24 minute read

A ESCRITA CRÍTICA DE ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS A PARTIR DO MEMORIAL COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA ........................................................................ Maria de Jesus Lopes da Silva Eliene Gomes da Costa Ivanilde Apoluceno de Oliveira

A ESCRITA CRÍTICA DE ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS A PARTIR DO MEMORIAL COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

Maria de Jesus Lopes da Silva1 Eliene Gomes da Costa2 Ivanilde Apoluceno de Oliveira3

Advertisement

RESUMO

O relato apresenta os resultados de uma prática educativa com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental da escola Estadual Prof. Leonor Nogueira, que teve entre outros objetivos, estimulá-los a escrever de forma, permanente e crítica, a partir de temas ligados as suas realidades, usando o memorial, como estratégia metodológica e os princípios teóricos freireanas como por exemplo, diálogo, esperança, respeito e problematização (FREIRE, (1992; 1996; 2000; 2005). O tema que gerou as produções escritas foi o direito das Crianças. Entre os resultados destaca-se a autonomia para escrever, certa consciência crítica que começam a ter quando observam as condições de vida de muitas crianças, bem como a indagar sobre o papel do poder público diante da violação dos direitos da criança. Os resultados foram apresentados na forma de livro para a comunidade escolar e não escolar.

Palavras-chaves: Direitos das Crianças. Escrita crítica. Memorial. Educação Popular.

INTRODUÇÃO

Os escritos a seguir revelam o desenvolvimento da escrita crítica dos alunos de uma escola da rede pública de Belém, a partir de leituras da realidade social, tendo por base alguns princípios educacionais freireanos, os quais estão descritos e fundamentados a seguir na educação de Paulo Freire (1992; 1996; 2000; 2005). A intenção, inicialmente, era estimular os alunos a escreverem de forma permanente para avançarem em suas produções textuais, posto que se encontravam com algumas dificuldades para produzirem textos. Mas como fazer isso de forma que despertasse o interesse deles e que fosse, ao mesmo tempo, contextualizado? Foi, então, que pensamos em criar um memorial, uma espécie de diário, em que eles fossem estimulados a escrever, diariamente, ou pelo menos uma vez por semana. Essa escrita ocorreria após as aulas ou alguma atividade diferenciada desenvolvida na sala e ou na escola; a estratégia metodológica iniciou em 2012 e se estendeu até os dias atuais, entretanto, iremos limitar a apresentação dos resultados no ano de 2019.

1 Mestre em educação na linha de formação de professores pela Universidade Estadual do Pará; Especialista em docência na educação superior; Pesquisadora pelo Núcleo de Educação Popular Paulo Freire – UEPA; Educadora Popular na Educação Básica. E-mail: marialopes2011m@yahoo.com.br. Orcid: https://Orcid.Org/000 0-0002-46309009.

2 Professora da educação Básica, onde atuou por 30 anos na mesma escola. Atualmente, encontra-se aposentada. E-mail: costaeliene2010@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8766-8983. 3 Professora titular da Universidade do Estado do Pará. Doutora em educação pela PUC-SP e UNAM-UAMIztapalapa – México. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e coordenadora do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire-NEP e da Cátedra Paulo Freire da Amazônia. E-mail: nildeapoluceno@uol.com.br. Orcid: https://Orcid.Org/0000-0002-3458-584X.

