninento? As ciências? As igrejas? Não sei responder, eu faço teatro, fiz cinema e escrevo o que me dá na gana. Isso é o quê? Cultura? Não creio. São coisas que se fazem...





Bertran Romero Sala Alguns jornais, online, insistem em transmitir ao vivo o centro das cidades vazias. E a legenda é alguma coisa parecida com “Incrível, a cidade como nunca a tínhamos visto”. Mas não é verdade, estamos habituados a vermos as ruas vazias, as multidões com medo,

estamos habituados aos filmes apocalípticos que periodicamente passam nos cinemas, com aquelas cidades instaladas no desastre. É inegável, há algum prazer na destruição, mesmo que seja para ver como os Estados Unidos têm

problemas dentro de casa em vez de exportá-los, ou porque estamos fartos de como se organiza o mundo. Mesmo entre o público norte-americano estas imagens apocalípticas têm certo sucesso. Talvez seja porque se não temos uma ameaça constante à nossa normalidade não podemos viver tranquilos? Porque o medo de perder os nossos privilégios é o motor para justificá-los sem pensar muito? Mas, realmente, sabemos que as ameaças de destruição são coisa de filmes, que não estamos perto do colapso e que isto vai continuar em frente para sempre. Afinal, estes filmes são bem úteis! O medo é a ferramenta mais eficaz contra a liberdade, o medo controlado ao irreal, à possibilidade impossível dum apocalipse à Hollywood: evita que pensemos nos medos reais, nos apocalipses possíveis (por muito que menos espectaculares), evita que vejamos o sofrimento dos outros, ocupados como


estamos em manter os nossos frágeis privilégios. Porque para ter medo de perder alguma coisa é preciso ter alguma coisa. E porque os discursos apocalípticos situam-nos no irreversível, na impotência, como se qualquer mudança estivesse fora do nosso alcance. Fechados em casa, no meio duma pandemia estranha, conseguimos ver a fragilidade dos alicerces sobre os quais está construída a nossa sociedade. Mas nem sempre sabemos reagir; não é (só) que não queiramos ver as enormes desigualdades porque não é confortável, mas porque todas as possibilidades de tecer redes foram sistematicamente destruídas. E nestes dias vemos ainda mais claramente que não conseguimos estar presentes no que fazemos e pensamos, estamos sempre a projetar para a frente, ou para o passado, ou com medo, ou com possibilidades futuras que se assentam sobre falsidades. Ou nos estamos a proteger dos dias que passam. Ou temos três

reuniões ao mesmo tempo, um deadline para ontem, uns apoios da câmara municipal que nos obrigam em contrapartida a fazer quem sabe exactamente o quê. E então é sempre amanhã: amanhã vai-se aos copos, amanhã pensa-se nisso, amanhã muda-se a vida, amanhã tento recuperar aquela amizade. Estamos a perder o presente, estamos sempre algures noutra parte. Mas olha, as redes vieram para resolver a distância que provoca o confinamento.

Aulas online, reuniões online, sessões online, coros online. Nascimentos online! Seria demasiado fácil ficar naquela demonização das redes, nada nova e que nada acrescenta. Mas que não nos


queiram convencer de que a nossa vida pode ser online, porque uma aula também se faz no movimento pela sala, porque para uma assembleia é preciso poder cheirarmo-nos uns aos outros, porque para cantar num coro é preciso tocar o outro. E quando sairmos das casas, se é que vamos conseguir, a solução não será só podermos organizar-nos telematicamente, criar resistências no facebook, trabalhar desde casa para poder conciliar a vida laboral e familiar. Será talvez preciso trabalhar menos. Trabalhar diferente. Marcar umas novas prioridades e (continuar a) tecer redes. Virtuais também, mas não só. Este apocalipse de ruas vazias só se poderá resolver com encontros não adiados, com palavras ditas uns ao pé dos outros, podendo estar presente naquilo que se faz, com colaboração e sem

heróis. Aqueles heróis perigosos dos filmes, que não precisam de nada porque eles já são tudo. Precisamos de muito, de paz, de pão, de habitação, de saúde, de educação.

Porque para poder estar presentes naquilo que se faz é preciso não estar em risco. (E a cultura? A cultura sempre entre parênteses: tudo aquilo que não seja actividade produtiva não cabe num mundo urgente, com prioridades marcadas por governos de salvação. Só, talvez, das margens do texto é que se pode pensar...)