O ponto de partida foi a diagnose da escrita dos alunos realizada todos os anos para identificar os níveis de escrita dos mesmos e posteriormente, pensar nas estratégias metodológicas para ajudá-los a avançarem em suas produções textuais; ela evidenciou que a maioria dos alunos apresentava escrita compreensível apesar de muitos desvios ortográficos, algumas escritas apresentavam juntura e ou separações equivocadas, além disso, foi observada pouca ou nenhuma autonomia para escrever: às vezes travavam ao tentar desenvolver um pequeno texto, certamente por não terem hábito de leitura e por não exercitarem a escrita. Após esse momento de identificação dos níveis de escrita, os alunos foram estimulados a escrever, nos seus diários. O caderno utilizado para a escrita foi solicitado às famílias; as crianças, cujos pais não puderam comprar, receberam seus cadernos doados pelos professores e pelos técnicos da Escola que colaboraram conosco; nesse momento, o importante era garantir que todos tivessem seu material para a composição do memorial. Em 2019, o memorial já era uma estratégia metodológica que considerávamos importante para alavancar a produção textual das crianças, pois a experiência nos anos anteriores a evidenciava como uma ferramenta positiva, e foi nesse ano que, pela primeira vez, reunimos os textos extraídos do memorial dos estudantes e fizemos uma coletânea com textos de temáticas diversas, como por exemplo: Consciência Negra, Amazônia, Direito das Crianças, Astronomia, e alguns autores da literatura Paraense, para apresentar a comunidade escolar e não escolar. A coletânea foi bem aceita pela comunidade escolar e as crianças e familiares ficaram radiantes pelo resultado dos textos produzidos. A escrita do memorial foi estimulada por algum tema gerador específico, conteúdos foco de estudo na sala e ou alguma atividade mais ampla, ocorrida na escola, conforme será evidenciado ao longo desse texto; dentre essas temáticas, selecionamos aqueles relacionados aos Diretos das crianças. Inicialmente, apresentamos o caminho teórico-metodológico do trabalho com o memorial, a educação popular Freireana, as produções dos alunos no memorial e, por fim, os resultados e discussões a que chegamos.

CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO: EDUCAÇÃO POPULAR FREIREANA

O trabalho apresentado tem como aporte teórico – metodológico a educação Popular Freireana, considerando ser uma educação que está imbuída pelos princípios teóricos de uma pedagogia que prima pela libertação dos homens e mulheres da sua condição de oprimido, marginalizado e excluído (FREIRE, 2005) que emergiu no seio dos movimentos populares e desenvolveu-se nos espaços não escolares, como uma concepção político-libertadora (BRANDÃO, 1994).

A Educação Popular com Freire tem inserção nos espaços escolares, instituições superiores de educação, chamando a atenção de professores e pesquisadores. A força de suas ideias influenciou na formação de uma rede de sujeitos educativos que passaram em seus espaços educativos a atuar na perspectiva dos fundamentos da educação Popular Freireana e, conse-

quentemente, práticas educativas freireanas foram surgindo em muitos lugares do País. Isso foi o que aconteceu com a experiência apresentada neste artigo; uma prática de ensino mediada a partir de assuntos, temas relacionados ao cotidiano dos alunos e que se fundamentou em alguns aspectos teórico-metodológicos da Educação Popular, os quais estão, sucintamente, descritos a seguir:

a) Pedagogia problematizadora

A pedagogia problematizadora se coloca a favor de uma formação humana crítica e política que conduz para a mudança de uma dada realidade e emancipação de homens e mulheres (FREIRE, 2005). Nesse sentido, ela não pretende ser um ato narrativo de transmissão de conhecimentos aos educandos, como ocorre na educação tradicional, denominada por Paulo Freire de “bancária”, mas se caracteriza como uma situação de construção do conhecimento protagonizada pelos sujeitos envolvidos, educador e educandos. A superação da dicotomia dessa relação ocorre porque nela há o exercício de uma relação de diálogo; sem este não seria possível concretizar uma ação educativa reflexiva e de desvelamento da realidade. Nessa pedagogia, os educandos se assumem como investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também

pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma prática gnosiológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com os educandos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos (FREIRE, 2005, p. 80).

Dessa forma, a pedagogia problematizadora é um contraponto à “educação bancária”, na qual predomina uma didática da clausura, a cultura do silêncio e o saber é uma doação daqueles que sabem, o educador assume-se narrador de conteúdos. A realidade existencial dos educandos não é considerada, prevalecendo a dicotomia homem-mundo (FREIRE, 2005); enquanto a primeira se compromete com a libertação, a criticidade, criatividade e estimula à reflexão-ação, a segunda serve à dominação, mistifica a realidade, inibi a criatividade e castra a curiosidade.

b) Pedagogia do diálogo

O diálogo é um direito humano, logo não é exclusividade de apenas alguns. Não é discurso prescritivo, não é a palavra de pouco e, muito menos, silêncio de outros. O diálogo é uma exigência existencial e se é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos “não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito a outro” (FREIRE, 2005, p. 91). Paulo Freire relaciona o diálogo ao amor; segundo ele, o diálogo se fundamenta nesse sentimento que também é diálogo; assim, uma relação de autêntico diálogo é nutrida de amor ao mundo e aos homens. “Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo” (FREIRE, 2005, 92). O autor também relaciona o diálogo à humildade; ele considera impossível dialogar se na relação com o outro, o indivíduo se assume superior, não valoriza a contribuição dos outros e se acredita como dono da verdade e do saber. A pronúncia do mundo não pode ser um ato arrogante, mas um ato de fé: a fé nos seres humanos e na sua vocação criadora de ser mais.

Sendo a fé um dado a priori do diálogo, a confiança se instaura com ele. A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo [...] um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens não podem gerar confiança (FREIRE, 2005, p. 94). Outra aproximação que o estudioso faz com relação ao diálogo está relacionada à esperança que assume o papel de restaurar a humanidade quando se encontra esmagada pelas injustiças; a esperança não pode se abater diante das mazelas sociais, mas se revigorar para o enfrentamento e restauração da humanidade; assim, ter esperança “não é um cruzar de braços a esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero” (FREIRE, 2005, p. 95).

c) Pedagogia da práxis

Outro conceito importante na pedagogia freireana é o da práxis; não porque é um nome sugestivo, curioso, mas porque, reflete nosso trabalho educativo. A experiência apresentada neste artigo constitui uma pedagogia da práxis, pois se pauta num fazer mais prático, com respaldo teórico numa inter-relação de teoria e prática e num processo dialético de reflexão-ação. Toda pedagogia que se define progressista crítica não as dicotomiza, uma vez que “a reflexão sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria-prática sem a qual a teoria pode ir virando blablabla e a prática, ativismo” (FREIRE, 1996, p. 22). Nesse sentido, “a pedagogia da práxis é a teoria de uma prática pedagógica que procura não esconder o conflito, a contradição, mas ao contrário, os afronta, desocultando-os” (GADOTTI, 2010, p. 28), ou seja, a unidade teoria e prática consiste em permanente, processo de ação-reflexão-ação e deve ser uma característica marcante da pedagogia progressista. A práxis significa também uma ação transformadora; dessa forma, “a pedagogia da práxis pretende ser uma pedagogia para a transformação, a qual se radica na antropologia que considera o homem um ser criador, sujeito da história, que se transforma na medida em que transforma o mundo” (GADOTTI, 2010, p. 30). Sendo assim, a pedagogia da práxis é um movimento permanente que o educador realiza no desenvolvimento da sua ação criadora e transformativa, considerando que tal ação se funda em uma dada teoria e vice-versa. A prática e a teoria ganham sentido nessa inter-relação; mas ela somente é possível se houver diálogo, respeito e amorosidade permeando a relação educador-educando na direção de um propósito: a formação de homens e mulheres para viver, efetivamente, a solidariedade democrática.

d) Pedagogia da esperança

O agir de forma esperançosa encontra limites na sociedade, sobretudo, em tempos tão difíceis, marcados pela intolerância exacerbada, a prevalência de uma ética de mercado com princípios de “vale tudo”, “cada um por si” que amplia o individualismo e as injustiças sociais e sem contar na prevalência de uma visão fatalista para justificar as coisas serem como são; a existência de um mundo tão imoral no trato com as pessoas e a coisa pública faz com que as pessoas cheguem a se desesperançar com alguma possibilidade de mudança, no entanto, ela é possível via educação.

E ao passo que o sentimento de desesperança se amplia, há aqueles que nutrem suas ações e discursos na esperança; mas sem ela, torna ainda mais difícil qualquer possibilidade de transformação e recriação do mundo, pois para transformar e recriar o mundo é necessário esperança. Os escritos de Freire (1992) defendem essa tese, entretanto, ressalta que a esperança sozinha não salva o mundo; “ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos de esperança crítica, como o peixe necessita da água despoluída” (FREIRE, 1992, p. 10).

Assim, estar esperançoso é um permanente processo de busca do ser humano que, consciente do seu inacabamento, insere-se em um permanente processo de esperançosa busca; esse processo é a educação (FREIRE, 2000). Precisamos de uma educação da esperança que vá animando e reanimando as pessoas para o enfrentamento das condições injustas e falta de cidadania, em que vive parte da sociedade. Educação da esperança que mobilize as pessoas para a luta coletiva contra todas as formas de preconceito e em favor de uma sociedade tolerante.