A Vida é um Acontecimento Local por Sofia Ferreira Andrade “A vida é um acontecimento local”, disse-me Chaplin n’ As Luzes da Ribalta. A vida só é porque a fazemos acontecer. E acontecer num espaço, mesmo que este seja só o lugar que vai da minha pequena casa à nespereira do quintal do meu vizinho. Num momento em que nos embriagamos na suspensão do presente, na ausência de um tempo social, e que a vertigem de sermos um pequeno ser histórico a quem a História acontece nos aninha, venho à superfície da apatia e inspiro aquele instante gélido de realidade para encher os pulmões de consciência. Mês de Abril. O homem elevou-se a indivíduo ao conquistar um tempo para a sua solidão, ao subtrair-se cadenciadamente ao calendário da vida comunitária, e ao inscrever esse tempo num momento concreto da sua vida íntima. A conquista desse tempo pensante deu-nos o espaço individual de onde despertámos para a realidade, dando um passo para indagá-la e outro em volta para tomarmos consciência. Porque a consciência histórica nasce do pensamento e ter essa consciência é ser um agente da História, é ter responsabilidades, deveres e garantias, é escrutinar o seu sentido como problema, onde a nossa condição é activa na sua resolução. O tempo comum no espaço social é o encontro do tempo solitário de cada indivíduo, é a minha mão na tua e os nossos passos acertados que calcorreiam a avenida. Mês de Abril. O tempo social é o sustento do tempo histórico, nós sentimos e somos a História através do tempo de convivência com a nossa sociedade, o lugar antropológico dentro do qual estamos e nos movemos, de cujas revoluções e ecos somos responsáveis. No lugar que vai da minha pequena casa à nespereira do quintal do meu vizinho estou só, mas o meu tempo de solidão é um tempo de liberdade concreta, de liberdade local que me prepara, e a ti, para o espaço da liberdade comum. Faço a vida acontecer, devagarinho, espicaço o ser pensante com os instrumentos culturais que me chegam lá de fora, da comunidade da minha memória de todos os meses de Abril. A cultura que me abraça a ti é aquela que nos educou, que nos narra e reactualiza, agilizando-nos o passo no compasso de todos os tempos. Acontecerei também a 25 de Abril, da minha janela verás uma consciência solitária num quadradinho de luz, ainda mais pronta a unir-se à tua para sermos a multidão que acontece, real, no lugar da nossa História. Porque a poesia só está na rua no instante em que sai de casa.



Os tempos exigiram um poema de Ernest Hemingway Os tempos exigiram que cantássemos Mas cortaram-nos a língua. Os tempos exigiram que fluíssemos Mas martelaram a rolha no barril. Os tempos exigiram que dançássemos Mas vestiram-nos calças de aço. E por fim os tempos foram brindados Com a espécie de merda que tinham exigido.

Tradução de João Rodrigues

Poema de juventude de Hemingway, escrito em Paris, em 1922. O título é «roubado» da segunda parte do poema «Hugh Selwin Mauberly», de Ezra Pound, de 1920.


Escadinhas do Duque por Mário de Carvalho

É tão importante falar nisto. E exprimir, mesmo toscamente, mesmo resgatando lances desencontrados de uma memória já vacilante, sentimentos de gratidão pelo que fizeram por nós e, sobremaneira, de nós fizeram. Escadinhas do Duque, sensivelmente a meio. Espaço alargado. Por detrás dum muro, a velha, airosa Lisboa, alçando-se harmoniosamente até às torres severas do Castelo. Em tantas ocasiões, galguei com alegria aqueles carcomidos degraus, direito à Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal… E desde muito miúdo. O meu pai, cooperativista activo durante toda a sua vida e ligado também a outros transes da política oculta da Oposição, fazia questão de assistir, com a família, a convívios e festas, designadamente de passagens do ano. Lembro-me de correr por ali, com outra miudagem da minha idade, por entre os pares que dançavam naquele espaço não muito vasto. Cóbois e índios. Tiros. Havia rifas, ganhei uma gaitinha, muito esganiçada e alegrete. O dinheiro apurado por aquelas rifas, calculo hoje, destinar-se-ia aos presos políticos ou a outras finalidades beneméritas de resistência. E foi ali que comecei a ouvir o coro da Academia dos Amadores de Música, conduzido por Fernando Lopes Graça. O maestro, de modos sempre discretos e reservados, não se furtava ao convívio. A dada altura o coro reunia-se ao fundo da sala. Os circunstantes dispunham-se, sentavam-se, em silêncio. Lopes Graça enunciava o nome da canção, em voz baixa: «Canta Camarada Canta.» E insistia, muito sério: «Canção de contrabandistas da Beira-Baixa.» Mas todos, mesmo nós, gaiatos, sabíamos que aquela canção significava muito mais e que aquele «camarada», entoado com força, era muito mais que o azougado companheiro contrabandista.


Aliás, ali fui aprendendo que as palavras tinham vários sentidos, conforme quem as dizia e quem as estivesse a ouvir. Teria mais ocasiões (sempre gratas) de ouvir o coro, designadamente nas Associações de Estudantes, mais tarde. Sempre momentos de afirmação de dignidade e de honrosa rebeldia. Mas não ficou por aqui a minha frequentação da Cooperativa dos Trabalhadores. No final do curso do Liceu e, mais tarde, na Faculdade, circulava, numa sequência de boca-a-boca a notícia de que Fulano ou Beltrano iria estar em tal data na Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal. E então, chovesse ou ventasse, arranjávamos sempre maneira de comparecer naqueles colóquios que nos davam a conhecer, em carne e osso, gente admirada dos jornais, das artes, da literatura, do cinema… Havia ali uns instantes de diálogo franco, de partilha de vivências e de problemas, que era um refrigério e uma libertação, no mundo compartimentado e abafadiço em que então vivíamos. Todos aqueles homens e mulheres (ditos «intelectuais») eram mal vistos, ou censurados, ou ocultados pelas censuras do regime vigente. Ali nos eram trazidos, muito simplesmente, para que os pudéssemos conhecer, e às suas obras. Acto de coragem deles e dos dirigentes da cooperativa também. Eram diálogos livres, francos, reveladores, completamente ao arrepio das charangas propagandísticas do regime. É certo que havia sempre, lá ao canto, encolhido, um sujeito bisonho, desconhecido de todos. Mas éramos muito novos. Estávamo-nos nas tintas. Lembro-me de alguns dos convidados. E de um ou outro interveniente. Não cito alguém para não esquecer outros. Apenas quero deixar aqui registada esta nota de reconhecimento e assinalar como aquele trabalho, na aparência modesto, desviado e modestamente participado, acabou por ser fundamental, na formação democrática de não poucos jovens desse tempo. Mário de Carvalho 11. 04. 20