AS PRODUÇÕES NO MEMORIAL DOS ALUNOS SOBRE A REALIDADE VIVIDA

As produções dos alunos em seus memoriais revelam questões que perpassam pelas suas vivências sociais e culturais e pelos direitos de serem crianças. As temáticas escolhidas trazem problemáticas sociais entre as quais: os direitos da criança, a questão ambiental e a consciência negra. Neste artigo o foco é para o direito das crianças.

O DIREITO DAS CRIANÇAS

Em 2019, em comemoração aos 30 anos da convenção sobre os direitos da Criança, a Unicef lançou um relatório apresentando alguns avanços e desafios enfrentados pelas meninas e meninos brasileiros. Em relação aos avanços destacam-se: “a redução da mortalidade infantil, a ampliação da escolaridade para 4 a 17 anos, ampliação do número de crianças registradas em seu primeiro ano de vida, redução do número de crianças afetadas pelo trabalho infantil” (UNICEF, 2019, p. 19). O relatório destaca importantes avanços nas últimas décadas para parte das crianças em várias áreas, no entanto, a outra parte da infância, encontra-se ainda mais mergulhada no abismo da negação dos seus direitos elementares, conforme afirma o relatório: “os problemas são ainda maiores para grupos específicos da população em situação de maior vulnerabilidade, como indígenas, negros, de comunidades tradicionais, com deficiência e LGBT” (UNICEF, 2019, p. 37).

Os avanços mencionados são muito importantes, entretanto, o desafio do Brasil, será nos próximos anos: “consolidar conquistas, impedir retrocessos e enfrentar ameaças emergentes, em especial o agravamento da crise climática e o aumento do nível de doenças mentais entre jovens” (UNICEF, 2019, p. 37).

Outro relatório, tão importante quanto ao anterior e que requer, especial, atenção, é o relatório apresentado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019) que revela informações muito graves relacionadas à segurança das crianças, sobretudo, das meninas. De acordo com o Anuário, entre os registros de casos de violência sexual no Brasil, 53,8% tinham até 13 anos; esses registros revelam que 4 meninas de até 13 anos são estupradas por hora no Brasil. É de uma perplexidade esses dados e deixa claro que as políticas públicas, de proteção a criança, continuam ineficientes. Direito a proteção é um direito elementar que é violado quando as instituições brasileiras, a quem cabe cuidar da criança, não o fazem. Fica evidente, que as políticas de proteção infantil existentes são ineficientes, considerando os alarmantes casos de meninas estupradas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define no seu artigo 4º:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2017, p. 11). Dessa forma, cabe à sociedade como um todo cuidar para que as crianças não sofram qualquer violação dos seus direitos, para tanto é necessária à criação de políticas públicas em diálogo com as escolas, sociedade civil, famílias, com a finalidade de garantir cidadania e dignidade a todas as crianças, sobretudo as mais vulneráveis. Diante da dramaticidade da vida de muitas crianças, no que toca à violação dos seus direitos elementares para uma vida com dignidade, como direito a segurança, a educação, saúde, moradia, esporte e lazer, a escola é uma das instituições (mas não só ela) que tem o papel de ajudar a erradicar essa prática perversa, que viola, diariamente, os direitos humanos, além de ajudar a construir práticas educativas voltadas para a formação de uma sociedade mais justa, humana, solidária e feliz. Assim, a escola que desenvolve o memorial com os alunos, por meio do seu coletivo de sujeitos se compromete em dialogar e estudar com a comunidade escolar e não escolar sobre os direitos das crianças a partir da sua própria realidade com a finalidade de chamar a atenção para a importância de cuidar e garantir vida justa para as meninas e meninos que vivem diariamente na exclusão de seus direitos. A seguir, apresentamos as vozes de meninas e meninos sobre o que pensam da violação dos direitos na infância, extraídos, dos seus memoriais; neles, as alunas e os alunos deram muita importância para o assunto em estudo e destacaram alguns direitos básicos necessários para as crianças viverem com dignidade.

Querido memorial, gostaria de compartilhar com você um assunto muito importante (importantíssimo), trata-se de algo extremamente delicado: a importância dos direitos infantis. Cada criança tem o direito de ter um nome, uma boa educação, uma boa alimentação. Elas têm o direito de serem amadas, se divertir, brincar, pular e ter um lar, não é mesmo? Sabe, pensando nisso nos perguntamos: “o que o poder público está fazendo em meio a toda essa situação?” [...] é dever do poder público proteger todas as crianças e seus direitos. Aprendemos tudo isso na aula sobre os direitos das crianças (Autora: Alice. Idade: 10 anos) 4 .

Hoje em dia, muitos direitos das crianças não são garantidos. Vou citar alguns deles: educação, direito a um nome e uma nacionalidade, ter uma alimentação saudável, moradia, assistência, lazer, saúde e proteção. [...]. Algumas crianças têm os seus direitos, porém outras não. Por favor, governantes, não fiquem de “olhos fechados” para esse problema! (Autora: Maria. Idade: 10 anos). O apelo que a aluna fez: “Por favor, governantes, não fiquem de ‘olhos fechados’ para esse problema”!, é pertinente quando se identifica que o poder público não tem conseguido alcançar todas as crianças por meio da política de atendimento dos direitos das crianças e adolescentes, como estabelecido no ECA no seu Artigo 86: “A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios” (BRASIL, 2017, p. 43). No depoimento que segue, a aluna Malu expõe seu sentimento de decepção, diante da realidade em que as crianças estão submetidas. De acordo com ela, o governo, é “irresponsável” quando não resolve a situação das crianças que não tem garantia dos seus direitos básicos, como ela mesma destaca: “direitos ao estudo, moradia, família, nome, alimento e segurança e muito mais, eu digo”!

[...] Nunca tinha parado para pensar ou compartilhar o assunto. E logo após a professora começou a perguntar: “qual é a realidade dos direitos das crianças no Brasil?” Minha colega Majú respondeu “sofrimento”, outros concordaram com ela: “a pura verdade”. A sua terceira pergunta foi assim: “o que vocês sentem sobre isso?” Eu não partilhei, mas em minha cabeça, já estava preparada a resposta. Era assim: “decepcionada, porque quando nos deparamos com crianças pedindo na rua, dá vontade de ajudar, nem sempre podemos ajudar. Mas quem pode é o governo, só que o governo é irresponsável”. Em minha opinião, todas as crianças no mundo devem ter direitos a estudo, moradia, família, nome, alimento e segurança e muito mais, eu digo! Espero que algum dia todas as crianças, não só no Brasil, mas no mundo inteiro tenham seus direitos na mão! (Autora: Malu. Idade: 10 anos). No próximo depoimento, o aluno José destaca que a situação das ruas esburacadas impede as crianças do seu direito de brincar. Em seguida, enfaticamente, afirma que essa é uma responsabilidade dos governantes, cuidar das ruas para que todas as crianças possam com segurança brincar.

Tem ruas esburacadas, rachadas, mal asfaltadas, as crianças não podem brincar e essas são as responsabilidades dos governantes [...]. São eles que estão no poder e nós precisamos ficar atentos! (Autor: José. Idade: 10 anos). Os dois depoimentos que seguem retratam uma realidade comum na vida de muitas crianças e traduz, segundo a aluna, sofrimento; não ter o que comer e não poder sair de casa com segurança é uma violação absurda dos direitos humanos, assim, como ir para as ruas “catar latinhas” para vender e poder comprar comida, destacou o aluno em seu memorial. É estarrecedor quando nos deparamos com essas realidades. Sabe-se que essas crianças quando estão nas ruas e distante de um familiar que lhe dê proteção correm muitos perigos como aliciamento, drogas, estupros, assédios, entre outros tipos de violências e abusos; certamente, que a proteção e segurança não devem ser asseguradas, somente, pelos governantes como foi muito bem colocado pelos alunos, mas também pela família e ou outras instituições como conselho tutelar e escola, cada uma, desenvolvendo o seu papel em relação a garantia dos direitos da criança.