Alle campane di Orvieto um poema de Pier Paolo Pasolini Segno dell'unico dominio, della miseria assoluta: perchÊ allora cosÏ incerte, molteplici, suonate, campane, nel mattino domenicale? Nel treno fermo, nella stazione bianca e bagnata di questa città , chiusa nel suo vecchio silenzio, voi portate, freschissimo, uno spasimo di vita. Case, intorno, appartate, strade, prati, palazzi, passaggi a livello, canali, campi nebbiosi, sono la materia, non del vostro fugace, intatto suono, ma di una vostra intima ed eterna dolcezza... Vuol dire che nel fondo dello spietato potere c'è una paura vitale, in fondo alla rassegnazione un potere misterioso, e felice, di vita?


Aos sinos de Orvieto Sinal do único domínio, da miséria absoluta: porquê então tão incertos, múltiplos, tocais, sinos, na manhã dominical? No comboio parado, na estação branca e molhada, desta cidade fechada no seu velho silêncio, vocês trazem, fresquíssimo, um espasmo de vida. Casas, em volta, escondidas, ruas, prados, prédios, passagens de nível, canais, campos enevoados, são a matéria, não do vosso som fugaz, intacto, mas de uma vossa íntima e eterna doçura... Quer dizer que no fundo do desapiedado poder há um medo vital, no fundo da resignação um poder misterioso, e feliz, de vida?

Pier Paolo Pasolini tradução de Serena Cacchioli «Alle campane di Orvieto» faz parte da obra La religione del mio tempo publicada em 1961 e cujo eixo principal é a relação entre ideologia e poesia.


Colagem de Pedro Rodrigues


Banda Desenhada de Diana DionĂ­sio









Disparates por Pitum Keil do Amaral

do seu livro 100 Anedotas que me fizeram rir

A recarga da banana Um velho, com uma gabardine coçada, sapatos rotos, entra na Frutaria Almeidas. Remexe no bolso. Tira uma casca de banana. – Por favor... Têm recargas para isto?

O gato No Pátio das Osgas, ao Casal Ventoso, uma vizinha que ia sair para o trabalho vê outra debruçada sobre o tanque de lavar a roupa, a esfregar o gato com sabão. – Ó vizinha, olhe que não se deve dar banho aos gatos. Dá-lhe p'raí uma pneumonia que o bicho morre! – Alguém lhe perguntou a sua opinião? Meta-se mas é na sua vida, sua enxerida! À tarde, quando a primeira vizinha voltou, estava o gato morto, na sarjeta. – Eu não lhe falei? Eu não a avisei que os gatos não se lavam assim? – E você sempre a meter-se onde não é chamada! Quem lhe disse que o gato morreu do banho? Ele morreu, sim, mas não foi do banho. Foi do torcer!


Descubra as 6 diferenças por Sónia Gabriel

[A partir de Nuno de Sousa, 1975. figuras 1. Forja Editora]

Descubra as 6 diferenças (II) por Sónia Gabriel

[citação de um desenho de Mário Dionísio]


O jogo do desconfinamento de Regina Guimarães um jogo a solo e à suivre em que o jogador joga com e até contra si mesmo Precisas mais duma carta de amor ou dum extracto mensal de conta? Precisas de mais uma noite de verão ou de mais um candeeiro design? Precisas mais de sopa de legumes ou de suplementos alimentares? Precisas de mais um parque arborizado ou de mais um parque de estacionamento? Precisas mais da conversa no café ou dos tweets dos poderosos analfabetos? Precisas de mais uma mercearia gourmet ou de mais um mercado de frescos? Precisas mais dum consultor de imagem ou duma consulta no médico de família? Precisas de mais escolas livres e gratuitas ou de mais coaching e de gestores de talentos? Precisas mais de hospitais públicos ou de bancos de investimento? Precisas de mais dramaturgos sem travão ou de mais opinion makers? Precisas mais de prados e florestas ou de cenários virtuais sofisticados? Precisas de mais filósofos na rua ou de mais influencers na net? Precisas mais de serras e oceanos ou de paisagismo planificado? Precisas de mais companheiros ou da companhia de mais hipsters? Precisas mais de diversidade biológica ou de transumanismo galopante? Precisas de mais geografias rebeldes ou de mais geolocalização dos párias? Precisas mais do conto a cada encontro ou do story-telling da netflix? Precisas de mais do teu preciso tempo ou de mais tempo para money-making?


Precisas mais de ler e andar nas nuvens ou de alimentar o éter da tua cloud? Precisas de mais companheiros de estrada ou de mais likes no facebook? Precisas mais do saber-fazer do lavrador ou das performances do analista de big data? Precisas de mais instantes inimagináveis ou de mais fotografias no instagram? Precisas mais de ideias para mudar mundo ou dos softskills dum Scrum master? Precisas de mais professores talentosos ou de mais horas de e-learning? Precisas mais da fantasia duma horta louca ou de roupa trendy e acessórios tendance ? Precisas de mais ver melhor o que te olha ou de mais selfies em toda a parte e hora? Precisas mais do café do teu bairro ou duma casa de chá rétro na baixa? Precisas de mais gente a bater à tua porta ou de mais aplicações no teu smartphone? Precisas mais da sombra das árvores ou dum bunker com todas as comodidades? Precisas de mais bancos de jardim ou de mais garantias de sigilo bancário? Precisas mais de paraísos fiscais ou de mais paraísos artificiais? Precisas de mais saltimbancos ou de câmaras de vídeo-vigilância? Precisas mais de cantinas comunitárias ou de templos da nouvelle cuisine? Precisas de mais contraditores ferozes ou de mais animais de estimação? Precisas de mais funambulismo na mioleira ou de mais arame farpado na fronteira? Precisas mais de ver crianças a brincar na rua ou de visitar dreamlands e parques temáticos? Precisas de mais razões para uma longa vida ou de mais lazer e escapismo organizado? Precisas mais de quem te ouça e console ou dos videojogos da consola? Precisas mais de brincar aos cozinhados ou de oscilar entre low-food e fast-food? Precisas de mais memória para pensar ou de mais ram para te esqueceres disso?




Entrevista a Luiz Rosas

Regina Guimarães entrevistou Luiz Rosas, um dos “inventores” da Leitura Furiosa e membro da Association Cardan, associação de luta contra a iliteracia com sede em Amiens, França. Luiz Rosas conta-nos muito da sua vida e do seu percurso, entre o Brasil e a França, e de como se tornou “possibilitador de projectos que envolvem humilhados e ofendidos”. Luiz Rosas, que é também membro da Casa da Achada-Centro Mário Dionísio, deixa-se levar pelo pensamento e pelas palavras que puxam outras palavras, embora este tipo de entrevista à distância não permita aquilo de que ele mais gosta: “aquilo que é dito entre olhares”. Pois é, Regina, acho engraçado escrever uma entrevista. Pois para mim uma entrevista é aquilo que é dito entre olhares. Dois, quatro, seis, oito... pares de olhos. Isso não vale para as entrevistas de ciclopes. Essa história de entrevistas fica nas fronteiras do que estamos vendo, daquilo que vimos. Tendo vistas sobre o que querem pensar os olhares. Olho para a tela do computador. A câmara vesga me encara cegamente. Entrevista com o teclado como eixo de simetria. Então escrevo o que me passa pela cabeça, sem olhar, sem olhares. Não é muito profundo. Sou raso demais. Isso me convém senão teria de compreender coisas complexas. Da tua infância, conta-nos aquilo que te resta e te parece relevante. Da praia do Zumbi, na ilha do Governador, de onde moravámos perto até aos meus seis anos, ficou o Zumbi relevante. Zumbi era um escravo. Ele fugiu e com outros fugidos viveu no Quilombo dos Palmares. Que ideia, não é? Querer a liberdade e viver numa república de escravos. Ali perto tinha um mangue aonde viviam pescadores pobres cujos filhos iam na escola pública e nos encontrávamos. Os guris nos

convidaram, voltamos para casa com cangarejos. Antes da idade oficial de ir para a escola, fiz reivindicações fortes em casa para ser inscrito. Deu certo. A escola se chamava Cuba. Era engraçado que no Brasil meia hora antes do golpe militar davam nomes de países às escolas. Então aprendíamos elementos da história de Cuba. Devíamos cantar o hino nacional cubano e o brasileiro. Gostava de cantar esganiçado os dois hinos nacionais de manhãzinha. O hino de Cuba falava de alguma coisa sobre as delícias da morte patriótica: morrer pela pátria é viver. Esquisito e difícil de compreender para mim criança. Mais tarde me falaram da relação entre eros e tanatos. Quando mudámos da ilha para a cidade, a escola seguinte se chamava Estados Unidos. O hino desse país fala mais sobre o alvorecer, as lutas perigosas, a crença em deus e a causa justa do colonialismo. Então já tinha tres hinos maternos no ano da Baía dos Porcos quando os alunos da escola Estados-Unidos tentavam invadir a escola Cuba enquanto a professora primária que insistia para que eu soubesse ler e escrever se


chamava Gioconda. Não sei se era a filha do Miguel com o Angêlo. Ela se empenhou tanto e bem que ainda sei ler até hoje.

Como essas geografias e a Gioconda fora do quadro me faziam confusão, perguntei ao médico como funciona o cérebro para construir o pensamento. Ele me respondeu que era mais fácil de ir até a lua de bicicleta que responder essa pergunta. Cada vez que não sabia responder a perguntas, pegava uma bicicleta e ia para a lua. Voltava. Fiz tantas viagens. Ficou fácil. Até que acho um esbanjo, o desperdício em pessoa, a despesa da nasa para a missão apolo. Depois vivemos a preparação do golpe militar. Revolução, disseram. Os ricos organizaram a penúria. Guri ia para as filas de racionamento. Os adultos passavam na minha frente e quase sempre quando chegava a minha vez não havia mais leite, pão, feijão com arroz. Assim, os ricos, os militares, criaram um estado de espírito da população contra o presidente. Foram quase dois presidentes: o Janio – Vassourinha, e o João Goulard – Jango. Gostava de ouvir chamar os presidentes pelas alcunhas. O Janio era chamado de Vassourinha por querer varrer a miséria, a fome, o analfabetismo e a corrupção. O Janio se demitiu e o Jango deveria tomar posse do cargo pois era vice-presidente do Janio. O Jango não sei a razão dessa alcunha, diziam dele que era rico e de esquerda, que tinha dobrado o salário mínimo e que faria a reforma agrária. Para que ele não pegue a posse de presidente, os militares

disseram que o Jango era comunista e socialista ao mesmo tempo, e isso não pode ser. No ginásio recusei de hastear a bandeira nacional e participar ao desfile de comemoração da revolução militar. Não gosto dos rituais. Quaisquer que sejam. Sou parvo. Não consigo ver no hastear panos coloridos um ato de benfeitoria para a humanidade. Nem nos desfiles dos exércitos ou dos crentes, nem naqueles dos dois juntos. Não consigo. Que me expliquem. Me explicaram e fiquei convencido do contrário. Adolescente, vias com particular interesse tal ou tal profissão ou actividade? Esse interesse de então marcou as tuas escolhas futuras? Havia a preocupação de mudar de classe social, isso para mim era e é ligado a mudar o mundo. A preocupação de mudar de classe social faz parte do meio ambiente, da ecologia de um país pobre, de pais pobres. Éramos da classe média que era dividida em vários níveis. Com exagero e verdade, todo mundo era classe média. A classe média é o no man’s land do país subdesenvolvido. Não era interesse. Era. Então fiz uma escola técnica. Gostei. Na aula de organização do trabalho devíamos pensar o funcionamento das equipas de trabalho futuras segundo o preceito que estipula que o mundo é divido em dois, aqueles que mijam na piscina e aqueles que vão nadar dentro depois. Anos depois, li o mesmo no livro de Charles Bukowski - Eu te amo, Alberto. Engraçado de conhecer essa frase apresentada com desejos opostos, o da escola como ferramenta de opressão e o da biblioteca como estímulo de revolta. Então na escola técnica comprava o jornal O Pasquim – pasquim quer dizer jornal injurioso, difamador como sabes. Os criadores desse jornal escolheram esse nome para não poderem ser xingados. O Pasquim é um pasquim, é


claro pois é o nome dele - para o ler de maneira ostensiva nos intervalos. Era dar os números da semana passada aos colegas mecânicos. Foi a entrevista de Leila Diniz no Pasquim que provocou a Lei de Imprensa, a censura prévia dos jornais conhecida também como Decreto Leila Diniz. Nessa entrevista a Leila Diniz diz – gosto desse som – a Diniz diz, o que me marcou para todas as escolhas, até hoje:

A gente é atriz porque cisma que é atriz. Acho que podemos substituir a palavra atriz por qualquer outra.

E somos. E consideramos o que nos leva à escolha. A Leila falou ali também de Summerhill do A.S. Neil, essa escola de base libertária. Depois fui ler outros. Penso que Leitura Furiosa leva a marca do Pasquim, da Leila e de tudo e todos que me levaram por aí na vida, até: A gente é porque cisma que é. Depois é só embirrar com a vida. E viver, e fazer ou não. De pirraça. Me lembro que nessa entrevista a Leila Diniz tinha inventado um superlativo. Acho que era mais ou menos parecido com alegrérrimo ou com tristérrimo. Isso me marcou. Essa liberdade e intimidade de fazer cócegas nas regras da língua é marcante. Quando e como tomas consciência da violência da exclusão social? Não sei responder sobre a exclusão social. Talvez isso seja só um pedacinho de um todo. É que acho o sistema no qual vivemos tão violento. Não só a exclusão. O discurso político, religioso, carrega

uma violência porca. E essa frase é violenta. E essa violência que temos dentro de nós. Que nos leva um dia mandar para a puta que pariu aqueles que amamos, que odiamos. Queremos matar, ou que alguém ou uma doença os mate por nós. Ou que não morra, mas que faça falência. Acaricio a minha violência cada dia procurando nos jornais o artigo sobre a falência do sistema mundial. Li um dia que se os países que devem dinheiro ao fundo monetário internacional não pagassem, o sistema cairia. Imagina a violência do desaparecimento do sistema. Talvez essa violência dentro de mim também viesse a falir. Em que momento decides migrar para França? Foi quando a ditadura ficou ainda mais violenta e restritiva em 1972. Nesse ano queria comemorar com amigos os 50 anos da semana de 22. A semana de 22 foi um momento de declaração de independência artística de escritores, pintores e músicos com vontade de renovação social e artística. É poderoso propor mudar a sociedade pela arte e a cultura, mudando os critérios estéticos. Não conseguimos nem renovar a sociedade, nem fazer a exposição comemorativa. E em setembro de 1973 foi o golpe no Chile com ajuda dos da ditadura brasileira. Não só. O meio ambiente no Brasil também ficou arisco. Como foi a passagem do Brasil, terra natal, a França, terra de exílio? Foi. Tive sorte de encontrar pessoas que me ajudaram. Portanto as fronteiras estavam fechadas com o choque do aumento do preço do barril de petróleo. Tinha um cheiro esquisito no ar. Paris tinha um perfume de cidade velha comparado ao novo Rio de Janeiro


odorante. A extrema-direita virava partido político. Foi, pois é. Ainda não sabia falar francês. Achava que vivia dentro de um filme. Aqueles filmes do Godard com cheiro de Gauloise sem filtro. No Brasil tinha visto «Weekend» de Godard antes de ser proibido pela censura. Às vezes isso acontecia, um filme, uma música eram difundidos um dia ou dois antes que a censura compreendesse o assunto da obra. Ficava aflito por o filme-realidade onde doravante vivia não ser legendado em português. Olhava sempre para os pés das pessoas procurando a legenda. Até que um dia fiquei sendo um personagem dessa obra sem argumento em versão original francesa. Foi bom. Estiveste sempre ligado ao trabalho com pessoas ou comunidades socialmente desfavorecidas? Não. Sim. Trabalhando na fábrica estava ligado com a comunidade operária que não era ainda socialmente desfavorecida. Já existia o desprezo social por esse grupo e começava então a organização do desaparecimento dos proletários daqui. Apareceram as deslocalizações, os robots e a exigência de diplomas para ser mãode-obra. Ainda violências. Regina, qual é a razão para colocar um acento circunflexo na violência? Ora o princípio pedagógico operário é aprender pela observação dos pares e pelo mimetismo do gesto produtor. Isso não convém ao mundo moderno. Também não convém que os operários tenham salário mínimo e outros mínimos conseguidos com mortes e danos. Mesmo entre nós havia o desprezo entre os mão-de-obra sem qualificação e os operários qualificados. Esses eram chamados de OQ. Tinha os OQ1, dois,

três. A aristocracia operária era os OHQ – operário altamente qualificado ouvrier hautement qualifié. Quando via esses ali na fábrica com ares de aristocratas pensava na Gioconda. No quadro que o Marcel Duchamp nomeou, colocando por baixo de uma reprodução da Gioconda LHOOQ – elle a chaud au cul. Eu era um mão-de-obra não qualificada com um quadro da arte contemporânea e a vontade de mudar o mundo na cabeça.

Uma classe social era identificada pela aprendizagem teórica e outra pela aprendizagem prática, assim era feita a divisão do mundo e era a casa arrumada. Se quisesse mudar de classe social precisava dos diplomas. Pronto. De qualquer maneira, o sistema não produz um mundo favorável para os operários e os grupos abaixo deles. O sistema produz o capital. O sistema da cobiça produz o desejo imoderado de possuir o que geralmente não se merece. Vocês não acham? Ou vocês acham que os ricos merecem ser ricos? Finalmente acho que de uma certa maneira estive sempre ligado a pobres. Acho interessante a cultura popular, cultura pobre. As rimas do pobre são ricas. Seria uma marca que distingue do gosto dos ricos. Talvez nem tanto. E entre o bacalhau quer alho popular e LHOOQ de um pintor intelectual rico qual é a distância? E o Cardan, em que circunstâncias te tornaste «grande possibilitador de projectos que envolvem humilhados e ofendidos»? Fui trabalhar no Cardan por estar farto


de trabalhar perto de políticos e sabia que o Cardan precisava de uma ajuda para ser administrado. Então abandonei reis, senhores e princesas para trabalhar com e para pobres. Pensava que para administrar uma associação de auxílio é preciso encontrar as preocupações das pessoas pobres. Era preciso encontrar as situações pedagógicas para ensinar a ler e a escrever aos que não souberam ou puderam aprender, como a Gioconda, com empenho e esmero. É preciso ir aonde o povo está. Podia assim nos encontros dos pedidos de apoios falar o que as pessoas viviam, vivem. Contar para os técnicos dos políticos e dos ministérios o barulho dos bairros sociais. Descrever o cheiro do encontro entre uma pobre e uma escritora. Esses encontros têm o cheiro da neve, tem o cheiro da roupa lavada com sabão em pó baratíssimo dos supermercados dos subúrbios. Eles têm o cheiro de olhares carregando o peso da injustiça. Foram os pobres que me ensinaram a ter ideias adaptadas a eles.

Fazer propostas de ideias para construir juntos em vez de saber o que é bom para eles. Ainda essa violência dos técnicos sociais que sabem o que é bom para o pobre. Aqueles que inventaram os rendimentos mínimos deviam viver um ano ou dois com esse apoio para comprovar a proposta. Os pobres vivem a miséria e os outros vivem da miséria dos pobres. Do muito trabalho que desenvolveste no Cardan, quais as iniciativas que te fizeram mais feliz? Não sei responder sobre a felicidade. Me considero feliz de maneira global sem bem saber o que é isso. Não me

incomoda não saber. Para mim foi mais importante tomar cuidado para fazer corresponder a minha vida com a minha ideologia.

Uma das primeiras frases que consegui ler em francês foi: Pensar o que vivemos com o risco de viver o que pensamos. Era um graffiti num banheiro público qualquer. Sobre a felicidade, gosto do Prévert dizendo: Tente ser feliz quanto mais não seja só para dar o exemplo. Durante anos, dinamizaste a Leitura Furiosa, com tal mestria que a levaste a terras muito longe de Amiens. Como descobriste o prazer da leitura e como o tens cultivado ao longo da vida? Algumas vezes ouvi técnicos de políticos fazer o lapsus entre dinamizar e dinamitar um momento cultural. Gosto desses momentos, em que uma letra trocada mostra o fundo do pensamento. Enquanto dinamizava havia críticas. Não eram das construtivas. Eram das debochadas. Não era assim que se devia fazer. Deveria ser uma feira do livro onde os pobres viessem. E onde só os ricos teriam dinheiro para comprar livros?

Essa Leitura Furiosa era dar pérolas a porcos. Mas quem sabe se porcos não gostam de pérolas? Essa violência de julgamento de classes. Qual é a razão da exclusão? Que grande


perigo representam os pobres a ponto de ainda não termos sabido construir um modo político pacífico e respeitoso? Gosto das críticas quando elas me ensinam uma outra visão. Quando elas são agressivas, violentas, não consigo transformá-las em melhoramento da sociedade, do mundo. Não consigo ser melhor. E tive a sorte de encontrar escritores que dinamizaram Leitura Furiosa. Ela viajou por outras pessoas, como a Eduarda Dionísio levando-a para Lisboa e você Regina Guimarães levando-a para o Porto. A Sofia Ortolá levando-a para os lados de Bordeaux.

Acho que a Leitura Furiosa tem um cheirinho da vontade de justiça social do PREC. Parece haver um ar de família. Foi a Gioconda, com empenho e esmero, que me fez descobrir o prazer de ler, de sentir as rugas das sílabas e de ouvir a música do soletrar. Cultivo esse prazer identificando, classificando o cheiro das palavras que acho nos livros que compro, que me dão. Tentando compreender o humano. No Nordeste, dar um cheiro é expressão de afeto. Um bom dia carinhoso. Um dia ouvi-te dizer: «Gosto de viajar com filhos.» És pai de quatro rapazes e duas moças. Qual o espaço de liberdade que ser pai ocupa na tua vida? Não sei bem responder. Talvez não tenha compreendido a pergunta. O teu olhar na entrevista teria ajudado. Teria visto o brilho dos teus olhos na pronúncia da palavra liberdade. Seguramente. Acho que a liberdade absoluta é vizinha da noção de felicidade, ou de deus. O absoluto me incomoda, me dá coceiras. Acho mais sensato a ideia de

liberdadezinhas. Por exemplo, seríamos livres das 8 às 9 da manhã. Estou livre até às 9 e você depois das 9. É essa história da liberdade de um que começa ou acaba onde ou quando essa do outro começa ou acaba. Não gosto bem das fronteiras. E a ideia de propriedade faria a construção de tapumes para as liberdades individuais ser um setor económico em expansão. Perguntei para a minha filha Liliana qual espaço de liberdade ela ocupa na minha vida. Ela disse que os filhos ocupam a liberdade de ser egoísta dos pais. Então, se ela incomoda o meu egoísmo, isso pode desenvolver a liberdade da generosidade.

Gosto dessa ideia de liberdade com outra coisa, um adjetivo. Liberdade egoísta, liberdade generosa, liberdade aleijada, liberdade gripada, liberdade escangalhada, liberdade bem humorada, liberdade obrigatória. E a placa pendurada na porta: Consertam-se liberdades. Como viveste a chamada «crise dos Gilets Jaunes»? Ou melhor: o que é que porventura te aproxima da sua revolta, das suas reivindicações e das suas formas de luta? No início fiquei cheio de comichões. Aquela sensação de viver um momento extraordinário, conhece esses arrepios, não é? Gostei desse momento em que os coletes falavam de vidas profundas de maneira simples. Falavam de sistema económico com palavras de todos os dias


e frases curtas. Por um lado, esse imposto das fortunas é suprimido e, por outro lado, os apoios sociais são reduzidos, o sistema de empregos financiados pelo estado sufocado, o custo de vida aumenta ( sobretudo a gasolina), há uma redução do apoio ao desempregado e por aí fora todas as injustiçazinhas. E as palavras de desprezo do presidente, quando ministro, qualificando as operárias de um matadouro na Bretanha de analfabetas. Tanto desdém das classes sociais pobres ou operárias. Isso é um horror político descolorido. Achei engraçado e de mau gosto a maneira de falar deles nas televisões, nas rádios. E houve a uniformização e identificação vestindo esse colete obrigatório nos carros por medida de segurança. Para chamar a atenção sobre o ser humano num acidente. Acidente social. Discurso político acidentado. E amarelos eram chamados os operários traidores nas greves. Aqueles que recusavam a luta, mas se houvesse vitória de uma exigência eles também eram beneficiários. Personificação da cobiça. Do sistema cobiça. A ministra francesa do trabalho, com a supressão do imposto das fortunas, economiza 60.000 euros por ano. Isso representa 3 salários mínimos anuais e 120 apoios sociais por ano. Não existe uma cor para enfeitar isso em avanço social. A minha vidinha passada de operário me ajudava a compreender os pedidos de referendo cidadão. Tantos peritos politólogos criticando, destruindo essa proposta.

Nenhuma análise nem dados para construir uma outra proposta de participação popular na gestão política das cidades, do país.

Nada. Vi um medo. E o governo escolheu a violência como língua. Granadas, mãos arrancadas, olhos furados, porradas, controlo de polícia em vez de encontros e conversas. Houve violências dos dois lados. Houve também os filmes feitos com telefones para oferecer um desconforto aos discursos oficiais. Gostei da ausência de representante oficial dos coletes. Uma proposta social arriscada, fora de hábito. Houve depois as grandes conversas do governo com o povo. Pouco ou nenhum colete amarelo. Sobretudo presidentes de juntas. Logo a seguir, uma reforma da previdência apresentada como universal. A polícia diz que prefere o sistema de aposentadoria atual. O governo aceita, o sistema da aposentadoria será universal com excepções: a polícia, os deputados, os senadores, os balarinos. A palavra igual vira sinónimo de diferente. A palavra justiça é o camaleão da injustiça. Como funciona o pensamento dos reis, senhores, príncipes e princesas? Achei que os coletes amarelos pareciam com os todos do 25 de Abril. Vamos lá pá mudar esse mundo. Não sei bem a paridade. Talvez as cores, os coletes amarelos e os cravos vermelhos.

E se os coletes fossem vermelhos? E os cravos amarelos? A população apoiava os coletes amarelos. Então o governo transformou os coletes em bandidos. E não conseguiram enganar os 70 % dos franceses que davam apoio aos coletes amarelos. É muito, não é? Me senti bem próximo dos coletes amarelos. Me sinto incomodado pelo mau trato do protesto popular. Sempre. Qual a tua visão da situação política no Brasil? E da situação política em França?


O sistema político é semelhante, não é? São duas repúblicas. Os dois presidentes foram eleitos. E depois há diferenças. Acho que os dois homens têm neuroses. Não são as mesmas.

Talvez o traço comum das duas situações políticas seja o desprezo pelo povo. Os dois países têm estilos diferentes e são ligados. A bandeira brasileira tem uma frase do francês Auguste Comte: Ordem e progresso. No tempo da ditadura dizia-se: ordem para o povo e progresso para os ricos e os militares. A escolha de alianças dos dois países os coloca em concorrência. O Brasil, sendo de novo aliado dos Estados Unidos como era durante a ditadura, apoia e alimenta os ódios contra a Europa. E o resto do mundo. O presidente do Brasil seria favorável à instalação de uma base americana no território. O país seria assim alvo de conflitos que não lhe pertencem. O Brasil abandona o canal diplomático para cuidar das relações com outros países. A França desenvolve a relação diplomática para aumentar o volume do comércio exterior. A diplomacia é uma maneira comercial de ser dos países no sistema cobiça. Já era. A posição internacional do Brasil é relacionada ao valor dado ao presidente, os jornais do mundo zombam um pouco e frequentemente dele. Ele tenta imitar o presidente do Estados Unidos. Às vezes o faz com sucesso. O presidente do Brasil conseguiu ser censurado numa rede social. E no entanto tem muitas parvoíces e mentiras que circulam nessas redes. A oligarquia é importante no sistema político do Brasil, onde os filhos do presidente fazem declarações políticas sem fundamento. Um dos filhos denunciou a China como culpada da

epidemia atual. Imitava ele também o presidente dos Estados Unidos que chama o vírus da epidemia de vírus chinês. O Brasil faz parte do BRICS, o grupo de países emergentes económicos como a China. Um outro filho seria ligado ao assassinato da veredora Marielle Franco. Acho a situação política do Brasil desvinculada. Na França depois de Robert Boulin não houve dúvidas sobre mortes de políticos. A França anda procurando como influenciar as decisões na Europa, no mundo.

Tem todas as guerras para financiar, que devem servir também como terreno de demonstração das qualidades dos armamentos antes de serem vendidos. Essas guerras são importantes para ocupar pontos geopolíticos estratégicos. A França está realizando umas reformas de apoio aos desempregados, da previdência, do código do trabalho. O Brasil também faz as mesmas. E contudo os dois presidentes são bem diferentes. A resistência do povo de cada país não consegue obter a anulação dessa política reformista. Talvez essas remodelações da política de cada país sejam globais, mais ligadas a uma lógica mundial do que relativas a uma preocupação local. Então presidentes tão diferentes fazendo a mesma política. Isso me faz confusão. Fico por aqui. E ainda há tanto para escrever.


Imagino que estejas neste momento confinado como metade da humanidade. Como tens vivido estes tempos estranhos? É isso mesmo. Estou fechado em casa.

O que acho estranho é que a ciência seja tão frágil. Ela não sabe fabricar o produto que vai salvar o mundo. Também estranho essa decisão de confinamentos. Vivemos com finados. Gosto que o sistema pare um pouco. Me lembro daquele filme de Doillon-Renais «Ano 01». Várias pessoas pensam que nada será como dantes. Que a doença conseguiu o que anos de luta não conseguiram, o que os coletes amarelos não souberam ganhar nem as passeatas contra a reforma da aposentadoria. Assim os sindicatos sabem o que fazer para as reivindicações depois do vírus da coroa. É só fazer criação de vírus e espalhar pelas cidades. Parece que o vírus da peste veio da China. Tudo vem da China de qualquer maneira. O macarrão, a pólvora, o papel, os fogos de artifícios e todos os produtos manufaturados que custam 1 euro. Quais serão, no teu entender, as consequências, em termos micro e macro, local e global, da crise do Covid-19? Não sei fazer previsões do futuro. Ainda por cima que não dependem de mim. Posso dar uns palpites. Só seria sugestão rasa. Acho assim: para que as consequências sejam interessantes na transformação do mundo, da justiça social, é preciso que o vírus continue a ameaçar de morte os políticos. O medo substitui nesse momento as ideologias que já foram domesticadas pelo sistema mundial do

interesse, da prevaricação, da cobiça. O vírus conseguiu que os políticos digam que compreenderam os erros da gestão política. O presidente da França disse que um hospital não pode ser administrado como uma fábrica, um banco ou um comércio. Enquanto um homem do sistema político diz que os delinquentes do confinamento são os contaminados. Sarrafusca. As consequências serão relativas à perda de confiança nos políticos. O vírus não mudou essa avaliação da política pelo povo. Isso acho interessante. Que disse, disse. O que vai fazer, não sei. Os políticos parecem considerar os discursos dos médicos, enfermeiras, lixeiros. Parece que a reforma da aposentodaria vai ser abandonada. Parece. Parece que os hospitais vão ser administrados de outras maneiras. O confinamento agrava a segregação social. Acho que as leis votadas no confinamento de controlo da população vão virar no dia-a-dia, como viraram as leis do terrorismo. Isso é uma consequência quase garantida pela experiência.

As leis do confinamento criam a possibilidade de controlo de cada cidadão. Liberdade congelada. Liberdade em lata. Liberdade anoréxica. Se pudesses tomar uma medida à altura da actual crise, qual seria? Sabemos que não posso. Não quis fazer política. Não quis ser rico. É que não quero ficar triste depois. Quando isso tudo voltar a ser o que era.



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