Oi memorial! Hoje vamos falar sobre os direitos das crianças. A aluna Heloisa leu um poema da Ruth Rocha e depois a professora leu também. A professora fez várias perguntas como: o que a gente pensava sobre a realidade das crianças? E eu respondi: sofrimento! Porque tem muita criança que não tem o que comer. E também hoje em dia algumas crianças não podem sair de casa por causa dos perigos na rua. (Autora: Majú. Idade: 10 anos). [...] A professora leu também o poema e, em seguida, teve pergunta sobre o que a gente sentia quando vê uma criança na rua e todo mundo respondeu. E eu falei que conhecia uma criança que catava latinhas para ganhar dinheiro para comprar comida pra ela. Mas um dia, isso vai acabar! (Autor: José. Idade: 10 anos) O último depoimento lança algumas perguntas, as quais são importantes e devem ser levadas em consideração na hora de pensar nas políticas públicas para a infância: Como você gostaria que fosse a vida das crianças brasileiras? Como você se sente sabendo que nem todas têm seus direitos garantidos? Esses questionamentos são bastante reflexivos e que nos tocam porque nos desafia para um problema visível e que a sociedade parece não querer enxergar.

Os direitos das crianças! Os direitos das crianças de estudar, brincar e ter uma boa alimentação, devem ser respeitados! Como se sentem sabendo que nem todas têm seus direitos respeitados? como você gostaria que fosse a vida das crianças brasileiras? Tudo isso me decepciona muito. O governo deve melhorar os direitos das crianças. (Autor: Antônio. Idade: 10 anos). Todos os recortes feitos dos memoriais que foram apresentados revelam, na prática, a desigualdade social em que vivem parte das crianças brasileiras; além disso, evidenciam a ausência do poder público atuando para garantir direitos àqueles que levam uma vida de privações, mas como mudar esse cenário quando se vive a intensificação de um processo de globalização que vem se construindo perverso para a maioria das pessoas? A sua perversidade amplia a intolerância, o individualismo, mata a noção de solidariedade e reduz a noção de moralidade pública e particular a quase nada, afeta o campo dos direitos básicos, aumenta a criminalidade, amplia a pobreza, a violência urbana e ambiental, a individualidade, ideologias de superioridade e amplia a exclusão educacional, social, cultural, política e econômica (SANTOS, 2009). E qual o papel da escola na contemporaneidade diante dessa realidade que não é boa para a maioria dos seus viventes? Acreditamos que entre tantos desafios, um deles será construir um processo educativo em que as crianças pensem a partir de suas realidades; pensar sobre suas realidades e sobre o que é importante fazer para mudar tal realidade? Pensar no outro e sobre o que falta para o outro viver com dignidade. Para nós, a falas das crianças estão cheias de consciência e preocupação com o outro. São cheias de sensibilidade e amor sem, contudo, deixar de reconhecer que nenhuma criança deve ter seus direitos violados, reconhecimento de que todos têm direito à escola, segurança, alimentação, lazer, e ser feliz e que tais direitos devem ser garantidos pelo poder público. Cabe a ele, cuidar para que nenhuma criança fique sem o básico para viver.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O trabalho realizado possibilitou o crescimento dos alunos. Em relação à produção textual, os textos passaram a apresentar uma boa estruturação, pois os educandos conseguiram organizá-los em parágrafos de modo adequado; e aplicaram bem os sinais de pontuação, na maioria das vezes. Além disso, os textos apresentaram melhor coerência e coesão, os alunos conseguiram relacionar as ideias e fazendo uso, na maioria das vezes, dos conectivos como elementos de ligação adequados. Observamos, ainda, a autonomia das crianças para escrever e se posicionar sobre assuntos diversos, consequência da ampliação do contato com livros por meio da leitura, hábito que passou a ser fazer parte dna vida delas; com isso, a escrita também passou a apresentar uma dimensão crítica por conta da consciência sobre questões ligadas à realidade vivida. Outro aspecto positivo que vale destacar se refere à nota dos alunos no IDEB 2019; a escola passou de 4.4 para 5.6. Com isso, atendemos aos pressupostos educacionais freireanos de promover a autonomia das crianças a serem sujeitos de seu pensar o mundo, bem como de problematizar e realizar leitura crítica sobre questões de seu contexto social e existencial. Vale destacar que houve a socialização dos resultados para a comunidade escolar e não escolar, por meio de um evento que denominamos “Lançamento das produções dos alunos”. O Produto final foi resultado de uma parceria entre as professoras das turmas, professores externos da Universidade do Estado do Pará, da Biblioteca Comunitária Itinerante Bombomler, da Rede Estadual de Ensino, a coordenação e direção escolar. Nessa ação educativa também foram enfrentados alguns limites de aspectos estruturais entre os quais: a) a pouca participação dos familiares, que por diversas razões não conseguem apoiar em casa, para complementar no aprendizado dos alunos; b) a inexistência de espaço de apoio físico na escola, para complementar as atividades escolares, como por exemplo, laboratório de informática e funcionamento da biblioteca escolar (a mesma existe, possui acervo, porém não tem profissional lotado no espaço); c) a inexistência de wifi na escola para o acesso de plataformas educacionais digitais para complemento das aulas. Apesar das dificuldades estruturais enfrentadas, os educandos conseguiram realizar as atividades propostas, demonstraram interesse pela leitura crítica de mundo e leitura e escrita das palavras demonstrando autonomia e reflexão sobre a prática social vivida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os memoriais são reveladores da realidade vivida por muitas crianças, no que tange à violação dos seus direitos; violação esta relatada por meninos e meninas que desejam uma vida digna para todas as crianças. Os memoriais expressam também a consciência crítica que começaram a ter quando observaram as condições de vida que muitas crianças levam; os alunos fizeram uma comparação da vida deles com as de outras crianças, e indagaram sobre o papel do poder público diante

dessas realidades. Essa ação nos permitiu avaliar cada educando de maneira específica em relação aos conteúdos e temas abordados, além de estimular o pensamento crítico e a produção de texto, os quais revelam o tamanho do amadurecimento das ideias e a autonomia para escrever com compromisso, responsabilidade e senso crítico. Essa consciência foi muito importante para o futuro deles, pois com a atual situação do mundo com a pandemia do Novo Corona Vírus, a situação de alguns que já era difícil pode se tornar pior, principalmente no que se refere aos direitos conquistados; tememos que com a crise se aprofunde ainda mais o abismo das desigualdades sociais, educacionais, cultuais e econômicas.

Para muitas de nossas crianças, o regresso à normalidade representa a continuação da fome, violência, insegurança, doenças... conforme relato nos memoriais; e nesse cenário de pandemias, desigualdades, as crianças, são afetadas nos seus direitos mais elementares. Nesse sentido, seguimos na esperança de que haverá um amanhã melhor para todos, sobretudo, para aqueles que possuem menos oportunidades de ter seus direitos garantidos. Um amanhã em que prevalecerá a tolerância com o outro, a solidariedade, a esperança, cidadania para todos e as escolas têm um papel ético-político neste trabalho crítico e conscientizador. Cremos que com o nosso projeto, fizemos nossa parte e, pelo menos, algumas lacunas deixadas por essa mazelas, a que nos referimos, foram preenchidas com amor, fé, diálogo, esperança e práxis, mas longe de nós pensarmos que o projeto foi suficiente e pararmos por aqui, há muito a fazer por nossos alunos e seguiremos firmes apoiados na Educação popular e libertária, pois é possível mudar – a educação sabe disso.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Carlos R. Caminhos Cruzados: formas de pensar e realizar a educação na América Latina. Educação popular: Utopia Latino-Americana. Gadotti e Torres. (Orgs.). São Paulo, Editora Cortez, 1994.

BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017.

______. Atlas da violência 2019. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option= com_content&id=34784& Itemid=432. Acessado em junho de 2020.

COELHO, Gabriel Bandeira; FRANZ, Alice Hubner. Ciências Sociais Unisinos. São Leopoldo, Vol. 56, N. 1, p. 104-106, jan/abr 2020.

FBSP. Anuário de Segurança Pública. Ano 13, 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: http://forumseguranca.org.br/ wp-content/uploads/2020/03/Anuario-2019FINAL_21.10.19.pdf. Acessado em 21 de agosto de 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 11. ed. Rio de Jeneiro: paz e terra, 1992.

______, Pedagogia do Oprimido. 47. ed. Rio de Janeiro: paz e terra, 2005.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da práxis. 5. ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2010.

SANTOS, Milton. Pobreza urbana. 3. ed. São Paulo, 2009.

UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: Avanços históricos, problemas que persistem e novos desafios. 2019. Disponível em: https://www. unicef.org/brazil/ comunicados-de-imprensa/30-anos-da-convencao-sobre-os-direitos-da-crianca-avancosproblemas-e-novos-desafios. Acessado em julho de 2020.

This article is from: