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Ano VIII - Volume XI - Nº 11 – out. - 2020

Equipe de Redação: Editores: Prof. Ms. Fernando Gralha Profª. Jessica Corais

Pesquisa: Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Prof. Ms. Renato Lopes (UNIRIO) Prof. Ms. Rafael Eiras (UCAM/UNIGRANRIO) Prof. Dr. Adílio Jorge Marques (UFVJM)

Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Adílio Jorge Marques (UFVJM) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS) Profª. Martha Souza (MEC) Prof. Ms. Renato Lopes (UNIRIO) Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Vol.11, n.11 (Out 2020). Rio de Janeiro, 2020 [on-line].

Gnarus Revista de História Disponível em: www.gnarus.org ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História

https://www.facebook.com/gnarusrevistadehistoria/


GNARUS |3

Sumário AO LEITOR....................................................................................................................................................................................................................................... 4 Fernando GralhaErro! Indicador não definido.

ARTIGOS: A BAILARINA MERCEDES BAPTISTA: uma narrativa histórica que possibilita a compreensão e a importância das relações étnico-raciais na dimensão da dança no processo de construção identitária. ......................................................................................................................................................... 6 Juvenal Alvaro Santos Filho e João Paulo Carneiro Erro! Indicador não definido. A CONTRIBUIÇÃO DAS OBRAS DE JOSÉ CALASANS PARA A REVISÃO DA HISTÓRIA DA GUERRA DE CANUDOS (1896-1897) E PARA A BIOGRAFIA DE ANTÔNIO CONSELHEIRO E SEU SÉQUITO ........................................................................................................................................................... 13 Igor Farias Emerich DA TROPICÁLIA PARA AS ANTROPOFOGIAS: Jomard Muniz de Britto e a “Ideologia da Cultura Brasileira” ................................................................... 24 Francisco Adriano Leal Macêdo DE NORTE A SUL: fundamentalismo religioso e intervenção na política nacional ........................................................................................................................ 34 Max David Rangel Cassin ANÁLISE DOS DEBATES SOBRE SENHORIO E FEUDALISMO NA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA EUROPEIA: o caso ibérico .................................. 46 Cassiano Celestino de Jesus NOTAS SOBRE OS HUMORES E A VERDADE EFETIVA NO PENSAMENTO POLÍTICO DE NICOLAU MAQUIAVEL ........................................................... 52 Lucas Barbosa Gomes APAGAMENTO E ESTEREÓTIPOS DO REINO VÂNDALO NOS MANUAIS DE HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA DA UNESCO ........................................... 61 Geraldo Rosolen Junior DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE MASSA: A NECESSIDADE DA SOCIEDADE INDUSTRIAL ............................................................................................... 74 Renato E. de L. Oliveira O ESTREITAMENTO DAS RELAÇÕES DE INTEGRAÇÃO REGIONAL E A FORMULAÇÃO DO BRICS DURANTE O GOVERNO LULA COMO INSTRUMENTO DO AUMENTO DA RELEVÂNCIA DO BRASIL NA COMUNIDADE INTERNACIONAL ........................................................................ 83 Marcus Vinicius Vilanova Gralha SANTA ISABEL DA HUNGRIA E SANTA HILDEGARDA: uma análise comparativa da trajetória da santidade feminina nos séculos XII E XIII..... 91 Leilane Araujo Silva SOBRE A MAÇONARIA NA HISTÓRIA MODERNA E O GRAU DE MESTRE ........................................................................................................................................ 96 Marcus Vinícius Teixeira dos Anjos e Adílio Jorge Marques FUTEBOL E HISTÓRIA: o título intercontinental do Clube de Regatas Vasco da Gama ............................................................................................................ 111 Adílio Jorge Marques e Fernando Gralha

COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA ÁFRICA NA TELA: o uso em sala de aula dos filmes “o último rei da Escócia” e “Hotel Ruanda” para retratar confrontos ocorridos no continente africano no decorrer do século XX................................................................................................................................................................................ 118 Edivaldo Rafael de Souza ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DA RELAÇÃO CINEMA-DOCUMENTÁRIO E HISTÓRIA: verdade, realidade estética, ética e discurso histórico ......................................................................................................................................................................................................................................... 127 Renato Lopes Pessanha O SERIADO HISTÓRICO NA CONTEMPORANEIDADE E A EXPERIÊNCIA DO PASSADO .......................................................................................................... 144 Rafael Garcia Madalen Eiras

COLUNA: A HISTÓRIA NOS QUADRINHOS

DIMENOR: um retrato da vida de crianças e jovens moradores de rua. ........................................................................................................................................ 155 Aderaldo Januário de Almeida MORT CINDER: suas muitas vidas e muitas mortes. ............................................................................................................................................................................... 166 Renato Lopes Pessanha

COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA

A COR DA PELE NUNCA É INVISÍVEL .............................................................................................................................................................................................................. 170 Angelica Fontella

COLUNA: EDUCAÇÃO

A HISTÓRIA DA FÍSICA CONTADA EM SALA DE AULA: proposta interdisciplinar. .................................................................................................................... 184 Adílio Jorge Marques

ENTREVISTA

MESTRE BIMBA, DIRETOR DA BANDA HARMONIA DO SAMBA: quando o artista reflete a história. ............................................................................... 189 Diego da Rocha Viana Muniz Erro! Indicador não definido.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS |4

AO LEITOR

O

mundo

virou

gostaríamos

de

de

ponta

enaltecer

cabeça, aqui

a

publicação do décimo primeiro número da Gnarus. A pandemia arrefeceu um

pouco os ânimos, a comemoração dos oito anos de nossa publicação que começou em novembro de 2012 como uma aventura de um professor e sua aluna. Lembro até hoje da correria, “quem vai querer publicar?”, nosso esforço deu frutos, tivemos a sorte, a honra e o prazer de logo em nosso

número 1,

ter mestres, doutores e

pluralidade e polifonia que hoje nos caracteriza. Com este número que está a sua vista, nos permitimos ainda, apresentar novidades, o Prof. Adílio Marques, um de nossos consultores, pareceristas e habitual colaboradores inaugura a nossa nova Coluna: “Educação”, que vem se somar às já existentes “Fotografias na História”, “No escuro do Cinema” e “A História nos Quadrinhos”, capitâneadas, respectivamente pelos Professores e historiadores Fernando Gralha, Rafael Eiras e Renato Pessanha.

principalmente os “novatos” – objetivo principal

Então assim, cientes da situação pela qual o

nosso - , no nosso sumário, dentre eles gente de

mundo e o Brasil (com certo agravamento) passa,

muito “peso” na historiografia, como nosso

chegamos com muito esforço ao 11º passo de

“padrinho” Carlo Ginzburg que nos deu uma

nossa caminhada, sem mudar muito nossa lógica

entrevista exclusiva, tivemos coordenadora do

de construção acadêmica, os 21 trabalhos aqui

Curso de História da UFF e “estrela” das produções

apresentados são, sobretudo, aqueles produzidos

acadêmicas sobre História e imagem, a Prof.ª Ana

pelos

Maria Mauad inaugurando a coluna “Fotografias

Antropologia, Filosofia, Comunicação e Sociologia,

da História”, tivemos também o Prof. Marcuz Cruz

distribuídos em vários pesquisadores de várias

da UFMT, o Prof. Bruno Álvaro da UFS, o

instituições de várias partes do Brasil.

ilustríssimo Prof. Sérgio Chahon, e tantos outros que com suas brilhantes escritas temperados pelos nosso

graduandos

estreando

na

vida

das

publicação deram à Ganurs uma característica muito cara a todos nós, a multiplicidade, a

professores

da

área

de

História,

Ao longo de mais de cem páginas da Gnarus edição 11, nosso leitor vai passear por bailarinas, santas e santos conselheiros, pela tropicália, por Maquiavel, vândalos e sambistas, por maçonaria, física, fotografia, jornal e futebol, por feudalismo, Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS |5 fundamentalismo religioso e sociedade industrial, por relações internacionais, Ex-Presidente Lula, Terra de Santa Cruz e África, por Cinema, fotografia,

quadrinhos,

linchamento,

enfim

justiça

mudam-se

social os

e

tempos,

mudam-se as vontades, passaram-se oito décadas e o número 11 corresponde a mesma lógica de construção e dinâmica de um periódico múltiplo, plural e, principalmente, democrático. 2020 não nos deu muitos motivos para comemorar, porém, a Gnarus continua viva e zelosa quanto aos caminhos do pensamento historiográfico, aos diálogos da história com outras áreas do conhecimento e à importância do debate amplo e do acesso aberto. Assim acreditamos ultrapassar

os

muros do

isolamento

social

centrados no propósito da união entre a produção científica da História e a sociedade.

Boa leitura e vamos para 2021. Fernando Gralha

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


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Artigo

A BAILARINA MERCEDES BAPTISTA: UMA NARRATIVA HISTÓRICA QUE POSSIBILITA A COMPREENSÃO E A IMPORTÂNCIA DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA DIMENSÃO DA DANÇA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA Por João Paulo Carneiro e Juvenal Alvaro Santos Filho RESUMO: o presente texto busca na figura da bailarina Mercedes Baptista discutir e problematizar a importância da construção identitária através da dança e também dimensionar a relevância da narrativa da mulher negra como protagonista diante da construção discursiva de silenciamento e negação do processo histórico. Palavras Chaves: Performance; Relações Étnico-Raciais; Dança; Corpo; Identidade

Introdução

instrumentalidades de resistência para o processo da identidade afrobrasileira, especialmente na

T

luta antirracista. orna-se de vital relevância apontar que este texto percorre e dialoga através dos seguintes conceitos: raça e racismo, perfomance, identidade

negra e corpo negro. Portanto, tais conceitos darse-ão imbricados no processo de construção da cultura afrobrasileira como esteio da população

Mercedes sistematizou técnicas de dança seguida por muitos dos grupos artísticos e profissionais da dança e do teatro negro. Sua saga como professora negra foi maior do que como bailarina do balé no Rio de Janeiro, onde sofrera inúmeros preconceitos.

negra diante da reafirmação de suas tradições

Podemos dizer que em Mercedes, a raça

familiares, seus símbolos, seus valores sociais,

negra (conceito que explicitaremos no próximo

sobretudo de uma construção identitária advinda

tópico) falou mais forte, pois, ela encontrou ali

da diáspora.

a sua identidade onde focara seu desempenho

No processo histórico, a dança, a música, a

religião,

o

teatro,

enfim,

possuem

as

e vida profissional à produção e divulgação da cultura negra, encontrou a si mesma e tornou-se a “bailarina dos pés no chão”.

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Raça e racismo

O que é ser negro? Hall (2014) que compreende

Raça aqui não é tratada como o conceito ultrapassado e vencido no sentido biológico. Mas, como conceito sociológico e político. De acordo com Guimarães (2003), no viés sociológico, raça, “são discursos sobre as origens de um grupo, que usa termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicos etc.” (p.96). Ainda aponta que “cientificamente, uma construção social e deve ser estudada por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais” (Ibid. p.96). Raça é compreendida como uma categoria analítica1, ou seja, categoria de análise abraçada na discussão deste texto.

a identidade como “deslizante e flutuante”, ou seja, de maneira não essencialista, apresenta o seguinte resumo: “[...] de acordo com alguns teóricos, o ‘sujeito’ do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias,

inacabadas,

fragmentadas,

do sujeito pós-moderno” (HALL, 2014 p.28). O culturalista ainda afirma que “[...] são pensamentos que me impulsionaram a falar [...] do fim da inocência do sujeito negro ou do fim da noção ingênua de um sujeito negro essencial” (HALL, 2013 p.386). Para exemplificar as cadeias de significantes do significado de ser negro, o autor narra experiências de sua juventude na Jamaica,

De modo que para Munanga (2012), Hall (2013), Guimarães (2012) o conceito de raça é uma garantia política para combater o racismo. Racismo como discurso através de uma particularidade razoável. Hall (2013) ainda explica que a “etnicidade gera um discurso em que a diferença se funda sob características culturais e religiosas”. Tanto os que são marcados no corpo como os que apresentam diferenças culturais e religiosas, são também caracterizados em termos físicos, embora talvez não tão visível quanto os negros, o referente biológico nunca opera isoladamente, porém nunca está ausente, ocorrendo de forma mais indireta nos discursos de etnia. “Portanto, o racismo biológico e a discriminação cultural não constituem dois sistemas distintos, mas dois registros do racismo” (Hall, 2013 p.78).

onde mesmo tendo a pele escura como sua classe de pertença figurava nas camadas médias da sociedade jamaicana e não era identificado como negro. Fato que tivera outra representação quando partira para estudar na Inglaterra. Sendo assim, a questão da identidade negra discutida neste artigo não contempla uma visão essencializada do sujeito, muito pelo contrário, adotamos segundo Canclini (2013), um sujeito híbrido. “Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para formar novas estruturas, objetos e práticas” (Ibid. p.XIX). Estruturas ou práticas discretas denominadas pelo autor, não são puras, isto é, já sofreram mudanças no processo de hibridações. Assim, a construção identitária pela dança afrobrasileira neste texto possuem “elementos culturais distintos que se atenuam

Identidade: por uma perspectiva da diversidade e

formam um terceiro elemento que carrega parte

da multiplicidade

dos elementos anteriores” (CARNEIRO, 2017

1 “(...) categoria analítica indispensável: a única que revela as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de ‘cor’ enseja são efetivamente raciais e não apenas de classe” (GUIMARÃES, 2012, p.50).

p.99). Portanto, segundo Carneiro (2017) “para esses processos múltiplos, diversos, plurais, nas dimensões culturais é que devemos observar no

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GNARUS - 8 âmbito do processo de reconstrução identitário

identitárias pelos meios e canais mais diversos

aqui apresentada” (Ibid. p.99).

artisticamente, principalmente, afrobrasileiro. Sendo assim, para encerramos este tópico tornase necessário evidenciar que, nossa pesquisa realiza uma revisão da literatura que aborda a

Perfomance: corpo em movimento

biografia da bailarina articulando e dialogando

Para a execução de uma aula, uma dança, uma peça teatral, uma partida de jogo de futebol, exige-se ensaios, treinos, testes, preparações (SCHECHNER, 2003). Esses estudos, ensaios, preparações, são duplamente exercidos pela redundância das ações cotidianas (Ibid. p.27). Essas repetições de nossas práticas apontam o quanto somos envolvidos por ações ritualísticas, tanto no espaço quanto no corpo em movimento. Schechner

(2003)

aponta

características

importantíssimas para a perfomance .2

com o nosso referencial teórico apresentado. A dança no contexto é uma metodologia desenvolvida por Marques (2018) e sinteticamente, são as redes de relação entre a arte, o ensino e a sociedade, ou seja, a inter-relação no tripé: arteensino-sociedade. Essa proposta de acordo com a autora possibilita os sentidos transformadores. Diante de uma sociedade que persiste em reproduzir discursos racistas, negando outras narrativas e sujeitos, os sentidos transformadores por meio da dança afrobrasileira protagonizada

Na vida diária, nas artes, nos esportes e outros

por Mercedes Baptista é emancipadora. A dança

entretenimentos populares, nos negócios, nas

implica diálogo com o mundo (MARQUES, 2018),

tecnologias, no sexo, nos rituais (sagrados

a protagonista que se refere este texto trava

e seculares), na brincadeira. Tais categorias

diálogos com o mundo, entretanto, com uma visão

apontadas pelo o autor demonstram o vasto

de mundo esquecida, negada, invisibilizada. Sendo

e complexo campo de pesquisa no estudo da

assim, traz o resgate da cultura afrobrasileira,

performance, especificamente para a discussão

das religiões de matrizes africanas, construindo

aqui tratada, focamos no campo da arte. O corpo

outras narrativas, outras identidades. “A filosofia

em movimento, sobretudo através da música,

afroperspectivista define o pensamento como

da dança, em cena, traz inúmeras abordagens,

movimento de ideias corporificadas, porque só

construções e reconstruções diante das questões

é possível pensar através do corpo. Este, por sua

da vida. Possibilitando assim, reconstruções

vez, usa drible e coreografias como elementos que

3

2 Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar. (SCHECHNER, 2003, p. 27) 3 Na questão das artes, torna-se um universo dentro de outro, pois da mesma maneira em que a vida diária pode englobar todos os tipos de performance, o campo artístico se torna igualmente potente pela capacidade de mover as coisas de lugar. A arte possibilita abordagens das mais diversas questões da vida, seja através de uma imagem, da música ou do corpo em cena. Ela sintetiza e reflete pensamentos e práticas de um contexto, com as quais os envolvidos na performance, se dispõem ao preparo para que se construa e apresente ao público ou envolvidos no entorno (SILVA, 2017, p.66).

produzem conceitos e argumentam” (NOGUERA, 2014, p. 174). Na perspectiva apontada pelo filósofo, a cultura africana se comunica, conceitua, argumenta, pensa, cria, produz através do corpo. Corpo que necessita se fazer presente nos mais diversos espaços, devido às privações sofridas no processo histórico, sobretudo no sentido psicológico. O psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961) desenvolveu uma teoria através de pesquisas com um corpo de pacientes que lhe permitira

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GNARUS - 9 denominar de complexo de inferioridade, ou seja,

p. 72). Essa cosmovisão cíclica e eterna que se

um complexo que flagelava o negro. complexo

renova é representada em muitas danças de roda

referido pelo psiquiatra e filósofo consistia no

de cultura afro-brasileira. Movimentos e danças

desejo inconsciente do negro de ser branco e

circulares que simbolicamente representam o

aponta como origem dos conflitos as estruturas

sagrado, a conexão com a ancestralidade e a

sociais. Para Fanon (2008) tais processos

renovação do processo da vida.5 O pesquisador

iniciam na infância. No contexto brasileiro

aponta que é impossível a existência de uma

podemos compreender como um processo de

performance negra africana sem o poderoso trio,

branqueamento, muito além do processo histórico

ou seja, cantar-dançar-batucar. Essa perspectiva

e político realizado no início do século XX. Mas um

de Ligiéro (2011) destaca a interligação da dança,

processo de interiorização dos aspectos negativos

do canto e do batuque, dimensão que atravessa

para a população negra e aspectos positivos para

as obra de Mercedes Baptista.

4

a população branca, gerando assim um problema de baixa autoimagem.

O corpo em movimento e a performance da dança afrobrasileira constituem na obra da

Diante de referencial como Mercedes Baptista,

protagonista aqui tratado, representa a resistência,

na academia, no teatro, no cinema, no palco,

a construção identitária, a contraposição na trilha

na sala de aula, enfim, nos diversos espaços

da desigualdade racial, da representatividade

ocorre um resgate dos aspectos positivos

do corpo negro nos diversos espaços públicos e

para a autoestima da população negra, na

privados, dentro e fora do país, protagonizando

construção identitária, no autoconhecimento do

criações e produções artísticas, culturais, políticas,

corpo, da ancestralidade, da historicidade e do

sociais e emancipatórias.

protagonismo, especialmente na dimensão de um corpo negro e feminino.

A música e a dança afrobrasileira se desenvolveram

num

espaço

coletivo

em

O corpo e as forças da natureza estão

comunhão com inúmeras culturas de africanos

integrados e com o sopro divino se comunicam.

vindos de diferentes locais das áfricas e seu

Petit (2015) destaca que a dança se constitui

processo se deu na co-relação étnica social dentro

como um canal de comunicação no mergulho

de um sistema de mandantes e mandados. De certa

com a ancestralidade afro-diaspórica. “Dançar, na

forma agrega ramos, focos de resistência cultural,

perspectiva afroancestral aqui tratada, remete a

ou seja, as manifestações das performances

uma visão circular do mundo, na qual início e fim

afrobrasileiras.

se encontram em eterna renovação” (PETIT, 2015, 4 “Se ele se encontra a tal ponto submerso pelo desejo de ser branco, é que vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica. Surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo. Enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais” (FANON, 2008 p.95).

5 “Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo, acrescido do uso do canto como algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca, um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das performances da diáspora africana nas Américas – não é possível existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo é aplicável às performances afro-brasileiras” (LIGIÉRO, 2011, p. 108- 109).

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GNARUS - 10 sua referência nos rituais religiosos, passa a ter conexão e embasamento coreográfico no sentido de tornar um estilo cênico, uma dança de palco, um espetáculo, objeto de apreciação estética. Foge de nossa intenção uma profunda pesquisa biográfica, no entanto, tencionamos uma breve abordagem.

Precedentes históricos Estudou na Escola Municipal Homem de Mello na Tijuca (RJ), trabalhou numa bilheteria de cinema e exercera diversas profissões. Com o trabalho no cinema nascera o sonho de se tornar artista, a construção de seu sonho se deu por meio da dança. Considerada a maior precursora do Balé e Cena de “Balé de pé no chão” (2005), documentário de Lilian Solá Santiago e Marianna Monteiro

da dança Afrobrasileira, Mercedes Ignácia da Silva Krieger, nasceu em 1921 em Campos dos Goytacazes (Região Norte Fluminense, RJ). Oriunda de uma família pobre que sobrevivia do trabalho de costura de Maria Ignácia da Silva

A trajetória da bailarina Mercedes Baptista (1921-

(mãe). O sobrenome Baptista herdara do pai,

2014)

João Baptista Ribeiro.

A dança afrobrasileira no Rio de Janeiro ganha

Em 1945 freqüentou a Escola de Dança da

um capítulo marcante com a atuação da ex-bailarina

bailarina Eros Volússia, mais tarde entra na Escola

do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Mercedes

de Ballet do Teatro Municipal do RJ. Em 1948 foi

Baptista, nos anos de 1940 e 1950. Mercedes

aprovada no concurso para se tornar a primeira

Baptista teve por base de sistematização de sua

bailarina negra do Teatro Municipal, entretanto, a

técnica os movimentos religiosos vivenciados no

força do racismo a impedia de ser selecionada em

Candomblé de Joãozinho da Goméia e no Teatro

várias apresentações. Mesmo diante das barreiras

Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento

impostas pela influência do racismo, Mercedes

, no qual teve os primeiros contatos com as

Baptista se tornou proeminente e conhecida no

criações com temas voltados à cultura negra.

Rio de Janeiro.

Com Mercedes, a dança afrobrasileira se

A bailarina não só trouxe contribuições práticas

reorganiza, ocupando grandes teatros e espaços

para a cultura afrobrasileira na construção

culturais, com técnicas de dança moderna já com

identitária, mas em ações militantes no viés

uma interpretação própria. A dança, mesmo tendo

político ao lado de outros artistas importantes no

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GNARUS - 11 processo de luta e resistência . Mercedes Baptista

é notória em diversos prêmios e reconhecimentos

vai tecendo e construindo sua carreira e almeja

de espaços e entidades públicas na cidade do

performances ainda maiores, ou seja, sua visão

Rio de Janeiro . Sendo assim, é inquestionável as

extrapola o universo individual como mulher,

constribuições na dimensão da arte, da pesquisa,

bailarina, negra, mas sua visão de mundo na esfera

do ensino, de Mercedes Baptista.

política, sociológica, histórica, permite vislumbrar a luta antirracista através das manifestações artísticas performáticas e, sobretudo, através de sue capital cultural . A dançarina assim tecia sua postura na militância negra e fortalecia seu campo teórico com o auxílio de diversos especialistas oriundos das áreas da dança, da religião, da antropologia, enfim, uma teia multidisciplinar na construção de seu próprio grupo. Em 1953, fundou o grupo Ballet

Considerações Finais Neste texto buscamos na figura de uma mulher negra, a bailarina Mercedes Baptista, traçar diálogos e problematizações como possibilidade antirracista através da narrativa referenciando a relevãncia da artista para a população de negros, sobretudo no contexto afrobrasileiro.

Folclórico Mercedes Baptista, ficara conhecida

Dialogamos com o conceito de raça e racismo

por seus alunos como uma professora exigente

não de maneira biológica, mas política e sociológica

e generosa. Aos alunos mais humildes permitia

(GUIMARÃES, 2009; HALL, 2014; MUNANGA,

a gratuidade das mensalidades. Suas atuações e

2012). A questão identitária como construção

articulações logo permearam o universo do samba

fluida, não fixa, não rígida, não essencializada de

e de um dos espetáculos de renome internacional,

acordo com (HALL, 2014; CANCLINI, 2013). No que

isto é, o carnaval . Como destacado em nota, sua

tange o aspecto da performance (SCHECHNER,

apresentação revolucionou a coreografia das alas

2003).

na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro e do carnaval carioca. O grupo de Mercedes se apresentara em diversos países da Europa e das Américas. Porém, diante de tantos compromissos, a bailarina, militante e professora, inclina-se para a sua carreira como educadora nos anos de 1970. Foi professora do Teatro Municipal, ministrando a disciplina: “Dança AfroBrasileira”. Nos EUA, ministrou cursos no Connecticut College, no Harlem Dance Theather e no Clark Center de Nova York. Em 1982, a professora se aposentou do Teatro Municipal e a dimensão de sua arte fora reconhecida em diversas manifestações.

e

sua

gama

de

ocupando grandes teatros e espaços culturais, com técnicas de dança moderna e dança afro já com uma interpretação própria. A dança, mesmo tendo sua referência nos rituais religiosos, passa a ter conexão e embasamento coreográfico no sentido de tornar um estilo cênico, uma dança de palco, um espetáculo, objeto de apreciação estética. Como professora pôde promover a construção identitária de gerações de bailarinos. Valorização e criação de movimentos oriundos do gestual dos Orixás, ou seja, as inter-relações com as religiões de matrizes africanas, sobretudo

Sua trajetória e seu legado para o universo artístico

Com Mercedes, a dança negra se reorganiza,

representações,

especificamente no âmbito da dança afrobrasileira

o Candomblé. A dança, o movimento, o corpo, a identidade, interfaces de uma visão de mundo em que a ancestralidade é reafirmada.

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GNARUS - 12 O Brasil vive o desafio de ainda superar valores escravocratas, calcados na desigualdade estamos à volta de superação de obstáculos, encontramos resíduos da escravatura diante de uma sociedade discriminatória, da qual as expressões artísticas e culturais negras e populares quase sempre assumem um papel de resistência e afirmação cultural. Neste artigo concluímos que o racismo está imbricado reproduzindo múltiplas consequências tais como: nas desigualdades sociais, econômicas, culturais, religiosas, psicológicas e políticas. A

cultura

expressa

na

dança,

música,

teatro, pintura, literatura, assume seu papel denunciador, transpondo todo tipo de dificuldade na religião, na profissão e no dia a dia. Em tempos contemporâneos é uma estratégia de exercício de cidadania. O movimento é cíclico, “os pés no chão e o batuque não pode parar” – saravá!

João Paulo Carneiro é Doutorando em História Social pela UERJ e Juvenal Alves Santos Filho é Especialista em Cultura Afro-Brasileira e Indígena pela Universidade Católica de Petrópolis.

Bibliografia CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013. CARNEIRO, J. P. Ensino de História: Possibilidades e desafios na perspectiva das relações étnicoraciais no caderno de avaliação do Saerjinho. Rio de Janeiro, 2017. 155 f. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ. FANON, F. Pele negra Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

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Artigo

A CONTRIBUIÇÃO DAS OBRAS DE JOSÉ CALASANS PARA A REVISÃO DA HISTÓRIA DA GUERRA DE CANUDOS (1896-1897) E PARA A BIOGRAFIA DE ANTÔNIO CONSELHEIRO E SEU SÉQUITO Por Igor Farias Emerich RESUMO: No presente artigo buscou-se estudar a contribuição do professor e folclorista sergipano José Calasans Brandão da Silva (1915-2001) para a historiografia da Guerra de Canudos e de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Esta pesquisa foi realizada com base na revisão bibliográfica sobre o assunto. Concluiu-se com base na presente pesquisa que a abordagem que os primeiros escritores, dentre eles principalmente Euclides da Cunha em Os Sertões, fizeram acerca da referida guerra e de Conselheiro e dos conselheiristas já era inadequada desde as mudanças na historiografia na década de 1930. E foi com base nessas mudanças que Calasans revisou a história da luta sangrenta e fratricida bem como deu voz aos sertanejos pobres dizimados pela recém-nascida República. Palavras Chaves: José Calasans. Guerra de Canudos. Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha. Os Sertões

Introdução

A

lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime.2”

Guerra de Canudos foi o embate sangrento, uma “luta fratricida”1, como ressalta José Calasans, entre o Exército brasileiro, da recém-inaugurada República, e os seguidores de Antônio Vicente Mendes Maciel, um beato conhecido como Antônio Conselheiro. Deu-se entre os anos de 1896 e 1897, no interior do estado da Bahia. Para Euclides da Cunha, repórter enviado pelo jornal O Estado de São Paulo para cobrir a guerra: “Aquela campanha 1 CALASANS, 2002, p. 13.

Em 1893, depois de peregrinar com seus seguidores, pelos sertões do Ceará, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, pregando seus sermões e construindo e restaurando igrejas e cemitérios, Antônio Conselheiro, finalmente chegou à Bahia, onde construiu às margens do rio Vaza Barris, numa fazenda abandonada, num lugar chamado Canudos, seu Arraial de Belo Monte.3 2 CUNHA, 2002, p. 67. 3 Embora o Conselheiro tivesse rebatizado o local como Arraial de Belo Monte, o nome que entrou para história foi Arraial de Canudos. Nome dado ao lugar, em referência a

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Pintura retratando Canudos antes da guerra.

O Arraial do Conselheiro contou com quase vinte e cinco mil pessoa vindas de todas as partes do sertão nordestino, fugindo da pobreza, das secas, das epidemias e do desemprego. 4 Dentre elas estavam sertanejos, indígenas e ex-escravos, que após Abolição decidiram seguir o Conselheiro. Segundo José Antônio Sola, em Canudos todos tinham trabalho. E tudo que se produzia era divido segundo as necessidades de cada família. O que sobrava era vendido nas proximidades. “Em Canudos não existia mendigos ou prostitutas [...], os assaltos não existiam e os crimes raramente aconteciam, geralmente originados por ciúmes ou brigas entre casais. O assassino era expulso da

planta Canudo-de-pito, que nascia em grande quantidade às margens do Vaza Barris e era utilizado como cabo para o cachimbo de barro que se usava nessa região (cf. COIN, Cristina. História em aberto: A Guerra de Canudos. Scipione: São Paulo, 1998, p. 26). 4 ZAMA, 1978, p. 11.

cidade.”5 Ainda de acordo com Sola, bebida alcoólica também não era permitida no Arraial. 6 O crescimento de Canudos preocupava os fazendeiros locais, que além de perderem sua mão-de-obra barata, temiam perder seu status social; os governos (municipal, estadual e federal), que enxergavam como uma ameaça a cidade independente e as prédicas do Conselheiro contra a República, condenando os impostos e o casamento civil; e, por fim, a Igreja, que perdia cada vez mais fiéis para o Conselheiro. Assim, nessa ordem de coisas que foram, estourou a Guerra de Canudos. O pretexto para tal guerra foi a afirmação de que Canudos seria um reduto monarquista e que isso colocava em risco a estabilidade da recém-inaugurada República. Tal pretexto foi largamente difundido pelos jornais da época, sobretudo depois da morte 5 SOLA, 1989, p. 40. 6 Ibidem, p. 39.

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GNARUS - 15 do coronel Moreira Cesar, o que de certa forma legitimou a ação enérgica do exército contra o Arraial de Canudos nas mentes dos cidadãos litorâneos. 7 Tendo em vista “que o jornal era o mais eficiente veículo de comunicação de massa”8 da época, podemos entender o quanto tais manchetes, por vezes tendenciosas, eram importantes na construção de uma imagem negativa do referido arraial e dos habitantes que lá viviam, e, sobretudo, do seu líder, Antônio Conselheiro. O historiador Pedro Calmon, escrevendo na década de 1930 sobre os acontecimentos do começo da época republicana afirmou: “Canudos foi mais invenção de publicidade nefasta do que arraial de revoltosos.”9 Quatro expedições militares foram necessárias para acabar de vez com a resistência dos canudenses. Cerca de trinta mil pessoas morreram nos combates. A maioria dos mortos era “conselheirista”.10 Como escreveu Euclides da Cunha: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo.” 11 Objetiva-se neste artigo discutir a contribuição das obras de José Calasans para a historiografia da Guerra de Canudos e para a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Contribuição essa que, como veremos, foi decisiva para quebrar paradigmas e preconceitos e dar voz aos sertanejos vencidos no supracitado conflito fratricida. Para tanto, analisaremos em primeiro lugar a importante obra do 7 GALVÃO, 1994, pp. 33-34. 8 Ibidem, p. 15. 9 CALMON, 2002, p. 50. 10 Termo empregado para designar aqueles que faziam parte dos seguidores de Antônio Conselheiro. 11 CUNHA, 2002, p. 778.

escritor e jornalista Euclides da Cunha, Os Sertões, onde o autor pretende fazer uma abordagem histórica da referida guerra e de seus personagens, e posteriormente contrastaremos tal abordagem com a feita por José Calasans sobre o mesmo tema, a partir de sua obra O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro, que inaugurou uma nova fase na historiografia da Guerra de Canudos e na de Antônio Conselheiro e seu séquito. Este trabalho está divido em três partes: a primeira, tratará da historiografia da Guerra de Canudos e de Antônio Conselheiro e seus seguidores antes de José Calasans; a segunda, por seu turno, apresentará as mudanças na historiografia a partir da década de 1930; e, por fim, a terceira parte abordará as contribuições de José Calasans para a historiografia do tal conflito e na abordagem da figura do Conselheiro e seu séquito. A historiografia da Guerra de Canudos e a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores antes de José Calasans O século XIX foi o século do surgimento de muitas teorias na Europa, teorias essas que depois se espraiaram pelo mundo, sobretudo para as Américas, e permearam os debates científicos, políticos, filosóficos, literários, sociais e históricos da época. Segundo a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, marcaram presença no Brasil, tardiamente, a partir de 1870, teorias como positivismo, evolucionismo e darwinismo, que em terras brasileiras “foram utilizados de forma particular, guardando-se suas conclusões singulares, suas decorrências teóricas distintas”. 12 Teorias raciais importadas da Europa, embora já em descrédito por lá, chegaram ao Brasil e aqui foram usadas como “instrumen12 SCHWARCZ, 2015, p. 57.

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GNARUS - 16 to conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional e no respaldo a hierarquias socias já bastante cristalizadas”. 13 Com base nessas teorias, a extrema miscigenação racial que já era evidenciada no Brasil da época, não foi vista com bons olhos pelos intelectuais do país que absorviam, a sua maneira, a ideia de progresso trazida pelo positivismo e a ideia de justificação da inferioridade de determinados grupos étnicos e raciais trazida pelo darwinismo social. Contudo, havia a ideia de que a miscigenação no Brasil era algo em transição, de que o país caminhava para um “branqueamento”, como afirmou em sua tese apresentada no Primeiro Congresso Internacional das Raças, em 1911, o então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro João Batista Lacerda.14 Conforme nos diz Schwarcz, o ideário evolutivo-positivista era veiculado especialmente em jornais da época. O jornal Província de S. Paulo (posteriormente chamado de O Estado de São Paulo), fundado pelas elites econômicas paulistanas em 1875, é um desses jornais, que se apresentou e se identificou desde o começo “como um periódico ‘moderno’, fruto de uma ‘cidade progressista, scientifica e laboriosa’”.15 A historiografia brasileira também foi profundamente marcada por essas teorias vindas da Europa no século XIX. E foi com base nessas teorias que entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX a história da Guerra de Canudos e a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores foram escritas. Muitos trabalhos foram redigidos sobre a Guerra de Canudos e sobre Antônio Conse-

lheiro e seus seguidores. Dentre os primeiros está o de Nina Rodrigues, médico legista que analisou a cabeça decepada de Antônio Conselheiro na Faculdade de Medicina de Salvador, logo após a guerra, pois para a medicina legal da época, baseada na Frenologia, a análise do crâneo do Conselheiro poderia comprovar seus traços de degenerescência. Mas, para a surpresa de todos, especialmente para Nina Rodrigues, que já o havia condenado com um louco, o laudo foi negativo. Segundo o resultado da análise, o Conselheiro era “normal.”16 Mesmo assim, Nina Rodrigues, em sua obra A loucura epidêmica de Canudos: Antônio Conselheiro e os jagunços, de 1897, “influenciado pelas teorias e interpretações raciológica, evolucionistas e deterministas (Tanzi, Spencer, Gumplowicz, Taine, Buckle, Ratzel) oriundas da Europa, considerou Antônio Conselheiro um simples louco.”17 Euclides da Cunha, também influenciado pelo positivismo e pelas teorias raciais vindas da Europa, embora tenha denunciado a Campanha de Canudos como um “crime” em seu “livro vingador”, Os Sertões, classificou Antônio Conselheiro com um “louco” que poderia ter ido para um “hospício” ao invés de entrar para a história; os mestiços como “raça inferior” e os seguidores do beato como “fanáticos”. Um trecho de Os Sertões evidencia a influência do positivismo e das tais teorias raciais em Euclides da Cunha: Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o fato de acarretar o elemento étnico mais elevado, mais elevadas condições de vida, de onde decorre a acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre

13 Idem, 2015, p. 55. 14 ibidem, pp. 15-16.

16 MOCELLIN, 1989, p. 28.

15 Ibid, p. 42.

17 NASCIMENTO, 2008, p. 102.

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GNARUS - 17 eles a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável. A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete – em círculo diminuto – esse combate surdo e formidável, que é a própria luta comovedora e eterna caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Gratz não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte ‘tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco antes o qual se acha’, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades. É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização. 18

Caricatura de Euclides da Cunha feita por Raul Pederneiras (1903).

Ademais, Euclides da Cunha, em “nota preliminar” em sua obra Os Sertões, explica que seu livro “à princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude

de causas que temos por escusado apontar”.19 O autor escreveu sobre a Guerra de Canudos, mas antes de chegar ao tema, achou importante escrever sobre a terra, cenário da referida Guerra, e o homem que habitava essa terra. Para Euclides, era de extrema importância abordar, sobretudo, o que ele chamou de “sub-raças sertanejas”. Isso porque na interpretação do determinismo racial feita por Euclides, tais “sub-raças”, em “sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental

18 CUNHA, 2002, p. 202.

19 Ibidem, p. 65.

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GNARUS - 18 em que jazem”, estariam fadadas ao “desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização”. 20 O escritor de Os Sertões queria “esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”. 21 Entretanto, como vimos logo no primeiro parágrafo deste artigo, Euclides não viu na guerra contra os canudenses um “processo civilizador”, mas sim um crime, o qual ele denuncia em seu “livro vingador”. Quanto a isso escreveu, em 1948, seu biógrafo, Sylvio Rabello: Assim é que Euclides não se deixou levar pelo impulso patriótico dos que queriam devastar Canudos pelo falso motivo de que era um permanente perigo de subversão da ordem republicana. Preferiu tomar partido dos fanáticos do Conselheiro contra o governo que os aniquilara. 22 Mas Euclides da Cunha nem sempre pensou assim. Antes de ser enviado pelo jornal O Estado de São Paulo para cobrir a Guerra de Canudos, ele havia publicado, no mesmo jornal, em 14 março e 17 de julho de 1897, uma série de dois artigos intitulados “Vendéia”, onde o autor fazia uma comparação entre a Guerra de Vendeia (1793 - 1796), que foi uma guerra civil e uma contrarrevolução que aconteceu durante a Revolução Francesa, no oeste da França, e na qual lutaram católicos e realistas (defensores da Casa Real de Bourbon) contra republicanos.23 Para Euclides, nesses dois artigos, tanto os católicos e realistas da França durante a Guerra de Vendeia, quanto

os conselheiristas católicos de Canudos eram fanáticos religiosos a serviço da monarquia e lutavam contra o “progresso” representado pela República. Em um trecho de seu primeiro artigo escreveu Euclides: “Como na Vendéia o fanatismo religioso que domina as suas almas ingênuas e simples é habilmente aproveitado pelos propagandistas do Império”.24 E ao se referir ao paralelo que estava fazendo entre Vendeia e Canudos, afirmou Euclides: “Este paralelo, porém, levado às últimas consequências. A República sairá triunfante desta última prova”. 25 Em outro trecho de seu diário, o autor, escrevendo sobre Antônio Conselheiro, registra: A matemática oferece-nos neste sentido uma apreciação perfeita: Antônio Conselheiro não é um nulo, é ainda menos, tem um valor negativo que aumenta segundo o valor absoluto da sua insânia formidável. Chamei-lhe por isto, em artigo anterior – grande homem pelo avesso.26 Euclides, ao menos antes de escrever Os Sertões, parecia estar certo de que Antônio Conselheiro e seus seguidores, que ele via como “inimigos da República”, deveriam ser aniquilados. Já em Os Sertões, e a partir dele, Euclides muda de ideia, ao menos sobre esse assunto. Ao escrever acerca das críticas que recebeu sobre sua obra, o autor chama a Guerra de Canudos de “doloroso drama da nossa história”, “lastimável campanha de Canudos” e “assassinato coletivo”.27 Contudo, o tom negativo que Euclides usou em sua obra sobre Antônio Conselheiro e seus seguidores

20 Ibid, p. 65.

24 Ibidem, p. 124.

21 Ibid, p. 65.

25 Ibid, p. 125.

22 RABELLO, 1983, p. 172.

26 CUNHA, 2006, p. 64.

23 CUNHA, 2006. pp. 121-129.

27 Ibidem, pp. 136, 137.

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GNARUS - 19 permaneceu forte. Os Sertões é um clássico que está na categoria de livro-reportagem, mas já foi considerado uma obra historiográfica e usado como fonte histórica por muitos que se lançaram a escrever sobre a Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro e seus seguidores. E, por se tratar de um clássico, podemos imaginar o quanto a imagem negativa que Euclides traçou de Antônio Conselheiro e dos conselheiristas ficou enraizada nas mentes das pessoas do começo do século XX. Era necessário desfazer esses estigmas e dar voz aos pobres sertanejos mortos pela recém-nascida República, ressignificando, assim, a tal guerra fratricida e a luta desses sertanejos pobres pela vida e por dignidade. É aí que se encaixa a importante contribuição de José Calasans para a história da Guerra de Canudos e para a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores.

Mudanças na historiografia na Europa e no Brasil na década de 1930 A partir da década de 1930, na Europa, aconteceriam mudanças na historiografia que logo chegariam Brasil. Em 1929, se estabelecia, na França, a revista Annales d’histoire économique et sociale, por meio da qual uma revolução historiográfica aconteceria. Conforme escreveu o historiador Peter Burke sobre a referida revista: As ideias diretrizes da revista, que criou e excitou entusiasmo em muitos leitores, na França e no exterior, podem ser sumariadas brevemente. Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros ob-

jetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas outras.28 Surgia, assim, a Escola dos Annales, que a partir da década de 30, influenciaria a historiografia na Europa e no mundo. E seus principais historiadores foram Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. No Brasil surge uma nova fase na historiografia inaugurada por Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, de 1933, que contribui ao olhar para a formação social do Brasil de forma diferente. Em lugar do conceito de raça, que via os mestiços como raça inferior, ele a substitui pelo conceito de cultura. Caio Prado Junior, que em sua obra Evolução Política do Brasil, de 1933, por seu turno, “inovou os estudos e os ensaios sobre o Brasil, ao introduzir como referencial teórico de analise o materialismo histórico, estudando a formação brasileira a partir das bases materiais”,29 e Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, de 1936, onde, não preso a um paradigma, mistura elementos tirados da psicologia, da antropologia, da etnologia e da sociologia, em detrimento da questão biológica de raça, a fim de explicar o Brasil colonial.

José Calasans e nova historiografia sobre a Guerra de Canudos e sobre Antônio Conselheiro e seu séquito Influenciado por essa nova fase da historiografia brasileira surge uma nova leva de historiadores que interpretaria sobre novo prisma vários acontecimentos importantes do passa28 BURKE, 1991, p. 7. 29 NASCIMENTO, 2008, p. 72.

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GNARUS - 20 até a publicação de Os Sertões; a segunda, que começa a partir da publicação de Os Sertões e vai até a década de 1950, período que Calasans chama de “hegemonia euclidiana”, devido a influência da obra de Euclides sobre a historiografia da Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro seus seguidores; e “a terceira e última, quando se iniciou uma revisão do assunto com pesquisas esclarecedoras, à luz de modernas contribuições de feições históricas e sociológicas”.31

do. Dentre eles estava o bacharel em direito e folclorista sergipano José Calasans, que em 1950, reabriu a discussão sobre Canudos e Antônio Conselheiro ao escrever O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro, tese para concorrer à Docência Livre de História do Brasil, na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Segundo o historiador Jairo de Carvalho do Nascimento, sua tese “pautada na oralidade, em ditos e cantos populares”, trazia à tona o ponto de vista do sertanejo, muitas vezes negligenciado pela história oficial, sobre a Guerra de Canudos e a figura de Antônio Conselheiro.30 Em seu artigo intitulado Canudos não Euclidiano, José Calasans escreveu que foram três as importantes fases sobre a historiografia acerca de Antônio Conselheiro e seus seguidores: a primeira, de 1874 a 1902, que compreende o surgimento de Antônio Conselheiro, nas então Províncias da Bahia e de Sergipe 30 NASCIMENTO, 2008, p. 136.

De acordo com Calasans, “durante meio século, o episódio de Canudos e a figura de Antônio Conselheiro foram estudados, exclusivamente, através de Os Sertões de Euclides da Cunha.”32 Em outro momento, Calasans já havia escrito: “depois da publicação do grande ensaio, tudo que se tem feito [até a década de 1950], salvo artigos sobre pormenores do famoso embate, é cópia servil de Euclides da Cunha ou interpretações do desventurado escritor”.33 Ainda segundo Calasans: “[...] o Conselheiro fica um pouco vítima das contradições do Euclides: o Conselheiro fica preso no que chamo de ‘a gaiola de ouro de Os Sertões.”34 Essa ‘gaiola de ouro’ da qual se refere Calasans é a própria interpretação que Euclides fez do líder canudense e que também o fez dos sertanejos que estiveram com ele no grande conflito. Por isso, desde 1950, Calasans já havia afirmado ser necessário uma revisão sobre a história da Guerra de Canudos: O estudo do importante evento [a Guerra de Canudos], que encontrou no livro imortal de Euclides da Cunha um depoimento de extraordinária significação, precisa ser revisto, dentro das novas 31 CALASANS, 1986a, p. 1. 32 GALVÃO, 2009, p. 22. 33 CALASANS, 2002, p. 14. 34 GALVÃO, 2009, p. 63.

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GNARUS - 21 técnicas de pesquisa, considerando-se a perspectiva histórica, que o autor de Os Sertões e outros escritores contemporâneos não estavam em condições de sentir.35

ter por ele... eu comecei a ver o sertanejo real, não naquelas tiradas de Euclides. Tiradas que o povo aceitou e todo mundo no Brasil sabe: ‘O sertanejo é antes de tudo um forte’ 38

Mesmo achando necessária uma revisão historiográfica sobre a Guerra de Canudos e sobre Antônio Conselheiro e seus seguidores, parece que Calasans não se afastou muito da visão euclidiana quando escreveu seus primeiros trabalhos sobre a supracitada guerra. Conforme escreveu Nascimento, durante a década de 1950, Calasans redigiu vários trabalhos “mantendo e atribuindo o conceito de fanatismo para a população da comunidade de Canudos e a tese sebastianista”.36 Seu rompimento definitivo com a visão euclidiana deu-se na década de 1980, quando escreveu Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro (1986), onde defendeu que “os vencidos também merecem um lugar na História. Não devem ficar no anonimato”37 , e Canudos não euclidiano (1986), onde fez um apanhado dos principais documentos anteriores a Guerra de Canudos, tais como, a primeira matéria sobre Antônio Conselheiro, no jornal O Rabudo, em 1874, as correspondências entre os padres e o arcebispo da capital discorrendo sobre Antônio Conselheiro, entre outros documentos de suma importância para se entender Canudos e Conselheiro em sua complexidade. Quanto ao seu rompimento com a visão euclidiana, Calasans disse em entrevista concedida ao historiador Marco Antônio Villa que:

Ao escrever Canudos na literatura de cordel (1984), José Calasans trouxe para o centro do debate sobre Canudos e da figura de Antônio Conselheiro as impressões dos próprios conselheiristas, de militares que participaram da guerra e até de quem estava bem longe do local do referido conflito, todas registradas em versos através da literatura de cordel. Com isso, Calasans colocou lado a lado os conflitantes pontos de vista sobre o embate sertanejo e seus participantes.

[...] eu me libertei de Euclides. E eu sinto mesmo que fui me libertando sem perder a admiração que todo brasileiro deve

Calasans dedicou cinquenta anos da sua vida ao estudo de Canudos e de Conselheiro e seus seguidores. Conciliou a história e o folclore em sua empreitada. E se empenhou de fato para “ser o tradutor do universo sertanejo”, conforme disse ao historiador José Carlos Sebe Bom Meihy.39 Jaime Adrián Prieto Valladares, em seu artigo sobre a importância da contribuição de Calasans para a cultura popular e para as tradições orais da Canudos, escreve: A paixão do jovem José Calasans pela biografia de Antônio Conselheiro e a história de Canudos levou-lhe a cruzar a informação proveniente das testemunhas escritas, da história oral, da literatura de cordel, e dos manuscritos de Antônio Conselheiro encontrados posteriormente. Dessa maneira percebeu outras dimensões de Antônio Conselheiro e outros membros da comunidade de Canudos ausentes no “livro vingador” de Euclides da Cunha. 40

35 CALASANS, op. cit., p. 101.

38 VILLA, 1998 apud NASCIMENTO, 2008, pp. 15, 16.

36 NASCIMENTO, 2008, p. 142.

39 BOM MEIHY, 1993, p. 23.

37 CALASANS, 1986b, p. 7.

40 VALLADARES, 2013.

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GNARUS - 22 Embora Calasans tenha sido o precursor nessa nova fase historiográfica de Canudos, muitos outros historiadores surgiram logo após, vários deles influenciados pelas pesquisas de Calasans. Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos: gênese e luta, de 1963, deu sua contribuição ao interpretar Canudos através do materialismo histórico. Para Facó, Canudos não deveria ser entendido apenas como um movimento de caráter religioso, mas sobretudo uma luta de classes. Luta contra a opressão dos latifundiários, contra a fome e contra a miséria.41 Já José Carlos de Ataliba Nogueira em Antônio Conselheiro e Canudos, de 1976, faz uma revisão histórica sobre Antônio Conselheiro e Canudos ao trazer à luz um importante documento escrito pelo líder canudense onde ele versa sobre a República, os mandamentos de Deus entre outros assuntos. Na introdução de sua obra, Nogueira denuncia: Se é apenas a história que há de recordar António Vicente Mendes Maciel, importa imergir naquelas águas [do açude de Cocorobó, construído em 1968, e que inundou Canudos] todas as falsidades e distorções espalhadas, sem o menor espírito crítico, durante um século. A sua figura e a de todos os canudenses aparecerão em plena autenticidade, como realmente foram, purificadas naquelas águas lustrais, de todas as deformações propaladas pelos partidos políticos, pela meia-ciência, pelos propósitos inconfessáveis, pela forma literária imaginosa e sacrificadora da verdade. Reconhecemos que houve muita inconsciência em tudo isto. Mas as águas hão de tragar todas as desfigurações e fazer emergir a verdade para o juízo sereno dos pósteros.42

Conclusão Concluímos, portanto, que as obras do professor e folclorista José Calasans revisaram a história de Canudos e de Conselheiro e dos conselheiristas à luz dos métodos da nova historiografia de sua época. Suas pesquisas incentivaram muitos outros historiadores a se empenharem em reconstruir a história de Canudos e de seus habitantes. E ao fazer isso, deu voz a multidão de sertanejos pobres que, como Antônio Conselheiro, lutaram por uma vida melhor e mais digna em Canudos, e foram sumariamente mortos pela recém-nascida República, que desde cedo mostrava sua força e violência contra os insurgentes. Calasans resgatou a imagem positiva do beato Antônio Conselheiro e dos sertanejos que o seguiam, mostrou que cada um tinha uma história de vida, uma profissão, um rosto, um nome e um sobrenome. Após as pesquisas de Calasans, a história do conflito fratricida de Canudos e a imagem de Antônio Conselheiro e seu séquito nunca mais foi abordada com base no ponto de vista de Euclides da cunha, pois o professor Calasans estabeleceu o que ele mesmo chamou de “Canudos não euclidiano”. Contudo, para não incorrermos em anacronismo ao fazer juízo de valor sobre a interpretação de Euclides da Cunha quanto a Guerra de Canudos, o Conselheiro e os conselheiristas, é importante entendermos que Euclides da Cunha era um estudioso de seu tempo, que fez sua análise sob as lentes das teorias em voga à época. Como escreveu o historiador Lucien Febvre, um dos fundadores da Escola dos Annales, “A história é filha do seu tempo”, ou seja, é sob a perspectiva e as teorias do momento atual que a história é contada. E foi exatamente isso que fez Euclides e posteriormente Calasans.

41 Cf. FACÓ, 1972. 42 NOGUEIRA, 1978, p. 1.

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GNARUS - 23 Igor Farias Emerich é Pós-graduando em História

do Brasil pela Universidade Candido Mendes, Pós-graduado em Ciências da Religião pela Universidade Candido Mendes, Pós-graduado em História das Religiões pela Universidade Candido Mendes e Licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen.

MOCELLIN, Renato. Canudos: fanatismo ou luta pela terra? Coleção lutas do nosso povo. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1989. NASCIMENTO, Jairo de Carvalho do. José Calasans. Canudos: a história reconstruída. Salvador: EDUFBA, 2008. NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. 2ª ed. São Paulo: Nacional, 1978.

Referenciais bibliográficos BOM MEIHY, José Carlos Sebe, “Meu empenho foi ser tradutor do universo sertanejo (Entrevista com José Calasans)”, in: Mary L. Daniel e Robert M. Levine (Editors), LusoBrazilian Review, V. XXX, No. 2, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1993. BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: UNESP, 1991. CALASANS, José. Canudos não euclidiano. In: NETO, José Augusto Sampaio et al. Canudos - Subsídios para sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa, Monteiro Aranha S.A, 1986a. _______________. Canudos de cordel. São Paulo:

RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870 – 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. SOLA, José Antônio. Canudos: uma utopia no sertão - Coleção repensando a história. São Paulo: Contexto, 1989. VALLADARES, Jaime Adrián Prieto. Contribuição de José Calasans (1915-2001) A cultura popular e as tradições orais de Canudos. Revista Magistro. Vol. 8. Nº 2. 2013. p. 118-137 Disponível em: http://publicacoes. unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/ viewFile/2193/1006. Acesso em: 12 abr. 2020.

na literatura Ática, 1984.

_______________. O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro: uma contribuição ao estudo da Campanha de Canudos. Edição facsimilada. Salvador: EDUFBA: UFBA/CEB, 2002. _______________. Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro. Salvador: UFBA/CEB, 1986b. CALMON, Pedro. História Social do Brasil, volume 3 - a época republicana. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CUNHA, Euclides da. Canudos: Diário de uma e Expedição. São Paulo: Martin Claret, 2006. __________________. Os Sertões. Edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê, 2002.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. GALVÃO, Walnice Nogueira (Org.). Euclidianos e Conselheiristas: um quarteto de notáveis. São Paulo: Terceiro Nome, 2009. ________________________. No Calor da Hora: a Guerra de Canudos nos jornais – 4ª Expedição. São Paulo: Ática, 1994.

A única foto conhecida de Antônio Conselheiro, místico rebelde e líder espiritual do arraial de Canudos (1893-1897), Bahia, Brasil. Foto tirada duas semanas após sua morte, pelo fotógrafo Flávio de Barros, a serviço do Exército.

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GNARUS - 24

Artigo

DA TROPICÁLIA PARA AS ANTROPOFOGIAS: Jomard Muniz de Britto e a “Ideologia da Cultura Brasileira” Por Francisco Adriano Leal Macêdo

RESUMO: Buscamos aqui fazer uma cartografia de fragmentos existenciais e estético-perfomáticos do ativista cultural pernambucano Jomard Muniz de Brito. Tomando a produção literária de Jomard como fontes para esse texto, perspectivamos perceber as possíveis relações, invenções discursivas e devires que envolvem esse multifacetado sujeito. Algumas inquietações que movem esse trabalho: Como e em que medida teria se constituído um personagem que inventava bifurcações, pensando alternativas diversas aos certos regimes de verdade no âmbito cultural? Quais aspectos poderiam ser pensados enquanto um rizomomorfo – fruto de multiplicidades e máquinas desejantes? Para pensar essas questões, utilizamos autores de diferentes campos do saber, tais como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jorge Larrosa, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Homi K. Bhabha. Palavras Chaves: História, Jomard Muniz de Britto. Cultura Brasileira.

[...] o cinismo é a ironia com poder, ou a ironia no poder, e como a ironia é província do intelectual, um intelectual no poder tem o mesmo privilégio do tirano mais bem articulado de Shakespeare, que podia ser Ricardo III e ao mesmo tempo se observar sendo Ricardo III e dizendo que o que é não é e o que não existe, existe. E se maravilhando com ele mesmo. (Luís Fernando Veríssimo, Banquete com os deuses, p. 125-126).

Introdução: um dissidente na invenção do Brasil

O

Brasil enquanto nação foi – e ainda o é – inventado discursivamente.1 Um país que não foi descoberto, mas estava para ser inventado; Não estava

1 Recentemente algumas obras em torno dessa invenção discursiva de espaços foram produzidas no Brasil. Uma das mais famosas é a Invenção do Nordeste que trata sobre invenção discursiva-imagética de um nordeste a partir da literatura, música, relações políticas entre outras dimensões. A invenção de uma Brasil “pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os brasileiros, que suprimisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. [...]” Ver: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez. 2011. p. 61.

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GNARUS - 25

para ser explorado, mas para ser criado.2 A busca

militância por uma causa pretensamente nobre

intensa de uma definição de uma identidade para

– uma real identidade brasileira. A Semana de

o Brasil não é recente e remonta meados do

Arte Moderna de 1922 propõe a antropofagia,

século XIX. Evidência disso seria a fundação do

a deglutição, o híbrido, o que nos anos sessenta

IHGB,3 em 1838, que tinha por missão principal

seria retomado – de uma forma cosmopolita e

reunir documentos que possibilitasse elaborar

aberta ao estranho – por uma série de sujeitos

uma metanarrativa sobre o Brasil, de dizer o que

que atribuíam a si mesmos a terminologia de

é o Brasil. No século XX isso desencadeia numa

“vanguardistas”: a dispersão que foi enquadrada

variedade de “fórmulas” de brasilidade que certos

enquanto movimento – a tropicália. Assim,

intelectuais gestaram – hasteando a bandeira de

sucessivos novos significados foram sendo

2 LARROSA, 2015. p, 9.

lançados sobre o que um dia costumou ser

3 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi uma instituição imperial fundada com o escopo principal de reunir fontes históricas e dar um sentido histórico ao Brasil. Ver: WEHLING, A. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHB, Rio de janeiro, n.338, p.7-16, 1983.

pindorama. Dessa forma, os visionários de um Brasil

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GNARUS - 26 profundo munidos da narrativa – famosa genitora

cinco séculos de história. Esses aspectos movem

de ícones –, dão corpo ao regime de signos

essa análise, que pretende cartografar frações

que visam constituir as pretensas identidades

da subjetividade de JMB a partir dos escritos

brasileiras.

contidos em seus livros Atentados Poéticos8 e Do

4

A busca por uma identidade nacional

Modernismo à Bossa Nova.

tornava-se muito mais do que uma questão estética ou uma iniciativa fragmentária de certas instituições intelectuais. A brasilidade se transformava numa forma de unificar os

Ataque ao olimpo: atentados heréticos à cultura Ao

tomar

esse

sujeito

cujos

devires

valores e as ideias de um país continental, onde

autopoiéticos nos propomos radiografar, logo

os regionalismos conformavam fragmentos

assumimos riscos de conceituar estilhaços de um

de identidade, expressos, sistematicamente,

corpo deslizirante, um trabalho que deseja e pode

através de produções artísticas e científicas. 5

mover potências ainda inertes já que conceitos

Em meio às efervescências artístico-culturais

“se encarnam e se efetuam nos corpos”. 9

da década de sessenta, o ativista cultural

Uma vez que poderíamos entender o ato

pernambucano Jomard Muniz de Britto faz-se

de experimentar com a linguagem, envolto

notar a partir de suas produções intelectuais. Em

no princípio da singularidade plena, não

1966, o já respeitado cineasta brasileiro Glauber

pode recair na armadilha de submeter-se

Rocha, descrevia suas impressões sobre tal sujeito,

a uma estrutura lógica, com um começo,

qualificando-o enquanto um “homem despido de

uma origem e um fim, é preciso, igualmente,

princípios sagrados”, afirmando que Jomard não

perceber que em todo ato de invenção se

apresentava a necessidade de “afirmar cultura

promove uma perda de órgãos, ou seja, algo

ou fazer pregações de falso apóstolo” já que sua

se rompe, algo se degenera e, igualmente,

intenção seria a de “dar ao leitor conhecimento

algo se reconstitui sob um formato outro.

de causa, isto é, de poesia e samba”.6 Seus atos

Nesse sentido, os escritos de Jomard,

performáticos, vivências e produção intelectual

dos anos 1980 até o início dos anos 2000,

eram frequentemente críticas aos discursos que

promoveriam uma arrebentação em sua

circulavam, a exemplo do seu combativo super-8

própria natureza enquanto escritor-artista-

palhaço degolado.7 Era evidente que era uma voz

ensaísta-professor-pop-filósofo.10

dissonante em relação às maneiras de dizer o Brasil que estavam sendo construídas pela forja incansável dos que se propuseram pensar nossos

O fragmento sobre invenção permite pensar

4 BRITO, 2016. 301 p.

Jomard enquanto um rizoma11 no interior dos seus

5 Idem. p, 44.

8 Publicado na década de 2000, é um livro repleto de linguagens diversas onde, nas palavras do seu autor, busca “manter aceso o senso de humor e o desejo desejante de outras linguagens”. Ver: BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados poéticos. Recife, Bagaço, 2002.

6 BRITTO, 2009. p, 8-9. 7 Em O Palhaço Degolado, filme em super-8 de 1977, Jomard

veste-se de palhaço para travar uma guerrilha semântica na qual tem como alvo algumas figuras do cenário cultural nordestino, aos quais reservou a nomeação de aprisionadores da cultura brasileira. Ver: O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977. 9min22s, son. color.

9 DELEUZE; GUATTARI, 2010. p, 29. 10 BRITO, 2016. 301 p. 11 Rizoma, para Deleuze e Guattari, é a produção de multiplicidades e novos começos a partir de encontros imprevisíveis,

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GNARUS - 27 encontros e bricolagens com as multiplicidades e potências de desterritorialização, “de constituir uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente, indefinidamente, mesmo se essas engrenagens parecem se opor, ou funcionar de maneira discordante”,12 se fazendo máquina de desejo, se (des)montando no interior da usina de montagem de brasis.

então “mais um agitado do que um agitador”. 14 Tributário de Nietzsche e o seu malho quanto de Deleuze e sua pop filosofia, Jomard formulou uma série de “práxis” que, frequentemente, orientaram

suas

produções

intelectuais.

Nietzsche, em Vontade de potência declara uma guerra aos que pretendem “dizer sua opinião a respeito dos grandes assuntos, sua pretensão em

Analisando o conteúdo de suas obras Do

querer assumir o caráter de juízes nas questões

Modernismo à Bossa Nova e Atentados Poéticos,

que ultrapassam todos os limites”,15 o que move

podemos

entrever um Jomard fugindo de

JMB a estabelecer uma belicosa irreverência a uma

um modus operandi perene, seguindo lógicas

série de discursos que lançavam grandes valores

descontínuas. Do Palhaço Degolado aos Atentados

culturais e ao panteão que se afirmava como seu

Poéticos, nota-se rupturas contundentes, em

baluarte. Através da apropriação da pop filosofia

especial o caráter explicitamente combativo

de Deleuze, ele se mune de outras possibilidades,

daquele para o estilo ácido, porém sutil destes.

conseguindo então afiar o malho Nietzscheano

Potencialmente, seu devir permite pensá-lo,

para levá-lo à categoria molecular/micropolítica –

especialmente em determinados textos dos

dando forma aos rizomáticos atentados poéticos.

atentados poéticos, enquanto um rizomorfo,13 nunca fechado em si mesmo, escapando do decalque. Constituindo-se enquanto um esquizo, ora lutando contra os moinhos da “cultura brasileira” – imaginados, porém com efeitos de real, tais como os de Dom quixote – para depois ressurgir em um lugar diferente, longe da categoria molar que um dia buscou atingir com sua antiga espada-malho interceptada no momento da decapitação do seu palhaço. Como diria já na segunda metade da década de 2000 em sua autoapresentação de Do Modernismo à Bossa Nova, ressoando o final distópico de O Palhaço Degolado, quase 30 anos antes: “agitador cultural sem mídia a disposição não existe” se dizendo uma negação da teleologia do pensamento moderno. O rizoma é um sistema de conexões labirínticas cujos resultados não são territórios, se constituindo nômade. Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.1. São Paulo: Editora 34, 2011 12 DELEUZE; GUATTARI, 2014. p, 148.

Os atentados poéticos de Jomard são textos que não ambicionam uma estética tradicional, e assumem de forma contundente a escrita de um sujeito que se deseja rizoma, e no limite, busca por um outro que é o tempo todo estranho a si mesmo, passando a promover atentados explosivos às pretensas linhas evolutivas e culturas sacralizadas. (...) tudo pode ser desmontável, deslizante De significados e significações. Signos em rotação e ou roteiro de transgressões? Rizomas, recuperações. 16 Esse fragmento de poesia nos mostra, por mais parcialmente que seja, uma “sede de sangue” em relação aos monstros canônicos artísticos-literários. Manifestam uma vontade – não cabe aqui julgá-la real ou fictícia –, de uma

13 Produzir artes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectem com elas penetrando no tronco, podendo fazer servi-las a novos e estranhos usos. Ver DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.2. São Paulo: Editora 34, 2011. p, 34.

14 BRITTO, 2009. p, 16. 15 NIETZSCHE, s.d. 16 BRITTO, 2002. p, 67. Grifo nosso.

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GNARUS - 28 produção autônoma de novos começos a partir

atentados poéticos manifestam uma vontade

do rizoma. Em outro momento, ouvimos a voz

de potência, de criação e doação.19 Se encontra

de Jomard ecoar na citação de Karel Kosik,

num estilo de texto repleto de furor iconoclasta,

numa epígrafe: “cada indivíduo-pessoalmente e

enunciado sua aversão aos cânones, contra a

sem que ninguém possa substituí-lo – tem de se

vontade de poder.

formar uma cultura e viver a sua própria vida”.

17

Isso é quase um manifesto segundo o qual o pensamento autônomo, levando em conta o desejo, só é possível a partir de um atentado ao pensamento-árvore, representado pelo Panteão da cultura expressos em figuras de destaque no Pernambuco vivenciado por JMB, Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. Isso reaparece no poema cujo título é “Platão”:

de Ariano Suassuna assumiram lugares sagrados, e um Jomard parece ter sobrevivido e estar continuamente

retornando.

Estes

seriam

justamente os que desejava sangrar em um altar profano, antes de se perder a alegria, anterior à castração. Negá-los num manifesto de bricolagens no qual seus mestres, cada um meio profeta e meio deus, não teriam lugar. O manifesto de Oswald

A diversidade que há

de Andrade voltava, devidamente adaptado: “A

entre homens e ações,

peste dos chamados povos cultos e cristianizados.

além da permanente

É contra ela que estamos agindo”. Substituamos

instabilidade

“cristianizados” por algo como “Freyrianizados”,

das coisas humanas,

como dá a perceber no seu ensaio escrito em 2001

não admite em nenhuma arte

Crueldade e confraternizações: breve ensaio de

e em assunto algum

psicanálise selvagem.

um ABSOLUTO que valha para todos os casos e para todos os tempos. 18

A sociologia de Gilberto Freyre e a literatura

As articulações entre filosofia e poesia

representam uma sonora negação às leis gerais que pretendiam orientar o mundo. Recusa, implicitamente, a possibilidade de uma brasilidade unívoca para “todos os casos”. As multiplicidades que existem entre os homens e suas ações impossibilitaria qualquer valor “ABSOLUTO”, inclusive na cultura. A noção de rizoma de Deleuze e Guattari da qual JMB se apropria é eminentemente baseada em conexões imprevisíveis e de bifurcações labirínticas, resultando em novos começos, novos agenciamentos de processos de expressões. Essa produção literária que encontramos nos seus

Deixemos Jomard falar um pouco sobre seu desejo de implosão da cultura no altar, sua ânsia por vê-la livre dos grilhões daquela casa de detenção, o que reflete sua aproximação com o que se convencionou chamar de tropicalismo. Essas palavras que escreve nos deixa entrever sua vontade de potência extração do múltiplo a partir do uno, já que mesmo não havendo “nada de novo sob o sol”, a relação ontológica e autopoiética se tornaria possível. Esta seria a lógica make yourself Jomardiana: [...] talvez as raízes da modernidade se encontrem mais longe do que pensamos, entre fantasmas carcomidos e abandonados de outros séculos. Hoje tornou escassa a diferença entre criar e citar, construir e bricolar.20

17 KOSIK. Apud BRITTO, 2002. p, 187.

19 DELEUZE, 1994. p, 24.

18 BRITTO, 2002. p, 78.

20 BRITTO, 2002. p, 51.

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GNARUS - 29 No ato de “bricolar”, Jomard enxergou

certamente escaparia a Apolo, pois Jomard não

potências que considerava fundamentais no

era Édipo. Impossível dizer se ele queria ser rei ou

contexto cultural. A lógica do rizoma, da extração

não. Improvável seria açambarcá-lo na categoria

do múltiplo a partir do uno, multiplicidades

edipiana inventada por Freud, que se ancorava

extraídas de polos pretensamente unos. Jomard

numa sociedade falocrática. As convulsões

enquanto leitor de Gilles Deleuze – o que podemos

contemporâneas em que Jomard esteve em

perceber através de suas várias alusões à sua pop

contato, manteve sua subjetividade na sua

filosofia –, foi por este influenciado no sentido

dimensão processual criativa, de devir, ressoando

de adotar uma filosofia da cultura que reflete

os seus múltiplos desejos,23 tomando itinerários

de forma intensa a máxima deleuzeana que se

imprevisíveis. A subjetividade Jomardiana esteve

encontra no prólogo da tese principal do filósofo

em choque com outras – como através das leituras

francês diferença e repetição: “Só escrevemos na

–, atingindo uma “enorme complexificação,

extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta

produção de híbridos, harmonias, polifonias,

extrema que separa nosso saber e nossa ignorância

ritmos existências inéditos e inusitados”, e como

e que transforma um no outro. É só deste modo

é possível imaginar do pop filósofo que buscava

que somos determinados a escrever”.

encarnar, sempre buscando a desterritorialização

21

Isso

o aproxima dos chamados tropicalistas, onde busca se inserir. É no tropicalismo que Jomard vê a bricolagem ser concretizada e aceita. Em depoimento ao Dzine, entrevista que se encontra na terceira parte dos seus atentados poéticos, JMB diz: “creio que os Manifestos tropicalistas possam ter irritado um pouco a nobreza do nosso eterno professor de estética [Ariano Suassuna], do qual, até então, desconhecíamos sua ética sertaneja mais radical”.22 A ironia presente nessas palavras mostram o seu apoio a atitudes que buscasse fazer a deglutição de conceitos culturais diferentes entre si e produzir um terceiro que não pertencesse a ninguém – a irritação ao professor de estética vinha como um bônus em forma de ídolo que perdeu a compostura ao se ver ameaçado.

e as multiplicidades. Ao indagar quais máquinas desejantes moviam os afetos e as produções de JMB, um murmúrio fragmentar – vindo de um sujeito que se dá aos pedaços –, vem em forma de poema: Sei de sobra. Que nunca terei uma obra. [...] amor a amor, ou livro a livro, amemos nossa caveira breve. [...] coroais-me de rosas e de folhas breves. que sempre serei outro. 24 Nota-se o desejo premente da existência de multiplicidades, e vetores de subjetivação que vão se metamorfoseando no tempo e no espaço, continuamente, como se ele inventasse máscaras para si mesmo, ressurgindo um outro dos seu

Caso consultasse o oráculo de Delfos, este

eus anteriores e, às vezes reconstituindo seus

provavelmente não saberia responder. Afinal, que

fragmentos. Para ilustrar isso, Homi K. Bhabha

crédito deu Jomard aos seus mestres e oráculos

remete às identidades no mundo pós-moderno

de um Brasil vindouro encarnados nas figuras

que dizem respeito a uma gama de novidades

de Freyre e Suassuna? O destino de Jomard

que liquidam com as noções de nacionalidade por

21 DELEUZE, 1988.

23 GUATTARI, 2012.

22 BRITTO, 2002. p, 333.

24 BRITTO, 2002. p, 29-30.

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GNARUS - 30 meio da diáspora e nos lançam num mundo de

uma pretensa impessoalidade – talvez em vão

possibilidades transnacionais de identificações,

–, das pesquisas envolvendo JMB. Quase como

buscando o encontro, novas fronteiras de coalisão

se lidasse com um estranho pelo qual qualquer

com o Outro, novos locais para a cultura.

contato mais próximo poderia fazê-lo cair nas suas

Estar no além é habitar um espaço intermediário, como qualquer dicionário lhe dirá. Mas viver ‘no além’ é ainda ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade nossa

cultural;

reinscrever

contemporaneidade

cultural;

reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de lá [...]. 25

condição

realidade com as lentes Jomardianas, como ele se enxergava e queria que o enxergassem. O fruto desses esforços são histórias que soam como se o seus cartógrafos pouco ou nada soubessem do personagem, semelhante ao narrador não onisciente dos romances Kafkianos. As narrativas e dizibilidades sobre JMB parecem fadadas a uma ambiguidade nas suas leituras, pontas soltas que sempre possibilitam novas pesquisas, já que não tem sido possível nem desejável canonizar uma

As identidades do sujeito na emergência da

teias de sedução e passasse a enxergar a pretensa

pós-moderna

se

encontra

verdade una sobre algum aspecto desse poliedro de faces infinitas.

desfragmentada e ontologicamente dividida num

processo

de

desreferencialização

e

descentramento. “Linhas, fusos e meridianos o que nos daria a condição de corpos cartográficos”26 entende-se assim, que a identidade do sujeito não podendo ser fichada, catalogada, pois é múltipla e está em processo constante de vim a ser outro, o método cartográfico, portanto, permite perceber, ainda que de maneira diáfana, essas múltiplas linhas, fusos e meridianos.

O eterno retorno do outrem: à procura de raízes? É possível que ele tenha, em um momento específico, pretendido dar um rosto ao Brasil, subir ao Olimpo com a chama da cultura e brasilidade, formar seu próprio panteão, ao seu modo? Ou teria ele se pretendido um Prometeu28 e roubar o fogo dos deuses – leia-se os pensamento em torno de uma brasilidade idêntica a si mesma e

Desse modo, escrever sobre JMB talvez

os regionalismos –, e dar aos “homens comuns”,

seja esse desafio de tentar capturar dimensões

para estes produzir seus híbridos e polifonias?

escorregadias de um sujeito que não deseja ser

Um inconclusivo “talvez” pode ser respondido

taxonomizado e não economiza esforços para isso,

para ambas as indagações, embora possa se

“tal como a esfinge da mitologia grega, jamais dá-

pensar com alguma justiça que ele talvez tenha

se a ler por completo, e, em geral, parece também

buscado uma apoteose, seja para deus ou titã.

nunca encontrar-se completo. Mas, assim como

Vestígios de sua vontade de ser baluarte, no

ela, seduz os que por ele passa e os desafia a

mínimo, duma reinvenção de culturas brasileiras

decifrá-lo, sob o risco de ser por ele devorado”.

27

podem ser encontradas no posfácio em seu livro

A citação anterior exemplifica o cuidado, talvez

do modernismo à bossa nova, escrito já na década

25 BHABHA, 2014. p, 28.

28 Referência à mitologia grega. Prometeu foi um titã que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e recebeu como castigo a condenação de ser acorrentado a uma rocha onde abutres comeriam seu fígado eternamente.

26 DELEUZE; GUATTARI, 1996. 27 BRITO, 2016. p, 21.

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GNARUS - 31 de 2000. Nesse mesmo livro, João Carlos Teixeira

dispersão constitutiva, estabelecendo origens –,

gomes, em 2004, provavelmente refletindo os

ao mesmo tempo que, em seus escritos, busca

discursos de Jomard sobre si mesmo, diz: “Gil e

filiar-se a ele. Sugere-se então uma evidência de

Caetano até hoje não se lembraram de registrar as

sua faceta arborescente: Para Deleuze Guattari,

dívidas do tropicalismo para com o trabalho difusor

“árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,

e pertinaz de Jomard, aliás, já documentado”.

unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”,

O nome do texto é “Jomard, o carbonário”,

mas o rizoma tem tecido a conjunção “e... e...

atribuindo a ele o papel de “revolucionário” que

e...” ao mesmo tempo que “quando um rizoma

lutava contra os absolutismos da cultura e seus

é fechado, torna se árvore, não se dobra mais”.32

ícones consagrados.

“Ser” tropicalista o tira do devir minoritário,

O posfácio que Jomard escreve, além de admitir a noção de aperfeiçoamento do eterno retorno de Nietzsche que é apropriado por Deleuze em Diferença e repetição,29 faz uma análise em retrospectiva Da Tropicália para antropofagia. A

aproximando-se de um novo panteão da cultura e associa-se à verdade tropical. O eterno retorno do outrem parece se configurar como uma busca de cristalizar-se, de alguma forma, como marginalherói.

noção de bricolagem se faz presente no texto,

Essas considerações, porém, não tem forças

produzindo sentido como sendo ele mesmo um dos

de sentenças. O itinerários desterritorializantes

protagonistas de uma antropofagia aperfeiçoada

de JMB podem ser potencialmente imprevisíveis.

que retornou, onde não se buscava mais apenas

De qualquer forma, “no coração de uma árvore,

recuperar uma “alegria [que] é a prova dos

no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um

nove”, mas o canibalismo agora iria mais longe,

novo rizoma pode se formar”, diz Deleuze. Como

nos Beatles à banda de pífanos de caruaru. “Não

personagem vivo, a obra aberta continua em

querem que imaginem que pretendi fazer desse

Recife no continuum passado-presente-futuro,

livro uma expressão de cultura nacional brasileira.

sendo continuamente interpelado enquanto

Deus me livre. É agora, depois de feito, que me

sujeito.

parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa”, pronunciou o notável antropófago Mário de Andrade no prefácio escrito em 1928 para seu Macunaíma.30 De maneira semelhante a Mário,

“O cinismo é a ironia com poder”: Considerações finais

JMB busca conformar a pretensa obra tropicalista

Compreendemos o sujeito Jomard enquanto

e suas neoantropofagias como uma expressão

segmentarizado, nos damos liberdade para o

mais alinhada ao desejo do povo.

relacionar, através de Deleuze, que cada segmento

“Destroçando

heroísmos,

cordialidades,

metarraças, unanimidades. Reatando polêmicas. Leituras em abismo”,31 diz Jomard de maneira apologética ao “movimento tropicalista” – negando, ou pelo menos não evidenciando a sua 29 DELEUZE, 1988.

se relaciona com um centro, ou um foco de poder. Para Jomard Muniz de Brito, esses centros de eram metonimizados na Casa da Cultura de recife, Gilberto Freyre, e ainda na pessoa de seu professor Ariano Suassuna. É importante essa caracterização dialógica entre esses sujeitos já

30 ANDRADE, 2007. p, 226.

que: “pode-se objetar que os próprios segmentos

31 BRITTO, 2009. p, 148.

32 DELEUZE, G. GUATTARI, 2011.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 32 supõem um centro de poder como aquilo que os

é, por uma Cultura especialmente esculpida.

distingue e os reúne, os opõe e os faz ressoar”, 33

Vários instrumentos poderiam ser apropriados

ou seja, em toda produção Jomardiana existia uma

para cimentar uma certa visão de mundo. Essas

relação dialógica com esses centros de poder.

intepretações, se comparadas a “evangelhos”

Como definiu Carlos Guilherme Mota,34 a ideologia da cultura brasileira se faz presente em diversos tipos de produção intelectual. Quando os esforços bélicos falharam em consolidar projetos, meios menos violentos e mais sutis poderiam ser considerados para “transformar o país”, ou afinar a melodia político-cultural sob determinado diapasão. Anotamos a existência do paradoxo do Brasil ser tanto uma ideia quanto um lugar, e que grupos de intelectuais de épocas distintas entraram, por seu turno, numa corrida para redefinir e reinterpretar o significado da “ideia” e remanejar a materialidade do “lugar”. Temos

da cultura brasileira, pretendiam se tornar canônicos. Nessas tentativas de recortar o palco cultural segundo vontades individuais, fica em evidência os formigamentos dos começos de uma inteligência que criava e ao mesmo tempo “descriava”.35 Em outras palavras, esses intelectuais penetraram nas brechas da política, e conforme nos lança a epígrafe que abre esse texto, se atribuíram o privilégio dizer “que o que é não é e o que não existe, existe”, utilizando a ironia como poder. Assim, geravam-se ruídos e conflitos entre contemporâneos em um campo de batalha insólito.

então a busca de um “verdadeiro Brasil”, flertando em cada momento com os diversos brasis, uma “estratégia argumentativa e discursiva” que

Francisco Adriano Leal Macêdo é graduado em História e mestrando em História do Brasil pela

significava uma projeção para o futuro. Em outras

Universidade Federal do Piauí - UFPI.

palavras, as cargas de sedução envolvidas para fazer parecer transcendente e definitivo um determinado Brasil perpassavam por estratégias

Referências:

que tinham variados níveis: primeiro, estava

AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência.

implícito a existência de “verdadeiros brasileiros”;

Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

depois, tal narrativa tinha de se fazer o mais verossimilhante possível.

Dentro

contingente,

de os

uma

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:

lógica

assujeitados

a

histórica “estar-nos-

mundos” do século XX se engajaram a explicar o Brasil, projetar um tempo. Essa projeção, que era

Cortez. 2011. ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007. p, 226.

mestiça de interpretação e crítica, era também

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo

ideológica na medida que partiam de lugares e

Horizonte: UFMG, 2014.

interesses diferentes e desejavam ser vencedores

35 Concluímos o presente artigo com essa ideia como sugestão de reflexão para o leitor, na intenção de conexão autônoma desse artigo com outras produções. Nesse texto do pensador italiano Giorgio Agamben, os argumentos em torno da ideia de criação apresentam contrapartidas, ou seja, em cada ato de criação por meio do pensamento uma outra perspectiva sofre um atrito. Ver: AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.3543.

em suas respectivas ideias. O país como enigma a ser desvendado era, por igual, visto como uma tábula-rasa a ser preenchida de significados, isto 33 DELEUZE, 1996. p. 115. 34 MOTA, 1980.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 33 BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários

potência. (Fragmentos póstumos). Rio de Janeiro:

de um Brasil profundo: invenções da cultura

Tecnoprint, s.d.

brasileira em Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos. 2016. 301 p. Tese (Doutorado em História Social) - Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará. p, 237. BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados poéticos. Recife, Bagaço, 2002. p, 78. _____________. Do modernismo à bossa nova. São Paulo: Ateliê editorial, 2009.

O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977. 9min22s, son. color. VERÍSSIMO, Luís Fernando. Banquete com os deuses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. WEHLING, A. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHB, Rio de janeiro, n.338, p.7-16, 1983.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1994. ____________. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1988. ____________; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. São Paulo: Editora 34, 2010. ____________.

Mil

Platôs:

capitalismo

e

esquizofrenia v.1. São Paulo: Editora 34, 2011. ____________.

Mil

Platôs:

capitalismo

e

esquizofrenia v.3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. ____________. Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte: Editora 34, 2014. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2012. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. MOTA, Carlos Guilherme. A ideologia da cultura brasileira. (1930-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. 4 ed. São Paulo: Ática, 1980. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A vontade de

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 34

Artigo

DE NORTE A SUL: FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO E INTERVENÇÃO NA POLÍTICA NACIONAL Por Max David Rangel Cassin RESUMO: Pretende-se com esse artigo, analisar o discurso fundamentalista entre os pentecostais brasileiros, observando a origem desse discurso no fundamentalismo religioso norte-americano do início do século XX e seus reflexos nas agendas políticas no Brasil, que culminou na eleição de Jair Messias Bolsonaro a presidente da República com apoio maciço dos pentecostais. É um pesquisa bibliográfica, onde usamos literaturas, como “Os demônios descem do Norte”, de Delcio Monteiro de Lima que fala sobre a influência dos EUA na política no Brasil; artigos que focam sobre o fundamentalismo norte americano; notícias que mostram como isso é real em nossa sociedade nos dias atuais e vídeos, mostrando trechos de discursos dos televangelistas norte americanos que influenciaram as igrejas protestantes brasileiras.

O surgimento do fundamentalismo e sua influência no pentecostalismo norteamericano

A

origem em um embate teológico no Princeton Theological Seminary, no final do século XIX, onde teólogos presbiterianos de linha conservadora

pesar de terem surgido na mesma época,

fundamentalismo

pentecostalismo

não

podem

e ser

tratados como sinônimos, embora

se posicionaram contra o método científico denominado Alta Crítica,2 método usado para contestar certas doutrinas bíblicas. Sendo

assim,

teólogos

conservadores

possuam pontos em comuns naquilo que eles entendem como inegociáveis e fundamentais à fé cristã. O termo “fundamentalismo”1 teve 1 Patrocinados por empresários que comungavam com suas ideias, esses teólogos produziram uma série de livretos, em doze volumes, intitulados The Fundamentals: A Testimony of Truth – daí a origem do termo fundamentalismo. Esses volumes compunham as seguintes doutrinas fundamentais: O nascimento virginal de Jesus, a sua ressurreição literal, física, a inerrância do texto sagrado, quanto aos seus manuscritos originais, promessa da ressurreição do corpo dos que crêem,

a segunda vinda iminente e física de Cristo. Os textos eram defesas de alguns pontos da fé cristã que os teólogos conservadores consideravam inegociáveis, combatendo a relativização da aplicação do método histórico-crítico de análise. “O fundamentalismo foi organizado para fazer oposição às tendências liberais nas escolas religiosas e nas igrejas evangélicas.” CHAMPLIN, 2008 p. 828. 2 “Alta Crítica” é o exame dos textos bíblicos que vá além dos próprios textos em si, como a questão do autor, a data, a forma da escrita, as ideias envolvidas, as doutrinas ensinadas e etc.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 35

justificaram uma suposta urgência de reação em

humana e certa decadência moral, vivendo assim

defesa da ortodoxia cristã, iniciando a defesa da

uma lógica dualista e entrando em embate com

bíblia como única fonte irrefutável de verdade

aquilo que eles acreditam que ameaçam sua

histórica, científica e a única fonte de acesso a

fé, como as questões voltadas à legalização do

Deus.

aborto, direitos dos homossexuais, darwinismo, comunismo, Estado laico, entre outros. Seus

Devido a algumas lacunas doutrinárias no movimento

pentecostal

posicionamentos condizem com o espírito dos

norte-americano,

Pilgrims Fathers5 que chegaram ao Novo Mundo

dogmas fundamentalistas foram usados para

acreditando ser a nova “terra prometida” e por

preenchê-las. Esses dogmas, uma das marcas

isso desejavam estabelecer um país dentro dos

da denominação, faz com que ambos os grupos

preceitos bíblicos. Era o sonho de fabricar o reino

concordem com os pontos que eles entendem

de Deus na Terra.

como fundamentais e inegociáveis da fé cristã. A A maioria dos pentecostais, assim como

base da doutrina pentecostal é o batismo com o Espírito Santo, através da experiência mística do

os

fundamentalistas,

faz

análises

bíblicas

falar em outras línguas.3

baseadas em linha teológicas pré-milenaristas6 e dispensacionalistas,7 que influenciam a sua

Os

fundamentalistas,

assim

como

os

pentecostais,4 se enxergam como representantes de Deus na Terra, reiterando o discurso da maldade 3 Baseado na leitura bíblica do livro bíblico dos Atos dos Apóstolos, no capítulo 2, o texto aborda o momento em que os discípulos de Jesus começaram a “falar em outras línguas”. A doutrina pentecostal afirma que essas línguas são a evidência do batismo com o Espírito Santo, quando a pessoa recebe um revestimento de poder para poder suportar algumas aflições do mundo. Há um embate teológico sobre as línguas, seriam elas línguas humanas ou celestiais? Seria uma xenolália ou uma glossolalia? Glossolalia é o ato de falar em línguas celestiais e xenolália é um termo grego para “linguagem estranha”. Porém, a doutrina pentecostal acredita que essa experiência mística se trata de uma glossolalia. PEARLMAN, 2008. p. 68-72. 4 Pentecostais são todas aquelas denominações oriundas do movimento pentecostal norte americano. Aqui no Brasil ela é divida no que chamamos de três ondas: 1º onda: Pentecostais clássicos (Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus) que foram os pioneiros do movimento pentecostal no Brasil. 2º onda: Deuteropentecostal (Deus é Amor, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja O Brasil Para Cristo), essa igrejas foram formadas por ex-obreiros das pentecostais clássicas, depois de uma divisão da primeira onda. 3º onda: Neopentecostais (Igreja de Nova Vida, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus e etc.), essa onda se iniciou no Brasil com a chegada da Igreja de Nova Vida, tendo como seu fundador o canadense Robert McAlister, trazendo junto consigo a Teologia da Prosperidade, teologia oriunda dos EUA.

5 “Foram os primeiros ingleses protestantes a emigrarem para a América do Norte e lá fundarem as primeiras colônias, que, a posteriori, deram origem aos Estados Unidos da América. Esses imigrantes partilhavam da fé puritana (resultante do calvinismo que se desenvolveu na Inglaterra) e, assim como os católicos ingleses, eram perseguidos, no século XVII, pela monarquia absolutista anglicana. Essas perseguições acabaram por levá-los a sair dos domínios britânicos.” Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/ historia-da-america/peregrinos-mayflower.htm> Acesso em 01/05/2020. 6 “O pré-milenarismo é a asserção de que haverá uma futura era áurea, mas que para tanto será mister o aparecimento pessoal de Cristo, o qual inaugurará o milênio”. CHAMPLIN, 2008 p. 370. “Segundo alguns intérpretes, envolve períodos de tempo durante os quais Deus estaria tratando com os homens de maneiras específicas.” Baseado no conceitos de dispensação de Scofield, que foi a que mais se propagou, temos sete dispensações na Bíblia, que seria dividas da seguinte maneira: 1) Inocência (no Éden), 2) Consciência (entre a Queda e o Dilúvio), 3) Governo Humano (entre Noé e Babel), 4) Promessa (de Abraão ao Egito), 5) A Lei (de Moisés a João Batista), 6) Igreja ou Graça (de Cristo até o arrebatamento dos crentes) e 7) O Milênio. CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filos2008 p. 186.

7 “Segundo alguns intérpretes, envolve períodos de tempo durante os quais Deus estaria tratando com os homens de maneiras específicas.” Baseado no conceitos de dispensação de Scofield, que foi a que mais se propagou, temos sete dispensações na Bíblia, que seria dividas da seguinte maneira: 1) Inocência (no Éden), 2) Consciência (entre a Queda e o Dilúvio), 3) Governo Humano (entre Noé

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GNARUS - 36 maneira de enxergar a política, a sociedade e a

a pregar para soldados americanos em

história. O debate que se iniciou no final do século

acampamentos na Coréia, insistindo sempre

XIX como teológico, inevitavelmente chegaria a

que a Guerra Fria era, na verdade, uma

questões de políticas públicas, visando questões

confrontação entre uma cultura fundada

sociais de uma forma em geral.

na palavra de Deus e o comunismo, religião

Acreditando que os EUA estava se afastando dos valores bíblicos e da ideia dos pais peregrinos, sentiam que o cristianismo estivesse vivendo uma forte ameaça. Com isso, fizeram investimentos em programas televisivos, a partir de 1950, e ampliaram o alcance dos programas radiofônicos, sendo

combativos

ao

discurso

contra

o

comunismo, a degradação moral da sociedade e contra métodos de interpretações bíblicas diferentes do que era usado por eles, acreditando estarem com a missão de levarem a sociedade de volta a Deus. A partir de 1979, os canais televisivos dos EUA8 como CBS, NBC e ABC, fizeram uma reestruturação em suas programações para poder atender os anseios dos televangelistas. Com isso, alcançaram uma audiência de aproximadamente 60 milhões, durante as horas de transmissão desses programas diários. Os mais populares desses televangeslistas, com suas mensagens fundamentalistas, foram Pat Robertson, Jimmy Swaggart e Billy Graham, sendo este último o de maior prestígio no país, chegando a influenciar a política dos EUA e um dos mais combativos no meio religioso a favor do anticomunista. Segundo Cecília Azevedo: Estrela

da

militância

evangélica

anticomunista, em 1950 Billy Graham chegou e Babel), 4) Promessa (de Abraão ao Egito), 5) A Lei (de Moisés a João Batista), 6) Igreja ou Graça (de Cristo até o arrebatamento dos crentes) e 7) O Milênio. CHAMPLIN, 2008 p. 186. 8 Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=AOaoohsuews. Acesso em 07/05/2020

diretamente inspirada pelo demônio, que declarara guerra ao Altíssimo. Os cultos pirotécnicos de Graham, com forte apelo nacionalista, incluíam a venda de bônus de guerra, recolhidos ao som do hino nacional, e até mesmo a apresentação de um cavalo, de nome “McArthur”, que se ajoelhava diante da cruz. 9 A análise de Daniel Rocha (2011) mostra uma visão diferente sobre Graham Embora a origem de Graham seja no ambiente do fundamentalismo clássico e suas pregações tratassem de temas e abordagens caras aos fundamentalistas, como a ênfase conversionista e a defesa dos family values, seu destaque midiático e sua popularidade romperam, de certa forma, com a postura contracultural do “gueto” fundamentalista. Segundo Marsden (2001, p. 227), “Graham was part of a larger effort of many fundamentalist Protestants who, having found themselvs now as cultural outsiders, were working to become insiders again”. Suas boas relações com as grandes denominações protestantes tradicionais (acusadas de liberais pelos fundamentalistas) e, até mesmo, com católicos o fizeram ser visto com suspeita por outras lideranças fundamentalistas mais tradicionais que o acusavam de ecumenismo, entre outros “desvios teológicos”. Nesse contexto, Graham e os que seguiam sua linha de atuação passaram a ser conhecidos como neo-evangelicals ou simplesmente evangelicals. 10

9 AZEVEDO, p. 117, 2001. 10 ROCHA, 2011.

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GNARUS - 37 Devido ao seu destaque nos programas televisivos, Graham teve acesso à Casa Branca e proximidade com os presidentes estadunidenses, entre eles, Dwight Eisenhower, John F. Kennedy, Richard Nixon, Ronald Reagan e Bill Clinton. Com o primeiro, ministrou o culto de posse e logo depois batizou Eisenhower, na própria Casa Branca. O vislumbre por um projeto de cristianização evangélica do Estado foi ficando em evidência e ganhando força através da aproximação dos religiosos aos presidentes norte-americanos; suas pregações se voltavam para os temas das crises sociais e políticas, que só poderiam ser resolvidas se os EUA se voltassem para Deus.

país. Vieram para o país na 3ª classe do navio “Clement”, em 19 de novembro de 1910, e encontraram o Brasil vivendo a recente experiência da República, e as normativas sobre o Estado Laico.13 Aqui se mantinham financeiramente não apenas com os trabalhos de Berg, mas também pelas provisões enviadas pelas igrejas suecas. No

princípio,

os

missionários

sofreram

perseguição religiosa por parte das igrejas históricas14 e católica,15 mas isso não desanimou os suecos, pois em seu país de origem já haviam passado por algo parecido, e aqui no Brasil, foram favorecidos pela constituição que protegia a

Entre as décadas de 1960 e 80, houve um alto

liberdade religiosa.16 Por esse motivo, há indícios

investimento dos pentecostais estadunidenses

de elogios por parte dos missionários ao governo

com envio de missionários11 e evangelistas norte-

republicano. 17

americanos12

para o Brasil, com o intuito de

evangelizar além da fronteiras norte-americanas. Isso fez com que os cristãos protestantes brasileiros, principalmente os pentecostais, no final da Guerra Fria, absorvessem o discurso anticomunista dos missionários norte-americanos. Discurso esse herdado dos fundamentalistas estadunidenses.

Os inimigos que vêm do Norte Gunnar Vingren e Daniel Berg, fundadores da

13 Em 1810, com a coroa portuguesa já no Brasil, Dom João VI assinou o Tratado de Comércio e Navegação com o Reino Unido. Nesse acordo foi dada a garantia de liberdade de culto aos ingleses em terras portuguesas (incluindo o Brasil), com algumas ressalvas: era proibido a eles converter a população portuguesa, seus locais de cultos não poderiam ter aspectos de templo religioso e não poderiam manifestar sua fé publicamente. Na Constituição de 1824, foi conferido à Igreja Católica o título de religião oficial do Império. Entretanto, quando Dom Pedro II se tronou imperador do Brasil em 1840, estabeleceu uma política de liberdade religiosa, devido às suas inclinações anticlericais e liberais, adotando assim uma política semelhante a dos países vizinhos que já haviam se tornado repúblicas e visando também o incentivo de imigrantes protestantes. Em 1891, já na República, houve uma nova constituinte e na constituição definiram a separação entre a igreja e o Estado. E. GONAZÁLEZ, 2010. p. 286

experiência mística do movimento pentecostal

14 Igrejas protestantes históricas são as denominações que têm uma ligação histórica direta com a Reforma Religiosa, de 1517, e que são adeptos a Teologia Reformada. As denominações históricas são: Luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, congregacionais e metodistas. BARROS, Angélica. Infográfico: a árvore evangélica. Revista de História da Biblioteca Nacional. ano 8, n. 87, p. 23, dezembro de 2012. ALENCAR, 2010. p. 19.

norte americano, cuja doutrina era difundida no

15 ALENCAR, 2010. p. 19.

Assembleia de Deus (AD) no Brasil em 1911, eram missionários de origens suecas que, antes de virem para o país, tiveram uma breve passagem nos Estados Unidos da América, passando pela

11 LIMA, 1987. Capítulo 3 (Versão Digital). 12 Missionários norte-americanos a serviço da CIA é assunto desde 1960. Disponível em: https://www.gospelprime.com. br/missionarios-eua-espioes-cia/. Acesso em 20/11/2019.

16 Artigo 72, parágrafos, 4º, 5º, 6º e 7º da Constituição de 1891. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/ fed/consti/1824-1899/constituicao-35081-24-fevereiro-1891532699-publicacaooriginal-15017-pl.html> Acesso 19/11/2019. 17 ALENCAR, 2010. p.20.

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GNARUS - 38 Berg e Vingren não concordavam com ideia

aproveitou a situação e enviou ajuda financeira

de a igreja ser ligada ao Estado, por acreditarem

para a AD brasileira, o que acabou contribuindo

que a correlação causou danos ao seu país de

para criar e reforçar laços.

origem. Os missionários defendiam a concepção das “igrejas-livres”, e por esse motivo, igualmente pelo fato de serem estrangeiros em solo brasileiro, não se envolviam com as questões políticas, pois o período que aqui se estabeleceram foi uma fase tensa na história da República brasileira. 18

Em 1930, Gunnar Vingren, que era o principal líder da denominação, perdeu a liderança nacional, e a partir disso, não teve mais forças para impedir o avanço dos missionários pentecostais norteamericanos, que passaram a ter forte influência na AD brasileira.

Os missionários conseguiram expandir a denominação Assembleia de Deus por todo o Brasil, desenvolvendo lideranças regionais, entre pessoas simples e excluídas, fundando igrejas e mantendo-as sob a liderança geral de Vingren, iniciando essa ampliação acompanhando a construção da linha férrea Belém-Bragança. 19

O livro, O Diário do Pioneiro (ANO), registra que Vingren começou a ter dificuldades relacionadas à liderança da igreja brasileira21

no trabalho

missionário com os obreiros locais, deixando subentendido que esse problema remetia-se ao fato de sua esposa, Frida Vingren, tomar a liderança da igreja em momentos de sua ausência.

Os suecos mantinham um pequeno vínculo

Em uma carta para o pastor Samuel Nyström,

com a AD norte-americana que se resumia apenas

Vingren comentou que o problema relacionava-

ao nome da denominação.20 Porém, os líderes

se às mulheres22 serem ordenadas como pastoras,

pentecostais estadunidenses tinham interesse

o que era costume no movimento pentecostal

em ter um vínculo maior com a AD brasileira, o

norte-americano e sueco.

que não era bem visto pelos missionários suecos em virtude das missões que faziam em território brasileiro.

A partir desse momento, a AD dos EUA fez empréstimos financeiros para a AD brasileira. Uma dessas ajudas foi para a construção da Casa

Com o início da Primeira Guerra Mundial,

Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD), que

a igreja de Estocolmo não conseguia enviar o

é a responsável por elaborar e produzir material

sustento financeiro para os seus missionários

didático e literário de linha doutrinária pentecostal

no Brasil, devido às travessias de navios pelo

no Brasil, até os dias de hoje.

Atlântico. Mediante a situação, a AD dos EUA

Entre as décadas de 60 e 80, os pentecostais

18 ALENCAR2010.p. 42.

estadunidenses

19 ALENCAR2010.p. 69.

e

20 No ano de 1912, ume pequena igreja de Findlay, Ohio, passou a se chamar Assembly of God, nome esse dado pelo pastor Thomas King Leonard. Em 02 de abril de 1914, em Hot Springs, foi fundado o Concílio Geral da Assembleia de Deus nos Estados Unidos da América. Aqui no Brasil, o nome Missão de Fé Apostólica não teve boa aceitação por parte dos nordestinos, tendo o nome mudado para Assembleia de Deus ainda em 1914, segundo relatos de Manoel Maria Rodrigues. Porém, o nome só foi registrado em Cartório em 11 de janeiro de 1918, pelos seus fundadores. ARAUJO, 2011. pp.17, 18.

concentrações de massas em estádios23

evangelistas

enviaram para

o

Brasil,

missionários realizando e

21 VINGREN, 1973.p.162. 22 VINGREN, 1973.p. 195. 23 Público lotou o estádio do Pacaembu, em São Paulo, para ouvir Billy Graham. Disponível em: http://m.acervo.estadao. com.br/noticias/acervo,publico-lotou-pacaembu-para-ouvirbilly-graham-,13133,0.htm. Acesso em 14/05/2020.

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GNARUS - 39 ginásios.24 Enviou também literatura teológica

tapes do programa de Swggart, com filmagens

norte-americana, o que de certa forma incutiu

realizadas em sua igreja nos Estados Unidos.

nos assembleianos brasileiros a ideia dos valores

Tanto Jimmy29 quanto Billy30 foram responsáveis

da América cristã.

por grandes mobilizações em massa, realizadas

25

Em seus discursos os evangelistas norteamericanos diziam ser um povo escolhido por Deus, usando como base o discurso da prosperidade financeira do país (o que geraria a Teologia da Prosperidade nas décadas seguintes), mostrando que isso dava a eles condições de salvar o mundo e que o território dos Estados Unidos da América era a nova terra prometida, usando a mesma a história de Israel, de acordo com a bíblia, no Antigo Testamento,26 assim como os pais peregrinos pensavam.

da AD no Brasil para a realização do evento. Os pregadores eletrônicos norte-americanos, e seus discursos fundamentalistas que foram importados para o Brasil, influenciaram os pentecostais a se envolverem com a política partidária nacional e negociar concessões de canais de rádios e TV, doações de terrenos, materiais de construção, cestas básicas, recursos públicos e etc. 31 Tendo em vista a Constituinte de 1988, a princípio, os assembleianos não tinham nenhum

Os missionários se mostravam superiores aos cristãos de outros países e usavam frases de desprezo e inferioridade aos países socialistas e comunistas,27 sempre colocando em destaque os EUA, dizendo que o fato de serem um país próspero era o sinal que Deus estava com eles. 28 Billy Graham e Jimmy Swaggart se tornaram figuras populares, principalmente no período da redemocratização no Brasil, tendo um dos canais televisivos brasileiros, Bandeirantes, transmitindo

24 O canadense bispo Robert McAlister foi convidado pelo pastor estadunidense, Lester Sumrall, da Assembleia de Deus dos EUA, para participar de uma das suas cruzadas no ginásio do Maracanãzinho. Disponível em: http://www.invbotafogo. com.br/sobre-nos/historia/ Acesso em: 14/05/2020. 25 GOMES, José Ozean. Da objeção ao reconhecimento: uma análise da política eclesiástica da Assembleia de Deus brasileira com respeito à educação teológica formal (19431983). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo. 26 Algumas dessas mensagens estão disponíveis em plataformas digitais pela internet. 27 Billy Graham falando contra o comunismo em uma de suas mensagens. Billy Graham talks about communism. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=xcn5T6NsTtw> Acesso 20/11/2019. 28 MARTELLI, 2009. p. 10.

no Maracanã, recebendo todo apoio estrutural

projeto político de poder, e o discurso que era feito para justificar a entrada da igreja na política era o da liberdade religiosa. Fazia-se, muitas vezes, o uso de discursos anticomunistas para causar medo,32 assim como os fundamentalistas estadunidenses, e com isso, impulsionar os membros da denominação a votar nos candidatos que eram escolhidos pela cúpula da igreja, alienando politicamente os membros das igrejas 29 Disponível em https://www.sbb.org.br/hotsites/bibliade-estudo-do-expositor/ministerio-de-jimmy-swaggart-nobrasil/. Acesso 07/05/2020. 30 Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=4umH6-hBPuE. Acesso em 07/05/2020. 31 No final da década de 1980, foi denunciado um esquema de corrupção que favorecia o governo Sarney, onde muitos deputados pentecostais estavam envolvidos, pois fizeram do parlamento um “balcão de negócios”, recebendo assim cargos públicos, verbas federais e concessões de canais de rádio e televisão. DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: Ideologia e Ação da “Bancada Evangélica” na Câmara Federal. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – PUC-SP. São Paulo, 2011.p. 25. 32 Antes do golpe militar de 64, o discurso dos parlamentares protestantes era apenas anticatólico, justificando pela luta da liberdade religiosa. Já na redemocratização, o discurso anticatólico e anticomunismo. MARIANO; PIERUCCI, 1992. Essa questão de usar o “medo” como um instrumento no meio pentecostal, está presente em muitos dos seus ensinos, e até mesmo em sua teologia. Exemplo disso é o ensinamento sobre dízimos e ofertas.

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GNARUS - 40 pentecostais brasileiros, cumprindo, de certa

um presidente da República pertencente ao seu

maneira, com a política imperialista norte-

grupo, como solução aos problemas morais do país.

americana, no final da Guerra Fria, conforme

Essa perspectiva política vem sendo denunciada

relata Delcio Monteiro Lima:

por líderes evangélicos progressistas, como é

Os especialistas do Departamento de Estado americano têm dado, igualmente, reiteradas provas do seu particular interesse nessa alienação política dos pentecostais do Terceiro Mundo. No caso da América Latina, fomentam por todos os meios a passividade dos crentes, instruindo abertamente os missionários do Brasil no sentido de que seu trabalho de evangelização seja sempre norteado

pela,preocupação

de

manter

o rebanho pentecostal longe da política, dedicado somente aos misteres espirituais. A mesma doutrinação é feita junto aos pastores brasileiros que vão aos Estados Unidos para cursos de pós-graduação ou programas de intercâmbio. [...] A estratégia enfim, é não permitir qualquer tipo de militância que deságüe numa posição de antagonismo à situação dominante e possa evoluir para um estágio vulnerabilidade à contaminação esquedista.33 O discurso anticomunista ainda apresenta uma força muito grande na Assembleia de Deus, devido a toda afinidade entre essa denominação e grupos cristãos, notadamente neopentecostais, dos EUA, que manifestaram, ao longo do tempo, bastante interesse pela AD no Brasil.

A influência dos fundamentalistas estadunidenses no Brasil e o bolsonarismo

o caso do pastor Ariovaldo Ramos (ANO), que denuncia esse intento evangélico argumentando como poderia prejudicar a sociedade, inclusive, a própria igreja: Quando percebo desejos, um tanto suspeitos, de ver a nação governada por quadros evangélicos, impressionam-me com a inaptidão ao eclético. Não tenho dúvida de que nós, evangélicos, podemos oferecer à nação substancialmente contribuição para a sua administração, entretanto, tal engajamento só fará sentido se adição a um esforço conjunto que contemple todos os segmentos da sociedade. [...] É indisfarçável o crescimento do envolvimento da Igreja evangélica brasileira nas questões políticopartidárias, quanto escândalo, quanta vergonha! Isso, sem contar o desempenho de muitos dos nossos pretensos representantes. Deveria, a Igreja, envolver-se nisso? Se não, qual o caminho, a alienação? Origines, no tratado contra Celso, advoga que o cristão será tanto mais útil à sociedade, quanto mais for Igreja, advogando, assim, a separação total, o não envolvimento. Creio que o proposto pelo tão querido Pai da Igreja, do século III, não encontra mais espaço nos dias de hoje, já fomos longe demais. Mas, será que a forma que temos encontrado é a que deveríamos levar a efeito? Penso que não! Entendo que o nosso papel é cooperar com o aprimoramento da democracia e do Estado, através da pregação e da vivência de nossos postulados sobe a questão política e social. Mas, nós o temos? Perguntaria o cristão menos avisado.34

A partir da redemocratização no Brasil, sempre houve intenção por parte dos evangélicos em ter 33 LIMA, 1987. Capítulo 3 (Versão Digital).

34 RAMOS2002. pp. 70, 71, 73.

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GNARUS - 41 Ramos mostra que a Igreja evangélica tem

natural que é preciso respeitar, ligada a

muito a cooperar com a sociedade brasileira, mas

estabilidade

da

sociedade

não da forma como tem se posicionado.

estruturada

por

imagens

[...] Precisamos mesmo salvar essa nação, mas, isso, ao invés de messianismo, se fará com o compromisso de todos os cidadãos, com um governo amplamente representativo, que seja sustentado por um arco de alianças progressistas:

comprometido

com

a

erradicação da miséria e da pobreza, com o

fortemente paternais

e

familiares. O prolongamento de uma tal atitude no domínio político se deixa adivinhar. Esse tipo de crente será levado a preferir os regimes que se apóiam numa figura de autoridade indulgente, será atraído pelos sistemas hierárquicos nos quais cada um tem seu lugar se tensões nem rivalidades.36

aperfeiçoamento institucional da democracia,

O fundamentalismo torna os religiosos radicais,

com o desenvolvimento de um mercado

levando-os a fazerem conciliações da bíblia com

interno sólido, com uma política de pleno

guerras e execução sumária, não acreditando mais

emprego, com a sustentação da soberania

no amor e na humanidade de todos os homens.

nacional, conditio sine que non para que a

Conforme Leon Tolstoi:

nação ocupe espaço relevante no concerto das nações; se o mandatário de tal governo for um evangélico, ficaremos contentes por estarmos

contribuindo,

principalmente,

porque tal político terá chegado lá por sua história e não simplesmente por sua religião. [...] A Igreja não deve ter interesse em poder, mas na paz social, racial, democrática e religiosa que é fruto da justiça.35

O homem que crê no caráter divino do Antigo Testamento e na santidade de Davi, que em seu leito de morte delega a missão de matar o velho que o ofendeu, a quem ele não pode matar pessoalmente por estar ligado a um juramento (Livro 1 Reis 2.8), e muitas outras vilanias das quais o Antigo Testamento está cheio, não pode crer no sagrado amor de Cristo.37

Para entender como Jair Bolsonaro conseguiu se eleger presidente em 2018 com o apoio dos pentecostais, precisamos conhecer como funciona o voto de boa parte deles. O fato de se prenderem às leituras do Antigo Testamento de maneira fundamentalista faz com que se identifiquem com um imaginário de um líder autoritário, algo que está vivo dentro de boa parte das igrejas pentecostais na figura dos líderes. De acordo com Aline Coutrot:

Os discursos de Jair Bolsonaro estmularam o sentimento de ódio contra posicionamentos que evangélicos entendem como ameaça à fé cristã. Queiroz explica o porquê da adoção desse discurso e que muitas vezes foi pedida a volta da ditadura no país: O Reino Messiânico é em geral um reino futuro, espera-se por ele. Tanto poderá ser algo de inteiramente novo, como poderá

A fé teocêntrica, submissão a um Deus todo poderoso, dá ao crente o sentimento da sua fragilidade. Ele se insere numa ordem

reproduzir uma Idade de Ouro que já tenho existido no passado, mas em ambos os casos os mesmos caracteres de santidade 36 RÉMOND, 2003. pp. 338,339.

35 RAMOS. Nossa Igreja Brasileira. p. 70, 71.

37 TOLSTOI, 2018. pp. 78,79.

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GNARUS - 42 e perfeição. [...] É a crença na vinda de um

o apoiavam, recebendo adesão dos principais

redentor que porá o fim à ordem presente de

líderes evangélicos do Brasil e fazendo usos

coisas, universalmente ou para um só grupo,

equivocados de versículos bíblicos. A imagem do

instituindo nesse mundo uma nova ordem de

Bolsonaro como candidato ao cargo de presidente

justiça e felicidade. [...] felicidade que teriam

pode ser analisada com base no conceito de

conhecido em tempos anteriores e que então

“messianismo” de Weber e Alphandéry, conforme

seria restaurada.38

citado por Queiroz:

Devido ao discurso anti-petista pela imprensa

O messias é alguém enviado por uma

hegemônica corporativa, dos líderes evangélicos

divindade para trazer a vitória do Bem sobre

midiáticos e o fato de o governo do PT ter

o Mal, ou para corrigir a imperfeição do

abordado projetos de leis que envolviam questões

mundo, permitindo o advento do Paraíso

da homoafetividade e do aborto, fez com que

Terrestre, tratando-se, pois, de um líder

alguns evangélicos buscassem um representante

religioso ou social. O líder tem tal status não

para combater não apenas esses projetos, como

porque possui uma posição dentro da ordem

também o kit de material didático “Escola Sem

estabelecida, e sim porque suas qualidades

Homofobia”, chamado de kit-gay, e que acabasse

pessoais e extraordinárias, provadas por

com a corrupção na política nacional, por meio da

meio de faculdades mágicas ou estáticas,

democracia ou mesmo da ditadura, como muitos

lhe dão autoridade; trata-se, pois, de um

pediram naquele período.

líder essencialmente carismático. Assim, age

Ataques às minorias foi uma das formas de Bolsonaro ganhar força eleitoral em sua campanha. Sobre isso, Queiroz afirma: Justamente porque contém “ideias muito definidas” de como sanar as imperfeições, o messianismo não é crença passiva e inerte de resignação e conformismo; apontando para a possibilidade de um futuro melhor, pode levar – e em certas circunstâncias leva – os homens a se congregarem para conseguir, por meio da ação, os benefícios que almejam. O messias só merecer este título na medida em que uma coletividade diligente o reconhece como líder. 39 Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro fez o seu discurso de campanha pautado na questão da moralidade, conforme a necessidade dos que

graças ao seu dom pessoal apenas, colocandose fora ou acima da hierarquia eclesiástica ou

civil

existente,

desautorizando-a

ou subvertendo-a, a ruptura de ordem estabelecida podendo ser breve ou de longa duração. 40 Jair assume um posicionamento de alguém enviado por Deus para executar uma missão, que seria acabar com um suposto mal que advinha do PT, além das pessoas alinhadas à política de esquerda e todas as pautas progressistas que estivessem em trâmite para serem aprovadas. Para cumprir a missão Bolsonaro foi escolhido por apresentar um discurso de que não tinha envolvimento com corrupção política, e que não era a favor da ordem estabelecida na política nacional. Nesse ínterim entra em cena um sujeito

38 QUEIROZ. Messianismo no Brasil e no Mundo... pp. 8, 10. 39 QUEIROZ. Messianismo no Brasil e no Mundo... p. 15.

40 QUEIROZ. Messianismo no Brasil e no Mundo... p. 5.

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GNARUS - 43 chamado Silas Malafaia, pastor e presidente da

os de forma a justificar seus próprios discursos:

Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), que, semelhantemente a Billy Graham nos EUA, possui influência entre os pentecostais brasileiros e tem acesso aos governantes do Brasil, desde o período do governo Lula. Sua abordagem foi fundamental para que os pentecostais direcionassem seus votos para Jair Bolsonaro. Existe um vídeo no canal oficial do pastor, no

E foi adversário de Israel, por todos os dias de Salomão, e isto além do mal que Haddad fazia; porque detestava a Israel, e reinava sobre a Síria (I Reis 11.25). E depois dele se levantou Jair, gileadita, e julgou a Israel vinte e dois anos.

Youtube, que tem o título “Porque você deve

E tinha este trinta filhos, que cavalgavam

votar em Bolsonaro?”.41 Isso fortaleceu a imagem

sobre trinta jumentos; e tinham trinta cidades, a

do candidato.

que chamaram Havote-Jair, até ao dia de hoje; as

À declaração de Malafaia, sucederam outras como as do líder da Igreja Universal do Reino de

quais estão na terra de Gileade. E morreu Jair, e foi sepultado em Camom (Juízes 10.3-5).

Deus (IURD), bispo Edir Macedo, e do presidente

Pelos fatos citados acima e por defender

da Convenção Geral das Assembleias de Deus

pautas políticas conservadoras, Bolsonaro se

(CGADB), pastor José Wellignton Bezerra.

tornou para os evangélicos o “messias”, aquele que iria salvar a família tradicional, restaurar a moral, a ética e os bons costumes, acabar com o comunismo e acabar com as pautas do aborto

Considerações finais

e do homossexualidade, sendo essas as mesmas

Vivemos momentos difíceis no Brasil, onde temos visto o Estado ser aparelhado pela religião, baseando sua agenda apenas em pautas morais, recebendo o apoio expressivo por parte dos pentecostais, justamente devido às leituras bíblicas pautadas em interpretações equivocadas, conforme os fundamentalistas norte-americanos. Muitos

líderes

evangélicos

pautas42 usadas pelos fundamentalistas norteamericanos do início do século passado. Vimos como anos de investimento por parte da AD dos EUA acabou nos levando a ter o governo que temos nos dias de hoje, e que, lamentavelmente, fizeram dessa governança sua religião.

usaram

interpretações do Antigo Testamento, com visões milenaristas, para justificar o voto em Jair Bolsonaro ao invés de Fernando Haddad, em suas reuniões religiosas e em suas redes sociais, afirmando que Haddad, diferente de Bolsonaro, era inimigo do “povo de Deus”. Para tanto, descontextualizaram versículos bíblicos usando41 Silas Malafaia Oficial. Pastor Silas Malafaia comenta: Porque você deve votar em Bolsonaro? 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4uBxAl-rPyw. Acesso em 02/12/2019.

Max David Rangel Cassin é Bacharel em Teologia, licenciado em História e mestrando em História pela UNIVERSO 42 Mais do que as pautas estarem parecidas, não houve rupturas, e sim ampliação das mesmas até hoje. Como a movimento dos homossexuais veio sofrendo mutação ao longo do tempo criou-se a sigla LGBT, isso a partir de 1988, pois entendiam que o termo “gay” soava como uma rejeição da falsa dicotomia homossexual / heterossexual. Uso aqui o termo “homossexualidade”, pois era a forma como os fundamentalistas se dirigiam aos assuntos concernentes a homoafetividade em sua época, evitando assim o erro de anacronismo.

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GNARUS - 44 O Envolvimento dos Pentecostais na Eleição do

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1992. MARTELLI, Lindolfo Anderson. O pentecostalismo

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sobre as práticas políticas do pentecostalismo brasileiro. HORIZONTE, v.9, n.22. pp. 583-604,

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GOMES,

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José

reconhecimento:

Ozean.

Da

uma

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objeção da

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votar em Bolsonaro? Disponível em https://www.

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Missionários americanos são espiões da CIA, afirma líder evangélico: Disponível em https:// www.gospelprime.com.br/missionarios-euaespioes-cia/. Acesso em 20/11/2019. CONSTITUIÇÃO DE 1891: Disponível em https:// www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/ constituicao-35081-24-fevereiro-1891-532699publicacaooriginal-15017-pl.html>

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about

communism:

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Acesso

em

07/05/2020.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 46

Artigo

ANÁLISE DOS DEBATES SOBRE SENHORIO E FEUDALISMO NA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA EUROPEIA: O CASO IBÉRICO 1

1 O presente artigo é resultado do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica (PVD3323-2015) intitulado “Querelas conceituais da erudição: (re)pensando o senhorio e o feudalismo através dos debates historiográficos sobre a Idade Média”, desenvolvido entre os anos de 2015 e 2016 sob coordenação do Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro.

Por Cassiano Celestino de Jesus RESUMO: Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição de feudalismo se revelou um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia. As discussões giravam em torno de seu surgimento, sua caracterização e, principalmente, sobre a feudalização da Espanha. Neste artigo, objetivamos desenvolver reflexões críticas a respeito dos debates acerca do senhorio e do feudalismo inseridos na produção historiográfica Ibérica, sobretudo, espanhola. Palavras Chaves: Feudalismo, Senhorio, Historiografia Ibérica.

Considerações Iniciais

Q

uando, o

onde,

feudalismo?

Nas últimas duas décadas do século XX e no e

como

Como

surgiu

este

se

caracterizou? Tudo começou por uma “revolução” na qual os príncipes e senhores de castelo, sobre as ruínas

de um Império Carolíngio alquebrado pelos

início do XXI, a definição do feudalismo se revelou um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia. Neste artigo, propomos uma síntese das opiniões e abordagens possíveis sobre tal temática. Enfatizando, preferencialmente, o caso espanhol.

normandos, tomaram o poder?1 O feudalismo

Para muitos escritores, feudalismo refere-

foi um fenômeno exclusivamente europeu?

se ao sistema de relações sociais e políticas

Houve outros países que (supostamente) não

característicos da Idade Média, desaparecidos

se feudalizaram como a Espanha? Ele varia, a

com a eclosão do Estado Moderno. Outros, situam

depender do ponto de vista que se adote, tanto

sua abolição, pelo menos no leste europeu, nos

em sua cronologia quanto no âmbito territorial?

finais do século XVIII e começos do XIX, época da revolução francesa e da queda do antigo regime. Fora dos círculos acadêmicos, na visão popular, a

1 SALLES, In: ALVES, 2012. p. 197-211.

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GNARUS - 47

imagem do feudalismo é claramente negativa. A Europa feudal aparece como uma época escura, de predomínio rural esmagador, de exploração dos trabalhadores pelos senhores e de escassas comunicações. Julio

Valdeón

Baruque2

expõe

dois

conceitos fundamentais sobre o feudalismo: o Institucionalista, que põe sua atenção aos aspectos políticos e jurídicos. E outra vertente, denominada de Materialismo histórico, que põe sua atenção nos elementos sociais e econômicos. Um dos principais expoentes do chamado feudalismo institucional foi o belga Ganshof.3 Para este autor, as características fundamentais que definem uma sociedade feudal são: Idesenvolvimento

considerável

de

vínculos

de dependência entre homens que estão em uma posição de supremacia a uma classe de guerreiros profissionais. II- Um extraordinário fracionamento do direito de propriedade. III- uma hierarquia de direitos sobre a terra derivados desse fracionamento. IV- Uma fragmentação do poder público que originaria em cada país

terra, a jurisdição exercida pelos senhores sobre

uma hierarquia de instituições autônomas que

os trabalhadores, as rendas e etc, estavam fora

exercem em seu próprio interesse os poderes

dessa definição.

normalmente atribuídos ao Estado. Entretanto, para Valdeón Baruque,4 não é Este autor, ainda define feudalismo como

possível entender o feudalismo se somente

um conjunto de instituições que criam e

fixarmos nossa atenção nas relações pessoais

regem obrigações de obediência e serviço –

entre os membros da elite militar ou no peculiar

principalmente militar – por parte de um homem

sistema de governo, e esquecer, no entanto,

livre, chamado vassalo, para um homem livre,

a problemática ligada ao trabalho da terra e

chamado senhor. Esta definição de Ganshof

a dependência dos camponeses. O correto é

se referia a relações entre um número muito

entender o feudalismo observando os aspectos

reduzido de pessoas, os grupos dominantes da

feudais e senhoriais. Contemplar o senhorio como

sociedade medieval e em particular a área militar.

parte integrante do feudalismo.

Tudo o que estava relacionado ao trabalho da Dito isto, como e quando se constituiu o 2 VALDÉON BARUQUE,1999. 3 GANSHOF, 1976.

4 Op. Cit.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 48 feudalismo? Para Valdeón Baruque,5 a opinião

O autor cita os pensamentos dos historiadores

mais generalizada diz que a sociedade feudal

Abilio Barbero e Marcelo Vigil,6 que afirmam que

se constituiu no transcurso de um processo

o feudalismo se caracteriza basicamente pela

de grande amplitude cronológica e de enorme

existência de relações de dependência a todos

complexidade. É apresentado como um período

os níveis. No mundo feudal as relações sociais

de transição entre o mundo antigo e medieval.

de produção se estabeleciam entre os senhores

O início desta transição pode situar-se na crise e

e os camponeses. O vínculo entre os dois era

posterior desintegração do Império Romano com

o senhorio. Era nele que se desenrolavam as

as invasões. Segundo o materialismo histórico

relações sociais entre classes, as relações de

entre o modo de produção escravista e o feudal.

dependência e de exploração.

Para o autor, foi um processo lento, procedente

O feudalismo, quer consideremos como um

de elementos integrados vindos uns do mundo

conjunto articulado de instituições, um modo de

romano e outros originários do mundo germânico.

produção ou um sistema global de organização

Os

seu

social, faz tempo que desapareceu da Europa.

surgimento são, a crescente ruralização, as ruínas

Para o autor, data basicamente dentre os finais do

e extinção do Império Romano, as imigrações

século XVIII e começos do XIX.

principais

acontecimentos

para

o

dos chamados povos “bárbaros” e a formação dos diversos reinos germânicos no território do falecido império. No período compreendido entre os séculos III e VI, foram tomando corpo uma série de elementos que podem ser consideradas precedentes das futuras instituições feudais, como: encomendação e benefício.

Perspectivas sobre a feudalização no território espanhol A Espanha foi feudal? Numa carta de 1931, o medievalista francês Marc Bloch lamentava para o historiador espanhol Claudio Sánchez-Albornoz

As novas condições de vida existentes no

“que não saber sobre o feudalismo espanhol era,

ocidente da Europa, a raiz da extinção do Império

realmente, uma lacuna enorme na sua visão da

Romano e do estabelecimento dos reinos

Europa, que deveria preencher algum dia”.7

germânicos, proporcionaram o terreno favorável para o desenvolvimento dos diversos ingredientes que constituíram a sociedade feudal. De acordo com as circunstancias da época, os grandes domínios (que eram a grande propriedade) foram se convertendo, gradualmente, em senhorios rurais. Os proprietários das terras passaram a ser senhores e acumular em suas mãos poderes diversos sobre os camponeses que habitavam em seus domínios. Estes poderes eram de natureza

A ideia da não feudalização da Espanha foi defendida no começo do século XIX pelo clérigo iluminista Martínez Marina, o qual afirmava que os Reinos de Leão e Castela era inconciliável com as “monstruosas” instituições dos governos feudais. Algum tempo depois, um destacado historiador português, Herculano, mesmo sob uma perspectiva diferente das de Martinez também afirmava não ter existido feudalismo nos

variada: militar, fiscais, judiciais, econômicas. 6 BARBERO; VIGIL, 2006.

5 Idem.

7 KOSTO, Adam .What about Spain? Iberia in the historiography of Medieval European Feudalism. Feudalism: new landscapes of debate, p. 135 -158, 2011.

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GNARUS - 49 reinos ibérios.8

europeus.

O principal porta-voz da interpretação jurídico-

Contrapondo-se a isso, e se referindo às invasões

institucional do feudalismo, Sánchez Albornoz,

muçulmanas, José Maria Mínguez Fernandez11

afirma que na Espanha visigoda houve um processo

afirma que não cabe dúvida que ela afetou uma

de pré-feudalização, e que tudo não passou

sociedade – a visigoda – cujas estruturas estavam-

de apenas um ensaio do que posteriormente

se praticamente desmanteladas. Mas, para ele,

poderia chamar-se de feudalismo. Pois, a invasão

a invasão muçulmana não precipitou de maneira

muçulmana de 711 cortou pela raiz tais processos.

imediata a quebra definitiva das estruturas

Com raras exceções, não houve feudalização na

econômicas-sociais

Espanha medieval. Ele definia Castela medieval, por

visigodos.

exemplo, como uma ilha de homens livres frente a Europa medieval. Tal concepção prevaleceu por muito tempo na historiografia espanhola, e isto se deve ao exercício do seu magistério.9

e

político-institucional

A partir das décadas de 1960-1970 o conceito de

feudalismo

começa

a

ser

revisitado.

Principalmente influenciado pela escola francesa dos Annales e o materialismo histórico. Este

Sánchez Albornoz10 afirmou que a Espanha

último, em especial, propunha a aceitação do

medieval não se feudalizou, exceto o território de

termo feudal como equivalente a um modo

Cataluña. O seu conceito de feudalismo limitou-

de produção e não somente a um conjunto de

se, exclusivamente, ao âmbito das relações feudo-

instituições que expressavam o desenvolvimento

vassaláticas. O feudalismo, portanto, referia-

das relações pessoais. Assim, para o materialismo

se unicamente às relações entre o senhor e o

histórico, o feudalismo, como modo de produção,

vassalo. Tais relações dariam a partir da concessão

sucedeu a fase dominada pelo escravismo e

do feudo que o primeiro fazia ao segundo, de um

precedeu o triunfo do capitalismo.

poderoso a outro inferior a ele, de um mesmo grupo social, em troca de que o beneficiário lhe preste um juramento de vassalagem no terreno das atividades militares.

concepção

jurídico-institucionalista

do

feudalismo, acerca de sua presença na Espanha é bem conhecido: a Espanha não se feudalizou. Houveram

instituições

en la Península Ibérica” dos professores Marcelo Barbero e Abilio Virgil, marca um autêntico “ponto de inflexição” na historiografia espanhola sobre

O veredicto dos historiadores que partem da

A publicação em 1978 do livro “El feudalismo

feudais,

mas

seu

desenvolvimento foi tardio e incompleto, porque nunca levaram na formação de um autêntico estado feudal semelhante à de outros países 8 VALDÉON BARUQUE, Julio. El feudalismo hispánico en la historiografía reciente. Historia, instituciones, documentos, Sevilha, n. 25, p. 677-684, 1998.

a feudalização. Tais autores, defendiam uma concepção de feudalismo distinta da tradicional (restringida aos aspectos políticos-jurídicos). Tais autores, afirmaram que podia-se falar em feudalismo na Península Ibérica desde fins do Império Romano até meados do século XIX. Na introdução de “Formação do feudalismo na Península Ibérica”,12 diziam não fazer distinção entre feudal e senhorial, nem por ênfase do

9 SANCHEZ ALBORNOZ, Claudio. En torno a los orígenes del feudalismo. Buenos Aires: Eudesa, 1979.

11 MÍNGUEZ FERNÁNDEZ, José María, Ruptura social e implantación del feudalismo en el noroeste peninsular (siglos VIII-X), Studia Historica. Historia Medieval, nº 3, p. 7-32, 1985.

10 Idem.

12 BARBERO; VIGIL, 2006.

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GNARUS - 50 Ao apresentar a formação do feudalismo em Castela, Estepa Díez14 afirma que se pode perceber as raízes de um feudalismo espanhol a partir do século X, quando ia se produzindo em Castela uma transformação das comunidades rurais. Estas estavam articuladas em unidades supralocais, constituindo os “alfoces”, leia-se, unidades territoriais em que se concretiza e se materializa o controle político que exerce o conde ou rei sobre os homens que nele ocupam. Em suma, identifica a formação do feudalismo com a presença e extensão da chamada “propriedade dominical” durante o período Astur, mais cedo em Leão do que em Castela. Não se trata, portanto, de uma crise das antigas estruturas, mas da competência entre a monarquia e a alta aristocracia em estender seu domínio senhorial. Muito provavelmente seja no Reinado de Alfonso VI (1065-1109) que se consolidaram as instituições feudo-vassalática, não feudalismo no seu sentido mais amplo. caráter militar no feudal. O que pretendiam com o trabalho era expor de maneira coerente a formação das relações de dependências feudais a todos os níveis, desde o econômico até o político.

Carlos Estepa Díez não tem a preocupação de propor uma reformulação metodológica, mas, novas ferramentas conceituais para entender a formação e desenvolvimento do feudalismo

Além dos historiadores acima apresentados,

em Castela e Leão. O centro de suas análises se

cabe apontar os estudos de Carlos Estepa

situa no poder dos senhorios e na dependência

Díez sobre o feudalismo no mundo ibérico e,

camponesa. Para seu estudo ele se utiliza de novas

principalmente, no território Castelhano. Segundo

categorias de análise, tais como: propriedade

o autor,13 uma versão restringida do feudalismo

dominical,

e das relações feudais é legítima desde que

senhores.

sirva para analisar parte da realidade histórica. Doravante, mesmo que os conceitos de feudal e feudalismo tenham sido formuladas na Idade Moderna, eles estão longe de serem um obstáculo para o conhecimento das sociedades medievais. 13 ESTEPA DÍEZ, Carlos. Notas sobre el feudalismo castellano en el marco historiográfico general. In: SARASA SÁNCHEZ, Esteban; SERRANO MARTÍN, Eliseo. (Eds.). Estudios sobre señorío y feudalismo (Homenaje a Julio Valdeón). Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2010. p. 77-106.

referindo-se

a

propriedade

dos

O domínio senhorial, que abarca direitos mais amplos, geralmente sobre o conjunto de uma vila ou aldeia, suponha a extensão de direitos de camponeses não sujeitos a propriedade dominical. E por fim, o senhorio jurisdicional, que seria o desenvolvimento do domínio senhorial durante 14 Idem

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GNARUS - 51 a baixa Idade Média. Como categorias são mais flexíveis e moldáveis, podendo ajustar-se melhor a realidade histórica.

Considerações Finais

REFERÊNCIAS

Portanto, após a leitura e análise de textos sobre a temática do feudalismo na Espanha percebeu-se que tais debates alcançaram sua maior ressonância nas últimas décadas do século XX. Pois, na sua primeira metade prevaleceu nos âmbitos historiográficos o ponto de vista de que o feudalismo hispânico tinha sido imaturo, nunca completamente desenvolvido. Doravante, o materialismo histórico segue tendo um papel protagonista nos estudos sobre o feudalismo no passado espanhol. A jovem historiografia espanhola aceita/admite a existência do feudalismo, partindo de um conceito global, que integra os aspectos jurídicos-institucionais e os socioeconômicos. Por conseguinte, existe uma unanimidade entre os autores espanhóis em afirmar que até os anos 70 do século XX a história de Castela na alta Idade Média estava claramente orientada pela interpretação de Claudio Sánchez Albornoz, que defendia uma Castela de homens livres e, portanto, sem feudalismo. Pois, este entendia o conceito de feudalismo pela ótica da relação feudo-vassalática, assim, para ele, somente os aspectos jurídicospolíticos pertenciam ao feudalismo. E também que o panorama historiográfico muda radicalmente a partir dos trabalhos de Abilio Barbero e Marcelo Vigil, em seu livro “El feudalismo en la Península Ibérica”.

Cassiano Celestino de Jesus é doutorando em História Social pela Universidade Federal da Bahia (PPGH/UFBA), Pesquisador do Dominium: Estudos sobre Sociedades Senhorias. e Bolsista FAPESB.

SALLES, Bruno Tadeu. O Senhorio nos séculos XI e XII: Perspectivas historiográficas. In: ALVES, Aléssio Alonso; MIATELLO, André Luís Pereira; RIBEIRO, Felipe Augusto (Orgs.). Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil: Workshop, 29 e 30 de setembro de 2011, Belo Horizonte, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Anais... Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012. BARBERO, Abílio; VIGIL, Marcelo. El feudalismo en la Península Ibérica. Barcelona: RBA Coleccionables, 2006. ESTEPA DÍEZ, C. Formación y características del feudalismo en la Extremadura castellana: a propósito de un libro reciente. In: Studia historica. Historia medieval, nº 3, 1985. ESTEPA DÍEZ, Carlos. Notas sobre el feudalismo castellano en el marco historiográfico general. In: SARASA SÁNCHEZ, Esteban; SERRANO MARTÍN, Eliseo. (Eds.). Estudios sobre señorío y feudalismo (Homenaje a Julio Valdeón). Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2010. p. 77-106. GANSHOF, François-Louis. Que é feudalismo. Lisboa: Europa-América, 1976. KOSTO, Adam .What about Spain? Iberia in the historiography of Medieval European Feudalism, Feudalism: new landscapes of debate, p. 135 -158, 2011. MÍNGUEZ FERNÁNDEZ, José María, Ruptura social e implantación del feudalismo en el noroeste peninsular (siglos VIII-X), Studia Historica. Historia Medieval, nº 3, p. 7-32, 1985. SANCHEZ ALBORNOZ, Claudio. En torno a los orígenes del feudalismo. Buenos Aires: Eudesa, 1979. VALDÉON BARUQUE, Julio. El feudalismo. Madrid: Alba, 1999. ______. El feudalismo hispánico en la historiografía reciente. Historia, instituciones, documentos, Sevilha, n. 25, p. 677-684, 1998. _____. “Sobre el feudalismo. Trinta años después”. In: SARASA SÁNCHEZ, Esteban; SERRANO MARTÍN, Eliseo. (Eds.). Estudios sobre señorío y feudalismo (Homenaje a Julio Valdeón). Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2010. p. 9-25.

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Artigo

APAGAMENTO E ESTEREÓTIPOS DO REINO VÂNDALO NOS MANUAIS DE HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA DA UNESCO Por Geraldo Rosolen Junior RESUMO: No ano de 429 os vândalos migraram para a África Romana, conquistando grande parte do território do Império Romano na África Ocidental, e as ilhas mediterrânicas ocidentais, as Baleares, Sicília, Córsega e Sardenha, tornando Cartago a capital de seu reino entre 439 e 533. Durante esse período, o Reino Vândalo foi considerado uma grande potência política, militar e econômica, e ficou amplamente conhecido através das críticas fontes eclesiásticas pela condução política-religiosa, que impôs o arianismo aos membros da Corte Vândala, e pelas perseguições aos católicos nos Reinado de Hunerico (477-484) e Thrasamundo (496-523), contudo, o protagonismo assumido pelo Reino Vândalo na Primeira Idade Média não pareceu suficiente para integrar parte fundamental da obra História Geral da África da UNESCO, e que sugere um apagamento da História desse povo. Portanto, nesse artigo iremos examinar de modo geral, como os volumes I e II são constituem esse debate, para que possamos apontar as motivações desse apagamento, avaliando ainda, possíveis consequências desse apagamento, tanto para a proposta da coleção, como para a História da África em uma dimensão mais ampla. Palavras Chaves: UNESCO; História Geral da África; Reino Vândalo

Sobre os manuais de História Geral da África

D

e acordo com Mônica Lima (2012) a obra História Geral da África havia sido construída e elaborada ao longo das décadas de 1960 e 1980, sendo desenvolvida a partir de um esforço monumental, reunindo ao todo “trezentos e cinquenta estudiosos, coordenados por trinta e nove consultores” (LIMA, 2012, p.279), sendo publicada pela primeira vez em 1981, em meio as grandes tensões que o continente africano enfrentava como as guerras civis e de

independência, a obra parece ser constituída como reflexo desses conflitos. Ao mesmo tempo em que podemos observar eclosões nacionalistas em face do crescente sentimento anticolonialista, como nos apresenta Fabiana Barbosa Ribeiro (2015) a produção de livros e materiais didáticos, assim como a construção de escolas assumiram um papel fundamental ao enfrentamento do ‘colonialismo’, principalmente por grupos como a FRELIMO que acreditavam no potencial da educação tanto em níveis desenvolvimentistas, como

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GNARUS - 62

para formação ideológica para expandir sua base de apoio e seus grupos armados “nos manuais escolares de História desse período (fim dos anos 70, anos 80 e 90), a História da FRELIMO e das lutas anticoloniais são o fio condutor dos conteúdos ali apresentados” (RIBEIRO, 2015, p.47). Deste modo, seguindo alguns pressupostos teóricos de Michel de Certeau (1982) acreditamos a coleção e as obras que compõe a História Geral da África devem ser examinadas não apenas em seu conteúdo, mas também em seu lugar de produção, para que possamos avaliar como essa produção se encaixa em seu espaço de produção temporal, geográfico e intelectual. Os autores Peri Mesquida, Juliano Peroza e Abdeljalil Akkari (2014) nos apresentam que a descolonização na África representou grandes desafios, e paradoxos para as novas elites africanas políticas e intelectuais, pois os processos de independência geraram a necessidade de preencher ausência dos colonizadores, sem que fossem perpetuadas dimensões eurocêntricas e de imposição da relação entre oprimidos e opressores, dentro desse contexto histórico-cultural haviam surgidas iniciativas internacionais e supranacionais, da qual Paulo Freire também havia integrado, respaldadas por “ideias de libertação e independência que circulavam e que foram muito propagadas nas décadas de 1960 e 1970. Essas ideias foram absorvidas por determinados organismos internacionais, como a ONU, por meio da Unesco”, (MESQUIDA, PEROZA, AKKARI, 2014) com o objetivo de superar as marcas do colonialismo europeu, e colaborar no desenvolvimento desses países. .

Deste modo, podemos observar que a própria coleção da História Geral da África surge, dentro desse contexto, como um desafio de expor uma perspectiva africana da História, de modo a dar visibilidade e representatividade aos acadêmicos africanos, expondo, alguns elementos de resistência e superação do colonialismo. (LIMA, 2012; BARBOSA, 2018). Pois como nos apresenta Felipe Paiva (2014), para os autores que compuseram essa coleção, escrever sobre o passado, era também escrever sobre o momento presente, que servia como um espelho, para resistir aos estereótipos de sociedades atrasadas, violentas e incultas, eles recorreram à História para demonstrar um passado glorioso, conectado e multifacetado, que reivindica suas heranças na História da humanidade, indagando sobre uma dívida cultural do mundo com os africanos, “a onda de conflitos libertadores levou, em grande medida, os historiadores a explicarem tais conflitos recorrendo ao passado, realçando o africano como agente de sua própria história, e, portanto, resistindo à influência Colonial mais efetiva, já a partir de finais do século XIX” (PAIVA, 2014, p.193). Deste modo, conseguimos observar que, alguns desses autores mesmo analisando o passado da África Medieval, reproduzem uma grande apreensão, e tendem a perceber os vândalos como estrangeiros (germânicos) colonizadores, a seguir iremos expor algumas das motivações para essa percepção, e quais se houve intenções para o apagamento do Reino Vândalo no primeiro e segundo volume da coleção.

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GNARUS - 63 Vândalos, antigos colonizadores europeus? Em uma análise quantitativa, ao todo, os vândalos foram citados apenas cinco vezes no primeiro volume da coleção (KI-ZERBO, 2010), e com exceção de uma menção na página 89, todas as demais citações ocorreram na página 92, e todas citadas pelo mesmo autor Hichem Djait (2010) no capítulo 5. Já no segundo volume (MOKHTAR, 2010), a utilização do termo é um pouco mais recorrente, e aparece vinte e três vezes, se considerado as notas de rodapé, distribuídos da seguinte maneira: uma vez no capítulo 17 de Jehan Desanges (2010) na página 451; duas vezes na primeira parte do capítulo 19 escrito por Ammar Mahjoubi (2010) nas páginas 501 e 526; e vinte vezes na parte 2 do capítulo 19 de Pierre Salama (2010), respectivamente seis vezes na página 548, cinco vezes (sendo duas em rodapé) na página 549, duas na página 550, um vez na página 551, duas na página 554, uma na página 556, uma na página 558 e, finalmente, sendo citado duas vezes (sendo uma em rodapé) na página 560. Observando os contextos em que esses termos surgem, podemos considerar que, no primeiro volume da coleção (KI-ZERBO, 2010), Hichem Djait (2010) apresenta um panorama sobre a cultura e produção escrita da África Romana até o século XV, contudo, embora seu um recorte temporal seja muito amplo, e as menções os vândalos seja breve, o autor parece considerar a importância do período do Reinado Vândalo na África, pois assertivamente considerou a existência de um ápice da produção escrita entre os séculos V e VI, “O intermédio vândalo, a reconquista bizantina e a presença bizantina durante mais de um século, levaram um

número maior de escritores a registrar os acontecimentos. Os documentos chamados “menores” são abundantes” (DJAIT, 2010, p.92), e ainda considera que, os antiquistas e intelectuais europeus haviam sido decisivos para preservar as fontes do período vândalo e bizantino, respectivamente na Patrologia Latina e na Monumenta Germaniae Historica, embora considerasse que esse campo de estudo ainda permanecia esquecido, mesmo com o contraste da riqueza de fontes para o período. (DJAIT, 2010, p.92). Assim, passando de uma discussão mais metodológica e expositiva, no segundo volume da coleção (MOKHTAR, 2010), onde nossas expectativas se convergiam, por se tratar de um livro que aborda um recorte temporal que se estende até meados do século VII, observarmos uma perspectiva conturbada a respeito do Reino Vândalo, embora Jehan Desanges (2010) aborde o termo ‘vândalo’ uma única vez, seu juízo de valor sobre a contribuição populacional dos vândalos em África, se contradiz com as evidências historiográficas do século V e VI: “Em nossa opinião, o número total de colonos romanos instalados na região à época de Augusto ultrapassa de pouco os 20 mil [...] Quanto aos acréscimos vândalo e bizantino, foram provavelmente ainda mais modestos” (DESANGES, 2010, p.451), Desanges não apresenta qualquer fonte ou referencial bibliográfico que comprove sua ‘opinião’, em contraposição, sabemos que é realmente difícil estimar precisamente qual o tamanho da população vândala que ingressou na África em 429. Mas, Victor de Vita em sua Historia Persecutionis Africanae Provinciae de 489,

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GNARUS - 64 apresenta que rei vândalo Genserico havia exigido que seu povo fosse contabilizado antes da travessia, “Including old men, young men and children, slaves and masters, there was found to be a total of 80,000” (VICTOR OF VITA, 2006, p.3), ainda que Victor de Vita desejasse depreciar os vândalos afirmando que tal número só seria atingido, se também fossem contabilizados os civis, ao analisarmos Procópio de Cesareia ele parece não subestimar o tamanho dos exércitos vândalos, e ainda nos apresenta como os exércitos de Genserico haviam sido contabilizados: “over them no fewer than eighty captains, whom he called chiliarchoi [commanders of a thousand], making it appear that his army in service amounted to eighty thousand” (PROKOPIOS, 2014, p.156), é possível que Procópio de Cesareia seja uma fonte mais confiável que o bispo de Vita, pois além de ter sido uma testemunha ocular das campanhas de Belisário entre os anos de 533 e 534, ele também apresenta que, os vândalos representavam um número consideravelmente alto entre as populações africanas, “after that time by having children and by associating other barbarians with them they came to be an extremely numerous people” (PROKOPIOS, 2014, p.156). Deste modo, mesmo com números conservadores de Roland Steinacher (2016), ele havia estimado que “Die Barbaren [Vandalen] machten demnach weniger als ein Drittel der Einwohner Karthagos aus” (STEINACHER, 2016, p.95), portanto, contrastam severamente com o juízo de valor apresentado por Desanges e a pouca expressividade que atribui aos vândalos, e até mesmo aos romanos, que de acordo com Steinacher eram estimados em mais de 3 milhões de habitantes, números muito

superiores, ao que pressupunha Desanges. (STEINACHER, 2016). Ammar Mahjoubi (2010) por outro lado, prefere se abster e apresenta o Reinado Vândalo apenas como um período que encerra a dominação romana em África, “toda a África do Norte se tornou romana, permanecendo assim até a invasão vândala” (MAHJOUBI, 2010, p.501), contudo, é preciso apresentar que, mais recentemente, os vândalos tem deixado de serem representados como invasores das províncias africanas, Konrad Vössing (2014) considerou ainda que, nas últimas duas décadas, a representação de invasões bárbaras ou de invasores, acabaram se tornando “clichés historiques” (VÖSSING, 2014, p.928), isso porque, análises mais adequadas e satisfatórias têm percebido uma importante relação entre os reis vândalos Gunderico (406-428) e Genserico (428-477) com o comes Africae Bonifácio, que havia utilizado os exércitos vândalos como um apoio para as guerras civis entre ele, Aécio (magister militum per Gallias) e Felix (magister militum praesentalis) que haviam perdurado entre os anos de 425 a 433, e por esse motivo, os vândalos teriam sido convidados por Bonifácio para servirem a ele na África, que inclusive, havia prometido 1/3 das terras africanas para os vândalos, caso o apoiassem (PROKOPIOS, 2014, p.151), assim o Reino Vândalo só teria sido percebido como uma ameaça após o cerco de Hippo Regius em 431, que como consequência levou a morte Santo Agostinho, essas perspectivam também ajudam a colaborar na explicação para a falta de resistência e confrontos entre vândalos e romanos de 429 até 431. (HEATHER, 2008; WICKHAM, 2009; STEINACHER, 2016; HUGHES, 2017).

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GNARUS - 65 Deste modo, observamos que as apresentações Desanges e Mahjoubi, ainda que apresentem problemas metodológicos ou analíticos, elas são insuficientes e quase inexistentes para considerar que os vândalos haviam sido tratados como protagonistas de um reino em ascensão, que se colocou como uma importante potência do Mediterrâneo, competindo com o Império Romano tanto do Ocidente, como do Oriente. Logo, partindo para o capítulo de Pierre Salama (2010) observamos que, apesar dele ter considerado apresentar o período vândalo como autônomo da História de Roma, ao expor um subcapítulo “O Episódio Vândalo” de duas páginas (SALAMA, 2010, p.548-549), ele também foi o autor que mais deturpou e prejudicou a História do Reino Vândalo com seus preconceitos, pouco ou nada fundamentados em referenciais bibliográficos, e menos ainda em fontes do período Assim, somos desejosos de contribuir para romper com alguns paradigmas que são apresentados por Pierre Salama (2010) que afirma: “Nada era mais inesperado na África do Norte do que estes conquistadores de origem germânica. Nenhuma dominação se adaptou menos às realidades do território” (SALAMA, 2010, p.548). Temos assim, duas perspectivas equivocadas: a primeira um despreparo do autor para lidar com a temática, ao não utilizar nenhuma evidência que comprove sua opinião, pois ao contrário do que sugere Salama, podemos observar uma importante integração entre mouros e vândalos na Historia Persecutionis de Victor de Vita, ao expor a participação moura no saque de Roma de 455 durante o Reinado

de Genserico (VICTOR OF VITA, 2006, p.12), e ainda como aliados no Reinado de Hunerico (477-484) que eram encarregados de levar ao exílio clérigos católicos contrários ao rei, que eram entregues como escravos ao Rei Capsur dos mouros (VICTOR OF VITA, 2006, p.16). A segunda observação que devemos apresentar, é que o termo ‘germânico’ tem sido cada vez menos recorrente, e exibe gradativamente um desuso pela historiografia mais recente, por considerar um termo sem grande versatilidade, e que por isso compreendemos como termo e não como um conceito. Para Jörg Jarnut (2004) o principal fator que tornou esse termo obsoleto foi a constatação de que os povos que atravessaram as fronteiras do Império Romano no século V, entre eles os vândalos, não se reconheciam, assumiam ou se declaravam dessa forma, mas que antes, havia sido uma criação da historiografia latina para justificar a não conquista dos territórios a leste do Reno, atribuindo a esses povos dito ‘germânicos’ um nível intermediário entre a barbárie e a civilização, que não necessitavam da intervenção romana, Jarnut ainda apresenta como opção o uso de termos como “‚Franken‘ und ‚Alemannen‘. Verbreiteter als ethnographischer Oberbegriff war der der ‚gotischen Völker‘, zu denen nicht nur die Ostund die Westgoten, sondern auch die Gepiden und die Vandalen gehörten“ (JARNUT, 2004, p.108), pois para o autor, eram termos mais usuais entre os próprios povos que descrevemos. (JARNUT, 2004; HUGHES, 2017). Outra problemática do uso do termo ‘germânico’, é que ele havia sido utilizado pela historiografia dos séculos XIX e XX para

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GNARUS - 66 justificar crimes contra a humanidade e a expansão dos impérios que se identificavam com o ideal do guerreiro nobre e expansionista (JARNUT, 2004), e que talvez apresente algum sentido para Salama, pois atribui aos vândalos o status de conquistadores e colonizadores europeus. Nesse sentido, o autor parte do princípio de isolamento das comunidades africanas à presença de vândalos e bizantinos que ele julga serem estrangeiros, em oposição ao domínio muçulmano que julga ter apagado “pouco a pouco a influência latina, revelando o inextinguível espírito de independência e a imensa firmeza de objetivos que é a marca imutável da história da África do Norte” (SALAMA, 2010, p.560). Portanto, fica evidente que o autor fala mais de seu próprio período do que sobre os séculos V e VI, logo, o autor comete o uso de anacronismos ao referenciar que supostamente, pelas influências vândalas e romanas não terem persistido até os dias atuais, não mereciam serem julgados como um episódio da História Africana. De acordo com a citação acima, após esse período de ‘dominação europeia’ a África havia permanecido ‘imutável’ revelando este espírito independente, deste modo, devemos considerar que vândalos e romanos foram invasores ou ‘colonialistas’ dos territórios africanos? Ou devemos ainda considerar que a História só é válida quando as necessidades e desejos do presente forem compatíveis com o passado que se coloca como ancestral e imutável? Creio que até aqui, temos referenciado que as relações entre africanos e vândalos que são mais flexíveis e integradoras do que a perspectiva que Salama tenta apresentar, como se estes

africanos estivessem imunes a chegada desses povos, ao fazer isso, ele também passa a rejeitar a própria contribuição desses povos para a ascensão do Reinado Vândalo no Mediterrâneo. Acerca daquilo que Salama (2010) considera um contato inesperado, Hichem Djait (2010) parece discordar, já que define a África do Norte (Magreb) como uma área etnocultural mediterrânico-cristã, que havia sido impulsionado pelos romanos e mantido pelos vândalos “os séculos III e IV são marcados pela predominância de escritos cristãos, especialmente os de Cipriano e Agostinho” (DJAIT, 2010, p.91), dos quais apresentam e representam o posicionamento da cristandade africana e suas contribuições à Igreja de Roma, e também a partir do século V nos fornecendo um panorama histórico dos eventos através do ápice da cultura escrita na África. (DJAIT, 2010). Portanto, fica explícito para nós, que mesmo entre seus colegas da obra sua perspectiva poderia ser reprovada. Afinal, ao considerar os africanos como um grupo separado e imune do contato com os vândalos, Salama rejeita a própria contribuição desses povos na ascensão do Reino Vândalo no Mediterrâneo, e na própria construção da identidade vândala, pois Walter Pohl (2002) expõe que etnia e identidade étnica, são construções socioculturais que tem por objetivo reunir e constituir as aristocracias de um reino sob a percepção de estarem ligados por laços de sangue e/ou interesses mútuos, a estrutura social era adaptativa e possibilitava a incorporação de pessoas com origens distintas, “This model made possible the overthrow of the deeply entrenched paradigm that ethnicity was essentially biological and

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GNARUS - 67 immutable, and permitted the development of a more dynamic understanding of ethnic processes in Late Antiquity and the early Middle Ages” (POHL, 2002, p.221), Andrew Gillet (2002a) define a metodologia de Pohl como uma análise filológica herdada de Reinhard Wenskus e Herwig Wolfram, dois historiadores proeminentes entre as décadas de 60 e 90, portanto, contemporâneos do período que Salama escreve, Gillet ainda considerou esses autores haviam se consolidados como uma ‘ortodoxia’ nos estudos e pesquisas acerca da etnogênese, isto porque, eles vinculam a tradição enquanto ponto-chave das identidades. (GILLET, 2002a, p.3). Como exemplo, podemos observar que Andrew Gillet (2002b) também acredita que etnicidade dos Reinos Pós-Imperiais eram definidoras dos relacionamentos externos, não apenas com romanos, mas também entre germânicos, sendo esta, uma maneira de consolidar estruturas hierárquicas entre povos, através de discursos de poder: “The study of ethnic groups is really the study of the ‘topography of power’ of the early medieval West. Ethnicity is elevated from a circumstantial particular to a shaping ideology” (GILLET, 2002b, p.86). Guy Halshall (2007) parece estar em concordância com Gillet quando refere-se que a etnicidade é uma identidade forjada nos constantes relacionamentos entre povos, destaca ainda que, etnia e identidade podem ser conceitos distintos, mas que se conectam em momentos práticos do contato sociocultural, deste modo, a identidade seria uma característica para o reconhecimento étnico (HALSHALL, 2007), e que portanto, também podem e devem ser replicadas no

contato entre vândalos e africanos. Elikia M’Bokolo (2009) considera que a História Mediterrânica deve obter um aporte metodológico que evidencie as complexas relações africanas estabelecida com povos ‘estrangeiros’ e não mais de uma perspectiva que apenas referencie os processos de chegada e dominação de outros povos no interior da África figurando uma suposta passividade e conformidade, não considerando uma relação de interesse e influencia mutuas. Deste modo, temos observado que apesar do Reino Vândalo não estar totalmente ausente na História Geral da África, as poucas menções que são feitas, ou tem meramente um caráter expositivo, para destacar que houve um período intermediário entre o domínio romano e o domínio muçulmano, ou carregam perspectivas estereotipadas que, além de não terem fundamentação teórico-metodológica, ainda expõe uma compreensão bastante prejudicial a História da África, pois mais uma vez, retira o prestígio de um período que a região do Magreb esteve em grande evidência, e ainda colabora para associar a historiografia medieval a uma visão eurocêntrica, que nada colabora para o seu desenvolvimento, e nem mesmo se aplica as recentes inovações do campo.

A titularia real dos suecos como pretexto para o apagamento. Assim, acreditamos que tenha ocorrido um apagamento intencional do Reino Vândalo na História Geral da África, pela preocupação contemporânea de mais uma vez exporem

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GNARUS - 68 um período de dominação e colonização europeia, em um período de grandes tensões, como as reivindicações de independências africanas. Contudo, como nos apresenta Tefan Donecker (2009) e Roland Steinacher (2004; 2016) os Estados-Nações da Polônia e da Suécia haviam competido pelas reivindicações da ancestralidade étnica e herança históricocultural de godos e vândalos, passando a utilizar as identidades como títulos reais, conforme vemos na figura 1 abaixo. A reivindicação da Polônia, no entanto, baseava-se na suposta origem étnica e geográfica dos vândalos, associada a cultura Przeworsk presente entre os rios Oder e Vistula até o século II, quando ocorre um

aumento gradativo e exponencial da cultura Wielbark, que foi relacionada aos godos, período que marcaria o declínio da cultura Przerworsk nessa região. Steinacher acredita que após terem entrado em conflito com os godos, os vândalos teriam iniciado um êxodo para a regiões próximas ao Danúbio, Haider (2008) também considera que o declínio da cultura Przerworsk foi um efeito de uma migração em massa, contudo, Gauß (2008) ainda aponta que, embora os godos e vândalos fossem reconhecimentos como grupos maiores dentro dessas culturas, não seria possível associá-las à apenas um povo, uma vez que ambas as culturas também integravam outros povos menores. (GAUß, 2008; HAIDER, 2008; STEINACHER, 2016).

Figura 1 – Medalha de prata Gustav II Adolf, 1634.¹

1 Na figura do lado esquerdo, lemos a seguinte inscrição que circunda a medalha: GUSTAVUS ADOLPHUS MAGNUS DEI GRATIA SUECOR[UM]: GOTHOR[UM]: ET VANDALOR[UM]: REX AUGUSTUS, que podemos traduzir como: “Gustav Adolf o grande, pela graça de Deus, venerável rei dos suecos, godos e vândalos”. The British Museum, número de registro: M.1953. Acesso em 28/04/2020. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/C_M-1953

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GNARUS - 69 Certamente, associar essas culturas aos vândalos e godos não é uma tarefa fácil, e não caberia aprofundar essa relação e análise nesse artigo, mas basta para nós compreender que a Polônia tenta reivindicar seu espaço cultural e político, através da associação de seu povo a esse território e ancestralidade, como Steinacher (2004; 2016) nos apresenta que a primeira tentativa de apresentar os vândalos como ancestrais dos poloneses, havia ocorrido no início do século XIII através do bispo de Cracóvia, Vincentius Kadlubek, que incorporou os vândalos a um conhecido folclore polonês de sua época, como forma de registrar a ‘pré-história’ da Polônia em sua crônica “Den Vandalennamen konstruierte Vincentius nach der sagenhaften Polenkönigin Vanda, deren Untertanen Vandali geheißen haben [...] Vandas Vater Graccus figuriert als erster König Polens. Die Gründung Krakaus wird ihm zugeschrieben” (STEINACHER, 2004, p.346). Dessa forma, seus predecessores seguindo sua crônica foram replicando e aperfeiçoando essa perspectiva. Ainda que os poloneses tenham sido os predecessores da utilização do termo vândalo para compor seus títulos reais, em meados de 1540, Gustav I da Suécia alterou seu título para: “Suecorum, Gothorum et Vandalorum rex”, ou em sueco: “Sveriges, Göthes och Vendes Konung”, portanto, se autointitulando como “Rei dos Suecos, Godos e Vândalos”. É preciso considerar que pouco antes, por volta de 1519, Albert Krantz defendeu a ideia de que as nações da Liga Hanseática tinham uma origem étnica em comum com os vândalos, e passou a considerar e nomear as regiões aos arredores do Mar Báltico como Wandalia, deste modo, ele passa a considerar

um elemento comum entre essas Nações, e encerra com algumas hostilidades provindas de disputas territoriais que se baseavam na ancestralidade étnica permitindo a manutenção e a pacificação entre os povos da Liga ao considerar a identidade vândala em termos mais amplos, do que aqueles defendidos por poloneses deste o século XIII. (STEINACHER, 2004; 2016; DONECKER, STEINACHER, 2009). Donecker e Steinacher (2009) apresentam que a estratégia de Gustav I era reivindicar sua primazia sobre a região Mar Báltico, e também para integrar a realeza finlandesa e reivindicar a posse do atual território da Finlândia. Assim, a adição do termo Vandalorum ou Vendes (Wendes/Wenden a depender da grafia) teria sido um importante elemento de assimilação do Império Sueco, e que colaborou na manutenção do prestígio e status da monarquia sueca na região. Os autores observam também que, a partir do século XVII passam a surgir novos estudos que acreditavam que os vândalos teriam inicialmente surgidos nas regiões da Escandinávia, assim como os godos, e em algum momento de sua pré-história teriam migrado para a Europa Continental, se estabelecendo aos arredores do Báltico. (DONECKER, STEINACHER, 2009). Apresentando assim, uma justificativa e motivação para as guerras que a Suécia travou ao longo dos séculos posteriores, “in der historisierenden Selbstwahrnehmung des frühneuzeitlichen Schwedens, als ein weiterer Beleg dafür, dass das Land zu jeder Zeit imstande war, ruhmreiche Krieger und Eroberer in alle Ecken der Welt zu exportieren” (DONECKER,

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GNARUS - 70 STEINACHER, 2009, p.198). Deste modo, podemos observar que o título apresenta muitos elementos constituídos através de uma compreensão e legitimação histórica que visava, assim como o termo ‘germânico’ apresentado por Jarnut (2004) exibia um ideal do nobre guerreiro e conquistador. Essa percepção certamente foi perpetuada pelos reis suecos que utilizaram o título de “Sveriges, Göthes och Vendes Konung” de 1540 até 1973, como podemos conferir na figura 2 abaixo, que apresenta uma medalha de 1966 com o título e a face de Gustaf VI Adolf, e que nos apresenta um grande sucesso na conservação da hereditariedade do título, sua utilização permaneceu vigorosa até a morte de Gustaf VI Adolf em 1973, que foi considerado o “letzter König der Vandalen” (STEINACHER, 2016, p.349), quando Carl XVI Gustaf sucedeu ao trono e dispensou seu uso,

sendo atualmente reconhecido apenas como “Sveriges Konung”. Portanto, com a coleção tendo sido escrita entre 1960 e 1980, é possível que os africanistas da História Geral da África, observassem os povos vândalos como tendo uma representação histórica e política, cujo seu correspondente era a monarquia sueca, que reivindicou durante vários séculos uma herança cultural e étnica dos vândalos, que correspondiam com o ideal sueco de um povo guerreiro que ascendeu como um dos grandes Reinos Pós-Imperais, conquistando uma importante parte da África do Norte e do Mediterrâneo Ocidental, e portanto, apresentar a História dos Vândalos, poderia ter causado receio do que essa representação poderia ocasionar. Ao menos é esta a perspectiva que, com

Figura 2 – Medalha de ouro Gustaf VI Adolf, 1966.²

2 Observamos ao lado esquerdo da figura, que o título de “rei dos suecos, godos e vândalos” permanece, mas as-

sume uma nova característica linguística, tendo sido escrito em sueco: “GUSTAV VI ADOLF SVERIGES GÖTES OCH VENDES KONUNG”. Digital Museum of Sweden, número de registro: Jvm23637-1-2. Acesso em 30/04/2020. Disponível em: https://digitaltmuseum.se/021027949468/medalj

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GNARUS - 71 exceção de Hichem Djait (2010), os vândalos são retratados, isto é, como colonizadores estrangeiros que não haviam contribuído para a História da África em uma perspectiva mais ampla. Logo, podemos considerar que um dos objetivos propostos na Apresentação do Projeto, escrito por Bethwell Allan Ogot não havia sido cumprido: “Os laços históricos da África com os outros continentes recebem a atenção merecida e são analisados sob o ângulo dos intercâmbios mútuos e das influências multilaterais” (OGOT, 2010, p. XXVIII), e apesar de não terem sido avaliadas as influências mútuas, e tão pouco considerado as relações entre os vândalos e os romanos-africanos, e menos ainda com os povos, ditos mouros, que poderiam sim transformar as perspectivas apresentadas pelos autores dessa coleção, devemos levar em consideração que, em um dos pontos levantados por Ogot, ele escreve: “em larga medida, o fiel reflexo da maneira através da qual os autores africanos veem sua própria civilização” (OGOT, 2010, p.XXVIII). Assim, embora a História Geral da África não seja precisa e apresente alguns estereótipos da História dos Vândalos, essa coleção nos apresenta em alguma medida, como os africanistas e autores africanos consideraram e perceberam essa História, de modo, ainda bastante eurocêntrico e europeizada, com receios bastante explícitos, de novamente replicarem uma África conquistada e colonizada, e que associa os vândalos mais com as descobertas arqueológicas na Europa, do que com a ascensão de seu reino como uma potência do Mediterrâneo, que teve como capital a cidade de Cartago, e que fez com que Sidônio Apolinário observasse no século V o rei vândalo Genserico como um

novo Aníbal. (JIMENEZ, 2012). Certamente esse apagamento e o silêncio dessa historiografia em relação aos vândalos, ainda nos diz muito sobre como não apenas os historiadores têm percebido a História dos Vândalos, mas também em um aspecto mais amplo da História Medieval, que aos poucos tem tomado novas formas que colaboram na manutenção dessa percepção.

Geraldo Rosolen Junior é mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo, pesquisador vinculado ao Laboratório de Estudos Medievais (LEME/UNIFESP), associado ao Núcleo de Estudos Bizantinos e Conexões Mediterrânicas (NEB/UNIFESP) e Bolsista CAPES.

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Artigo

DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE MASSA: A NECESSIDADE DA SOCIEDADE INDUSTRIAL Por Renato E. de L. Oliveira

RESUMO: Nossa sociedade está inserida no mundo capitalista, o sistema que age através de relações de produção, criando laços de dependência. No século XVIII a indústria irá se desenvolver e durante o século XIX irá se consolidar, os países iniciam suas industrializações e começam a perceber a necessidade de criar um projeto educacional em consonância com a realidade econômica, mas não era possível permitir uma ampliação sem o controle das elites. Neste contexto se encontra a escola, onde as crianças passam boa parte de suas vidas, no entanto, a instituição não passa apenas conteúdos, mas sobretudo educa os corpos, disciplinando-os. Os estudantes são, indiretamente, ensinados desde cedo a se adequarem as relações do trabalho. Palavras Chaves: Educação. Capitalismo. Trabalho

Introdução

A

o longo da história sempre existiram formas de iniciar as crianças na vida adulta. Podemos observar que na Idade Antiga a educação e iniciação se dava no seio familiar, onde “o jovem varão simplesmente acompanha o pai no trabalho da terra, no foro ou na guerra, enquanto as filhas permanecem junto a mãe ajudando-a em outras tarefas.”1 Mesmo em nossa sociedade é inegável que a família continua com sua primazia na educação social, tendo em vista que é onde a criança 1 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 105

tem o primeiro contato com a sociedade. Avançando para a Idade Média podemos perceber que a educação continua centrada na família, mas desta vez as crianças não ficam na família que as geraram, e sim, eram enviadas para um lar diferente. A falta de coração dos ingleses manifestase particularmente em sua atitude para com seus filhos. Após havê-los tido em casa até os sete ou nove anos (entre nossos autores clássicos, sete anos é a idade em que as crianças deixam as mulheres para incorporar-se à escola ou ao mundo dos adultos), colocam-nos, tanto os meninos quanto as meninas, no duro serviço das casas de outras pessoas, as quais as crianças ficam vinculadas por um período de sete a nove

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anos (portanto, até a idade de quatorze a dezoito anos, aproximadamente). São chamados então de aprendizes. 2

Na casa de outra família as crianças, agora aprendizes, irão se moldar as normas da casa, ou em outras palavras as normas da sociedade vigente. Essa educação não deixava divisões entre educação, família e trabalho. À criança cabia servir e obedecer às normas, aprendendo as boas maneiras, e aos donos da casa cabia a obrigação de educar, “mas também a alimentá-lo e a vesti-lo, dar-lhe uma formação moral e religiosa e prepará-lo para converter-se em um cidadão.3 Com o passar dos séculos um novo modelo econômico social vai se desenvolvendo, tratase do sistema capitalista. A nova configuração da sociedade irá exigir um novo modelo de trabalho, consequentemente um novo modelo de trabalhador, que será formado em instituições de ensino para depois seguirem para o mercado de trabalho. A escola foi muito importante para o momento de transição que foi forçado pelo desenvolvimento da indústria. Ao mesmo tempo em que a escola foi peça central nessa transição foi também alvo, sendo afetada por choques de gerações. É importante ressaltar que a sociedade como um todo estava sendo afetada, mas a escola foi utilizada como fonte de propagação dos ideais do liberalismo capitalista.

2 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 106. 3 Ibid., p. 107.

A necessidade do século XVIII Com o fim da classe camponesa devido a política de cercamento, surgiu o sistema agrário embasado nos latifúndios e grandes arrendamentos. Os camponeses e trabalhadores agrícolas não conseguiam se manter nos campos, a solução foi então ir para a cidade e oferecerem sua única posse, a força de trabalho. Nem todos conseguiam empregos, e agora formavam o que Marx chamava de exército de reserva industrial.4 A relação patriarcal-feudal estava rompida, o indivíduo conseguia autonomia sobre si, porém via-se submetido a uma relação de dependência. A revolução industrial criou uma mudança nas relações econômicas, sociais, política e em última instancia cultural. A nova forma de trabalho exigia disciplina, ordem, os trabalhadores, adultos, estavam acostumados a não ter hora para trabalhar devido a dinâmica do trabalho do campo. O campo não exigia divisão entre trabalho e vida particular, ou seja, somente com muito esforço um adulto se acostumaria a rotina de uma fábrica, por outro lado as crianças se apresentavam como mão de obra barata e ainda em formação. Quando estas crianças tiverem quatro anos, serão enviadas a uma casa de trabalho rural e, ali, ensinadas a ler duas horas ao dia e mantidas plenamente ocupadas o resto de seu tempo em qualquer das manufaturas da casa (...). É de considerável utilidade que estejem, de um modo ou outro, constantemente ocupadas ao menos doze horas ao dia, quer ganhem a vida ou não; pois, por este meio, 4 Conceito desenvolvido por Karl Marx em sua crítica da economia política, e refere-se ao desemprego estrutural das economias capitalista que contribui para alienação do proletariado.

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GNARUS - 76 esperamos que a geração que está crescendo estará tão habituada a ocupação constante que, em geral, lhe será agradável e divertida (...). 5

A escola então passa a ser considerada como uma opção para sanar o problema das crianças ociosas e ao mesmo tempo traria a educação e disciplina necessárias para a realidade fabril. Na Inglaterra defendia-se a expansão das escolas, embora pudesse encontrar opositores em estender a educação aos pobres. (...) ensinassem a ler e a escrever pessoas que não necessitavam mais que aprender a desenhar e a manejar o buril e a serra, mas que não querem continuar fazendo-o (...). O bem da sociedade e exige que os conhecimentos do Povo não se estendam além de suas ocupações.6

Na mesma linha de pensamento encontravase o filósofo John Locke, considerado o “pai do liberalismo”. Locke acreditava ser desnecessário incentivar a educação para as classes baixas, eles eram os braços e não o cérebro da sociedade, necessitavam de disciplina e não de conhecimento. O estudo das ciências em geral é assunto daqueles que vivem confortavelmente e dispõem de tempo livre. Os que tem empregos particulares devem entender as funções; e não é insensato exigir que pensem e raciocinem apenas sobre o que forma sua ocupação cotidiana. 7

O historiador alemão, Werner Markert na obra Teorias de educação do iluminismo, conceitos de trabalho e do sujeito coloca mais um exemplo de Locke, o que reforça o 5 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 109. 6 Ibid., p. 111. 7 Idem.

pensamento da época. (...) A maior parte da humanidade não tem paciência para o estudo e a lógica e as sutis diferenças das opiniões acadêmicas. Quando as mãos estão habituadas ao arado e à pá, a cabeça só raramente desperta para pensamentos elevados e não pratica raciocínios misteriosos.8

Despertar pensamentos misteriosos significavam colocar em risco o status quo, a maior parte da sociedade não pode ter pensamentos misteriosos e para evitar isso basta evitar o estudo. Para Locke a única educação que importava era dos filhos da burguesia, que Locke chama de um gentleman (cavalheiro), que seriam os futuros governantes. (...) quem quiser ser universalmente instruído deverá se familiarizar com os objetos de todas as ciências. Mas isso não é necessário pra um cavalheiro [gentleman], cuja ocupação própria consiste em estar a serviço de seu país — daí que esteja mais propriamente preocupado com a moral e conhecimento político (...) da sociedade civil e das artes do governo e, desse modo, incluem também o direito e a história. 9

Mas a educação não se restringe a mediação de conhecimento, ela traz consigo o pensamento reflexivo e essa questão assombrava a burguesia, educar ou não educar a população mais pobre. Necessitavam educar a população para que pudessem operar as máquinas. O proletário trabalhando 8 MARKERT, Werner. Conceitos de formação do homem como manifestação da razão burguesa: a relação entre educação, propriedade de progresso técnico. In: ___ (org.). Teorias de Educação do Iluminismo, conceitos de trabalho e do sujeito: contribuições para uma teoria crítica da formação do homem. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 1994. 9 NASCIMENTO. Christian L. Lopes. Locke e formação do gentleman. 2010. 129f. Dissertação (mestrado). Núcleo de pós-graduação em educação, Universidade Federal de Sergipe.

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GNARUS - 77 iria manter a indústria em funcionamento e a elite conseguiria manter e consolidar seu poder. Contudo, temiam permitir o acesso ao conhecimento para a classe mais baixa e mais numerosa pois não desejavam despertar a capacidade de reflexão visto que isso poderia desestabilizar o status quo. O Marquês de Condorcet, sustenta uma posição que viria a ser tomada, deixaria a população ter acesso à educação, mas a educação seria controlada. Ao direcionar o que as pessoas podiam ou não aprender afastariam o medo de a população entrar em contato com conhecimentos “inadequados”. É expandindo as luzes entre o povo que se pode impedir que seus movimentos se convertam em perigosos. (...) por que, então, não desejar que uma instrução bem dirigida lhes torne difíceis de serem seduzidos mais adiante, mais dispostos a cederem a voz da verdade?10

Era necessário educar a população, mas não muito, como coloca uma das empresas da época que fabricava algodão “(...) não queremos estadistas em nossas fábricas, mas indivíduos de ordem”.11 É importante deixar em evidência o fato, que Marx também chamou a atenção, que a primeira Revolução Industrial alterou a forma de pensar dos indivíduos, não só em relação ao trabalho, mas a relação com toda a sociedade. O artesão que faziam parte de todo o processo de trabalho até a produção do objeto, passa a fazer apenas uma parte do todo, alterando também sua relação com o 10 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 112. 11 Ibid., 113.

objeto. A relação do trabalhador com o trabalho havia se modificado, agora quem ditava o ritmo eram as maquinas. O trabalhador perde o controle do processo produtivo. É ele quem se adapta ao processo de produção, e não mais ao contrário, como acontecia na manufatura. Aqui temos o maior exemplo da alienação do trabalho teorizado por Karl Marx, onde o trabalhador perde o “controle” sobre o produto que faz, ele não sabe mais quanto material é necessário, qual o tempo médio para produzi-lo ou a quantidade que ele mesmo produz num dia. Através da introdução deste tipo de trabalho passa a ser necessário tornar o operário mais eficiente na função exercida. A educação, que antes era somente para a classe alta passa a ser oferecida de maneira ampla para as camadas mais baixas, criando dois tipos de instrução uma científica, técnica e profissional e a outra que era a educação social, uma para as classes baixas e a outra para a classe dominante.

A educação da ordem Ao ampliar a educação era necessário espaço para comportar as crianças para que elas recebessem a educação adequada. Mariano Enguita chama a atenção para o fato de que a escola não surgiu com a intenção de moldar o pensamento da população ao trabalho, “simplesmente [as escolas] estavam ali e se podia tirar bom partido delas.”.12 A educação material, primava para que rotina 12 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 114.

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GNARUS - 78 escolar “gerasse nos jovens os hábitos, as formas de comportamento, as disposições e os traços de caráter mais adequados para a indústria.” 13 Para a sociedade a ampliação da educação era justificada pelos avanços tecnológicos, e de fato o objetivo das escolas nunca deixaram de ser o ensino, mas a forma alterou-se. Havia uma preocupação muito grande com o que se ensina, o conteúdo permitido e o que se podia lecionar, entretanto o mais importante era aprender as relações do trabalho. A questão não era ensinar um certo montante de conhecimentos no menor tempo possível, mas ter os alunos entre as paredes da sala de aula submetidos ao olhar vigilante do professor o tempo suficiente para domar seu caráter e dar a forma adequada a seu comportamento. 14

A disciplina nas escolas era semelhante aos quarteis, buscava-se controlar a vida dentro e fora dos muros. Pontualidade, respeito a hierarquia, padronização do modelo de roupa adequada, a metodologia de ensino tentava controlar não somente a mente, mas sobretudo seus corpos. Essa ideia fica bem exemplifica como demonstra Foucault: (...) [na] palavra “entrem”, as crianças põem ruidosamente a mão sobre a mesa e ao mesmo tempo passam a perna por cima do banco; as palavras “em seus bancos”, passam a outra perna e sentam-se frente a suas lousas (...). Peguem as lousas. A palavra “peguem”, as crianças levam a mão direita a cordinha que serve para pendurar a lousa ao prego que está diante delas, e com a esquerda, pegam a lousa pela parte do meio; a palavra “lousas”, as crianças soltam-nas e

13 Idem. 14 Ibid, p. 116.

põem-nas sobre a mesa. 15

Através deste relato podemos evidenciar que a instrução poderia acontecer nas escolas, mas ficavam em segundo plano, sendo o principal aspecto apreciado era a ordem. Tudo na escola era necessário para ensinar a ordem, a disposição das cadeiras, a cor da parede, o tablado, a lousa, cada parte da escola formava o todo do mecanismo de controle institucional, o que Foucault chamou de dispositivo: (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. 16

E, efetivamente, são esses dispositivos que reinam nas salas de aula. E até os dias atuais podemos presenciar que as instituições de ensino presam pela ordem, além de passar o conteúdo a escola acaba por ensinar como se comportar numa sociedade capitalista. De fato, professores nunca questionaram que respeitar a autoridade é um problema, pois ensinar os alunos ao respeitar a autoridade estão ensinando a se portarem na vida adulta. Os responsáveis e a população, de maneira geral, consideram de suma importância o bom comportamento dos estudantes, desta forma as crianças e adolescentes já vão sendo conduzidos para uma lógica de vida 15 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis. RJ. 20ª Ed. Vozes. 1999. p. 192. 16 MARCELLO, Fabiana de Amorim. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitosmaternos. Revista Educação e Realidade, p. 199-213. jan./jun. 2004.

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GNARUS - 79 adulta. Nesse contexto a escola aparece para consolidar e diria até legitimar a submissão a autoridade, coisa que o seio familiar não conseguiria fazer. (...) a autoridade da escola já não é a autoridade indiscutida do pai (...). É, como a autoridade no trabalho, uma autoridade com tendência a ser total durante o período de tempo em que o indivíduo está incorporado a instituição e dentro do espaço delimitado por seus confins. 17

Trazendo novamente o conceito sobre dispositivos de Foucault perceberemos que eles são quase imperceptíveis, os dispositivos condicionam nosso comportamento, mesmo que não notemos sua presença. Basta nos recordamos de nossos tempos de colegial, não notamos que estávamos sendo altamente influenciados. Enguita utiliza-se das palavras de Friedenberg, mostrando como os dispositivos agem O fato de que as restrições e as penalidades sejam pequenas e não importantes em si mesmas é uma forma de piorar as coisas. As grandes intromissões são mais facilmente reconhecidas como tais; as pequenas restrições são resistidas apenas pelos mais “revoltosos” . 18

Outro ponto importante para colocar em evidência é a uniformização dos alunos, por uniformização entende-se que são as atitudes comportamentais que todos os alunos são submetidos e deve seguir. Esta uniformização está intimamente relacionada com o respeito a autoridade. Muitas vezes os professores lecionam suas disciplinas para 40 alunos ou mais, torna-se no mínimo complexo 17 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p.166 18 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 165.

conseguir manejar tantos alunos num espaço tão restrito como a sala de aula. Entretanto, ao minimizar as diferenças comportamental entre os alunos é possível aplicar uma só forma de aprendizado, onde todos os alunos são forçados a aprender a dinâmica da aula. O trabalho do professor passa assim a consistir (...) em ensinar crianças e jovens a comportar-se da forma que corresponde ao coletivo ou categoria em que foram incluídos, (...) premiando a conduta correspondente e rejeitando e mesmo penalizando tudo o que possa derivar (...). 19

Fica evidenciado que a escola busca um aprendizado universalista, onde o aluno x terá que se portar como o aluno y, criando uma sala homogênea. Ao serem inserido numa homogeneidade os estudantes aprendem a “cobrar” isso de outras pessoas, assim relaciona-se somente com indivíduos que pensem e ajam iguais aos seus critérios. A educação da ordem faz com que alunos e professores acabem por perder suas personalidades, tendo que se adequarem à escola e ao cargo que ocupam. A criatividade e o livre pensamento são substituídos pela ordem e autoridade, a escola, mesmo sem querer, passa a reproduzir a lógica do trabalho.

A colisão do capitalismo na educação A educação, como instituição, foi de grande auxilio para fornecer pessoas devidamente capacitadas para o trabalho e permitindo a ampliação do sistema capitalista. Outra contribuição foi a legitimação de valores da 19 Ibid., p. 168.

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GNARUS - 80 classe dominante, não só como difundindo o pensamento dominante, mas sobre tudo fazendo se perpetuar a dominação estrutural, que se deu através da subordinação a hierárquica. Naturalmente, nem mesmo os altamente respeitáveis pensadores da classe dominante podiam adotar uma atitude que divergisse do modo cruel de subjugar aqueles que deviam ser mantidos sob o mais estrito controle, no interesse da ordem estabelecida. Não até que a própria mudança das condições de produção modificasse a necessidade de uma força de trabalho (...). 20

É importante salientar que o sistema capitalista não é unicamente um sistema econômico, trata-se, antes, de um modelo de sociedade, ou seja, não se limita ao campo monetário, ele perpassa todos os âmbitos particulares e sociais. Podemos encontrar um forte exemplo na religião, que antes condenava a usura e práticas de enriquecimento e que passou a defender o acumulo de riquezas, até mesmo antes da Revolução Industrial, como nos mostra o sociólogo Carlos Eduardo Sell, da Universidade Federal de Santa Catarina: “A riqueza foi considerada perigosa apenas se desviasse o indivíduo do trabalho (...). Com certeza não para fins da concupiscência da carne e do pecado, mas sim para Deus.” 21 O luteranismo acredita que a salvação é alcançada através dos atos terrenos, logo, tornou possível alcançar o paraíso através de ações corporais. Juntamente veio o calvinismo, que introduziu o trabalho no mundo espiritual. O trabalho agora era visto como meio para se alcançar a salvação “(...) 20 MÉSZÁROS, István. A Educação Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 29 21 SELL, Carlos Eduardo. Sociologia clássica: Marx, Durkeim e Weber. Petrópolis. 7ª Ed. Vozes. 2015. p. 129.

o calvinismo completou aquilo que faltavam na visão [de] Lutero: um estímulo psicológico para a dedicação sistemática ao trabalho como centro da conduta de vida (...)” 22. O sociólogo Max Weber, na obra a ética protestante e o espírito do capitalismo, possui um trabalho bem consolidado sobre esta temática que inclusive serve de inspiração para os escritos de Carlos Sell. Com tantos estímulos, como a fé no progresso e no desenvolvimento cientifico, estimulo religioso e poucas oportunidades de emprego nas fábricas, não é de se estranhar que os operários sempre pediram mais escolas. A história hegemônica também tende a ver a escola com bons olhos, considerando-a como parte do desenvolvimento social. Tendo isso em vista, um questionamento é possível, em que medida o movimento operário teve culpa pelo desenvolvimento da escola de massas? Essa questão não é o objetivo do trabalho apresentado aqui, contudo essa história continua silenciada, e acredito ser um dever moral apontar mais este caminho na direção de um resgate da história da educação. Retomando notamos que a educação sofre uma profunda mudança quando ocorre a gênese do capitalismo, a vigilância e o controle agora faziam parte da relação pedagógica. Essa opressão contrastava com o ideal iluminista, se por um lado os pensadores liberais divulgavam seus valores liberais e igualitários, por outro lado a escola aparecia como desmistificador desse argumento. (...) as técnicas de domesticação, de manipulação, de regulamentação, cujo sentido e forma variam segundo a relação na qual se exercem (relação de assalariado, 22 Ibid., 128.

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GNARUS - 81 relação pedagógica, relação de autoridade em uma organização, etc.) podem ser constituídas como uma forma nova de poder.23

Essa nova forma de poder que Enguita cita é a domesticação da classe operária através da dominação do pensamento através da escola, que se mostrava como local de repressão e dominação onde as “normas, regras e controles disciplinares [são] destinados a sufocar a iniciativa e a individualidade”.24 E sem dúvida este é o maior impacto do sistema capitalista nas escolas, ter transformado elas em um mecanismo para difusão dos ideais da classe dominante e doutrinação da classe dominada. Indiretamente ou diretamente os professores e educadores foram responsáveis pela propagação das ideias da elite. Os educadores não tinham, necessariamente, consciência de que estavam domesticando a classe trabalhadora, mas ao passar as normas e zelar para que as mesmas fossem cumpridas estavam contribuindo para a formação de um conhecimento oculto. Essa questão tinha que ficar clara para todos aqueles que passassem pelas paredes das escolas, além de absorver o conteúdo os estudantes iriam aprender a obedecer, a respeitar e ser submisso a autoridade e talvez, aquilo que é mais importante, aprenderia a conviver com afazeres repetitivos, sem sentido aparente no qual teriam que ficar por longas horas. Somente quando a domesticação da classe 23 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 142. 24 Ibid., p. 141.

operária alcançou seu auge que possibilitou as escolas darem novas formas para a sobrevivência econômica e social ao criar, até brilhantemente, uma classe operária homogênea. A escola, ao lado da família, é a principal formadora de comportamento que a sociedade conhece, e também é a única instituição que abrange as crianças e dispõe de um grande tempo com elas. A escola recebe as crianças de todas as classes sociais desde o Maternal, e já desde o Maternal, tanto com os novos como com os antigos métodos, inculcam-lhes durante anos, precisamente durante os anos em que a criança é extremamente “vulnerável” (...). (...) Nenhum Aparato Ideológico de Estado dispõe durante tantos anos de audiência obrigatória (...). 25

A rotina da escola é espelho da relação do trabalho. As crianças são preparadas para entrarem na relação de produção através das relações sociais escolares. Enguita cita um trecho do livro Schooling in capitalist America, de Samuel Bowles e Herbert Gintis, mostrando que a relação dos “(...) professores e os estudantes e dos estudantes entre si e com seu trabalho - reproduzem a divisão hierárquica do trabalho”.26 Para Browles e Gintis, citado por Enguita, a educação deveria ter como principal motivação a própria integração do aluno “seja com o processo (a aprendizagem) seja com o resultado (o conhecimento) do ‘processo de produção’ educacional.” .27 Ao colocar o sistema de notas, a avaliação fica 25 Ibid., 147. 26 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 152. 27 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 152.

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GNARUS - 82 sendo meritocrática, onde as notas altas são bonificadas e as notas baixas punidas. No geral os estudantes que melhor se adequam a metodologia de ensino obtém as melhores notas, enquanto os alunos que sentem dificuldades em adaptar-se ao modelo institucional acabam por obter notas menores. Ao ampliar a educação para a população com menor poder aquisitivo a classe burguesa conseguia propagar suas ideias e convicções. Nesse sentido a escola de massa conseguiu cumprir seu objetivo, fez com que os estudantes saíssem acostumados com a relação do trabalho. Ao educar a mente e o corpo os estudantes conseguiriam facilmente se adequar ao sistema social nascente.

ensino se modifica, as pessoas se modificam, e a sociedade muda junto. Ao configurar as escolas como principal centro irradiador do conhecimento abriu brecha para ser também a principal espaço da dialética, ou seja, para tornar-se centro de debates e estes podem conduzir ao desenvolvimento social. A escola não é nada mais do que a união dos membros que a forma. Por isso é necessário cada um assumir sua responsabilidade social perante a formação de novas gerações. A educação é muito mais do que aprender conteúdos e se formar para o mercado de trabalho, a educação é passaporte para uma sociedade mais justa e igualitária. Como dizia Paulo Freire (1967)28 a educação serve para conscientizar os homens sobre a problemática do seu tempo e lutar contra os perigos que cada período histórico apresenta.

Considerações finais Ao longo dos séculos a forma de se ensinar foi modificada diversas vezes, de modo que não existe uma padronização de estudos, cada sociedade definiu para si como o conhecimento seria transmitido. Este trabalho apresentou um recorte temporal demonstrando um determinado modelo educacional, que surgiu para atender a demanda da sociedade industrial nascente, e que até os dias atuais encontra refúgios, entretanto não significa que seja o único modelo aceito. As instituições de ensino, por excelência, são espaços de socialização, o que significa que as ideias, isto é, as diversas visões de mundo, são confrontadas. Não é porque determinada forma de instrução se consolidou que permanecerá para sempre, o

Renato E. de L. Oliveira é Graduado em História pela Universidade Cândido Mendes (2017) e Pós-Graduado em Gestão Pedagógica: Supervisão e Orientação Educacional pela Universidade Veiga de Almeida (2020).

28 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Ed. Paz e Terra. 1967.

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Artigo

O ESTREITAMENTO DAS RELAÇÕES DE INTEGRAÇÃO REGIONAL E A FORMULAÇÃO DO BRICS DURANTE O GOVERNO LULA COMO INSTRUMENTO DO AUMENTO DA RELEVÂNCIA DO BRASIL NA COMUNIDADE INTERNACIONAL Por Marcus Vinicius Vilanova Gralha RESUMO: A virada para o século XXI trouxe uma série de mudanças para o Brasil, tanto nas suas políticas internas, quanto em suas políticas externas. O Partido dos Trabalhadores (PT) esteve à frente do Governo brasileiro durante 14 anos, nos governos Lula e Dilma. Focado no populismo, o governo trouxe uma série de mudanças tanto no cenário interno quanto no cenário externo. No aspecto interno, pode-se observar o grande crescimento e desenvolvimento brasileiro através de políticas públicas que melhoraram os índices de saúde, educação e de erradicação da pobreza. Já no cenário externo, pode-se notar uma mudança no viés dos acordos e prioridades do governo brasileiro. A América Latina passa a ser a prioridade, principalmente o MERCOSUL, dando uma importância ao bloco que até então era pouca, e que tinha a concorrência da ALCA. Além do MERCOSUL, pode-se destacar o surgimento do bloco dos BRICS e da UNASUL. O presente artigo busca analisar como a mudança interna (do neoliberalismo ao populismo) e externa (dos países do considerado Primeiro Mundo para os países subdesenvolvidos) da política brasileira trouxeram o Brasil de volta a uma posição de destaque no cenário internacional. Palavras Chaves: Brasil; MERCOSUL; Política Externa; Lula; BRICS; UNASUL

Introdução

N

o final do século XX e no início do século XXI, a política externa brasileira começou a tomar novos rumos. Durante o Governo FHC, a política externa do Brasil foi redirecionada para o contexto neoliberal da globalização, no qual o cenário internacional estava amplamente aberto aos fluxos comerciais e financeiros. Já durante o Governo Lula, um novo viés para a política externa foi tomado: o Brasil reforçou a sua atuação no cenário internacional,

principalmente no organismos internacionais e também redirecionou o seu foco para nas parcerias bilaterais e multilaterais. Essa quebra com a vertente neoliberal do antigo governo vai de encontro com as posições do Partido dos Trabalhadores. As negociações comerciais se voltam agora para os países emergentes, como Índia, África do Sul, China e Rússia. Além disso, a América do Sul também terá um grande foco nas negociações do governo brasileiro entre os anos de 2002 e 2010. Mesmo com a grande discrepância entre as políticas adotadas durante os

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governos FHC e Lula, ambas tinham pontos em comum: desenvolver economicamente o Brasil preservando a autonomia política do Estado. Com a eleição de Lula algumas metas foram definidas na tomada de decisões da política externa: contribuição de um maior equilíbrio internacional, procurando atenuar o unilateralismo americano; fortalecimento das relações bilaterais e multilaterais de forma a aumentar o peso do país nas negociações políticas e econômicas internacionais; fortalecer as relações diplomáticas em busca de um maior aproveitamento nas áreas financeira, tecnológica, econômica e cultural; e evitar acordos que possam comprometer o desenvolvimento brasileiro a longo prazo. Esses pontos foram fundamentais para definir o rumo da política externa adotada durante os oito de mandato do Governo Lula. “Essas diretrizes, ao longo do primeiro período de governo, de 2003 a 2006, provavelmente desdobrando-se no segundo período, implicaram ênfases precisas: (1a) aprofundamento da Comunidade Sul-americana de Nações (Casa); (2a) intensificação das relações entre países emergentes como Índia, China, Rússia e África do Sul; (3a) ação de destaque na Rodada Doha e na Organização Mundial do Comércio, assim como em algumas outras negociações econômicas; (4a) manutenção de relações de amizade e desenvolvimento das relações econômicas com os países ricos, inclusive com os Estados Unidos; (5a) retomada e estreitamento das relações com os países africanos; (6a) campanha pela reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, visando um lugar de membro permanente para o Brasil; e (7a) defesa de objetivos sociais que permitiriam maior equilíbrio entre Estados e populações. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p.292)

A Cooperação Sul-Sul Seguindo com o rompimento neoliberal, o Brasil se mostrou engajado no que se diz respeito a traçar novas alianças. Como uma das metas do governo, o Brasil começou a firmar novas alianças nas áreas de tecnologia, comércio, economia e política com os Estados da periferia do sistema internacional. De acordo com Celso Amorim, chanceler do Governo Lula, a Cooperação Sul-Sul também é de extrema importância no que tange a reforma da governança global e democratização das instituições: “A cooperação Sul-Sul é uma estratégia diplomática que se origina de um desejo autêntico de solidariedade com os países mais pobres. Ao mesmo tempo, ajuda a expandir participação do Brasil nos assuntos mundiais. A cooperação entre iguais em matéria de comércio, investimento, ciência e tecnologia e outros campos reforçam nossa estrutura e fortalece nossa posição nas negociações comerciais, financeiras e climáticas. Por fim, a construção de coalizões com os países em desenvolvimento também é uma maneira de envolver na reforma da governança global, a fim de tornar instituições internacionais mais justo e democrático.” (AMORIM, 2010, p. 231, tradução nossa) 1

Em junho de 2003 foi criado o IBAS (Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul) com o objetivo de se constituir num mecanismo de coordenação entre os três países emergentes. A missão principal do

1 “South-South cooperation is a diplomatic strategy that originates from an authentic desire to exercise solidarity toward poorer countries. At the same time, it helps expand Brazil’s participation in world affairs. Cooperation among equals in matters of trade, investment, science and technology and other fields reinforces our stature and strengthens our position in trade, finance and climate negotiations. Last but not least, building coalitions with developing countries is also a way of engaging in the reform of global governance in order to make international institutions fairer and more democratic.”

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GNARUS - 85 IBAS era contribuir para a construção de uma nova arquitetura internacional, além da cooperação em diferentes áreas, que vão desde a área do comércio até a segurança internacional. No que tange a esfera da OMC, o Governo Lula traçou uma grande aliança, o que foi responsável por formar o G-20, que era um grupo de Estado considerados subdesenvolvidos, que estavam interessados no fim dos subsídios domésticos às exportações de produtos agrícolas e em um maior acesso aos mercados norte-americano e europeu. Outra importante cooperação que merece destaque é a com os países africanos, principalmente os que possuem a língua portuguesa como uma de suas línguas oficiais, tendo em vista não apenas as relações econômicas, mas também o resgate da toda a ancestralidade do povo brasileiro, resgatando a cultura e a utilizando como pertencimento.

Autonomia pela diversificação O Ministério das Relações Exteriores manteve o multilateralismo do governo anterior, entretanto com um maior enfoque na soberania nacional. Essa manutenção ainda mais árdua da soberania nacional somado a ideia de autonomia pela diversificação, gerou um sentimento de liderança em âmbito regional. Essa liderança pode ser observada com as ações tomadas pelo Planalto: uma diplomacia mais ativa e dinâmica, além da continuidade da defesa de temas tido como universais.

Essa busca por um papel de destaque na região pode ser observado durante o caso do Haiti, no qual o Brasil aceitou comandar a missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, com o envio de militares para ajudar na pacificação do Estado haitiano. A decisão de participar dessa missão está vinculada ao novo viés adotado pela governo em sua política externa, em que buscava a cooperação em políticas que visam promover a paz internacional ou nacional. Essa nova vertente da cooperação em políticas que promovessem a paz internacional estava diretamente atrelada com a vontade do Brasil em assumir uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. De acordo com Vigevani e Cepaluni, o caso do Haiti é excelente para ilustrar a autonomia pela diversificação adotada pelo Governo brasileiro:

“Diversificação não significa apenas a busca de alternativas nas relações com outros Estados, mas também implica capacidade de intervenção em questões que não dizem respeito a interesses imediatos. Significa intervir em questões que se referem a bens públicos internacionalmente reconhecidos. O Brasil dispôs-se a assumir esse encargo, respaldado por outros países da região, como Chile e Argentina, por ter um objetivo que, na percepção do governo, supera os custos e fortalece o papel internacional do país. Entre os possíveis benefícios, estaria o fortalecimento da posição de candidato a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e o reconhecimento internacional necessário para uma potência média.” (VIGENAVI; CEPALUNI, 2007, p.304)

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GNARUS - 86 América do Sul A integração com a América do Sul (principalmente com a Argentina) foi um dos principais focos do governo desde 1985. Durante o governo FHC, as relações com os vizinhos sul americanos se tornaram prioridade na agenda do Governo. Alguns pontos interessantes de comparação de atuação da política externa entre o Governo FHC e Lula, na relação com a América do Sul, se concentram na criação da ALCA e na posição de liderança do Brasil no continente. No tocante a ALCA, o governo FHC não considerava o projeto como prioritário, mas possuía uma postura favorável ao surgimento da Aliança. A estratégia adotada pelo governo foi a de atrasar as negociações o máximo que pudesse até que as condições do acordo fossem favoráveis ao Brasil. Já o governo Lula adotou uma posição mais firme, argumentando que o Brasil só prosseguiria com as negociações caso as mesmas atendessem as demandas brasileiras. Ao abordarmos a imagem do Brasil exercendo a liderança/influência sobre o continente americano, temos também duas abordagens distintas. Enquanto FHC acreditava que a liderança não se proclama, mas sim exercida, o Governo Lula tinha um desejo forte de obter um papel de maior destaque na região e entre os países em desenvolvimento. Dessa forma, o Brasil passa a cobrar mais países em suas negociações e em questões de interesse internacional, como os direitos humanos. No final da administração de FHC, foi a anunciada uma assinatura de um acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e a

Comunidade Andina das Nações (Colômbia, Equador e Venezuela). Entretanto, esse acordo entrou em vigor somente em 2005, na segunda metade do primeiro mandato do ex-presidente Lula. Outro importante acontecimento anterior a posse de Lula, mas que rendeu frutos a sua política externa foi a reunião de chefes de Estados da América do Sul, realizada em 2000. A partir dela, a Integração da Infra-estrutura Regional Sul Americana (IIRSA), que foi financiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A necessidade da integração da infraestrutura física da América do Sul baseiase no reconhecimento de que não basta a redução ou o fim das barreiras aduaneiras regionais para integrar um continente ou região, mas é necessário planejar a construção dos meios físicos (infraestrutura) que permitam o desenvolvimento da livre circulação de produtos, serviços e pessoas. A partir dessa reunião e de um segundo encontro realizado em 2002, surgiu a estratégia, que foi desenvolvida durante o governo Lula, da criação da Comunidade SulAmericana de Nações (CASA), que viria a se tornar em UNASUL nos dias atuais. “A integração sul-americana é a principal prioridade da política externa brasileira. O Brasil reconhece que ela é mais forte e mais influente nos assuntos globais, trabalhando em estreita colaboração com seus vizinhos e ajudando a promover a paz e a prosperidade em sua região. Apesar de suas dimensões continentais e vastos recursos naturais, o Brasil fez uma escolha resoluta de trabalhar pela integração regional (ou seja, sul-americana). Relações econômicas e políticas mais estreitas contribuem para o crescimento e a estabilidade. Também aumenta nossa influência (do Brasil e da

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GNARUS - 87 América do Sul) nas negociações globais.” (AMORIM, 2010, p. 227, tradução nossa) 2

MERCOSUL E UNASUL O Mercosul é, desde o governo Sarney, uma das prioridades da diplomacia brasileira. O presidente Lula da Silva, logo após a vitória, em 2002, ressaltou a importância estratégica do Mercosul para o seu governo, que poderia constituir uma espécie de base material para a união política da América do Sul. Na formulação inicial do governo Lula, o Mercosul atuaria como uma fortaleza defensiva contra as pressões comerciais dos países ricos. Entretanto, apesar de o Mercosul ser a área de maior significado econômico/comercial para o Uruguai e o Paraguai, como também para a Argentina, os Estados Unidos detêm forte capacidade de influência pelo conjunto de fatores que regem o poder internacional, e também pela potencialidade de seu mercado. Assim, enquanto o governo Lula via o projeto do Mercosul como predominantemente político, Argentina, Uruguai e Paraguai, preferiram considerá-lo instrumento de caráter econômico-comercial. “O Mercosul é a célula original da integração sul-americana. Embora sua motivação original fosse fundamentalmente política (e notavelmente na primeira fase da aproximação Brasil-Argentina), o bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai começou como um acordo de livre comércio e uma união aduaneira (ainda que 2 “South-South cooperation is a diplomatic strategy that originates from an authentic desire to exercise solidarity toward poorer countries. At the same time, it helps expand Brazil’s participation in world affairs. Cooperation among equals in matters of trade, investment, science and technology and other fields reinforces our stature and strengthens our position in trade, finance and climate negotiations. Last but not least, building coalitions with developing countries is also a way of engaging in the reform of global governance in order to make international institutions fairer and more democratic.”

imperfeita). Apesar de todas as deficiências, os números são eloquentes: somente sob o presidente Lula, o comércio brasileiro com nossos parceiros do Mercosul passou de US$ 8,8 bilhões em 2002 para US$ 36,6 bilhões em 2008.” (AMORIM, 2010, p.227, tradução nossa) 3

Além do fortalecimento do Mercosul, o Presidente Lula tinha o objetivo de retomar um projeto que integrasse toda a América do Sul. A Comunidade Sul-americana de Nações (CASA) foi o pontapé inicial dessa integração. Entretanto, essa comunidade não possuía uma institucionalidade jurídica. Só em 2008, com a assinatura do Tratado Constitutivo da Unasul, foi que surgiu uma organização internacional que contemplasse a todos os países sul americanos. Esse tratado tem em seu conteúdo assuntos como: livre comércio, integração comercial, infraestrutura, energia, defesa, saúde, entre outros. “Este segundo nível de integração regional tem uma clara dimensão política. Todas as nações da América do Sul estão agora reunidas sob a mesma égide institucional. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul) foi oficialmente fundada em Brasília em 2008 com a assinatura de um tratado constitutivo. (...) Várias comissões temáticas foram criadas no âmbito da Unasul, entre elas os Conselhos de Saúde, Infraestrutura, Controle de Drogas e Defesa. Além da dimensão da cooperação, a Unasul se mostrou útil para resolver crises que os países da América do Sul tiveram que enfrentar coletivamente.” (AMORIM, 2010, p.229, tradução nossa)4 3 “Mercosul is the original cell of South American integration. Although its original motivation was fundamentally political (and notably so in the first phase of Brazil-Argentina rapprochement), the bloc formed by Brazil, Argentina, Paraguay and Uruguay started out as a free trade agreement and a (however imperfect) customs union. In spite of all shortcomings, the numbers are eloquent: under President Lula alone, Brazilian trade with our Mercosul partners rose from US$ 8.8 billion in 2002 to US$ 36.6 billion in 2008”. 4 “This second level of regional integration has a clear political dimension. All South American nations are now gathered

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GNARUS - 88 Ao comparar o MERCOSUL com a UNASUL, Celso Amorim aponta que: “O Mercosul é um processo de integração que já se encontra em estágio mais avançado, mais profundo. Na América do Sul, nós temos o processo de integração possível, que parte do reconhecimento que os países têm políticas comerciais diversas. (...) Na Unasul, nós não temos isso, mas temos um acordo de livre comércio, temos a infraestrutura e temos uma estrutura política que permite também uma cooperação intensa em algumas áreas, como defesa, energia, saúde, educação, cultura etc.” (AMORIM, 2009, p.19)

BRICS O surgimento do BRIC, a posteriori BRICS, em 2006, foi responsável por provocar uma mudança no cenário internacional no âmbito político, econômico, cultural e diplomático. Como um das metas de colocar o Brasil novamente em destaque, o governo Lula fechou o acordo que criou o bloco. Esse novo poder emergente era responsável por aproximadamente 13% do comércio global. Com essa nova realidade, a união desses Estados fez com o seu poder e influência crescessem nas cúpulas internacionais. A influência do e o poder do BRIC no sistema político mundial, na época, eram impulsionados pela diversidade cultural, a desigualdade econômica, a fragmentação política e o conflito de interesses entre os países as grandes potências e as economias under the same institutional umbrella. The Union of South American Nations (Unasul) was officially founded in Brasilia in 2008 with the signing of a constitutive treaty. (...) Several thematic commissions were established under Unasul, among them the Councils of Health, Infrastructure, Drug Control and Defence. Besides the cooperation dimension, Unasul has proven useful to resolve crises the countries of South America had to face collectively”.

emergentes. Os países do BRIC, na época de sua fundação, eram as quatro maiores economias fora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Até hoje, os países ainda não fazem parte da organização. O poder do BRIC está presente tanto em seu crescimento econômico como na sua concentração de terra e população: mais de um quarto do território do mundo e mais de 40% da sua população. As economias de mercado emergentes reunidas no BRIC estavam desempenhando, a época, um papel importante na economia mundial e no desenvolvimento de economias internas, tendo como o sinal mais marcante de sua importância para a economia mundial as suas reservas cambiais. Os quatro países configuravam, em 2010, os 10 maiores acumuladores de reservas, representando 40% do total mundial. Com o crescimento da influência das economias emergentes, os países do BRICS passaram do processo de produção para o de inovação, colocando os países desenvolvidos em risco de perda da hegemonia. As economias emergentes, passaram a utilizar o seu soft power para atrair aliados e assim aumentar sua influência em diversas partes do mundo – o mesmo modelo seguido pelos norte-americanos. A capacidade de atrair apoio foi reforçada por meio de acordos de cooperação técnica e apoio financeiro com países pobres, visando implementar políticas de desenvolvimento e de proteção social para suas populações. O enfraquecimento do soft power dos países desenvolvidos (agravados pela crise de 2008) e o empoderamento do BRIC, somados ao alto desenvolvimento

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Ex-presidente Lula em encontros diplomáticos internacionais da direita para a esquerda com Vladimir Putin (Rússia), Hugo Cháves (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), José Eduardo dos Santos (Angola), Mujica (Uruguai) e Obama (Estados Unidos) tecnológico possibilitaram o desenvolvimento e a uma nova configuração multipolar global.

Conclusão Podemos observar que ao decorrer do Governo Lula, a política externa brasileira ganhou uma repaginação nas suas áreas de atuação. O Brasil passa a priorizar ainda mais os seus vizinhos sul americanos em busca de uma posição de destaque no cenário internacional e uma influência sobre seus vizinhos, como podemos observar com os avanços realizados no MERCOSUL e com a criação institucional da UNASUL. Além disso, o Brasil se aproximou também dos países africanos por meio de tratados que promoviam um intercâmbio nas áreas cultural, financeira e da saúde. Já em relação aos Estados Unidos, a posição brasileira foi um pouco contra a

maré dos últimos anos: o Brasil reconhecia o poderio e influência dos americanos no sistema internacional, mas criticava o seu forte unilateralismo, e tentava combater essa assimetria por meio de tratados bilaterais e multilaterais com países da Europa. A criação do bloco dos BRICS também foi outro ponto de extremo destaque durante o Governo Lula. Pela primeira vez, países emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China, e, posteriormente, África do Sul) que estavam tendo crescimento econômicos maior que a média, se uniram para colocar em xeque a superioridade dos países considerados de Primeiro Mundo. O BRICS e suas instituições deram uma nova alternativa aos países subdesenvolvidos a não se submeterem aos juros astronômicos do FMI e do Banco Central. Mais do que isso, os BRICS foram fundamentais na cooperação em várias áreas

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GNARUS - 90 de atuação desses países, fazendo com que as suas atividades se desenvolvessem ainda mais. Essas novas tendências buscavam trazer o Brasil de volta a uma posição de prestígio no cenário internacional. Um dos principais objetivos do Governo Lula foi conseguir uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, além, é claro, de manter a autonomia e soberania do Estado brasileiro. Entretanto, essa meta não foi cumprida por entraves de alguns vizinhos (como a Argentina) e de outras potências mundiais, que não viam com bons olhos a entrada permanente do Brasil no Conselho de Segurança. Entretanto, mesmo com esse resultado não tão positivo, o Brasil alcançou importantes números no que se refere a economia com a proliferação de várias negociações. O resultado que mostra que o Brasil recuperou não só seu prestígio político, mas também econômico, no cenário internacional foi a marca de 6ª maior economia mundial no ano de 2011.

NIETO, Nubia. A influência das economias emergentes em assuntos internacionais. Estudos Av., São Paulo, v. 26, n. 75, p. 173183, Ago. 2012. Disponível em: <https:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0103-40142012000200011>. Acesso em: 07 dez 2019 VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A politica externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. In: Contexto Internacional, vol. 29, n. 2. Rio de Janeiro, IRI/ PUC - Rio, jul./dez. 2007, p.273-335.

Marcus Vinicius Vilanova Gralha é graduando no 7º período do curso de Relações Internacionas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Bibliografia AMORIM, Celso. A integração sul-americana. In: Revista DEP: Diplomacia, Estratégia e Política/Projeto Raúl Prebisch, n.10. Brasília, Projeto Raúl Prebisch, out/dez, 2009, p. 5-26. AMORIM, Celso. A Política Externa Brasileira no governo do Presidente Lula (20032010): uma visão geral. In: Rev.Bras.Política Internacional. 2010.

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GNARUS - 52

Artigo

NOTAS SOBRE OS HUMORES E A VERDADE EFETIVA NO PENSAMENTO POLÍTICO DE NICOLAU MAQUIAVEL Por Lucas Barbosa Gomes RESUMO: Esse texto pretende investigar a questão da divisão social a partir do ideário de Nicolau Maquiavel, partindo de suas afirmações sobre as relações estabelecidas entre os humores do capítulo IX de “O Príncipe”. Visto que a relação entre estes humores é conflituosa, interessa inicialmente identificar a natureza deste conflito. Para fazer essa análise, outra obra terá presença durante o texto: o proêmio de a “História de Florença”. Ao investigarmos a natureza do conflito vislumbraremos seus efeitos e nos deteremos naquele considerado pelo o autor como o mais apropriado ao vivere civile, ou seja, a melhor forma de governo para a liberdade: a República. Palavras Chaves: Republicanismo, Conflito Político, Nicolau Maquiavel, Florença.

Introdução

posteriormente, para seu filho e herdeiro: Cosimo de Médici (1389-1464) .1

G

Cosimo assim como seu pai, amplia a área de iovanni di Bicci de Médici (13601429) foi o primeiro de uma ordem que

ditaria

gradativamente

as

articulações políticas da República de

Florença pelos próximos séculos. Giovanni funda o Banco Médici em 1397, em Florença, e diversos empreendedorismos manufatureiros na cidade ao longo das décadas ampliando seu sistema de crédito e empréstimo bancário. Acumula uma

influência que a Casa Médici tinha na República de Florença, por meio de um profundo clientelismo, desde o suporte assistencialista para o povo da cidade a acordos comerciais por parcerias em redes comerciais e de crédito comercial. Além disso, também o mecenato; sendo o patrocínio de artistas plásticos, pintores e literatos dentro da cidade o que Cosimo via como forma de consolidação política e social por meio de troca

fortuna comercial e uma rede de clientelismo que seria repassada, junto aos seus méritos,

1 MAQUIAVEL, 1998, p. 7

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GNARUS - 53

de favores entre as facções políticos florentinos, permitindo que o desenvolvimento da cidade seja, em conjunto, o desenvolvimento de sua família. O mecenato era nesse período o financiamento das artes e apreço por novidades técnicas, foi ao longo do século XV influenciado pelo capital dos Médici em Florença, onde diversos artistas como Michelangelo (1465-1567) e Sandro Bottichelli (1445-1510) tiveram a oportunidade de produzir e divulgar seus trabalhos, sendo, o mecenato, uma forma de clientelismo de patrocínio mutuo, onde o artista tem a possibilidade e material de produzir suas obras e o financiador tem parte do crédito e prestígio de deter esse capital cultural.2 Usando da influência herdada de seu pai, Cosimo de Médici, estabeleceria as bases políticas para o fortalecimento dos Médici pelas próximas décadas na política de Florença, ao ponto que, seu neto Lorenzo (1449-1492), teria um vasto poder de

Nicolau Maquiavel

decretar, governar e deliberar dentro da República nas últimas décadas do século XV. Esse status dos Médici foi conquistado, além da influência política já existente, também através da compra e venda de cargos influentes, perseguições de outras famílias oligárquicas florentinas como os Albizzi ou os Paci e acordos de benefício unilateral na política beneficiando esta família. Todas essas manobras sendo realizadas dentro sede da República de Florença, o Palazzo Vecchio, maior símbolo da soberania republicada da cidade e, consequentemente, o maior símbolo do poder dos Médici. Com a ascensão dessa família de origem burguesa em Florença, ao longo do século XV, os Médici gradativamente articulam sua influência na política para permanecer no poder

os pilares dos ideais liberais republicanos.3 Em 1512, esse clã consegue se estabelecer no poder permanentemente e reformulando os altos cargos do governo da cidade, entre esses cargos a chancelaria, onde Nicolau Maquiavel (1469-1527) possuía o cargo, sendo deposto e exilado.4 No ano seguinte de seu exilio, Maquiavel escreve O príncipe (publicado pela primeira vez em 1531, pouco mais de duas décadas após a publicação, em 1557, o livro foi julgado pelo Papa Clemente VIII como uma obra condenável, contra a moralidade cristã, culminando com sua colocação no Index, pelo Concílio de Trento), sendo postulado somente como mais um espelho

justificado pelo desenvolvimento do bem público durante seu governo e, com isso, retardando 2 HIBBERT, 1993.

3 ADVERSE, 2007, p. 37. 4 HIBBERT1993, p. 26-32.

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GNARUS - 54 de príncipe,5 peça literária comum desde o

A

teoria

de

Maquiavel

paira

entre

a

século VIII, escrita para soberanos e as virtudes

conceitualização do conflito social atrelado a

necessárias para sua boa governança.6

política, uma correlação de forças e interesses

Maquiavel viu a indispensabilidade de escrever sobre como esse desenrolar político dentro da República de Florença causaria sua ruína gradual. Maquiavel identifica que o modelo mais viável para a manutenção das relações dentro da cidade é o modelo da República onde “um príncipe sábio deve encontrar um modelo pela qual seus cidadãos, sempre e em qualquer tempo, tenham necessidade do estado e dele; assim, eles sempre serão fiéis”7 e ao mesmo tempo que um príncipe

privados em oposição aos interesses públicos – a res publica -, e assim, percebendo uma causa primordial, sendo ela o conflito movido pelos humores (ou paixões) dentro da política, “assume a perspectiva segundo a qual, para assegurar a vitalidade das cidades, não se trata de tentar suprimir ou mitigar o conflito, uma vez que ele é constitutivo da vida política, mas de lidar com ele da melhor maneira possível”.11 Todavia,

Maquiavel

ultrapassa

seus

deve formar laços com o povo também deve com

predecessores, como Coluccio Salutati (1331-1406)

os grandes, “quando inimigos, deve temer não só

ou Leonardo Bruni (1370-1444) que pensavam a

ser abandonado, como também que o ataquem”,8

República como o Estado ideal para a concórdia

alcançando assim, por meio das instituições e

e harmonia política. Identifica uma dialética

das leis, formular o modelo republicano mais

pragmática dentro dos interesses políticos: a

viável e a manutenção do poder com os recursos

sua necessidade e sua manutenção dentro da

necessários para essa manutenção,9

permanência do governo, a discórdia é o caminho necessário para a concórdia.12 Uma possibilidade de equilíbrio das forças entre quem governa e

Nela o conflito é diluído pelos acordos das facções, acordos estes que visam interesses particulares. Na Licença as mediações são feitas pelas facções, integradas via de regra pelos grandes, que corrompem o povo para impor seus interesses. Uma vez que interesses privados substituem os bens públicos não há mais espaço para a liberdade.10 5 Ver em COSTA, Ricardo da. Um Espelho de Príncipes artístico e profano: a representação das virtudes do Bom Governo e os vícios do Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290-1348). In: Utopia y Praxis Latinoamericana, Revista Internacional de Filosofia Iberoamericana y Teoria Social. Maracaibo (Venezuela): Universidad del Zulia, vol. 8, n.23, p. 55-71, 2003. 6 JÚNIOR, 2007, p. 207. 7 MAQUIAVEL, 2001, p. 47. 8 MAQUIAVEL, 2001, p. 46. 9 JÚNIOR, p. 205-211, abr./jun. 2007, p. 206. 10 BENEVENUTO, 2013, p. 210.

quem é governado, fato somente alcançado dentro de um governo onde as leis, as instituições e os interesses da natureza corruptível humana são balanceados. Sendo essa República não mais um governo ideal, porém, um governo possível, onde existe e deve existir o conflito de interesses, “o conflito era provável, quase inevitável haja vista os interesses contraditórios do povo e dos grandes, e podia em 11 BENEVENUTO, 2013, p. 209. 12 “Não se trata somente de uma convergência de interesses na qual atende-se o interesse público porque é a única maneira de garantir a satisfação do interesse privado, embora essa espécie de cálculo não seja estranha a Maquiavel. Acredito que Maquiavel esteja falando da constituição de um objeto de interesse comum: o que em diversas ocasiões ele chama de pátria. A pátria é a cidade a que se pertence e, nesse sentido, o termo é politicamente neutro, isto é, vale para a república ou para o principado”. ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Trans/Form/ Ação, (São Paulo), v.30, p. 33-52, 2007, p. 38.

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GNARUS - 55 certas ocasiões, funcionar como instrumento a favor da liberdade”.

Os Humores e a Verdade efetiva

13

Maquiavel faz pensar que uma tentativa dos

de negar a desunião social ou de solucionar

espelhos de príncipes escritos desde o Carlos

definitivamente suas dissensões implica em um

Magno (747-814) como guias morais pautados

equívoco. Compreender o livro IX17 de O príncipe

em pressupostos cristãs das virtudes, onde esses

de Maquiavel é fundamental para que a noção

traços da moralidade cristã são profundamente

de conflito existente no livro seja elaborada; a

enraizados

desde

correlação entre as forças equivalentes entre

o Medievo Ocidental onde as instituições

o povo e os grandes é a matriz primordial de

eclesiásticas detinham influencia, dependendo

sua teoria.18 O conflito tornasse um fenômeno

da regionalidade, parcial ou total das diretrizes

paradoxal ou um oximoro, um balanço entre a

do governante. Maquiavel preocupasse com a

tentativa de impedir uma oclocracia, a licença do

verdade efetiva do governo, como são despostas

povo e, ao mesmo tempo, impedir uma tirania

dentro dos recursos do real da política, e como

dos grandes, uma oligarquia. Esse balanceamento

a manutenção dessa política deve ser feita sem

em constante dialética de fusões de teses e

pressupostos morais, assim sendo o Estado no

antíteses forma como síntese: a República. E

plano real empírico, não mais o ideal.

com a República sendo a forma de Estado que

Rompendo

na

com

a

forma

tradicionalidade

de

governar

Maquiavel não somente admite a correlação de força dentro da cidade, mas sugere que ele é capaz de engendrar a liberdade e pode contribuir para que o corpo político se torne mais dinamizado.14 Assim, enquanto um dos humores deseja não ser

consegue se aproximar da concórdia por meio da liberdade do debate político entre os cidadãos, o principado, juntamente com o príncipe, deixa de ser necessário para a política. As forças opostas de complementam.19

governado e oprimido pelo outro, este último

Maquiavel traduz essa correlação conflitante

deseja justamente o que recusa o primeiro,

entre esses polos de repulsão de uma cidade como

uma “acepção concerne à ordem interna da

humores,20 ou desejos. No caso dos outros efeitos

cidade e à sua vida institucional: viver livremente

apontados por Maquiavel, as relações entre os

significa viver sob leis que, com maior ou menor

humores costumam se dar de forma muito diversa

participação popular, são elaboradas pelos próprios cidadãos”.15 E, nestas circunstâncias, não há solução de fato, pois os desejos dos humores existentes são irreconciliáveis, estão, por assim dizer, em constante descompasso, um conflito que deve ser assumido e não eliminado.16

17 “O capítulo IX de O príncipe trata de uma figura anfíbia, espécie de oximoro que Maquiavel denomina “principado civil”, uma mistura de principado com república que mantém sua ambiguidade até mesmo no modo de ascensão ao poder: não é nem por Fortuna nem por virtù, mas por uma “astúcia afortunada” que um cidadão se torna o governante de sua pátria. ”. ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Trans/Form/Ação, (São Paulo), v.30, p. 33-52, 2007, p. 35. 18 Ver em ADVERSE, 2018, v. 1, p. 135-162. 19 JÚNIOR, 2007, p. 207.

13 BENEVENUTO, 2013, p. 209. 14 ADVERSE, 2007, p. 36-37. 15 ADVERSE, 2007, p. 38. 16 BENEVENUTO, 2012, 2013, p. 209.

20 “Umori. Maquiavel toma de empréstimo esse termo da tradição médica hipocrática e galênica que em sua época ainda exercia forte influência. Dentre os vários comentários dessa apropriação, um dos mais recentes e completos é o de M. Gaille-Nikodimov, 2004. Vale lembrar que Maquiavel utiliza como sinônimo para umori, desiderio, isto é, “desejo”. ADVERSE, 2007, p. 34.

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GNARUS - 56 de acordo com o Estado presente em que esses

apontados pelo autor destacando-se pela

humores estão sendo analisados, pois, tanto nas

sua capacidade de melhor abrigar o conflito

Repúblicas como nos Principados há espaço para

em suas instituições. A República é capaz de

a liberdade política, mas, a profundidade dessa

produzir leis e espaços institucionalizados

verdadeira liberdade está de acordo com o modelo

capazes de possibilitar a vazão dos desejos

de governo presente nessa cidade. No Principado

contraditórios dos humores. Esta vazão pode

o conflito é mediado pela figura do monarca, uma

se dar no sentido de produzir novas leis em

figura única que detém o poder político, enquanto

favor da liberdade.23

na República é a lei quem exerce este papel e as instituições capazes de garantir que essas leis sejam observadas e caso necessário modificadas de acordo com os humores.21

Com isso, dentro desse Estado real,24 com questões materiais reais um dos pontos chave de sua obra é a compreensão da dialética entre o povo e os grandes, e como um se opõe

Comparando ambas situações é possível

ao outro de acordo com seus interesses e

garantir a manutenção do poder do corpo político

paixões, formando, por excelência, o conflito e

vigente. Mas, é aquele que consegue maior

a necessidade desse conflito. Sem essa dialética,

durabilidade. Vale lembrar que o Principado

o governo é desgastado e entra em decadência

depende do monarca que detém a estabilidade

(seja pela falta ou o excesso dessas correlações

das leis e instituições e, portanto, de um homem

de forças e interesses),25 um equilíbrio de extrema

efêmero, uma política que tem uma durabilidade

precisão que somente um governo republicano

instável, sendo esse fato que permite que a

conseguiria manter, rompendo, dessa forma, com

República22 como um modelo de governo que

as alegorias medievais onde havia a necessidade

possibilita uma maior estabilidade durável ao

de um soberano teocentrado,

decorrer do tempo em oposição ao Principado, dependente da ação privada e não pública,

Dessa maneira, a capacidade que um príncipe tem de se manter no poder ou, em termos

A República pode ser pensada como um

utilizados por Maquiavel em suas obras – a Virtú,

lugar privilegiado entre os outros efeitos

é diretamente equivalente com a manutenção

21 BENEVENUTO, 2013, p. 210. 22 “Podemos detectar duas “matrizes” na leitura republicana da obra de Maquiavel: a primeira, embora reconheça sua importância para o pensamento político moderno, parece preocupada em chamar a atenção para sua pertinência (o que não quer dizer identificação) ao modelo antigo de republicanismo, ou o chamado “republicanismo clássico”. O que caracteriza basicamente esse republicanismo é a convicção de que a liberdade individual não pode ser dissociada da liberdade do Estado, de modo que a participação ativa dos cidadãos nos afazeres cívicos se torna uma exigência, assim como a organização institucional de um espaço em que o poder é exercido pelos membros da comunidade política. [...] ao passo que o segundo acredita mais apropriado situá-lo em relação à tradição romana [...] A segunda matriz enfatizaria a ruptura de Maquiavel frente à tradição do pensamento político na medida mesmo em que seu pensamento revela o caráter agônico da vida civil, a “indissociável sociabilidade” que une e separa os homens vivendo em um regime político marcado pelas incessantes confrontações das forças sociais” ADVERSE, 2007, p. 34.

do seu Estado. Evitar sua ruína a qualquer custo 23 BENEVENUTO, 2013, p. 210. 24 “Esta expressão, além disso, pode ser usada também em sentido técnico, para indicar a doutrina de Maquiavel ou, mais genericamente, a tradição de pensamento baseada no conceito de Razão de Estado”. (Norberto Bobbio 1995, p. 738 apud JÚNIOR, Antônio de Freitas. O pensamento político de Maquiavel, Revista de informação legislativa, v. 44, n. 174, p. 205-211, abr./jun. 2007, p. 206. 25 “A universalidade, nesse caso, somente será atingida como expansão da particularidade ou como homogeneização: o que significa a eliminação do outro. Para Maquiavel, é esse o mal que acomete Florença: aí a divisão origina seitas, impedindo o fortalecimento do tecido social e a formação de uma comunidade política verdadeiramente republicana. Acompanhando esses efeitos das divisões em um e outro caso estão o aumento ou a diminuição da virtù e – o que me interessa mais – a definição da igualdade e desigualdade entre os cidadãos” ADVERSE, 2007, p. 43.

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GNARUS - 57

Florença em 1493, ilustração na Schedel’schen Weltchronik

também é uma função do governante. Maquiavel

O

povo,

dentro

dessas

circunstancias,

esclarece em seu proêmio de História de Florença

detêm o dever e a tarefa é a de zelar pele sua

que os excessos ocorridos dentro da política

liberdade e da cidade contra figuras tirânicas,

de Florença foi a causa de seu franco declínio,

ter uma ação ativa dentro das assembleias

as divisões das facções, do povo e do governo

constitucionais e, principalmente, divergir o

por busca de interesses privados em oposição a

bem público do privado.28 O poder de decretar,

permanência do modelo republicado na cidade,26

potestas decretandi, é um direito inalienável do

Houve república cujas divisões foram notáveis, as de Florença as excedem em tudo, porque a maioria das outras repúblicas das quais se tem alguma notícia contentou-se com uma divisão, em razão da qual, segundo os acontecimentos, ora cresceram, ora declinaram, mas Florença não contente com uma, criou muitos.27

alicerce republicano, onde, jamais, esse direito oriundo da res publica29 pode ser desorientado com o meio privado - a res princeps.30 Este poder 28 [...] “o que me proponho a fazer na presente comunicação são apenas algumas notas acerca da afirmação que encontramos no capítulo 58 do Livro I dos Discorsi, que diz: a multidão é mais sábia e constante que um príncipe. Ao que me parece, tenciona essa asserção apontar para o alargamento da base do governo, sem, no entanto, apelar para a ideia do povo como fundador ou origem do poder político da república”. ALEXANDRE, 2013, p. 67.

26 “É no estudo da história, aliado ao contato com os poderosos de seu tempo, que Maquiavel forma sua compreensão da psicologia humana, sintetizada na afirmação de que os homens são egoístas e ambiciosos e de que somente a lei poderia bloquear suas paixões. Destarte, o governante que desejasse êxito deveria aliar o conhecimento da história à compreensão da natureza humana, pois, dessa maneira, conseguiria adiantar-se aos acontecimentos futuros e estaria melhor preparado para enfrentá-los” JÚNIOR, 2007, p. 208.

29 “Quem deve ser o guardião da liberdade, o povo ou os grandes? O bom senso aconselha a dar guarda de uma coisa àquele que tem menos desejo de dela se apoderar. Sendo assim, é ao povo que cabe a guarda da liberdade, uma vez que seu desejo é essencialmente o de não ser dominado, o que quer dizer – em termos positivos utilizados pelo próprio Maquiavel – que os plebeus (ignobili) têm “maior vontade de viver livres”. No nível institucional, significa dispor de autoridade para, por meio de seus representantes, exercer importantes magistraturas e, no exercício dessas magistraturas, o povo não deverá visar a dominação”. ADVERSE, 2007, p. 40-41.

27 MAQUIAVEL, 1998, p. 8.

30 ROCHA, 2013, p. 32.

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GNARUS - 58 de decretar como um bem público, formula a lei

particularidades dos humores (seja dos grandes

dentro da dialética conflitante dos grandes e do

ou do povo), sendo ambos nocivos quando

povo, um acordo momentâneo ou parcial que

existem excessos.33

funciona como uma forma de aliviar essa tensão entre esses dois polos de repulsão da política. O decretar, ato de formular as instituições e leis e, por consequência, respeita-las segue como sua propriedade necessária e não pode ser abolida sem que seja abolido o próprio funcionamento integral do Estado de modelo republicano.

Maquiavel busca uma veracidade para justificar a liberdade, seja essa liberdade para sua cidade, Florença, ou a liberdade para a Itália. Essa Itália, a Regnum Italicium, que nunca conseguiu aparato político para formar um Estado nacional como as outras nações ocidentais estavam a se formar, tivera que usar seus recursos para rebater as

O poder, nesse sentido, não pertence a

sufocantes influencias no interior da península

ninguém.31 Não está detido a uma facção

que o papado romano e o Sacro Império Romano

específica, tem como objetivo de se afluar para

Germânico34 a séculos tentaram submeter essas

que em momentos de tensão política esse

áreas a seus poderios.35

poder, ou potestas decretandi, não seja alienado e utilizado para interesses de determinados humores. Maquiavel, determina, assim sendo, que “as graves e naturais inimizades que há entre os homens do povo e os nobres, causadas pela vontade que estes têm de comandar e aqueles de não obedecer, são razão de todos os males das cidades”.32 A ordenação do poder é proporcional a liberdade pública que, na prática, depende do sistema rotativo de ampla participação de cargos existentes nos magistérios dentro da República e, esse sistema, tem como mecanismo de utilidade e manutenção as leis que são legisladas. Isto é, o poder não simplesmente representa a cidade, o poder é a cidade. A liberdade do debate enquanto uma República que promover a paz, uma idealização insuficiente que entra em desacordo com as ações humanas, como esse poder decretativo será benéfico ou maléfico para a cidade. A universalidade da participação (a liberdade) em um combate constante às

31 ALEXANDRE, 2013, p. 69. 32 Machiavelli. Istorie Fiorentine, III, 1, p. 423 apud 2013, p. 209.

Essa teoria em que Maquiavel emprega não se preocupa em determinar como são essas influências externas, mas como os mecanismos internos podem engenhar a política na cidade, a qual Maquiavel denuncia que os escritores da História de Florença, anteriores a ele, não denunciaram essa fragmentação interna; Bem como aos seus efeitos, eles calaram de todo uma parte e descreveram a outra com tanta brevidade que nela os leitores não

podem

encontrar

utilidade

nem

prazer algum. Creio que assim fizeram por acharem que aquelas ações eram tão pouco importantes que as consideram indignas de entrar para a memória das letras, ou então porque temiam ofender os descendentes 33 ALEXANDRE, 2013, p. 69. 34 Referente a influência que o Sacro Império Romano Germânico tentava exercer sobre aos territórios setentrionais italianos aos Estados Papais. O poder interno do Império estava em constante disputa entre os séculos XIII e XV entre as Casas nobres germânicas de Luxemburgo, Wittelsbach, Hohenstaufen e Guelfos, pode esse motivo essas Casas tentaram uma artificial expansão para territórios eslavos e italianos por busca de recursos para a manutenção do poder. A ascensão dos Habsburgos em 1452 por Frederico III estabilizando a realeza imperial. 35 CARDOSO, 2017, p. 21.

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GNARUS - 59 daqueles que, naquelas narrativas, se houvesse de caluniar.

Considerações Finais

36

O Renascimento cultural promovido na Itália

O fato de os Médici terem absorvido os

permitiu o aflorar e o diálogo entre as mentalidades

poderes que deveriam ser representados pelas

da Antiguidade e da nascente Modernidade,

instituições republicanas de Florença foi o ponto

uma reforma profunda na forma de pensar a

de convergência para que Maquiavel estruturasse

sociedade e suas transformações entre os séculos

seu pensamento, um gatilho propício a desordem

XIV e XVI. O resgate do debate do republicanismo

da política. Entrelaça uma essencialidade nas

presente na Itália desde o século XII como forma

liberdades, no Ser civil de uma dada política e

de governo em oposição ao poder monárquico

a necessidade constante de sua manutenção

nascente na Europa é de essencial importância

de debate referente as instituições vigentes

para entrelaçar esses complexos mecanismos

desse governo, caso contrário, seu declínio por

que a sociedade europeia estava se articulando e

conta dos interesses particulares de poucos em

como esses pensamentos surgiam.

detrimento de muitos.37

Maquiavel foi e continua sendo utilizado em

Essa estrutura de pensar propõe é uma fusão

discursos políticos, “suas ideias de unificação

dos acontecimentos dentro de sua República,

da península itálica foram lembradas quando

a florentina, e em outras ao longo da península

do Risorgimento, no século XIX, e Maquiavel foi

itálica. Essa Itália que se distanciava do pensamento

considerado um verdadeiro herói nacional, em

do Medievo e conseguirá estruturar modelos

reconhecimento pelas suas ideias precursoras”

republicanos e se afasta desse poder monocrático

. A Modernidade é uma herdeira contínua da

tão comum no pensamento político europeu,

Antiguidade, a Renascença é mais do que uma

gradativamente recuperar da Antiguidade uma

retomada das premissas do passado, é uma

forma de exercer e pensar a política.

tormenta que impactou as tradições de mais de um milênio na civilização Ocidental. Sua obra, por assim dizer, é uma transcrição da face cético empírica da política, como uma realidade mais profunda que uma idealização rasa de Estado pela premissa das virtudes cristãs. Uma nova forma de não somente encarar os

36 MAQUIAVEL, 1998, p. 7-8. 37 “O desejo dos grandes, em princípio já determinado, é sempre idêntico a si. Por isso Maquiavel pode atribuir a responsabilidade pela grandeza ou decadência ao desejo do povo, como vemos também no livro III das Istorie. Se o povo passa a desejar como os grandes, isto é, quando se torna ambicioso, preocupado apenas em satisfazer seu próprio interesse, em detrimento do bem comum, então a república está com os dias contados. Desfecho catastrófico da oposição fundamental: o humor do povo se igualou ao dos grandes [...] os nobres semelhantes ao povo: dois se fez um. Fez-se um na má positivação do desejo do povo, identificado com o dos nobres. Estes tornaram-se parecidos com o povo porque o povo tornou-se parecido com os nobres: quando a cidade chega a esse ponto, não há mais vida política. Mas é necessário examinar mais de perto essa possível identificação entre os humores. ”. ADVERSE, 2007, p. 45.

assuntos públicos, mas também a mentalidade do Homem como um ser que busca recursos para sua própria sobrevivência, uma virtù intrínseca ao Ser. Converge assim, uma filosofia pragmática com um ceticismo político, uma forma de encarar as correlações de forças sob um horizonte de eventos mais sofisticado que qualquer outro; A essa busca da realidade e não da ficção Maquiavel denominou busca pela verità

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GNARUS - 60 effettuale, ou seja, a verdade efetiva do mundo. Por utilizar-se dessa metodologia, alguns críticos já o compararam com Galileu Galilei, que também se utilizou de semelhante metodologia nas ciências físicas. Maquiavel, partindo da busca da verità effettuale, descobre os fatores transitórios e circunstanciais que existem nas diversas ordens estatais.

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Artigo

SANTA ISABEL DA HUNGRIA E SANTA HILDEGARDA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DA TRAJETÓRIA DA SANTIDADE FEMININA NOS SÉCULOS XII E XIII Por Leilane Araujo Silva RESUMO: Para a realização dessa proposta, nosso estudo fundamenta-se na análise da hagiografia da Santa Isabel da Hungria e da Santa Hildegarda, com o objetivo de mostrar a trajetória da santidade feminina na sociedade medieval. Contudo não iremos expor resultados definitivos, já que se trata de uma pesquisa que ainda está em fase inicial de desenvolvimento.

Introdução

O

intuito nessa pesquisa é apresentar um breve estudo sobre a história das mulheres na sociedade medieval, tendo em vista uma análise comparativa da trajetória da santidade feminina nos séculos XII e XIII, utilizando como modelo a Santa Isabel da Hungria e a Santa Hildegarda. A Idade Média ainda tida como “Idade das Trevas”, nos dá a impressão de que a submissão da mulher era reforçada pela religiosidade, pois a maioria das ideias e dos conceitos eram elaborados pelos eclesiásticos e eles possuíam acerca da mulher uma visão dicotômica, ou seja, Eva era vista como a pecadora e é uma das justificativas que tornaram as mulheres

responsáveis pelo pecado original, e ao mesmo tempo, eles vêm a Virgem Maria como um modelo a ser seguido pelas mulheres. E essa visão da Virgem Maria determina a constituição de outro olhar sobre as mulheres que se desenvolveu significativamente com o culto mariano, a reclusão das mulheres nos conventos e a canonização feminina. Os textos durante o cristianismo foram usados pelos clérigos durante toda a Idade Média. As mulheres passaram a serem consideradas pelo clero, criaturas débeis e suscetíveis ás tentações do Diabo, logo, deveriam estar sempre sob a tutela masculina. A Igreja utilizava a pregação, em especial no século XIII a que era feita pelos dominicanos e franciscanos, nas ruas das cidades para toda

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a população, utilizando como exemplo a ser seguido às hagiografias, ou seja, relatos das vidas de Santos ou Santas em seus sermões. Tendo em vista que a Idade Média é um período histórico extenso e não temos condições de abordar todas as possibilidades de constituição da imagem feminina nesse período, por meio dessa breve consideração, notamos que tipos de mulheres medievais são variados e elas são dinâmicas, assim como as manifestações que vivenciaram em seu tempo, por isso analisaremos especificamente a trajetória de Santa Isabel da Hungria e de Santa Hildegarda como modelos de santidade, para exemplificar a trajetória da santidade feminina na sociedade medieval.

A Vida Monástica Feminina No decorrer do século XI e até meados do século XII, propagou-se na Europa a imagem da vida monástica entendida como possibilidade de pureza e perfeição em meio a toda efevercência religiosa que trazia à luz disputas e debates não só entorno do sagrado, mas também do poder. O isolamento, a contemplação e o jejum levariam à cura dos males corporais e espirituais, conduzindo a santidade. Entretanto, longe de representar uma separação total e completa do mundo, a clausura foi em muitos casos um lugar de reflexão e de florescimento de novas idéias, mais do que fuga. O movimento de reclusão feminina, com finalidade religiosa acontece desde o século

III, com o surgimento do hermetismo cristão. Porém depois dos anos mil a reclusão feminina como estilo de vida teve um desenvolvimento significativo, especialmente, nos séculos XII e XIII apesar de não existir ordens religiosas propriamente femininas, muitas mulheres levaram a vida religiosa como reclusas ou monjas. No contexto da época, essa forma de vida religiosa acabava por privilegiar as mulheres da aristocracia, principalmente as virgens e viúvas. A entrada feminina em uma instituição religiosa ocorria principalmente porque seus familiares as enviavam para preservar a virgindade das mulheres nobres em busca de um bom casamento ou definidamente para a vida religiosa. Mas havia casos que a família as mandavam apenas para que tivessem acesso a uma educação de qualidade, por não terem conseguido se casar ou por terem sido repudiadas. Contudo, a reclusão feminina nos mosteiros na Idade Média pode ser analisada como uma forma de conseguir maior mobilidade social e cultura, como também a possibilidade de libertação da maternidade e do casamento arranjado. Pois a submissão à vida religiosa abria espaço para que as mulheres tivessem uma aspiração de ordem intelectual, o que lhes proporcionavam certa liberdade, diferente da submissão ao casamento.

Santa Isabel Da Hungria Isabel (Elisabeth) nasceu em 1207 em Presburg na Hungria. Ela cresceu e foi educada no castelo de seu futuro marido,

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GNARUS - 93 Sem os filhos e destituída da coroa, Isabel ingressou na Terceira Ordem e se consagrou inteiramente para toda a sua vida a praticar a caridade, a cuidar dos pobres e doentes, principalmente os com lepra. Enfim, Isabel da Hungria morreu em 17 de novembro de 1231, com vinte e quatro anos, em Marburg, Alemanha.

Santa Hildegarda

Santa Isabel numa escultura de Rudolf Moroder.

Luis príncipe e futuro rei da Turíngia, desde quatro anos de idade. Casou-se aos quatorze anos, virou rainha, teve três filhos, Hermano nascido em 1222, Sofia em 1224 e Gertrudes em 1227.Tornou-se membro da família Franciscana, ingressando na Ordem Terceira que Francisco fundara para leigos, solteiros, casados e sacerdotes seculares. O seu marido nunca colocou obstáculos à vida de oração, penitência e caridade da rainha, pois sempre a incentivava, tanto que Isabel construiu com seu dinheiro asilos, orfanatos e o Hospital de São Francisco de Assis para andarilhos e doentes leprosos. Aos vinte anos, a rainha Isabel ficou viúva, com três filhos pequenos pra criar. Em alguns relatos a rainha foi expulsa do castelo com seus três filhos pelo seu cunhado, pois o mesmo queria a coroa, depois ela buscou refugio para seus filhos com seus tios a abadessa Mectildis de Kitzingen e o bispo de Bamberg, que tinha abandonado o projeto de casa-lá novamente.

Hildegarda Von Bingen nasceu em 1098 no castelo de Bockekheim, nobre e rica de família alemã. Aos oito anos foi entregue aos cuidados de religiosas do mosteiro das monjas beneditinas, onde foi instruída. Pede para fazer seus votos aos doze anos, idade que uma moça era considerada maior, mas os faz apenas com quinze anos, tornando-se assim irmã da ordem Beneditina. Seu exemplo foi seguido por outras mulheres nobres da aristocracia alemã e num espaço curto de tempo, a sua adesão tornou o mosteiro um cento cenobitico de grande importância. Ela tinha uma saúde frágil e segundo relatos “foi favorecida por visões narradas com descrição a sua tutora a abadessa Judite (Jutta) e a Volmar um monge do mosteiro de Santo Disibodensberg”. Suas visões foram definidas por ela como Lux vivens, ou seja, luz vivificante, elas de certa forma tornaramse um meio de expressar sua concepções religiosas e cientificas. Convencida de que um maior conhecimento pudesse facilitar o apostolado cristão, Hildegarda estudou latim, podendo assim ler clássicos da literatura monástica, filosófica e cientifica. Ela desenvolveu uma

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GNARUS - 94 grande atividade literária, adquiriu muito conhecimento sobre a medicina e ciências naturais para livros que escreveu sobre essas matérias, que são reconhecidos cientificamente, mas o seu talento enciclopédico se expressou em particular no canto e na música. Ela foi talvez a primeira musicista da história da Igreja Católica. A santidade de Hildegarda aos olhos dos seus contemporâneos foi provada pelos milagres feitos por ela, a exemplos, a cura de enfermidades no corpo e a expulsão do demônio de uma possessa da Colônia que os sacerdotes da Abadia de Brauweisler não tinham conseguido expulsar, mais principalmente pelas suas obras, por exemplo, “Scito vias Domini” obra em três volumes escrita entre 1141 e 1151, correspondências, como também pregações que foi convidada a fazer em importantes cidades da Alemanha. Por fim, a Santa Hildegarda viveu até os oitenta e um anos e manteve ativa até essa avançada idade. Suas diversificadas atividades foram muito além do que seriam os encargos de uma religiosa visionária medieval.

Conclusão Por meio da analise das santas pesquisadas pudemos observar alguns aspectos que foram pouco explorados nos estudos sobre a mulher na sociedade medieval, como a idéia de que as mulheres não recebiam instrução, e também nos mostra que a submissão da mulher era reforçada pela religião, a partir da imagem feminina formada para servir como um modelo a ser seguido, que é passada nos sermões e relatada nas vidas de santas na

Retrato de Hildegarda no Liber scivias Domini

Legenda Áurea. Enfim, para atender a temática proposta, pretendemos identificar as diferenças encontradas nas trajetórias das santas analisadas nesse estudo, com o intuito de desmistificar alguns aspectos sobre a santidade feminina, a exemplo, de que para ser santa tinha que ser virgem.

Leilane Araujo Silva é Graduada em História pela Universidade Federal de Sergipe.

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GNARUS - 95 Referências: Fontes VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Livros BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do Ano 1000 á Colonização da América. JérômeBaschet/ tradução Marcelo Rede; prefácio Jacques Le Goff. São Paulo: Globo, 2006. DUBY, Georges. Damas do século XII: A Lembrança das Ancestrais.Georges Duby/ tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da.Hagiografia & História: Reflexão Sobre a Igreja e o Fenômeno da Santidade na Idade Média Central. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (organizadora). Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008. STOLZ,Albano.Santa Isabel da Hungria.Albano Stolz/ versão do Frei Pio Lewellng, O.F.M. Censor Diocesano. Salvador-Bahia: Editora Mensageira da Fé Ltda, 1952. Disponível em: http://www. alexandriacatolica.blogspot.com (ultimo acesso em: 20 de Novembro de 2013). MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1990. —(Coleção Repensando a História Geral) PIERONI, Geraldo. Entre Deus e o Diabo: Santidade Reconhecida, Santidade Negada na Idade Média e Inquisição Portuguesa. Geraldo Pieroni (organizador). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

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Artigo

SOBRE A MAÇONARIA NA HISTÓRIA MODERNA E O GRAU DE MESTRE Por Marcus Vinícius Teixeira dos Anjos e Adílio Jorge Marques RESUMO: Neste trabalho os autores se propõem apresentar o caminho histórico da Maçonaria no século XVIII, tomando por base fontes primárias e secundárias que tratam do chamado simbolismo maçônico do 3º grau. Este é conhecido pela chancela de “Grau do Mestre Maçom”. Identificamos que existem palavras específicas, além de um conjunto de símbolos e significados, que denotam o espírito do pensamento moderno. Assim o objetivo central deste estudo está no grau de Mestre e nas suas correlações linguísticas dadas por antigos livros e manuais, disponíveis a qualquer pesquisador do mundo. E por duas razões. A primeira, pela sua natureza, pois ela surge em concomitância com o último grau desenvolvido na Maçonaria dos primeiros graus de seus estudos, o que para os autores evidenciaria a transformação da essência da organização até então conhecida como operativa, ou seja, laboral, afeita às corporações operárias, e assemelhando-se a um grupo de trabalho quase sindical. Isto irá mudar para um caráter chamado de especulativo, a saber, um caráter desassociado do conhecimento de técnicas construtivas reais para cuidar de questões mais filosóficas, movida por transformações sociais de época, mas sem perder as antigas relações de mutualidade entre seus membros. A outra razão é a própria palavra em si e as suas muitas variações, com o próprio estudo das muitas variações dessa palavra, o que leva à possibilidade de novos estudos futuros não apenas nas áreas da História e da Sociologia, mas também da Linguística. Palavras Chaves: Maçonaria. História. Grau de Mestre. Linguística.

Introdução

N

os umbrais de nosso trabalho faz-se necessário pontuar que comumente a Maçonaria é referida como uma sociedade secreta. Contudo, OLIVEIRA (2012, p. 1) afirma que: “[...] a Maçonaria não é uma entidade secreta. A história e a finalidade da Ordem devem ser exaustivamente divulgadas”. Neste diapasão, nenhum detalhe dos rituais atuais será revelado, de modo que as informações aqui divulgadas não são do tipo que ferem os compromissos assumidos por

maçons. As obras consultadas são públicas e de antiguidade comprovada. De início esclarecemos que a expressão “Maçonaria simbólica”, amplamente vulgarizada, apresenta aproximadamente 321 mil resultados na ferramenta de pesquisa Google por ocasião da redação desse artigo, e possui uma definição corrente em diversas fontes sem que tenhamos conseguido identificar a autoria. Em resumo, algo como a Maçonaria simbólica utiliza o sistema de graus para transmitir os seus ensinamentos, e cujo acesso é obtido por meio de uma

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Iniciação para cada grau. Os ensinamentos são transmitidos por meio de representações e símbolos. Desta forma, no presente artigo, sugerimos que o conceito de “Maçonaria simbólica”, e que abrange os três primeiros graus da Ordem - Aprendiz, Companheiro e Mestre - deve ser entendido como a Maçonaria de hermenêutica baseada nos sinais e símbolos. Tendo três estágios considerados iniciáticos, independentes e complementares entre si e alicerçada em três conceitos: iniciação, rito e mistério. Sobre o significado da iniciação, Mircea Eliade nos fornece o mais plural e ainda assim, completo possível, a saber: Compreende-se geralmente por iniciação um conjunto de ritos e de ensinamentos orais que persegue a modificação radical do estatuto religioso e social do sujeito a iniciar. Filosoficamente falando, a iniciação equivale a uma mutação ontológica do regime existencial. Ao fim de suas provas, o neófito goza de outra existência que a anterior à iniciação: torna-se um outro. (ELIADE, 2004).

Sobre o rito, Barzán nos dirá: A palavra deriva do latim ritus, cujo equivalente em grego é thesmós (em dórico tehmós) e cujo significado no plural é: “tradições ancestrais, regras, ritos”... o rito carrega de sacralidade, ou seja, de vitalidade renovada e de energia, o tempo, o espaço e a casualidade empírica. Estas três condições da existência sensível possuem uma disposição que lhe é inerente para a mudança, a dispersão e a dissolução. (BARZAN, 2002, p. 50).

O mesmo Barzán ainda pontuará:

Os mistérios realizam a mesma finalidade em toda a sua extensão: “Imitam a natureza do divino, que rejeita a percepção direta”. Na realidade, permitem ao iniciado experimentar o segredo que se oculta nas formas e mudanças do cosmo. Sob os véus das celebrações mistéricas: ações, utensílios, mitos e discursos sagrados [hierós logos], a primeira coisa que salta à vista é a vida inesgotável da natureza e a sua circulação universal. (BARZÁN, 2002, p. 118).

Definido o ponto de vista esclarecemos que a pesquisa obedeceu ao estudo de quatro grupos de fontes primarias bibliográficas: 1 - Catecismos originários, publicações manuscritas ou impressas (KNOOP,1963) no período de 1370 ou após: 1730: Manuscrito Regius (c. 1370); Manuscrito Cooke (1429); Manuscrito da Grand Lodge nº1 (1583); Manuscrito Edinburgh Register House (1696); Manuscrito Sloane n.3329 (1700); Manuscrito Trinity College (1711); O Exame de um Maçom (Mason’s Examination) - primeira publicação a expor os segredos maçônicos (1723); Manuscrito Graham (1726) e A Maçonaria Dissecada de Samuel Prichard (1730); 2 - Divulgações Inglesas (KNOOP,1963) e Francesas (CARR, 1971), que abrangem os anos de 1738 à 1769: La Reception Mysterieuse, tradução da Maçonaria Dissecada de Samuel Prichard (1738); A Ordem dos FrancosMaçons Traída de Gabriel-Louis Pérau (1744); Catéchisme des Francs-Macons de Leonard Gabanon (Louis Travenol) (1744); A Chancela Rompida ou O Selo Quebrado (Le Sceau Rompu) autoria anônima (1745); La Desolation des Entepreneurs Modernes du Temple du Jerusalem de Leonard Gabanon

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GNARUS - 98 (Louis Travenol) (1747); L’Anti-maçon, autoria anônima (1748); Le Nouveau Catéchisme des Francs-Macons de Leonard Gabanon (Louis Travenol) (1749); Maçom sem Mascaras de Thomas Wilson - mestre da Swan Tavern Lodge - (1751); Master key to free-masonry, autoria anônima (1760); Três Batidas Distintas (Three Distinct Knocks), autoria anônima (1760) e Jachin and Boaz, an Authentic Key to the Door of Free-masonry both Ancients and Moderns, autoria anônima (1762). 3 - Catecismos intermediários, em sua maioria textos impressos com o ritual dos 3 graus simbólicos iniciais, todos do séc. XVIII: Les trois premiers grd. uniform de la mac. De Nerad Herono (Honoré Renard), (1778); Recueil des trois premier grades de la maconnerie, autoria anônima (1788) e Brown’s Masonic Master Key through the Three Degrees by way of polyglot de John Brown, impresso em cifra (1798); 4 - Grandes Rituais Antigos (tornados públicos): Os Rituais do Rito Escocês Retificado escrito por Jean Baptiste Willermoz e aceito pelo Convento de Wilhelmsbad, e que foram publicados como Rituel du grau d’apprenti, de Compagnon, et de maitre francmacon pour le regime de la maconnerie rectifié redigé en Convent general de l’Ordre em Aout 5782 (1782) (tornados públicos pelo Grande Oriente de Genebra- Suiça); Os Rituais do Rito Adonhiramita sob o título de Recueil Precieux de la Maconnerie Adonhiramite de Louis Guillemain de St. Victor (1785); Os Rituais do Rito Moderno ou Rito Francês, que elaborados por uma comissão, foram aceitos pelo Grande Oriente de França em 1786, copiados e enviados a todas as lojas do Grande Oriente, sob forma impressa sob o

título “Le Regulateur du Macon” de Rottiers de Montaleau (1801); Os Rituais do Rito Escocês Antigo e Aceito, criados na França, por volta de 1804, possivelmente por JeanPierre Monguer de Fondeviolles (in Pierre Noël, “Les Grades Bleus du REAA; Genèse et développement”, Acta Macionica, vol. 12 (2002), pp. 25-118) provavelmente para a Loja “La Triple Unité,” como uma mistura dos rituais tradicionais franceses e ingleses, nos moldes do que fora publicado em “Three Distinct Knocks” de 1760; Tuiller de Rite Ecossais Ancien et Accepté et Rite Moderne de Auguste de Grasse-Tilly (1813); Manual Maçônico – O telhamento de todos os ritos de Claude André Vuillaume (1830) e Trolhamento dos 33 graus, (1876). Assim, a nossa proposta é, sem tentar esgotar todas as possibilidades relacionadas, observar o cenário histórico e analisar as fontes e diferenças do 3º Grau da Ordem Maçônica, por meio das variantes da palavra usada no grau de Mestre maçom. Aqui investigada como uma hierós logos, uma “palavra sagrada”, uma forma de retórica religiosa presente nos Mistérios Dionisíacos e Pitagóricos (BENCHEVA, 2014), no qual, em linguagem simbólica, estariam contidos os fundamentos de uma doutrina (BERNABÉ, 2012). Palavra que nos leva a uma leitura radical da historicidade maçônica, no sentido de recuperar o seu valor etimológico originário e contextualizar o surgimento do grau de Mestre maçom, como ele se apresenta hodiernamente, em especial na França e na Inglaterra, quando a própria Maçonaria moderna se constituía na Europa.

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GNARUS - 99 BREVE HISTÓRICO MAÇÔNICO Não podemos perder de vista que a Maçonaria nasce operária, ou operativa (BOUCHER, 2012), e se conecta à figura dos pedreiros medievais. Butler e Ritchie (2006) mencionam que este pedreiro era conhecido como mason, em inglês, e maçon, em francês, sendo em português maçom. Sempre a significar aquele que trabalha com a pedra. Jacq (1980) menciona que os grupos de maçons formavam uma forte confraria por toda a Europa, sendo eles especialistas na construção das catedrais medievais em estilo gótico e altamente versados em conhecimentos esotéricos. Karg e Young (2008), no mesmo sentido, sustentam que estas agremiações de pedreiros, além de possuírem o conhecimento em geometria, também conheciam profundamente aspectos de simbolismo místico e esotérico, sendo que tal conhecimento era amplamente difundido na ornamentação de monumentos, sobretudo, em catedrais. Ainda que não seja possível atestar com rigor científico de que estes pedreiros tinham conhecimentos esotéricos (RODRIGUES, 2014). O Manuscrito Cooke e os Estatutos de Schaw mencionam guildas de pedreiros nas quais, para se tornar um membro, era necessário demonstrar conhecimentos em Geometria, além de passarem por uma iniciação (FERRÉ, 2000). Grande parte dos pedreiros e arquitetos medievais eram pessoas simples, geralmente iletrados, mas que tinham um profundo conhecimento matemático, transmitido, segundo Stavish (2011), por outros pedreiros. Isto por meio de um ato de segredo-sagrado, como se a arte da Geometria fosse uma espécie de “arte divina”

que deveria ser transmitidas somente para sujeitos capacitados para compreendê-la. Pennick (1980) discorre sobre essa associação entre o conceito de geometria e o místico, explicando que a Geometria fora considerada como sagrada por permitir a mensuração dos elementos da natureza, ou seja, dos elementos da própria criação divina. Musquera (2010), Fulcanelli (2007) e Guerillot (1995) sustentam a tese de que essas guildas formaram uma verdadeira sociedade iniciática, e que para se tornar um indivíduo versado na arte de Geometria, seria necessário passar por um processo de iniciação ritualística que marcava, simbolicamente, a entrada em uma nova vida. O iniciado que recebia o título de Aprendiz jurava manter segredo sobre tudo o que aprenderia, jamais revelandoos para aqueles que não fossem pedreiros iniciados, porém, iniciava-se ali uma relação de mutualidade. Sobre esta destacamos: 5. Se um mestre ou companheiro ficar doente, ou um companheiro que pertence à fraternidade e tenha vivido com retidão na Maçonaria, for afligido com doença prolongada e necessidade de alimento e dinheiro, então o mestre encarregado da caixa lhe prestará socorro e assistência da caixa, se ele de outra forma puder, até que ele se recupere de sua doença, e deve depois jurar e prometer restituir o mesmo à caixa. Mas, se ele morrer da tal doença, então tanto deve ser tomado daquilo que ele deixar na sua morte, seja roupas ou outros artigos, como restituição do que foi emprestado a ele, se tanto ali existir.1

Arola (1986), eminente professor da Universidade de Barcelona, acredita que a oralidade que caracterizava a transmissão dos 1 As Constituições dos Maçons de Estrasburgo – 1459. Em http://www.freemasons-freemasonry.com/strasb.html, acesso em 6 de junho de 2020.

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GNARUS - 100 segredos do Oficio propiciou o acesso à própria interioridade, a uma reflexão existencial, que acabava por ser compartilhada nos canteiros de obra. E neste ambiente haveria, hipoteticamente, um ambiente propício para o início da transição ou substituição para a fraternidade maçônica moderna, chamada depois de especulativa, não operativa ou filosófica. Rebold e Fletcher (1867) e Ferré (2000) mostram que, desde o século XIII, com o Estatuto de Bolonha de 1248, já havia membros especulativos, ou não operativos, na Maçonaria operária da Europa. E que o Manuscrito Régio, o mais antigo texto maçônico reconhecido, originário da GrãBretanha, faz referência explícita aos “Quatro Mártires Coroados“,2 que estão inequivocamente relacionados com a história dos Steinmetz (talhadores de pedra) sob o Sacro Império Romano Germânico, sendo esta uma tradição maçônica que não teve origem na Inglaterra. Estes mesmos autores admitem, ainda, que na Europa continental, 2 A Lenda dos Quatuor Coronati, conforme o Manuscrito Arundel, (do qual transcrevemos as partes mais importantes): os Quatuor eram originalmente quatro artesãos de nomes Cláudio, Castório, Sinfrônio e Nicostráto, “miríficus in arte quadrataria”, literalmente “a arte da quadratura da pedra” ou a “arte de enquadrar pedras”. Eles são chamados distintamente por “artífices”, embora como a lenda nos mostra, inicialmente o grupo era formado pelos já nomeados artífices, no entanto a estes se juntam quatro milites e ao final mais um artífice de nome Simplício. Ao todo somam 9 sendo todos cristãos em segredo; Dá-se que Diocleciano ordenou que uma imagem de Esculapius fosse feita por eles e Sinfrônio, que parece ser o líder e porta-voz do grupo operário, recusa-se, em nome deles e com seu consentimento, a fazer a imagem. Eles são trazidos diante de Lampadius, o tribuno, que, após consultar Diocleciano, ordena que eles sejam despidos e açoitados com um látego chamado escorpião, “scorpionibus mactari” e, em seguida, colocados em caixões de chumbo “loluli plumbei” e lançados no Tibre. O manuscrito Arundel data do século XII, e encontra-se no Museu Britânico. Sua referência adequada é Ar: MSS, 91, f 2186. Existe uma outra cópia da lenda no Museu Britânico, MSS. Harleian, 2802, f 99. Existe também uma pequena nota dos Quatuor Coronati no MS Regius., 8, c, 7 f 165, do século XIV.

desde 1563, tanto na Carta de Colônia, como nos Decretos e Artigos da Grande Loja de Estrasburgo, ambos na Alemanha, bem como na Inglaterra, por meio do Manuscrito Sloane (1700), se depreende um sistema iniciático trigradal3 (Aprendiz-Companheiro-Mestre) dissociado da Ars Muratoria.4 A contrário sensu, na Inglaterra, a primeira menção ao terceiro grau (lembremos que é o objeto central deste estudo) se dá em 12 de abril de 1725, nas atas da Philo-Musicae et Architetura Societas, uma sociedade de músicos londrinos, enquanto na maçonaria regular seria mencionado em 1727, nas atas da Loja Swan and Rummer (GUILHERME, 2012). Neste caso, o que caracterizaria um sistema iniciático digradal5 (Aprendiz-Companheiro) consubstanciado na primeira edição das “Constituições dos Franco-Maçons” de 1723 (ANDERSON, 2001). Elas que também apontam o ano de 1717, ano da fundação da Primeira Grande Loja da Inglaterra, como marco da ascensão em definitivo da Maçonaria especulativa sobre a operativa.

A HERMENÊUTICA SIMBÓLICA DO 3º GRAU A par e independente de tais discussões históricas, estaria o terceiro grau da Maçonaria fundado no tripé proposto: iniciação, rito e mistério? O cotejo das fontes primárias bibliográficas permite-nos afirmar que, no que concerne a iniciação e ao rito, o Grau de Mestre sempre 3 Quando de 3 graus. 4 Arte dos Pedreiros. 5 Quando de 2 graus.

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GNARUS - 101 foi eminentemente iniciático. E ainda que tenha sido fartamente reelaborado no correr do século XIX, sempre foi estruturado como rito, como um ritmo básico que permite que o tempo saia de sua linearidade e assuma uma forma espiralada de manifestação, onde cada volta encontra-se num patamar superior de significados (BARZAN, 2002). Mas, quanto ao mistério, não nos é possível afirmar de forma tão categórica, pois mito e discurso sagrado, sob o véu das celebrações, apresentaram matizes diversas (MACKEY, 2008, vol. II, p. 62). A primeira referência a uma história tradicional do Ofício dos Pedreiros associada ao 3º grau aparece nos Manuscritos Regius e Cooke: “E durante a construção do templo na época de Salomão, diz-se na Bíblia, no terceiro livro dos Reis, capítulo cinco, que Salomão tinha oitenta mil maçons trabalhando. E o filho do rei de Tiro era o Mestre de Obras.” (MS Cooke, 1420). A menção específica do nome deste mestre de obras aparece apenas no Manuscrito da Grand Lodge nº1 (1583). Na narrativa histórica que o contém, encontramos, com efeito, a seguinte passagem: E depois da morte do Rei Davi, Salomão que era filho do rei Davi, completou o Templo que seu pai havia começado. E ele mandou procurar pedreiros em várias regiões, e os reuniu, de modo que tinha 80 mil trabalhadores, que trabalhavam a pedra e eram chamados Pedreiros, e ele escolheu três mil entre eles que foram designados para serem os Mestres e comandantes de suas obras. Além disso, havia um rei de outro reino que se chamava Iram e que amava muito o rei Salomão e que lhe enviou madeira de construção para suas obras. E ele tinha um filho chamado Anyone (qualquer

um) que era mestre em Geometria, chefe de todos os pedreiros, e mestre de gravuras e esculturas e de todos os outros processos de construção utilizados para o Templo. E isso está registrado na Bíblia, no terceiro capítulo do quarto livro de Reis.” (MS da Grand Lodge nº1, 1583)

Um documento, no entanto, contrasta com o apresentado até agora. Trata-se de um manuscrito datado de 24 de outubro de 1726, o Manuscrito Graham, que foi apresentado e estudado pela primeira vez pelo pesquisador britânico H. Poole, em 1937. A contribuição deste texto para a busca de fontes do mito do Grau de mestre nos parece fundamental. O documento se mostra como um catecismo, sendo composto por perguntas e respostas que serão encontradas, quase literalmente, no “The Whole Institution of Masonry (1724) e no “The Whole Institutions of Free-Masons Opened” (1725). Dachez (2002) afirma que estas semelhanças são importantes de serem ressaltadas, porque elas indicam que o Manuscrito Graham não seja apenas um texto isolado e atípico, mas que ele se insere incontestavelmente em uma corrente de instruções maçônicas reconhecidas e divulgadas na Inglaterra, nesta época. Ao final do catecismo propriamente dito, surgem três narrativas míticas, sendo a primeira: (...) pela tradição e também por referência às Escrituras, Sem, Cam e Jafé foram visitar o túmulo de seu pai Noé para tentar descobrir ali algo sobre ele e que os guiasse até o poderoso segredo detido por este famoso pregador. Estes três homens já tinham concordado

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GNARUS - 102 que, se eles não descobrissem o verdadeiro segredo em si, a primeira coisa que descobrissem assumiria para eles o lugar do segredo. Eles não duvidavam, mas acreditavam muito firmemente que Deus poderia e iria revelar sua vontade, pela graça de sua fé, de sua oração e de sua submissão, de modo que aquilo que eles iriam descobrir se revelaria também útil para eles como se eles tivessem recebido o segredo desde o início, de Deus em pessoa, direto da própria fonte. Eles chegaram ao túmulo e nada encontraram, exceto o cadáver quase totalmente decomposto. Eles seguraram um dedo que se soltou, e assim de junta em junta, até o pulso e o cotovelo. Então, eles levantaram o cadáver e o apoiaram contra si pé contra pé, joelho contra joelho, peito contra peito, rosto contra rosto e mão nas costas, e exclamaram: “ Ajuda-nos, oh Pai”. Como se tivessem dito, “Oh Pai no céu nos ajude agora, porque nosso pai terreno não o pode fazer. Eles descansaram, a seguir, o cadáver, não sabendo o que fazer. “Um deles disse: “Existe a medula nesses ossos” [Marrow in this bone]; o segundo disse:” Mas é um osso seco “, e o terceiro disse: “Ele fede”. Eles concordaram então em dar a isso um nome que ainda é conhecido da Maçonaria de nossos dias. (MS GRAHAM,1726)

A segunda narrativa é exposta sem conexão aparente com a anterior: Durante o reinado do Rei Alboin nasceu Bezalel, que foi chamado assim por Deus antes mesmo de ser concebido. E este santo sabia por inspiração que os títulos secretos e os atributos essenciais de Deus eram protetores, e ele construiu com base neles, para que nenhum espírito mal e destrutivo se atrevesse a derrubar a obra de suas mãos. Também suas obras se tornaram tão famosas, que os dois irmãos mais novos do rei Alboin, já nomeado, quiseram ser instruídos por ele sobre sua nobre maneira de construir.

Ele aceitou com a condição de que eles não revelassem, sem que qualquer que estivesse com eles pudesse compor uma tripla voz. Então eles juraram e ele lhes ensinou as partes teóricas e práticas da construção, e eles trabalharam. (…) Assim, Bezalel, sentindo se aproximar a morte, desejou ser enterrado no Vale de Josafá, e um epitáfio foi gravado segundo seus méritos. Isto foi realizado por estes dois príncipes, e foi registrado da seguinte forma: “Aqui reside a flor da arte construtiva, superior a muitos outros, companheiro de um rei, e irmão de dois príncipes. Aqui jaz o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou. (MS GRAHAM,1726)

Sem qualquer transição, novamente, a última narrativa se dá: Aqui está tudo que se relaciona com o reinado do rei Salomão, (filho de Davi), que começou a construir a Casa do Senhor: (...) lemos no Primeiro Livro dos Reis, capítulo VII, versículo 13, que Salomão mandou buscar Hiram em Tiro. Este era o filho de uma viúva da tribo de Naftali, e seu pai era um Tiriano que trabalhava em bronze. Hiram era cheio de sabedoria e habilidade para executar todos os tipos de obras em bronze. Ele foi até o Rei Salomão e dedicou a ele toda a sua obra. (...) Assim, segundo esta passagem da Escritura, devemos reconhecer que esse filho de uma viúva, chamado Hiram, tinha recebido uma inspiração divina, assim como e sábio Rei Salomão ou ainda o santo Bezalel. No entanto, a Tradição relata que, durante esta construção, teria havido disputas entre trabalhadores e os pedreiros sobre salários. E para apaziguar todo mundo e chegar a um acordo, o rei sábio teria dito ‘que cada um de vocês seja satisfeito, porque todos vocês vão ser pagos da mesma forma.’ Mas ele deu os pedreiros um sinal que os trabalhadores não tinham conhecimento. E aquele que podia fazer esse sinal onde os salários eram pagos, recebia como pedreiro; e os trabalhadores que não o conheciam, eram pagos como anteriormente. (...) Assim, o trabalho evoluiu e progrediu e ele não poderia dar errado, já que eles trabalhavam para um mestre tão

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GNARUS - 103 bom, e tinha o homem mais sábio como supervisor. (...) Para ter a prova disso, leia o 6º e 7º [capítulos] do primeiro Livro dos Reis; você encontrará ali o maravilhoso trabalho de Hiram durante a construção da Casa do Senhor. Quando tudo acabou, os segredos da construção foram colocada em boa ordem, como eles são agora e serão até o fim do mundo (...).(MS GRAHAM,1726)

fosse encontrado morto, a primeira palavra pronunciada passaria a ser a nova palavra do Mestre, substituindo assim a antiga. Três pesquisadores encontram-lhe o cadáver e refundam o mistério, com uma nova “palavra sagrada”. Hiram morre como “construtor” e renasce como “arquétipo” (BOUCHER, 2012).

Na narrativa da história da Maçonaria contida na primeira edição das “Constituições dos Franco-Maçons”, de 1723, James Anderson não faz qualquer menção à Lenda do 3º Grau, o que ocorrerá na segunda edição, datada de 1738, a saber:

Ainda que apresentado em forma resumida, o mito de Hiram deixa transparecer seus pontos de contato com o mito egípcio de Osíris, cujos mistérios eram representados no Lago de Sais, sendo a origem a remontar ao século XV AEC. Ou com o mito fenício de Adônis, filho de Cíniras, rei de Ciro, amante favorito de

Isso [o templo] foi finalizado no curto espaço de tempo de sete anos e seis meses, para o assombro de todos; quando a cumeeira foi celebrada pela fraternidade com grande alegria. Mas a alegria foi logo interrompida pela morte repentina de seu grande querido mestre, Hiram Abif, o qual foi dignamente enterrado na Loja próxima ao templo, de acordo com o costume antigo (ANDERSON, 2001).

Coube a Samuel Prichard, in Maçonaria Dissecada (1730), propor a primeira versão conhecida e coerente da lenda, que deveria, a partir daí, constituir o cerne deste grau. E torna-se evidente a natureza compósita da personagem Hiram Abif (DACHEZ, 2002). No mito, Hiram é um mestre-artífice que é morto por três companheiros desejosos de adquirir a palavra do grau de Mestre, chave do conhecimento e do trabalho dessa categoria. Frustrando o intento, Hiram leva para o túmulo a “palavra sagrada”, que se perde para sempre. Salomão, por ter Hiram desaparecido, enviou vários homens em busca de seu Mestre. Suspeitando do que poderia ter acontecido, o Rei decidiu que, se Hiram

Vênus. Nos três temos os mesmos mitemas recorrentes: a morte por forças tenebrosas e a ressurreição como forma de vencer morte. Além de atenderem à ritualística dos pequenos e grandes mistérios, aonde o conhecimento completo das verdades tratadas na iniciação era finalmente comunicada num tempo mítico/sagrado, percorrendo-se um caminho característico: do afanismo (do grego; “destruição”, “morte”), desaparecimento ou morte (simbólica) do iniciado; o pasto (“cama”, “caixão” ou “túmulo”); à eurese (“descoberta,”, “invenção”), o encontro do cadáver; e a autópsia, comunicação de todos os segredos e conhecimento integral, que tornavam o outrora profano em um epopta, (“testemunha ocular”), pois agora nada mais lhe era desconhecido (MACKEY, 2008, vol. I). Assim, a Lenda de Hiram é o resultado de uma ação consciente e calculada, cuja intenção era, através da reestruturação de grau de Mestre, levar à reelaboração da instituição maçônica como a conhecemos. Isso feito pelos próprios maçons e por meio de uma palavra originariamente perdida e

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GNARUS - 104 outra palavra substituta encontrada (DACHEZ, 2002).

ESTUDO DAS ANTIGAS PALAVRAS DO MESTRE MAÇOM ENQUANTO ENTENDIMENTO HISTÓRICO DAS ANTIGAS FONTES PÚBLICAS As principais ocorrências históricas, em ordem cronológica, para a palavra do 3º Grau, segundo as fontes anteriormente mencionadas, são:

Manuscrito Sloane n.3329 Manuscrito Trinity College, Dublin – Irlanda O Exame de um Maçom (Mason’s Examination) - primeira publicação a expor os segredos maçônicos A Maçonaria Dissecada de Samuel Prichard A Recepção Misteriosa de Samuel Prichard A Chancela Rompida ou O Selo Quebrado (Le Sceau Rompu) A Ordem dos Francos-Maçons Traída de Gabriel-Louis Pérau L’Anti-maçon Maçom sem Mascaras de Thomas Wilson (mestre da Swan Tavern Lodge) Master key to free-masonry Três Batidas Distintas (Three Distinct Knocks) Jachin and Boaz, an Authentic Key to the Door of Free-masonry both Ancients and Moderns

1700

MAHABYN

1711

MATCHPIN

1723

MAUGHBIN

1730

MACHBENAH

1738

MACHBENAH

1745

MACBENAC

1745 1748 1751

MAC-BENAC, MACHENAC, MAK-BENAK MAKBENARK MACBENAC

1760

MACKBENAK

1760

MAHHABONE, (Podre até os ossos) MAHHABONE, MAC BENACK

1762

Rituel de maitre francmacon pour le regime de la maconnerie rectifié de J.B. Willermoz Recueil Précieux de la Maçonnerie Adonhiramite de Louis Guillemain Saint-Victor Le Régulateur du Maçon de Roettiers de Montaleau Manual Maçônico – O telhamento de todos os ritos de Claude André Vuillaume

1782

MAK-BENAH

1787

MAKBÉNACH

1801

MAK-BENAH

1830

MOABON e MAK-BENAH, (Aedificantis putrido, Filius putrificationis)

Tuiller de Rite Ecossais Ancien et Accepté et Rite Moderne de Auguste de Grasse-Tilly

1813

MOABON, e MAKBENAK

Trolhamento dos 33 graus

1876

MA HABONEH

À partir das informações históricodocumentais, foi possível identificar a existência de três famílias linguísticas da palavra do 3º Grau. A família Mahabyn com os seus derivados (Matchpin e Maughbin), testemunho do antigo sistema trigradal praticado na Europa Continental. A família Machbenah e seu corolário abreviado “MB”, com os seus derivados (Mak-Benak, Makbenark, Macbenac, Mackbenak, Macbenack, Makbenah), usadas pelos maçons da 1ª Grande Loja da Inglaterra de 1717.6 A família Mahhabone e seus derivados 6 No dia de São João, 24 de junho de 1717, três lojas maçônicas londrinas e uma loja de Westminster realizaram um jantar conjunto na cervejaria Goose and Gridiron, no St. Paul’s Churchyard, constituíram uma Grande Loja e a nominaram como a Grande Loja de Londres e Westminster e elegeram Anthony Sayer para Grão-Mestre. (COIL, 1961).

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GNARUS - 105 (Mahaboneh, Moabon, Mohabon), a partir da criação da Grande Loja dos Antigos.7

Makbenä ou Makbenâ ou Makhbena(h)

A contrario sensu, Michel Saint Gall em sua obra “Dictionnaire du Rite Ecossais Ancien et Accepté. Hébraïsmes et autres termes d’origine française, étrangère ou inconnue” (2001), desejou ver nessas três famílias de palavras, a par de sua grafia e pronúncia distintas, deformações de uma mesma palavra, com um mesmo e único significado.

Transcrita exatamente da mesma maneira “Machbenah” na obra de Prichard e nos textos da Bíblia de Genebra, na edição inglesa de 1560, e na Bíblia de King James de 1611, sendo ambas as edições inúmeras vezes reeditadas e amplamente utilizadas na primeira metade do século XVIII. Não há que se falar em coincidência:

(Bíblia de Genebra (1560). 1 Cron, 2:49)

Uma explicação possível para deslindar esse segredo é manter os olhos atentos ao presente sem menosprezar as lições do passado, e buscar a análise semântica de cada uma destas três famílias. 1) A família “Machbenah” Essa palavra é registrada pela primeira vez em 1730 na obra “A Maçonaria Dissecada” de Samuel Prichard, reconhecida por historiadores da Maçonaria como uma publicação de referência, cujo impacto foi enorme, devido à exatidão de suas revelações, inclusive das palavras dos Graus Simbólicos.

O “Machbenah” citado em Crônicas é o nome de uma cidade na Judéia, fundada por Sheva, do clã de Caleb (BROWN-DRIVER­ BRIGGS 1962, p. 460). A raiz desta palavra cujo significado é duvidoso, mas que pode ser comparado ao verbo kavan, e que em hebraico moderno significa “envolver, abraçar, enlaçar” (JASTROW, 1903, p. 608609)

Contrariamente ao que muitos têm escrito e repetido, (ECHED 1998) o vocábulo Machbenah realmente existe e possui uma ocorrência bíblica correspondente:

O texto de Prichard diz com razão: “E M. B. vos libertará”, sendo M. B. explicado na margem como “Machbenah”. O significado desta frase pode se tornar mais claro se, do verbo “enlaçar”, extrair-se o correspondente substantivo derivado “laço” que dentre outros possui o sentido figurado de compromisso.

7 Em 17 de julho de 1751, representantes de cinco lojas maçônicas reuniram-se na Taverna de Turk’s Head, na Greek Street, em Soho, Londres, e formaram “A Grande Loja da Inglaterra de acordo com as Antigas Instituições”, uma Grande Loja rival a 1ª GL de 1717. Achavam que praticavam uma forma mais antiga e, portanto, mais pura da Maçonaria, e chamaram sua Grande Loja de “Grande Loja dos Antigos”. E aqueles que eram afiliados à 1ª Grande Loja, chamaram pelo epíteto pejorativo de “Modernos”. Esses dois nomes não oficiais acabaram se afirmando. (CYRIL, 1981)

Ao preceder esta raiz com o pronome, muitas vezes reduzido à sua primeira consoante em palavras compostas (BROWNDRIVER-BRIGGS 1962, p. 552) e tomado em seu sentido de pronome demonstrativo (SANDER-TRENEL 1859, p 340), na verdade

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GNARUS - 106 construímos uma palavra cujo significado geral é “aquilo que envolve”, reforçando-se a noção de “vínculo”.

makkä

”makkah” = golpe

bonë

“boneh” = construtor

Neste ponto podemos nos perguntar: Os pedreiros teriam o reconhecimento de um “laço fraterno” (GESENIUS 1857, p. 471), ou mutualidade entre si, com a consciencientização de um compromisso entre todos os iniciados no Ofício? Seria este o sentido identificado pelos “Modernos” quando escolheram “Machbenah”? Talvez sim, nos arriscamos a responder. As lendas transmutam a palavra, da mesma forma que pretende transmutar o homem, e ser Mestre na corporação indica o significado de dominar a si mesmo.

makî

”makhi” = desgraça

Ainda, na obra “Thesaurus da Lingua Hebraica”, H.W.F. Gesenius afirma que “Machbenah”, tambem significa “encoberto”, bem próximo ao significado “envolver”. E não se deve negligenciar que “encoberto” poderia ser uma alusão à verdadeira palavra de Mestre, palavra que perdida ou escondida foi encoberta pela palavra substituta. No entanto, Prichard dá uma explicação para “Machbenah”: “The builder is smitten”, isto é, “o construtor está ferido” ou “o construtor foi golpeado”. Para que assim fosse, a palavra hebraica “Machbenah” não seria usada em seu sentido vernacular, mas pela agregação de radicais hebraicos soltos. E há fundamento para tal compreensão visto que nas tabelas da edição de 1580 da Bíblia de Genebra consta a seguinte nota: “Machbana, machbena: Pauvreté, l’assassinat du constructeur”, e que vertido ao português seria “Desgraça, o Construtor foi golpeado” (LEGOUAS, 1999):

Após alguns anos, em 1801, quando veio a lume o “O Regulador do Maçom” de Roettiers de Montaleau, as mesmas raízes hebraicas seriam tomadas sob outra perspectiva: maq benah

“maq” = podridão “benah” = filho

Ou seja, o Filho da Podridão. Ou: maq

“maq” = podridão

bonë

“boneh” = construtor

Podridão do Construtor. Etimologicamente vemos, em resumo, que “MacBenac” se apresenta como “compromisso”, “encoberto”, “o Construtor foi golpeado”, “Filho da Podridão” e “A Podridão do Construtor”. E que não há, em nenhuma língua, nenhuma classe de palavra que se possa dar equivalência ou definição especial que permita associar “MacBenac” com a expressão “a carne deixa os ossos” conforme é traduzida no Recueil Précieux de la Maçonnerie Adonhiramite de Louis Guillemain Saint-Victor (1787). 2) A família “Mahhabone” A primeira referência etimológica a se considerar é a associação com a personagem bíblica Moab, sendo “Moabon” o seu

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GNARUS - 107 diminutivo (VUILLAUME, 1830; GRASSE-TILLY, 2004; ECHED, 1998 e SAINT-GALL, 2001).

uma pessoa, não podendo, portanto, ser traduzido como “quem”.

mô’av Moab (Gen. 19:37, dentre outras 181 ocorrências).

HÁ = o, a, os, as, este ou isso. Podem ser tanto um artigo definido, às vezes chamando demonstrativo, ou um advérbio interrogativo que introduz questionamento. A escolha entre estas três hipóteses é complicada.

Moab era filho de Lot, nascido do incesto deste com sua filha mais velha. O significado de seu nome é “Saído do Pai”. Além da semelhança fonética não há nenhuma relação direta com a Maçonaria. “Mahhabone” é citada pela primeira vez em 1760 no livro “Três Batidas Distintas”, obra de autor desconhecido. Esta publicação é para o ritual adotado pelos “Antigos” o que “A Maçonaria Dissecada” é para o dos “Modernos” devido à sua precisão. Partindo-se do mesmo pressuposto de que a palavra está correctamente transcrita, já que todo o ritual exposto foi considerado correto à sua época, o procedimento aqui adotado foi o mesmo: buscar as raízes hebraicas desta família da Palavra, tendo em vista a própria ilustração de “Três Batidas Distintas”.

BONE = arquiteto, construtor. A palavra “arquiteto”, ou melhor, “construtor”, posto que o conceito moderno para arquiteto está ausente do vocabulário hebraico, aparece no texto da Bíblia apenas no plural: bonê

= construtores 1 Reis, 5:18.

bonîm = construtores 2 Reis, 12:11, etc. (total de 8 ocorrências). É possível deduzir a existência de uma forma singular, em comparação com textos Talmúdicos (Shabbath, 102b):

(Extraído do Talmud, Shabbath 102b) bonë Logo, por desconstrução semântica: MAH

= que, o quê.

Um pronome interrogativo pode ser traduzido como “que”, “o quê”. Eventualmente como “porquê”. Este pronome sempre qualifica uma coisa e nunca

= construtor.

hab-bônë = (JASTROW, 1903)

Aquele que construiu.

Assim, há três possíveis traduções que não alteram o sentido real e radical da expressão: mä hab-bonë

Mah haboneh, “Quem é o

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GNARUS - 108 Arquiteto?” (GUÉRILLOT, 1995 e SAINT-GALL 2001) mä hab-bônë Mah haboneh, “O que? Este é o Arquiteto!” (GUÉRILLOT, 1995) mî hab-bônë Mi haboneh, “Quem foi o Arquiteto?” (ECHED, 1998) Ao contrário da família anterior, “Moabom” não apresenta multi-significados. Aqui faremos uma observação à parte. Existe, ainda, a versão MABON ou MABIN para essa mesma palavra do 3º grau, pouco usada e que aparece em rituais paramaçônicos na Inglaterra, por exemplo, local muito marcado por suas origens pré-cristãs. O nome Mabon veio provavelmente de uma divindade celta, também conhecida como Angus, deus do amor. Mabon é conhecida como a época do Equinócio de Outono ou Festival da 2ª Colheita, sendo um dia sagrado no paganismo europeu (HANEGRAAFF, 1996). Celebrado no dia do equinócio de outono, aproximadamente no dia 21 de março no hemisfério sul, ou 21 de setembro no hemisfério norte. 8 Assim, há a possibilidade desta palavra antiga ter sido incorporada em processos espirituais mais modernos, como no caso da Maçonaria europeia. Inclusive pelo fato das vogais originalmente não serem consideradas para um vocábulo em hebraico (língua que aparece algumas vezes em rituais maçônicos antigos, como nas fontes anteriormente citadas). Em hebraico Mabon, ou mesmo Mabin, 8 As datas dos equinócios podem apresentar uma variação de até 3 dias astronômicos de acordo com o ano.

sem as vogais, aparece como MABN. Sendo que podemos, então, separar suas chaves de interpretação como: MA (mãe) AB (pai) BN (filho) Isso apresenta-nos as palavras hebraicas para Mãe, Pai e Filho, respectivamente. Cada uma das três partes tem relação as 3 letrasmãe do mesmo antigo alfabeto (CROWLEY, 1991). 3) A família “Mahabyn” A mais antiga referência relativa à Palavra do Grau de Mestre, em uso desde antes de 1700, “Mahabyn”, “Matchpin” e “Maughbin” são equivocamente interpretadas como uma deformação fonética de “Mahabon”. Tais palavras, conforme o Manuscrito Sloane (1700) e “O Exame de um Maçom” (1723), eram transmitidas oralmente de enquanto se faziam movimentos ritualísticos próprios. A referência bíblica imediata é “Mahab´im”, que aparece no Livro de Isaias 32:2, e no 1º Capítulo de Samuel 23:23, e que significa escondido. Temos um ponto de concordância com a família “Machbenah”. No entanto, se for aplicado o mesmo processo de decomposição dos radicais hebraicos, a palavra Maha-byn, pode ser construida pela combinação dos seguintes vocábulos: maq podridão ou moha = essência, âmago

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GNARUS - 109 ben

filho

ou bînä

= compreensão

Sendo possíveis as combinações: “Filho da Podridão”, “Filho da Essência”, “Compreensão da Essência” e “Compreenssão da Podridão”. Diante de tais raízes hebraicas, e devido à sua anterioridade histórica, torna-se evidente que esta família é o protótipo das duas famílias anteriormente analizadas e não uma derivação espúria. Há, entrementes, algumas proposições necessárias e importantes. A palavra do grau de Mestre, na Antiguidade, tomando por base o seu desenvolvimento histórico e a sua tradição de oralidade, não comunicava nada além do seu próprio propósito. De “Mahabyn” (escondido) para “Machbenah” (encoberto), há uma evolução fonética natural, uma integridade vernacular surpreendente e um alinhamento lógico inconteste.

CONCLUSÕES Percebemos, após este estudo, que a ideia criada no século XVIII para as novas corporações de Ofício era a de um compromisso, ou um laço, entre aqueles que participavam de forma natural das organizações maçônicas criadas na Europa. Como em um tipo de sindicato, as Lojas maçônicas buscavam um tipo de união de ideias entre os seus membros. As relações de mutualidade que a Maçonaria apresenta são antigas, enfatizadas por lendas e passagens que marquem significativamente os membros e a própria sociedade da época, como por exemplo, vemos nos Estatutos de los Canteros de Bolonia: XVIII Que os oficiais estejam obrigados a

assistir os associados enfermos e a lhes dar conselho: Estatuímos e ordenamos que se um de nossos associados estiver enfermo que os oficiais tenham o dever de visitá-los se se inteirarem disso, e de lhes dar conselho e audiência. E se falecer e não tiver como ser enterrado, que a sociedade o faça enterrar honrosamente às suas expensas. E que o maceiro possa gastar até a soma de 10 soldos bolonheses e não mais. 9

E isto teve efeito nas várias participações de maçons nos movimentos revolucionários, em especial do Século das Luzes e até os nossos dias. Tanto na fase operativa quanto na chamada fase especulativa/filosófica, fazse crer que há entre todos os maçons um vínculo indelével, fruto de um juramento e de uma consagração. Em algum momento da História maçônica a lenda sobre uma determinada palavra se tornou conexa com a conhecida Lenda de Hiram do Grau de Mestre Maçom, talvez com o intuito de fortalecimento do vínculo de irmandade. As traduções de uso corrente nos livros consultados parecem ter diminuído o sentido semântico e histórico dessas palavras. A “carne se despreender dos ossos” é mais um apelo teratológico, mais uma reprovação pela monstruosidade do assassinato de um justo, do que a comunicação de um fato, de uma verdade, seja esta exotérica, esotérica ou histórica. Consequência da reelaboração, desenvolvimento e sistematização da mesma Lenda de Hiram ao longo dos séculos XIX e XX para atingir a narrativa que é conhecida e que caracteriza a Maçonaria moderna.

9 ESTATUTOS de los Canteros de Bolonia. Statuta et Ordinamenta Societatis Magistrorum Tapia et Lignamiis 1248. Asturias: EntreAcacias S.L., 2ª ed, 2015.

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GNARUS - 110 Algo perceptível neste estudo foi que o mito de Hiram exerceu sobre a Palavra Sagrada (Hierós Logos) originária uma força atrativa tamanha que esta passou a mera condição de acessorar e convalidar a Lenda do 3º Grau, perdendo o vigor original e abrindo mão de sua tradição secular. O grau de Mestre se impõs gradualmente e a instituição maçônica se reconcebeu, distanciando-se em parte de seu berço. O Hierós Logos originário e a origem operária que buscamos trazer à lume ao explicitar suas relações etimológicas parece que são todos “levados para o túmulo” junto com Hiram. A Filosofia fez nascer uma maçonaria mais aristocrática, à altura do Século das Luzes. No entanto, como acontece tantas vezes, mais do que um título ou apenas parte da história social da Europa do século XVIII, a criação transcende seu criador e começa a viver a sua própria vida, incontrolável e imprevisível. O mistério se cumpre, induzindo à perfeição da vida, e o Hierós Logos ainda que perdido de seu significado, a cada iniciação prossegue transmutando o homem, trazendo-o à perfeição (τελονµενοι e τετελεσµενοι ) (CHRISTIE apud Mackey, vol I, p. 71).

Marcus Vinícius Teixeira dos Anjos é Bacharel em Ciências Jurídicas e Econômicas pela UFRJ, discente de História pela UNIRIO e Maçonólogo. Adílio Jorge Marques Prof. Adjunto da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e Membro da Academia Brasileira de Filosofia.

REFERÊNCIAS: ANDERSON, James. As Constituições de Anderson - Texto Original. Curitiba: Juruá Editora, 2001. AROLA, R. O Simbolismo do Templo: o espelho da contemplação. A Intersecção entre Céu e a Terra. Rio de Janeiro: Objetiva, 1986. As Constituições dos Maçons de Estrasburgo – 1459. Em http://www.freemasonsfreemasonry.com/strasb.html, acesso em 6 de junho de 2020. BARZAN, Francisco García. Aspectos Incomuns do Sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.

Por fim, percebemos que o Mestre escondido, encoberto pela “podridão”, assim como Hiram, desce aos subterrâneos pela morte, manipula seus metais, funde-se e refunde-se, numa imagem catamórfica , para emergir após a decomposição, menatzchim , Mestre de si mesmo, osso somente.

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Artigo

FUTEBOL E HISTÓRIA: O TÍTULO INTERCONTINENTAL DO CLUBE DE REGATAS VASCO DA GAMA Por Adílio Jorge Marques e Fernando Gralha RESUMO: No presente artigo busca-se traçar breve panorama da relação do futebol com a História Social das Ideias, contextos estes associados ao Clube de Regatas Vasco da Gama e sua historicidade. Perpassamos por temas como o que se reconhece por título Intercontinental, História vista de baixo, e memória. . Palavras Chaves: Vasco da Gama, Futebol, História Social das Ideias, Intercontinental.

Introdução

e que contou com apenas duas edições nos anos anteriores.

O

Club de Regatas Vasco da Gama sagrou-se campeão da disputa internacional, que vamos aqui relatar, de forma invicta, com seis vitórias e um único empate, além de ter o artilheiro da competição, Pinga, com seis gols. Ademais, foi o Clube que mais arrecadou nas bilheterias, comprovando, mais uma vez, a enorme força da torcida vascaína.

Os três torneios de futebol encaixam-se como Torneios Intercontinentais da época, o que impõe que o Club de Regatas Vasco da Gama também se reconheça como tal. Assim procedendo, o Campeão Intercontinental invicto de 1953 valoriza-se publicamente pela conquista de um torneio que merece elevada dimensão no mundo futebolístico.

Todavia, o Torneio Internacional representa algo maior, muito mais do que uma simples conquista do Vasco. Ele foi organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBD) em 1953 como substituição a anterior Copa Rio,

Acompanhar de perto o entendimento de nossos documentos históricos e conquistas é algo que interessa a todos os torcedores e dirigentes do Club de Regatas Vasco da Gama, sobretudo aqueles que trabalham com a rica história da nossa instituição, história

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Time da Final contra o São Paulo: Bellini, Ernani, Mirim, Ely, Danilo e Jorge, Maneca, Ademir, Ipojucan, Pinga e Dejayr (Foto do acervo do Centro de Memória do Vasco da Gama) plena de desafios, combates, resistências e exemplos basilares para a sociedade carioca e nacional. Nesse contexto, cabe aqui uma breve explanação científica/acadêmica para uma melhor compreensão da importância histórica dos fatos. Recentemente, as relações existentes entre História e Futebol ganharam novos impulsos com o fortalecimento da História do Esporte e a História Social das Ideias. Isto também contribuiu para este trabalho. Entendemos, nesta pesquisa, que a História Social das Ideias ganha espaço notório, dentro da Historiografia moderna, com a terceira geração da Escola dos Annales, como Jacques Le Goff, Edward P. Thompson, dentre outros. Thompson, por sinal, fez parte de uma

linha de pensamento que nos agradou para evidenciar a palavra Intercontinental como válida para o Torneio de 1953 que ora apresentamos. O historiador inglês fez parte de uma proposta conhecida de certa forma como a História Vista de Baixo, ou seja, uma forma de discutir os fatos passados a partir da visão das pessoas comuns, ou mesmo menos favorecidas das sociedades, sempre com a finalidade de evidenciar a riqueza das relações sociais. E o que é mais a cara do Vasco do que a sua história, a mais bonita do esporte brasileiro, feita por negros, pobres, e operários? Lembremos da conhecida Resposta Histórica de abril de 1924, o documento maior após a Ata de Fundação do Clube. Some-se a isso, nada menos do que a construção de São

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GNARUS - 113 Januário, em tempo recorde, inaugurado em abril de 1927, então o maior da América do Sul.

o termo Intercontinental para o torneio em foco.

A revisão da importância histórica de tais eventos esportivos engrandece não apenas o CR Vasco da Gama, mas a própria nação brasileira, evidenciando os vários momentos nos quais estivemos trazendo inovações e avanços ao desporto mundial. Rever e repensar fatos ou acontecimentos faz parte da vida humana, e acontece frequentemente na historicidade de pessoas e instituições. A história fornece aos seus heróis desportivos aspectos que antes não foram considerados, ou eram desconhecidos da maioria, transformando-se em ação positiva e pertinente. Não fosse assim, a história não seria passível de mudanças e se tornaria totalmente previsível como uma equação das ciências exatas.

A FIFA só admitiu por um tempo como Mundiais os torneios organizados por ela do ano 2000 em diante, com a representação de clubes de vários continentes, e não apenas das Américas e da Europa, como acontecia tradicionalmente. Algum tempo depois, ela acabaria por reconhecer como os certames disputados entre 1960 e 1999, mesmo aqueles patrocinados diretamente por empresas privadas diversas . Entretanto, a Organização máxima do futebol mundial não invalidou, de forma alguma, os certames organizados por seus afiliados. Neste caso, enquadramse a Copa Rio de 1951 e 1952 e o Torneio Internacional de 1953, dentre alguns outros disputados entre 1951 e 1960. Perguntamos, assim: Por que admitir significância somente nos torneios que a FIFA organizou recentemente? Ou mesmo apenas naqueles aceitos hoje, já que a história mostrou que as validações mudam com as décadas?

Apenas como mais um exemplo, hoje em dia é comum rediscutir o papel histórico da questão dos negros e índios na formação da nação brasileira. E aqui evocamos novamente a História Social das Ideias para a produção desta obra, pois mostrou-se interessante na capacidade de enriquecer os detalhes do passado com os quais o Torneio de 1953 e a história da Vasco se misturavam em um país ainda em construção identitária no pós II Grande Guerra. Por essa visão que escolhemos, podemos fazer uso de fontes das mais diversas, considerando não apenas documentos oficiais, como a revista da organização do Torneio Internacional da CBD, mas todo tipo de registro social, como os vários jornais disponíveis e documentos do Clube. Preferimos, assim, e logo de início, utilizar

Percebemos a variabilidade histórica, a multiculturalidade envolvida em tais torneios ao longo do tempo. Os campeonatos intercontinentais disputados ao longo da década de 50 já denotavam, após o sucesso da Copa do Mundo realizada no Brasil, enquanto certame mundial pós II Grande Guerra Mundial, uma tentativa de se perceber a real globalização do futebol por meio dos clubes e não apenas das seleções nacionais. A América do Sul já havia dado o exemplo em 1948, quando organizou, antes dos europeus, um Torneio Internacional, hoje reconhecido como o 1º Campeonato Sulamericano de Clubes, também tendo no Club

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GNARUS - 114 de Regatas Vasco da Gama o seu legítimo vencedor. Aliás, com essa extraordinária conquista, o Vasco tornou-se o primeiro clube brasileiro a vencer uma disputa fora de nossas fronteiras. Verificamos, assim, que ocorreu entre os sul-americanos um movimento inovador de sucesso, que depois tomou o formato de Copa Libertadores da América e, na Europa, a atual Liga dos Campeões. Estas são linhas que denotam um movimento futebolístico muito anterior ao atual momento, ao contrário do que muito se possa imaginar. Destacamos, ainda em relação à FIFA, que ela organiza atualmente um torneio nos mesmos moldes das disputas organizadas pela CBD nos anos 50, o que mostra a necessidade, positiva, do reconhecimento histórico das atitudes de futebol vascaíno naqueles anos. Podemos perceber que campeonatos/ torneios internacionais disputados na referida década de 50, ainda tomando como exemplo o Sul-americano de 1948, tinham importância diferenciada, real destaque, ainda mais quando um clube brasileiro vencia uma disputa contra clubes estrangeiros, independente de qual fosse a taça em jogo. Talvez, isso tudo seja parte daquela mesma afirmação de nação que se evidenciava, por meio do esporte bretão. Dentre as características para essa consolidação de nação, a ginga brasileira se destacava. Da mesma forma que os Campeonatos Brasileiros anteriores a 1971 – apenas para continuar na esfera dos exemplos – foram revistos, considerados como válidos e computados ao total de certames nacionais já ganhos pelos clubes, acreditamos que

torneios internacionais organizados por entidades máximas de seus países podem ser, também, considerados como válidos e computados como Intercontinentais, como no caso do Torneio Internacional de 1953, ocorrido no Brasil. A própria revista da CBD para a competição a descreve como Revista Oficial do Torneio Internacional Taça Rivadávia Corrêa Meyer, Futebol Mundial, Brasil, junho de 1953. Destaque-se o termo Futebol Mundial. Na publicação, encontramos o Regulamento Oficial do certame, a descrição da Diretoria da CBD, a tabela dos jogos, as Comissões para o Torneio, o Regulamento completo, a foto da Taça, o histórico de todos os clubes participantes, e, ao fim, uma História Relâmpago do Futebol Brasileiro. Desta forma, fica evidente o caráter oficial da organização promovida pela CBD, tal qual havia ocorrido nas edições anteriores, de 1951 e 1952. Além do mais, a permissão dada pela entidade máxima do futebol mundial, FIFA, empresta total legitimidade à competição. Apenas a partir da temporada 1955/1956, a UEFA passou a organizar as competições europeias de clubes e a definir o campeão europeu de clubes com a criação da Copa dos Campeões da Europa, sempre com autorização da FIFA para que a UEFA assumisse esse papel na Europa . Um exemplo de que o Velho Continente e o mundo do futebol ainda buscavam um formato para torneios continentais ou intercontinentais é o caso do Milan, da Itália. O clube italiano optou pela Copa Latina, disputada no mesmo período, pois ela já tinha o peso na Europa de uma pré-Copa dos

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GNARUS - 115 Campeões da Europa. Por uma questão de igualdade de direitos das confederações filiadas à FIFA, a partir de 1960 as duas entidades, UEFA e Conmebol, passaram a organizar as competições intercontinentais europeias e sul-americanas. No período anterior a 1960, a responsabilidade pela organização dos torneios intercontinentais de clubes recaía sobre as entidades nacionais, clubes de futebol e até de empresários. A FIFA permitia que entidades nacionais organizassem eventos entre clubes com o status de confrontos intercontinentais. O fato de a entidade máxima do futebol mundial não ter organizado diretamente tais certames não os descaracteriza como intercontinentais, segundo dirigentes da FIFA, em declarações dadas nos últimos anos para os casos de Palmeiras, Santos, Fluminense, dentre outros que já cogitaram (oficialmente, ou não, perante a FIFA) títulos que hoje chamamos de Mundiais. Destacamos que, para nós, integrantes do Centro de Memória do CR Vasco da Gama, os campeonatos/torneios após a Copa Rio de 1951 e até o referido ano de 1960, são todos, por base, torneios Intercontinentais, aí definidas as disputas ocorridas entre clubes de continentes diferentes, obviamente. Importante ressaltar que esse passou a ser o modelo do Mundial de Clubes do século XXI. Assim como os torneios que a FIFA diz reconhecer como organizados diretamente por ela, nós também chamamos de Mundiais de Clubes. Mas, qual a diferença entre Mundial e

Intercontinental? Na teoria, vemos diferença apenas no que a FIFA estabeleceu como norma interna para a sua própria classificação, já que ela mesma havia concedido autorização para as entidades nacionais nos anos 50 realizarem os seus próprios torneios com espectro internacional, dando a eles as devidas qualidades. De acordo com os regulamentos da FIFA, o que se chama de competição oficial são aquelas organizadas sob os auspícios da FIFA, das Confederações ou Federações associadas . E qual a diferença na prática? Nenhuma! Todos são vencedores de disputas de mesma finalidade e mesmas características gerais, especialmente nos anos 50, em que havia essa concessão da FIFA. Além disso, não existia um torneio único, em comum acordo entre Conmebol e UEFA, para uma única disputa que apontasse um só Campeão Mundial, como passou a ocorrer a partir de 1960 e após manifestação da FIFA, posterior ao Campeonato Mundial de Clubes de 2004. A questão da construção de uma identidade em relação a este título de 1953 é algo que, por fim, salientamos como sendo de grande importância para o universo vascaíno. Manter viva a memória, e construirmos a nossa identidade de campeões intercontinentais, é algo que compete não somente a alguma direção específica do CR Vasco da Gama, mas a todos os vascaínos e vascaínas espalhados pelo planeta, contados aos milhões. Tanto no plano individual quanto no coletivo, a memória permite que cada geração estabeleça vínculos com as anteriores.

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GNARUS - 116 e Corinthians), o português (Sporting), o campeão paraguaio do mesmo ano (Olímpia), e o escocês Hibernian. Houve o caso do campeão uruguaio Nacional de Montevidéu. Este, apesar de ter aceito o convite, foi proibido pela Associação Uruguaia de Futebol de disputar o badalado Torneio. Uma espécie de conselho arbitral dos clubes do Uruguai determinou, por 7 votos a 3, o impedimento time uruguaio.

2º jogo da semifinal do Octogonal Vasco e Corinthians/RJ. O Vasco venceu a partida por 3x1. Vê-se Sabará no ataque perturbando a defesa adversária. (Foto do acervo do Centro de Memória do Vasco da Gama) Indivíduos, e sociedades, procuram preservar o passado como um guia que serve de orientação para enfrentar as incertezas do presente e do futuro. Nesse contexto, estamos também consolidando a memória do campeonato de 1953, afirmando para todos que o Club de Regatas Vasco da Gama é legítimo Campeão Intercontinental de 1953.

O Torneio

Devido a “desistência” do time uruguaio, e a falta de tempo hábil de um novo convite para um clube internacional, Flamengo e Fluminense requereram à CBD a vaga. A CBD incumbiu a decisão de escolha à Federação carioca, que elegeu o tricolor carioca em função deste ter obtido melhor posição no Torneio Rio-São Paulo recém-encerrado. Acrescido a estes ainda participaram o Botafogo (2º Carioca melhor colocado no mesmo Rio-São Paulo), e o São Paulo (2º Paulista melhor colocado na mesma disputa de referência). De tal modo, ficaram assim definidos os participantes. Os clubes foram distribuídos em dois grupos. No Rio de Janeiro, com partidas disputadas no Maracanã, ficaram Vasco e Botafogo, o Hibernian (bicampeão escocês 50-51 e 51-52), e Fluminense (em substituição ao Nacional do Uruguai). O grupo de São Paulo foi formado por Corinthians e São Paulo, Sporting (tricampeão português 50-51, 5152, 52-53 – e que se tornaria tetracampeão na temporada 53-54), e o Olímpia (na época, líder do campeonato paraguaio.

O Torneio Internacional de 1953 foi organizado com a participação dos campeões carioca e paulista de 1952 (Vasco da Gama

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GNARUS - 117 A campanha Em um torneio cheio de emoções, o Vasco sempre foi mais time. Com muita luta e, principalmente talento e estratégia, o Vasco mereceu o título. Ernani e Osvaldo com grandes defesas; Belini, símbolo de força e entusiasmo; Mirim, mesmo sentindo o tornozelo, fez grande jornada; Eli, sempre um dos melhores em campo, juntamente com Jorge; e o sempre eficiente e elegante Danilo. No ataque, Pinga, Maneca, Ademir, Sabará, Dejair e Ipojucan foram brilhantes. Enfim, o Vasco foi o gigante de sempre e aumentou a coleção de sua sala de troféus. Para todo vascaíno, a festa foi total, e não era para menos. O torneio pôs o Vasco da Gama frente a adversários de padrões técnicos diferentes, exigindo, assim, uma variedade de estratégias. O quadro de São Januário tinha se saiu muito bem, foi campeão invicto e com o artilheiro do torneio, Pinga.

Estava terminado o Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer, Torneio Internacional de Clubes. Coube ao Clube de Regatas Vasco da Gama laurear-se no desafio intercontinental com inteira justiça. Vencedor à altura do título, pois pertenceu ao clube vascaíno, em todo o decorrer do Torneio, os feitos de maior expressão, tornando-se o vencedor indiscutível e de todo o mérito. A Copa do Mundo de 1954 impediria uma nova disputa nesses moldes. A provável indecisão da CBD e dos clubes brasileiros de realizar o evento, fosse de dois em dois, ou de quatro em quatro anos, somadas às instabilidades políticas nacionais, deixaram no esquecimento uma quarta edição do Torneio Intercontinental.

Adílio Jorge Marques é historiador e diretor do Centro de Memórias do Clube de Regatas Vasco da Gama. Fernando Gralha é historiador e colaborador do Centro de Memória do Clube de Regatas Vasco da Gama.

O Vasco da Gama se sagrou campeão com time já na fase final do grande Expresso da Vitória, cuja base foi formada por Ernani, Augusto, Haroldo; Eli, Danilo, Jorge; Sabará, Maneca, Ipojucan, Pinga, Dejair. Técnico: Flávio Costa. Primeira fase: Vasco 3 x 3 Hibernian Vasco 2 x 1 Fluminense Vasco 2 x 1 Botafogo Semifinais: Vasco 4 x 2 Corinthians Vasco 3 x 1 Corinthians Finais: São Paulo 0 x 1 Vasco Vasco 2 x 1 São Paulo

Troféu da Copa Rivadávia conquistado pelo Vasco em 1953. (Foto do acervo do autor) Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


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Coluna

ÁFRICA NA TELA: O USO EM SALA DE AULA DOS FILMES “O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA” E “HOTEL RUANDA” PARA RETRATAR CONFRONTOS OCORRIDOS NO CONTINENTE AFRICANO NO DECORRER DO SÉCULO XX Por Edivaldo Rafael de Souza

RESUMO: Utilizando-se do debate em torno do uso de filmes em aulas de história, este estudo analisadois longas que retratam episódios ocorridos em Uganda e em Ruanda, ambos países africanos. O filme “O último rei da Escócia” aborda a chegada ao poder e o governo ditatorial do presidente ugandense Idi Amin Dada, principalmente nos anos 1970. “Hotel Ruanda” aborda o genocídio ocorrido na Ruanda, em 1994. Tendo em vista a análise, as obras em foco poderão ser utilizadas para se trabalhar aulas de turmas do terceiro ano do ensino médio. Palavras Chaves: Filmes históricos; cinema e história; o uso de filmes em aulas de história.

Considerações iniciais

P

ara a realização dessa pesquisa, lançou-se mão de dois filmes que são baseados em fatos reais que ocorreram em diferentes países africanos. Deve-se, ainda, levar em

consideração que, apesar de serem filmes que possuem fatos históricos como referências, certa carga ficcional também não deixa de permeá-los, recurso este muito utilizado na sétima arte para dar maior ênfase ao enredo. Além disso, é importante avaliar que em todos os filmes deve-se destacar o recorte temporal

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e o recorte espacial, para que seja possível a obtenção de um conhecimento mais amplo em relação ao trabalho. Sabe-se que a Lei nº 10.639,1 de 9 de janeiro de 2003, traz a obrigatoriedade do ensino sobre o continente africano em todos os níveis de ensino. Dessa forma, o tema dessa pesquisa também atende ao que é solicitado dentro da referida legislação. Uma breve discussão sobre o uso de filmes em aulas de história Existem no Brasil diversos pesquisadores que abordam a temática correlacionada ao uso de filmes em sala de aula. Nesse sentido, evidencia-se que, em uma breve pesquisa, é possível localizar vários artigos, livros, monografia, dissertações e teses sobre o assunto. Dentre essas pesquisas, encontramse aquelas que trabalham de forma ampla e também aquelas que centram em determinado conteúdo, e, dentre eles, estão as aulas de História. Pode-se inferir que os historiadores começaram a adotar os filmes como fonte de pesquisa e ensino “(...) em torno dos anos 60 e 70 do século passado, acompanhando os debates que, entre outros problemas, destacavam a importância da diversificação das fontes a ser utilizadas na pesquisa histórica, especialmente

1 “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências”. LEI: 10639/2003. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 2 abr. 2020.

da história contemporânea”.2 Entretanto, é possível ressaltar que a utilização do cinema na perspectiva de “(..) recurso educacional é concomitante à própria história do cinema em si: desde os primeiros anos do século XX membros da nascente indústria fílmica, bem como intelectuais e educadores, percebiam na capacidade narrativa do cinema (...) uma poderosa ferramenta educativa” .3

Diante disso, houve bastante empenho dos profissionais da área para que se utilizasse tal instrumento para auxiliar no processo de ensino-aprendizagem do estudante. Mesmo que no início faltasse equipamentos que permitissem a adoção dessa nova metodologia. Com o passar dos anos, principalmente no início do Século XXI, no Brasil, a chegada do aparelho de vídeo cassete e, posteriormente, do DVD, acabou auxiliando para que os profissionais da educação pudessemutilizar esse mecanismo nas salas de aulas. Concomitantemente a isso, em um trabalho datado do ano de 2001, Sirley Diniz afirma que “[o]s últimos anos têm sido marcados em nosso país e no mundo por mudanças educacionais onde a predominância do uso de novas tecnologias têm se destacado numa sociedade que tem como objetivo a construção do próprio conhecimento pelo aluno”. 4

Percebe-se que o uso dos filmes em sala de aula ainda era visto como uma “nova tecnologia”, talvez naquele período, uma das únicas que se podia utilizar, já que o acesso a computadores com internet ainda era bem limitado nas escolas, e ainda não existia 2 BITTENCOURT, 2008, p. 373. 3 BITTENCOURT, 2008, p. 373. 4 DINIZ, 2001, p.1.

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GNARUS - 120 smartphones, por exemplo. Em relação ao processo de inclusão dos filmes para se trabalhar como recurso pedagógico, o educador “deverá adotar a nova tecnologia como um meio para novos fins, para uma aprendizagem mais dinâmica, mas sabendose que ela não deve ser a questão principal”.5

Para isso, é importante que o professor “[p]rocure inserir o filme dentro do planejamento geral do seu curso, articulando-o com conteúdos e conceitos trabalhados, bem como as habilidades e competências desejadas” . 6

Assim, é interessante que, já no planejamento anual das turmas, haja a citação de referências de filmes que possam vir a ser utilizados durante o ano, sempre pontuando a questão do tempo gasto para que se possa trabalhar a película de maneira adequada. Outro importante fator que deve ser levado em consideração é que “[para que tudo ocorra de maneira tranquila, o professor necessita planejar a escolha do filme e principalmente qual será o propósito em passá-lo, deixando claro para os alunos como acontecerá a atividade” 7.

Dessa forma, o filme terá um propósito no ensino de determinado conteúdo ao estudante, sendo possível realizar aulas expositivas dialogadas, atividades, apresentações de trabalho, debates, dentre outros métodos. Ou seja, é necessário também a abordagem não só do filme de fato, 5 Ibid, 2001, p. 4. 6 NAPOLITANO, 2003, p. 79. 7 CAMPAGNARO; et.al, 2013, p.132.

mas de tudo aquilo que está incorporado à filmagem, como o período e o local em que foi gravado, e qual era o contexto em torno daquela produção. Salienta-se que, na atualidade, com o advento da universalização da internet, é possível acessar diversos conteúdos por meio de streaming,8 para isso, existem diversas plataformas digitais9 que oferecem muitas possibilidades de filmes, séries e documentários. Nesse sentido, é de grande relevância o professor utilizar-se também desses mecanismos como auxilio durante os temas trabalhados. Posto isso, além de filmes e documentários apreciados em sala de aula, o professor poderá também fazer listas de filmes históricos, e realizar indicações para os estudantes. É possível realizar, ainda, a indicação de produções que sirvam não só para obtenção de conhecimento histórico, mas também que auxilie o estudante a se tornar um cidadão mais crítico e responsável em torno de diversas temáticas10 presentes na sociedade contemporânea. Dessa forma, “[o]s temas transversais não devem ser vistos como opositores dos saberes considerados clássicos, mas como necessidades e questões do presente, de 8 Streaming “[é] uma tecnologia que envia informações multimídia, através da transferência de dados, utilizando redes de computadores, especialmente a Internet, e foi criada após a população ter acesso a conexões mais rápidas”. Olhar: Oliveira (2018). 9 No Brasil existem diversas plataformas que oferecem o serviço de streaming, dentre elas, se destacam: Netflix, Amazon Prime, Globo Play, HBO Go, Telecine play, Crackle, dentre outras. 10 “o MEC definiu alguns temas que abordam valores referentes à cidadania: Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo e Pluralidade Cultural. No entanto, os sistemas de ensino, por serem autônomos, podem incluir outros temas que julgarem de relevância social para sua comunidade”. Ver: Menezes; Santos (2001).

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GNARUS - 121 grande importância, que não podem ser ignorados pelos educadores . Dito isso, 11 ‘[...] determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais”.12

Analisando e discutindo os filmes “O último rei da Escócia” e “Hotel Ruanda” O filme “O último rei da Escócia” foi lançado em 2006pela Fox Searchlight, sob a direção do escocês Kevin Macdonald. O longa-metragem conta com grande elenco, exemplos disso são o ator James McAvoy,que interpretou o médico aventureiro Nicholas Garrigan, e o ator Forest Whitaker, que venceu o Oscar e o Globo de Ouro, em 2007, como melhor ator por sua atuação no papel do ditador Idi Amin. Sua duração é de 122 minutos, e está enquadrado na categoria ação/drama. Como já foi ressaltado neste trabalho, para a obtenção de maior entendimento dos filmes abordados, é necessário, primeiramente, realizar uma breve contextualização do cenário em que a obra se passa. Dessa forma, o estudante poderá entender em completude a apreciação do filme como referencial de estudo. O país da Uganda, localizado na África subsaariana, conseguiu a sua independência em 9 de outubro de 1962, antes disso, era uma colônia britânica. Porém, durante o período de luta pela emancipação, dentro do próprio território, foram se consolidando diversas alianças separatistas. Com a eleição de Obote

para presidência do país, não demorou muito para que começasse a haver desavenças em torno da figura presidencial e o líder do exército; assim, quando o presidente começa a retirar “(...) as atribuições institucionais de Amin, o general criou batalhões compostos de soldados da sua região (o distrito do Nilo Ocidental, ao noroeste do país, mas nãose identificando com as culturas Acholi ou Lango), para assegurar seu controle sobre as forças armadas” .13

Depois de muitos anos de disputas pelo poder, em 25 de janeiro de 1971, o General Idi Amin Dada, assume Uganda, através de um golpe militar, sendofortemente apoiado pela elite local e também por outros países. A partir daí, é iniciado, naquele território, um governo ditatorial e fortemente marcado pela perseguição aos opositores. “O último rei da Escócia”, foi um filme “[b]aseado em romance de mesmo nome,14 do escritor Giles Foden; a obra usa a história de um personagem fictício como fio condutor para retratar a Uganda durante a tomada de poder e o começo da ditadura de Idi Amin, que durou do golpe militar de 1971 ao exílio, em 1979” .15

Nesse sentido, o filme expõe de modo histórico como era a governança do dito presidente, bem como conflitos instaurados no país. A exemplo, um fato ocorrido em Uganda e imerso no filme é que a personalidade central, “(...) diante das dificuldades de pagar os soldos às suas tropas, para assegurar sua lealdade, permitia que saqueassem a 13 GUIMARÃES; et. al, 2016, p. 285.

11 NETO, 2010, p. 64.

14 FODEN, Giles. O Último Rei da Escócia. Vila Nova de Famalicão: Editorial Magnólia, 2006.

12 DUARTE, 2002, p. 19.

15 DÁVILA, 2007, s.p.

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GNARUS - 122 população civil e dava maior autonomia aos comandantes regionais”.16

Essa medida tornou o país um caos, pois a população mais pobre estava sempre em constante vigilância, sendo saqueada pelo exército da Uganda. Além disso, houve milhares de mortes, algumas de maneira cruel, para que servissem deexemplo a todos aqueles que quisessem ser contrários ao governo. Nas filmagens, entende-se que, em determinados trechos, o diretor utiliza-se defatos fictícios. Dessa forma, deve-se relatar aos estudantes para que eles saibam que “[l]ogo, nesses filmes existe uma mescla entre personagens fictícios e suas histórias inventadas, inseridos em fatos reais, com personagens que até mesmo existiram e tiveram importância relevante na história africana recente, (..)” .17

Ou seja, há uma mescla entre história e ficção ao longo da trama.

Ademais, identifica-se que [a]pesar de o filme contar a história de Uganda da perspectiva de um europeu, como já foi apontado, não podemos dizer que “O Último Rei da Escócia” não possui seus protagonistas africanos. O filme foi rodado em Uganda e contou com a participação dos ugandenses em papéis menores e figurativos, eles também atuaram como empregados na produção .18

Em outros trechos são demonstrados episódios de grande importância que aconteceram naquele país; como o incidente 16 GUIMARÃES; et. al, 2016, p. 288. 17 SENGER, 2012, p. 535 18 SENGER, 2012, P. 536

de junho de 1976, quando “(...) membros do grupo Frente Popular de Libertação da Palestina — Operações Externas (FPLP-OE) e de células revolucionárias alemãs sequestraram um voo da Air France que decolara de Tel Aviv e foram recebidos por Amin no principal aeroporto internacional de Uganda, Entebbe” . 19

Esses grupos que sequestraram o avião com 258 pessoas em 28 de junho de 1976,20 eram aliados do presidente Idi Amin e levaram o avião para Entebbe, na Uganda. Os sequestradores pretendiam utilizar os reféns para troca de presos políticos ugandenses e palestinos que estavam em outros países. Pontua-se também que a maioria dos passageiros eram de Israel, que possui relações bem conturbadas com a Palestina, inclusive com fortes ataques de ambos os lados. Por fim, depois de intensas negociações, algumas pessoas foram liberadas. Porém, ainda continuavam 105 reféns no aeroporto de Entebbe. Israel, então, planejou e executou uma operação de resgate na madrugada de 4 de julho de 1976; os reféns foram libertados. Nessa operação morreram alguns terroristas, soldados e também três reféns. O presidente Idi Amin viria a sair do poder apenas em 1979, quando tropas da Tanzânia juntamente com grupos de ugandenses contrários ao regime forçaram para que Amin se exilasse, primeiramente na Líbia, posteriormente na Arábia Saudita, local em que viveu até falecer, em 2003.

19 GUIMARÃES; et. al, 2016, p. 289. 20 Em relação a esse episódio, ele é retratado de forma isolada em outro filme. Olhar: 7 dias em Entebbe. Direção: José Padilha. Reino Unido: Diamond films, 2018. 107min.

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GNARUS - 123 pela atriz Sophie Okonedo. De início, faz-se necessário salientar que existem importantes livros e filmes que expõem de forma contundente esse período sangrento envolvendo o pequeno país do continente africano. Dentre essas fontes, destaca-se o livro intituladoGostaríamos de Informá-lo de Que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias do jornalista e escritor estadunidense Philip Gourevitch. Por meio de investigações, o autor se debruça sobre esse episódio, utilizando, inclusive, de testemunhos. Em relação a obra e ao filme, pode se entender que,

Imagem 1: Capa do DVD do filme “O último rei da Escócia”. Fonte: Adoro cinema. Disponível em: http:// www.adorocinema.com. Acesso em: 7 abr. 2020.

O filme “Hotel Ruanda” foi lançado em 2004, sob direção do irlandês Terry George. O filme é baseado em fatos reais e retrata um genocídio ocorrido em Ruanda, em 2004, praticado sob o comando de generais da etnia hutu, em oposição à minoria dos tutsis. O ator Don Cheadle interpreta o hutu Paul Rusesabagina, que era, nesse período, gerente do Hôtel dês Milles Colines, localizado na cidade de Kigali.Por isso, ele consegue abrigar no seu local de trabalho cerca de 1.268 pessoas, a maioria da etnia tutsi, que estava sendo perseguida. Dentre essas pessoas, estavam os filhos e a esposa tutsi Tatiana Rusesabagina, que é interpretada no filme

[e]m relação à profundidade com que foram tratadas as histórias de Ruanda, Gourevitch tem a vantagem. Entretanto, o livro que ganha em profundidade, perde em abrangência de público. São 419 páginas de retratos do genocídio que não chegaram à grande parcela da população mundial. Em contrapartida, o cinema tem a seu favor a capacidade de atingir um grande público sem grandes esforços – ainda mais quando falamos de filmes que contam com uma grande campanha publicitária para a divulgação .21

Ruanda está localizada na região da África Oriental, sua emancipação ocorreu em 1962; antes era colônia da Alemanha e posteriormente da Bélgica. O processo de Independência do país ocorreu de forma peculiar em relação a outros paísesafricanos, já que [e]m 28 de janeiro de 1961, o Coronel Logiest e Grégoire Kayibanda, afim de prevenir qualquer intervenção das Nações Unidas na política de Ruanda, organizaram um “golpe legal”. Os 3.125 burgomestres e conselheiros municipais foramconvocados 21 GUZZO; TEIXEIRA, 2010, p. 84.

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GNARUS - 124 para reunião de caráter emergencial em Gitarama, terra natal de Kayibanda,onde a democracia da república soberana de Ruanda foi declarada por aclamação .

Entretanto, apenas

22

“em 1º de julho de 1962, Ruanda se tornou independente, com Grégoire Kayibanda empossado Presidente da Primeira República. Alguns exilados demonstraram seu apoio ao novo regime, ao passo que outros decidiram pela via do confronto militar” .23 Após, esse episódio“[n]os anos seguintes, milhares de tutsis foram assassinados em Ruanda e,por volta de 150 mil, fugiram para países vizinhos. No período em que os hutus semantiveram no poder, de tempos em tempos, tutsis no exílio atacavam Ruanda” .24

Contudo, “[o] Presidente de Ruanda era o mwami25 dos hutus, por sua forma degovernar e estilo autoritário. (...)Vale destacar que o padrão deobediência inquestionável por parte dos “súditos” hutus foi variável relevante no genocídio de 1994”.26 Deve-se considerar que, antes da independência, Hutus e Tutsis viviam de forma amigável, juntamente com os Twa, formando os três principais grupos presentes dentro de Ruanda.Após explicar essas relações conflituosas dentro de um próprio país, deve-se levar o estudante a obter consciência histórica a respeito de tal evento, relatando como o imperialismo ocorrido na África e na Ásia27 deixaram marcas profundas na história desses países.

O ponto de partida para a principal perseguição aos hutusse deu 22 REZENDE, 2011, p. 28. 23 Ibid, 2011, p. 28. 24 Ibid, 2011, p. 29. 25 Significa “Rei” para os ruandeses. 26 Ibid, 2011, p. 29. 27 Para esse debate é importante a utilização de outros referenciais que abordam o tema. Olhar: BRUIT, Héctor h. O imperialismo. São Paulo: Atual; Campinas: Editora da Unicamp, 1986.

[a]pós a queda do avião presidencial do general Juvenal Habyarimana, no dia 6 de abril de 1994, grupos paramilitares, com apoio de parte significativa da população, deram início ao genocídio, assassinando entre 500 mil e um milhão de tutsis e de hutus moderados. O genocídio de Ruanda durou pouco mais de cem dias, mas a grande maioria das execuções ocorreram logo no primeiro mês, sendo realizadas principalmente a partir de facões. Durante estes cem dias, mesmo com imagens do extermínio rodando o mundo, a comunidade internacional pouco fez para encerrar o processo .28

A falta de ajuda da comunidade internacional fez com que milhares de pessoas morressem, a maioria de tutsis, que simplesmente foram mortos porque pertenciam a uma outra etnia, mastambém hutus e outras pessoas que eram contrários ao genocídio. Em uma cena presente no filme, pessoas se alimentam de esperança da presença de membros das Nações Unidas no país, porém, elesnão tinham ordens para defender a população que estava sendo perseguida.Ao fim dogenocídio, “(...)o Secretário-Geral das Nações Unidas e oMinistro do Exterior da França classificaram os acontecimentos em Ruanda comogenocídio, a Comissão de Direitos Humanos da ONU (...) “possívelgenocídio” e os Estados Unidos (...) que “atos de genocídio podem ter ocorrido” .29

Um dos importantes aspectos que pode ser explorado no longa-metragem “(...) consiste em chamar a atenção para o genocídio que foi ignorado internacionalmente. Além de retratar o sofrimento dos refugiados do massacre, representado pela história de Paul Rosesabagina, o filme levanta seriamente 28 FONSECA; GERMINARI, 2018, p. 545. 29 REZENDE, 2011, p. 84.

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GNARUS - 125 a questão do descaso mundial diante da matança”. 30

Dessa forma, entende-se que a obra não trata apenas de um fato isolado ocorrido na capital de Ruanda, mas sim de toda uma construção formulada por meio de levantamento de dados e de episódios que ocorreram por todo o país e deixaram milhares de pessoas mortas. O genocídio só teve fim com a chegada da Frente Patriótica de Ruanda (FPR), vinda de Uganda, em 7 julho de 1994, à capital Kigali, quando muitos hutus acabaram fugindo para outros países. Contudo, sabe-se que, ainda na atualidade, o país sofre com essas divisões de povos. Paul Rusesabagina se tornou mundialmente conhecido pelo feito que realizou em sua nação. 30 Ibid, 2010, p. 89.

Imagem 2: Capa do filme “Hotel Ruanda” Fonte: Geledés. Disponível em: https://www. geledes.org.br/o-filme-hotel-ruanda/. Acesso em: 7 abr. 2020.

Considerações finais Por meio dessa breve pesquisa a respeito da utilização de filmes em salas de aula, que teve por finalidade explorar metodologias com recurso audiovisual para o ensino efetivo da história envolvendo episódios ocorridos durante o século XX empaíses africanos vizinhos, foi possível constatar que ambos os longas aqui detalhados podem ser trabalhados de maneira que contribua com a aprendizagem dos estudantes, uma vez que complementam de maneira atrativa e didática outras fontes e recursos utilizados pelo professor. A pesquisa possibilitou, também, reflexões sobre os países em foco, abordando seus processos de independência peculiares que deixaram marcas profundas na história; bem como fomentou a problematização do papel que ocupa toda população na busca por sociedades mais igualitárias e democráticas. Sendo assim, evidencia-se que esse trabalho poderá desencadear, de fato, várias atividades de fixação de conhecimento em relação ao tema em estudo, auxiliando o professor no processo de ensino-aprendizagem e na promoção de consciência histórica junto aos estudantes em relação aos fatos abordados.

Edivaldo Rafael de Souza é graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), especialista em Metodologia do Ensino de Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT), Pós-graduado em Biblioteconomia pela Faculdade Futura e graduando em Serviço Social pela Universidade Santo Amaro (UNISA). É também professor regente de aulas de História na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG).

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GNARUS - 126 Referências: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. CAMPAGNARO, André; et.al. Os filmes como subsídio pedagógico nas aulas de história. Revista Ateliê de História, UEPG, vol. 1, nº 1, p. 129-135, 2013. Disponível em: www.revistas2. uepg.br › index.php › ahu › article › download. Acesso em: 3 abr. 2020. DÁVILA, Sérgio. Exageros de Whitaker em longa agradam e afastam. 2007. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha. uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0202200716.htm. Acesso em: 5 abr. 2020. DINIZ, Sirley Nogueira de Faria. O uso das novas tecnologias em sala de aula.173p. Dissertação ( Mestrado em Engenharia de Produção), Universidade Federal de Santa Catarina,Florianópolis, 2001. Disponível em: http://www.pucrs.br/ciencias/viali/ doutorado/ptic/aulas/aula_2/187071.pdf. Acesso em: 1 abr. 2020. DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. FONSECA, Danilo Ferreira da; GERMINARI; Geyso Dongley. História difícil e etnocentrismo: o ensino de história e o genocídio de Ruanda na web. Antíteses , v. 11, n. 22, p.538-558, jul./dez. 2018. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/ articulo/6805721.pdf. Acesso em: 6 abr. 2020. GUIMARÃES, Bruno Gomes. et.al. Ditaduras africanas na mídia ocidental: um estudo de caso sobre o último rei da Escócia. In. Ditaduras revisitadas: Cartografias, Memórias e Representações Audiovisuais. Faro, Portugal: CIAC/Universidade do Algarve. 1ª edição. dezembro 2016. Disponível em: https:// sapientia.ualg.pt/bitstream/10400.1/8962/4/ Livro_Ditaduras%20revisitadas-3.pdf. Acesso em: 4 abr. 2020. GUZZO, Morgani; TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges. O genocídio em Ruanda: intersecções entre jornalismo, história e cinema. Verso e Reverso, XXIV (56): 83-94, maioagosto 2010. Disponível em: http://revistas.

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Coluna

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DA RELAÇÃO CINEMA-DOCUMENTÁRIO E HISTÓRIA: VERDADE, REALIDADE ESTÉTICA, ÉTICA E DISCURSO HISTÓRICO 1

1 Os apontamentos aqui apresentados estão sendo desenvolvidos no âmbito da pesquisa O cinema nos lembrará: Cabra marcado para morrer e a memória tornada pública, realizada no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), linha pesquisa cultura poder e representações, sob orientação da professora Dr.ª Icléia Thiesen

Por Renato Lopes Pessanha RESUMO: O cinema documentário é de difícil conceituação, mas grande mobilizador de questões que vão ao encontro da realidade histórica. Ao longo do século XX o documentário passou por diversas clivagens teóricas que lhe conferiram diversos graus de importância. Lido como uma oposição ao cinema de ficção, por supostamente privilegiar uma realidade dita objetiva, hoje o cinema documentário, em decorrência de sua produção, possui novos olhares no que tange a sua representação da realidade histórica. Popularizado graças as novas possibilidades técnicas, como equipamentos mais leves, som direto e a massificação ao acesso de dispositivos que podem produzir e difundir registros audiovisuais com extrema facilidade, o documentário ganha um novo status frente as possibilidades de leituras da realidade histórica. O objetivo do presente artigo é discutir alguns apontamentos elementares quando do estudo e do fascínio que o documentário exerce sobre a ciência histórica.

Introdução

O

filme, seja ele de ficção ou documentário, não pode ser medido por critérios de exatidão ou imparcialidade. Ele é discurso, subjetividade, testemunho e torna-se uma

expressão relevante ou correta de algo que o realizador (diretor, roteirista, produtor) sentiu e pensou sobre o seu tempo, impregnado a narrativa com aspectos de suas concepções pessoais (ROSENFELD, 2002 p.201 e 202). E justamente por partir dessa premissa inferese que há um “ponto de vista mobilizado pela

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narrativa, qual seja, do próprio narrador” (MORETTIN, 2007, p. 52). O século XX é marcado pela presença maciça das imagens, ocupando todos os espaços em nossa sociedade. Assim como as histórias escritas, as imagens também podem gerar informações e formar conhecimentos. Seja enquanto símbolos do nosso universo mental, que eventualmente convertemos em sinais, signos ou alegorias, seja como forma de criarmos representações de uma dada realidade, a imagem guarda um intimo precedente com o ato de pensar (MANGUEL, 2001, p. 20-21). O filme documentário necessita ser pensando para além da objetividade implicada no levantamento das fontes empregadas na sua realização - o que inevitavelmente é verídico ou não - deve-se atentar também para os elementos que permeiam a sua narrativa e que ajudam a desconstruir, desmobilizar, plasmar ou tornar fluídas determinadas concepções sobre a realidade concreta. Partindo dessa perspectiva, o documentário contém uma clara parcela de metodologia historiográfica na constituição de seu discurso. Logo, o documentário pode ser um caso de bom uso – ou de um abuso - da história e da memória. Para além de uma verificação que vise tão somente indicar o que é verdade, e o que é mentira, seja no filme de ficção ou no documentário, faz-se igualmente importante saber como se construíram as possibilidades históricas que permitiram imputar os critérios de verdades ou inverdades empregados na construção na narrativa fílmica. O presente artigo traz algumas das

problemáticas que permeiam a conceituação de cinema documentário, tais como verdade, realidade, objetividade, questões estéticas e éticas e a relação entre o discurso histórico e a narrativa do documentário. Irei expor que o documentário proporciona dispositivos e meios para alcançar determinados aspectos daquilo que conhecemos como realidade e verdade. Por isso a dimensão epistemológica irá fundamentar as justificativas expressas na representação erigida pelo documentário, ou seja, a honestidade da representação quando confrontada com as práticas discursivas baseadas na experiência histórica, modelos de análise e fundamentação teórica.

Verdade, realidade e objetividade no filme documentário Diferente do gênero cinema de ficção, cujas premissas narrativas e elementos conceituais apresentam-se de forma mais bem desenhada, o cinema documentário, por outro lado, desde seus primórdios, tem um horizonte de definição teórico e conceitual muito mais problemático. “O que um documentário documenta? ”, instintivamente a resposta será “a realidade e a verdade”. “O que é a verdade? E a realidade? ”. E assim vamos deslocando o problema de lugar. Contudo, deve-se ressaltar que ao indagar sobre a verdade e a realidade o objetivo não é criar um vale-tudo epistemológico, mas sim questionar o estatuto de verdade presente na ordem do discurso de realidade que estão na representação expressa pelo documentário.

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GNARUS - 129 Dizer que o documentário “documenta o real” parte de um princípio de indexação, no sentido de que aquilo que é mostrado realmente foi captado pela câmera em dado momento (ROSENSTONE, 2015, p. 109). Mesmo quando o documentário faz uso de imagens de arquivos, de certa forma, mostra algo que aconteceu ou aconteceria mesmo que a câmera não estivesse ali para registrar. Ou, até mesmo, pode revelar algo que tentou ser ocultado do domínio público, mas nem por isso deixou de ocorrer, sendo restituído pelo registo da imagem. Pensemos no filme Primárias (Robert Drew, 1960), no qual o documentarista acompanha o John F. Kennedy e o então senador Hubert Humphrey na disputa pela vaga de candidato à presidência dos EUA pelo partido Democrata nas eleições de 1960. Drew acompanha a ambos os candidatos em sua rotina de visitas a cidades, reuniões, distribuição de autógrafos, entrevistas em emissoras de rádio e corpo a corpo com os eleitores. Esse registro realizado pela câmera (aqui sem levar em conta as representações que ambos os políticos fazem de si mesmo), tem seu valor de realidade justamente por tratar da indexação de algo que realmente se deu no plano factual, nesse caso a busca da vaga de candidato à presidência por meio das eleições primárias, processo fundamental na corrida presidencial a Casa Branca. Em Salvador Allende (Patrício Guzmán, 2004), o diretor se vale de imagens de arquivo da época da campanha da Unidad Popular1 em 1970, de Salvador Allende e do bombardeio ao palácio presidencial La Moneda em 11 de setembro de 1973, para abordar aspectos da trajetória política do retratado, nesse caso o ex-presidente morto durante o golpe

militar e como sua história se confunde com a história recente do Chile. Por outro lado, o documentário Noite e Neblina (Alain Resnais, 1955), intercala imagens de campos de concentração desativados, enfocando inclusive os escombros que denunciam as claras tentativas dos nazistas de ocultar as provas materiais da Shoah2 (aquilo que não deveria vir a público), com imagens de arquivos que foram captadas pelos próprios soldados de Hitler e pelas forças de liberação dos países Aliados, expondo o drama do massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Essas imagens acabaram servindo de provas nos julgamentos de Nuremberg (19451946), expondo para o mundo os crimes do Nazismo.

2 A palavra Shoá, em hebraico, significa catástrofe. Preferi por usá-la para designar o extermínio das minorias na Segunda Guerra Mundial em substituição da palavra Holocausto, que dentro da religião judaica faz referência ao cerimonial de sacrifícios sagrados.

1 Concertação de partidos de Esquerda e Centro-Esquerda que elegeu o Salvador Allende presidente do Chile em 1970

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GNARUS - 130 Os três exemplos citados no parágrafo anterior possuem em comum o fato de serem documentários que podemos chamar de históricos. Isso nos traz de volta as relações de indexação das imagens do documentário com a realidade histórica, com o fato, que nos remetem a própria escrita da história tal qual nos assinala Rosenstone: Sem dúvida, há um pouco de verdade na noção de que as imagens nos documentários muitas vezes têm uma relação indexativa com o mundo, mesmo que – como acontece com o “fato” na obra de história escrita – no que se refere ao momento individual ou cena: aquele político de fato se levantou diante de uma multidão e fez aquele discurso de posse; aqueles soldados de fato saíram da trincheira e avançaram pelo campo aberto no meio de rajadas de metralhadoras; aqueles operários de fato fizeram um piquete na frente da fábrica e foram expulsos pela polícia com seus cassetetes; aquele é Adolf Hitler desfilando em carro aberto, saudando a multidão em Nuremberg em 1935. (ROSENSTONE, 2015, p. 109).

Equivocadamente colocado como elemento chave do cinema documentário, contudo muito amplo e complexo para ser tratado nesse breve artigo, o conceito de verdade será exemplificado aqui do ponto de vista epistemológico presente nas asserções falaciosas ou tendenciosas na estrutura narrativa do documentário e que dinâmicas são igualmente comuns no domínio da história e da historiografia escrita. A verdade, ou a representação de algum aspecto seu, pode ser entendida como a forma e a qualidade das questões que o documentário se propõe a abordar. Peguemos como exemplo o polêmico e premiado documentário Fahrenheit 11 de setembro (Michael Moore, 2004), Moore tem

como mote para as suas asserções os ataques terroristas do 11 de setembro aos EUA.3 O sensacionalismo com que o diretor explora o fato faz com que o documentário seja tratado como tendencioso na apresentação de seus argumentos. Isso não anula por si só o fato histórico e social que representou o primeiro ataque terrorista em solo estadunidense bem como suas consequências, desencadeando uma guerra que dura até os dias de hoje e que se somaria a outra guerra dos EUA no Oriente Médio, dessa vez iniciada em 2003 contra o Iraque do então ditador Saddam Hussein.4 Podemos questionar a qualidade das representações expostas nos argumentos de Moore, que se propõe a ser crítico da política externa dos EUA, principalmente da família Bush na condução do país,5 George Bush o filho era o presidente quando dos ataques terroristas do 11 de setembro. O diretor ainda se propõe a mostrar a relação entra a família Bush e a família de bilionários do petróleo da qual Osama Bin Laden é um dos 3 Em 11 de setembro de 2011 quatro aviões foram sequestrados por integrantes do grupo terrorista Al-Qaeda, dando início a uma série de ataques suicidas em solo americano. Dois aviões foram jogados contra as torres gêmeas do complexo do World Trade Center (WTC), em Nova Iorque. Um outro avião foi jogado contra o prédio do Pentágono, em Arlington, no estado da Virgínia. O último avião caiu em Shanksville, Pensilvânia, após passageiros lutarem contra os terroristas. Estima-se que os ataques tenham vitimado quase 3000 pessoas, entre os passageiros dos aviões, pessoas que estavam no WTC, funcionários do Pentágono e membros das equipes que de resgate que trabalharam no WTC. 4 A Guerra EUA e Iraque, desencadeada em março de 2003, contou com uma coalizão de forças multinacionais, liderada pelos EUA, com o intuito de derrubar do ditador Saddam Hussein e parar a produção de armas de destruição em massa pelo país, algo que nunca foi totalmente provado. 5 George Herbert Walker Bush, pai de George W. Bush, foi presidente dos EUA entre 1989-1993, estando a frente do país durante a Guerra do Golfo Pérsico, quando o Iraque de Saddam Hussein invadiu o vizinho Kwait, país rico em petróleo no Oriente Médio, desencadeando um conflito que culminou no aumento dos preços do barril de petróleo, já que a extração e distribuição foi prejudicada pela guerra, inclusive com a destruição de poços de petróleo pelo exército iraquiano.

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GNARUS - 131 principais herdeiros. Líder do que viria a ser o grupo terrorista al-Qaeda, Bin Laden monta esse grupo para combater os soviéticos que estavam tentando conquistar o Afeganistão na segunda metade da década de 80, ainda no contexto da Guerra Fria. Esse grupo foi armado e treinado pelos EUA,6 partindo dessa relação escusa entre famílias e políticas, Moore defende a tese de que a família Bush é a principal responsável pelos ataques do 11 de setembro, e que atitudes como essa refletem a política externa dos EUA, que criam seus próprios inimigos quando estes deixam de atender seus interesses políticos, que podem ser monopolizados por grupos particulares encastelado em empresas e famílias poderosas. É possível criticar o documentário pela manipulação explicita da narração em off,7 que estabelece a relação desses fatos e das imagens indexadas pela câmera com o mundo onde se constitui a experiência histórica, pois o diretor dá ênfase a ao papel da família Bush nos atentados do 11 de setembro, flertando até com a teoria da conspiração, sugerindo que os EUA sabiam do ataque e optou por não fazer nada, ou até mesmo que a CIA atuou indiretamente para isso, pois num passado 6 Em 1989 é lançado o filme Rambo III (Peter MacDonald), no qual o veterano da Guerra do Vietnã, John Rambo, parte em uma missão de resgate no Afeganistão, que está em guerra contra os soviéticos. O filme usa e abusa de estereótipos, tais como os soviéticos perversos e inimigos da liberdade e os estadunidenses bons e defensores da liberdade. O filme aborda a questão das milícias afegãs, que dariam origem a diversos grupos terroristas após a Guerra Fria, tal como a Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Vale lembrar que o personagem Rambo tem um longo histórico de defesa dos valores americanos, chegando até mesmo a funcionar como um agente que interfere diretamente na memória recente dos EUA, isso está em suas origens, pois Rambo foi criado com a intenção de contornar o trauma político e psicológico causado pela derrota na Guerra do Vietnã. 7 Voz em off, ou voz over, é um recurso presente no audiovisual para designar uma voz exterior a cena, que comenta ou narra os acontecimentos

recente foram responsáveis por terem armado e treinado o grupo que viria ser a alQaeda. Dada. Dada a forma tendenciosa com que representa alguns aspectos da realidade isso não torna Fahrenheit 11 de setembro menos capaz de ser definido como cinema documentário, ou indicar que seu recorte é menos verdadeiro. O Triunfo da Vontade (Leni Riefenstahl, 1935), não implica tornar um nazista quem o assiste, embora sua visão do III Reich seja extremamente parcial, ainda assim ele traz uma visão sobre o fato histórico que é a Alemanha Nazista. Contudo, suas asserções, a forma como a diretora apresenta suas justificativas, são falaciosas, pois estão condicionadas ao contexto ideológico do nazismo no seio da sociedade alemã e da campanha de endeusamento da figura de Adolf Hitler. Comparando as duas obras

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GNARUS - 132 citadas podem surgir argumentos que alegam tratar-se de uma questão de objetividade, já que o filme de Moore pode contar com recursos estilísticos ou estéticos que tornam, apesar do sensacionalismo, suas ideais mais objetivas em contraposição a dissimulação que o filme de Riefenstahl representa, nunca trazendo objetividade acerca do que o ideário nazista realmente representava. Verdade, realidade, objetividade, esse trígono pode ser muito frágil diante de argumentações mais bem elaboradas. Se a verdade é um estatuto que oscila em contextos históricos distintos, podemos então defini-la como uma simples questão de interpretativa. Sendo assim, O Triunfo da Vontade, bem como a interpretação na qual se assenta a partir de um conjunto de fatos históricos congregados (a sociedade alemã durante o Nazismo), epistemologicamente falando, traz asserções falsas, já que usa da estruturação narrativa empregada pela linguagem do documentário para indexar imagens deslocadas da interpretação histórica mais consistente, a partir de pressupostos teóricos e metodológicos capazes de expor suas fragilidades argumentativas e factuais (o Nazismo como um regime político totalitário e seu peso na deflagração da Segunda Guerra Mundial). Por outro lado, o filme de Moore, apresenta imprecisões na exposição dos dados que compõem sua narrativa, privilegiando somente o impacto que tais informações podem ter na realidade, reforçando até mesmo o senso comum das opiniões correntes em relação a política externa dos EUA, constituindo assim uma estratégia narrativa que apela as emoções do público e gerando polêmicas. O erro, ou a tendenciosidade das asserções de Moore não

está na distorção ou negação do fato, tal como no filme de Riefenstahl, e sim na qualidade dos argumentos que apresenta. Nesse caso, podemos focar a análise do filme de Moore em sua forma narrativa e na indexação que promove das imagens captadas por sua câmera e do quão ético é a sua postura em interpretar esses fatos antes de expôlos ao público. Contudo, mesmo assim, ambas as obras se encaixam na categoria de documentário. A partir desses dois exemplos bem díspares, que envolvem desde a qualidade dos argumentos apresentados até o discurso histórico que os assenta e irá determinar se uma intepretação pode ou não ser verdadeira, necessitamos realizar uma operação de análise do documentário, independente de abordar um tema histórico ou não, que seja capaz de explicitar o leque de possibilidades que estão sendo mobilizados e representados pela narrativa documental.

O documentário versus ficção? Éticas e estéticas O cinema, ou a consolidação da estética cinematográfica, emerge no centro do nascimento da vida moderna,8 por ele ser o 8 Não é da alçada desse trabalho esmiuçar em demasia o sentido histórico da modernidade. Todavia, para efeito de contextualização, estamos aqui trabalhando as noções de modernidade conforme expostas por Marshal Berman e Anthony Giddens. Berman capta no período revolucionário francês a primeira manifestação de uma coletividade em compartilhar uma experiência comum, no caso a experiência revolucionária. O século XX consagraria a expansão do processo de modernizaçindexativoão da modernidade por ser o período que permitiu a mundialização dos principais pilares das sociedades modernas, tais como as instituições políticas liberais, a racionalidade força motriz do progresso técnico, que por sua vez traria o desencantamento do mundo e imprimira nos indivíduos certa ascese necessária para se portar diante da disciplina imposta pelo ritmo

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GNARUS - 133 principal vetor e um dos produtores dessa modernidade. Foi o cinema que reorganizou o olhar sobre a modernidade na virada do século XIX para o XX, destacando o cotidiano das cidades, a expansão do consumismo e da sua contraparte o comunismo, foi o principal meio de publicidade e criador da cultura do star system e louvou as promessas de progresso infinito da modernidade baseado na racionalidade, criou mitos e vendeu sonhos por meio de seus produtos culturais que moldavam o olhar e o comportamento do público. Antes da televisão o cinema foi a principal forma de penetração ideológica e atualmente movimenta tanto dinheiro quanto outras indústrias bilionárias, como a do cigarro e a armamentista. Desde a Revolução Russa de 1917 é tratado como política de Estado, incluindo leis que garantam seu fomento, distribuição e proteção do mercado interno, garantindo fatias para a produção cinematográfica doméstica em diversos países (CHARNEY & SCHWARTZ, 2004). Nos primórdios do cinema os gêneros ficção e documentário não estavam separados. Essa separação, primeiramente em termos mercadológicos, surge de uma implementação industrial em relação a forma como as películas passam a ser produzidas e distribuídas. Na virada do século XIX para XX, tínhamos um cinema de atrações, das sociedades industriais. Giddens complementa a visão exposta por Berman, expondo o fenômeno da regularização das relações sociais em um complexo tecido de tempoespaço proveniente dos centros urbanos, o efeito simbólico dos sistemas de separação que diferenciam espaços (locais onde se realizam determinadas atividades formais) de lugares (investidos de um sentimento de particularidade e informalidade) e o uso progressivo do conhecimento técnico na vida social, transformando não só mercadorias como também a interação e transformação dos próprios indivíduos. Cf. BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. Companhia das Letras, São Paulo: 1996 e GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002

popularmente conhecido como nickelodeons, voltado para uma “interpelação direta do espectador, com o objetivo de surpreender”. A preferência do público está em “filmes mais como espetáculo visual do que como uma maneira de contar histórias. Atualidades, filmes de truques, histórias de fadas (féeries) e atos cômicos curtos”. (COSTA, 2012, p. 26). O intuito era surpreender, seja com algum elemento inesperado ou que parecesse arriscado, no caso das performances artísticas, seja com a apresentação de alguma novidade revolucionária da vida moderna, ou imagens que chegavam de lugares distantes e desconhecidos e que parecessem igualmente inóspitos. Essas exibições ocorriam em espetáculos de variedades (conhecidos como vaudevilles), cafés, feiras e museus que exibiam atrações que variavam entre o horror e o cômico, cujas entradas custavam alguns poucos centavos. Os rolos de filmes, com em média cinco minutos de duração, eram adquiridos por um exibidor que tinha liberdade para editar o conteúdo de acordo com a preferência do público, ou de acordo com a programação do local de exibição, que podia privilegiar atualidades ou atrações encenadas em estúdios, que como já citado eram os principais gêneros desse início do cinema (DA-RIN, 2004, p.35). A popularização dessas exibições, majoritariamente frequentadas pelas camadas com menos poder aquisitivo, levou exibidores e distribuidores a repensarem as formas de produção e distribuição desses filmes, procurando criar condições para assentar sua atividade em bases econômicas sólidas, como nos diz Da-Rin

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GNARUS - 134 Este processo começa a se delinear a partir de 1903, quando os filmes deixam de ser vendidos aos pedaços e editados nos mais diversos formatos de programas, passando a ser alugados como produtos prontos, com duração definidas. Ao mesmo tempo, as diferentes tecnologias empregadas nos primeiros modelos de projetores convergem para uma padronização da velocidade, bitola e formato das perfurações, tornando os filmes compatíveis e intercambiáveis. A prática de copiar filmes é inibida pela incorporação do cinema ao sistema de registro de direitos autorais, o que proporciona maior segurança para os investimentos em produção (DA-RIN, 2004, p.35)

O crescimento da demanda, a hierarquização e racionalização da produção desloca o poder das mãos dos exibidores para os produtores que passam a organizar os conteúdos dos filmes. Com isso abrem-se novas possibilidades não só comerciais, como também artísticas para se criar uma gramática cinematográfica, atingindo em cheio as estruturas narrativas dos filmes bem o status atribuindo a então emergente arte junto as camadas mais privilegiadas da população. Costa ressalta que: As tentativas de construir novos códigos narrativos, que pudessem transmitir ao espectador as intenções e motivações de personagens, acontecem paralelamente às tentativas de regulamentação e racionalização da indústria. Entretanto, essas novas estruturas narrativas são ainda confusas e ambivalentes, havendo muitas diferenças entre as estratégias usadas por cada estúdio ou produtora [...]. As estruturas de narrativas mais integradas no cinema de transição são fruto de uma tentativa organizada da indústria para atrair o público de classe média e conquistar mais respeitabilidade para o cinema, mas isso não significou a eliminação do público de classe baixa, que continuou a assistir aos filmes nos cinemas mais baratos (COSTA, 2012, p. 26)

Em 1895 os irmãos Lumière realizaram a primeira exibição de seu cinematógrafo, em Paris, com a exibição de A chegada dos trabalhadores a estação de trem. Seu registro seguinte foi A saída dos trabalhadores da fábrica. Ambos têm em comum o fato de serem um registro do cotidiano, que se convencionou chamar de realidade. Não havia a transição entre planos, mudança de ângulos da câmera, trilha sonora, direção de arte, montagem, as tomadas eram externas e feitas em ambientes naturais. Tomando esses dois registros como base, durante muito tempo convencionou-se dizer que o cinema nasce com o gênero documentário. Essa associação, entre o nascimento do cinema e o documentário, se dava justamente pela indexação, do ponto de vista lógico, que se criou entre um fato real objetivo e a sua captação em todo seu tempo de duração que é restituído no instante da projeção, sem a manipulação de elementos que comporiam um quadro estético para a obra, e que viria a ser a marca do drama de ficção (seja de cunho histórico ou não). Todavia, muitas das atualidades exibidas nos cinemas no início do século XX também podiam ser dramatizações encenadas em estúdios: Nas atualidades, misturavam-se filmagens de situações autênticas com reconstituições em estúdio ou locações naturais, uso de maquetes e trucagens. Do mesmo modo, havia cenas documentais nas ficções. A mistura entre esses dois registros era aparentemente considerada normal pelos espectadores. (COSTA, 2012, p. 31).

O ponto de guinada ocorre a partir do emprego da montagem paralela que permite a regularização da temporalidade no momento da exibição, criando as condições necessárias para que o espectador conceba

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GNARUS - 135 a sucessão imagens atreladas a ações simultâneas, fazendo a relação entre interior, exterior e pontos de vista. O fenômeno da montagem paralela obriga diretores e produtores a reorganizar o espaço de filmagens, concebendo um espaço dotado de organicidade, pensando o posicionamento e movimentação dos atores, das câmeras, a iluminação, elementos de cena e campos de profundidade, tudo para emular um cenário o mais natural possível. Conforme nos diz Ismail Xavier: As imagens estão definitivamente separadas e, na passagem, temos o salto; mas, a combinação é feita de tal modo que os fatos representados parecem evoluir por si mesmos, consistentemente. Isso constitui uma garantia para que o conjunto seja percebido como um universo continuo em movimento, em relação ao qual nos são fornecidos alguns momentos decisivos. Determinadas relações lógicas, presas ao desenvolvimento dos fatos, e uma continuidade de interesse ao nível psicológico conferem coesão ao conjunto, estabelecendo a unidade desejada (XAVIER, 2012, p. 30).

A partir do que foi exposto, podemos concluir que nos primórdios do cinema, é “mais produtivo entender os primeiros gêneros de filmes em torno de assuntos filmados do que como uma distinção clara entre ficção e documentário” (COSTA, 2012, p. 31). Reitero que a oposição entre cinema de ficção e cinema documentário é de caráter essencialista, não levando em conta as conjunturas responsáveis por implementar modificações nas estruturas narrativas, que acabaram por dar origem a linguagem do cinema clássico e a fomentar a percepção do espectador, criando códigos e signos que viriam a formar uma cultura visual facilmente reconhecível pelo espectador. De modo

que é mais importante situarmos a forma como essa linguagem cinematográfica foi ressignificada, lida apropriada por esses dois gêneros distintos, ficção e documentário, do que necessariamente opô-los, criando uma compartimentação onde recursos estéticos e narrativos não seriam intercambiáveis. Partindo das premissas indicadas acima chegamos a questão: é possível estabelecer uma oposição no sentido de que o cinema documentário possui alguma primazia sobre a verdade em relação ao cinema ficção, mesmo que esse documentário seja de caráter histórico? O documentário histórico não é de fácil teorização. Para o historiador uma confusão conceitual torna essa teorização um tanto quanto mais complicada: o documentário como o único meio audiovisual fidedigno para discussões históricas. Essa atribuição parte do pressuposto que o cinema documentário diferiria dos filmes de ficção por não se tratar de uma representação criativa da realidade histórica, e sim a construção de narrativas a partir do rigor documental, comparando depoimentos e fontes, sobrepondo imagens de arquivo e aplicando o método historiográfico de tecer deduções a partir dos materiais analisados em torno do tema abordado. E a questão do tema, ou seja, o fato abordado, é o fio condutor do documentário histórico (ou historiográfico), uma prática muito comum àquelas empregadas pelo historiador ao escrever um livro, por exemplo. Tal como um livro, com suas referências bibliográficas, o documentário também expõe suas fontes aos espectadores. Outro equívoco teórico envolve a questão

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GNARUS - 136 das opções estéticas, que estariam ausentes nos documentários, em prol da exposição de uma verdade de forma objetiva, e esse elemento o faria ter primazia em relação ao filme de ambientação histórica que “romanceia” e toma muitas liberdades poéticas em relação a fatos e personagens. Esse modelo muito comum de documentário, cujos registros documentais partiam de um princípio de interpretação das imagens, impetrada por uma voz em off e onisciente, dotados de uma natureza inequívoca, trazia também um caráter pedagógico baseado justamente na assertiva da “verdade” e da “objetividade” a qual obrigatoriamente o documentário deveria se submeter. Essa noção é trabalhada desde a emergência do que se convencionou chamar documentário clássico nas décadas de 1930/1940. Todavia o documentário não guarda nenhuma primazia sobre a verdade ou objetividade. Ramos nos diz a respeito disso: Na medida em que a ideologia dominante contemporânea foi criada na desconfiança da representação objetiva do mundo – e na desconfiança da espessura do sujeito que assume a voz de saber sobre o mundo -, a narrativa que se locomove com naturalidade nesse meio sofre uma carga crítica (RAMOS, 2013, p.21).

O documentário histórico não exerce nenhuma primazia sobre o cinema de ficção, principalmente aquele que prima pelas representações históricas, pois ambos se constituem em representações histórias e historiográficas. Da mesma forma que a História comporta diversas correntes historiográficas, que por sua vez impactam na forma como se enquadra o processo de análise de fonte histórica e até mesmo apresentam inflexões acerca do que pode ser considerado

fonte histórica, o cinema, com seus diversos gêneros e estéticas também muda a forma de abordagem do filme de representação histórica, seja ele documentário ou uma ficção. Pode-se inferir que as questões estéticas não são prioritárias no cinema documentário. Há a crença de que o documentário seria mais confiável do que o longa-metragem de ficção, logo aquele seria uma fonte mais segura de informações e análises. Existe um equívoco nessa constatação, pois mesmo se levamos em conta as particularidades da codificação própria do cinema documentário, ainda sim, ele está inserido no âmbito da linguagem cinematográfica: De fato, sob certos aspectos, o documentário se parece tanto com a história escrita que dificilmente parece apontar, ou pelo menos em uma escala bem menor do que o longa-metragem de ficção, para uma nova maneira de pensar sobre o passado [...]. Mas trata-se de uma forma equivocada de confiança, pois o documentário também compartilha de muitos aspectos do filme ficcional. Ele também as vezes usa imagens que são aproximações mais do que realidades literais [...] – a noção de que aquilo que você está vendo na tela é, de alguma forma, uma representação direta do que aconteceu no passado (ROSENSTONE, 2015, p.110).

As questões estéticas guardam uma estreita relação com as questões éticas do documentário histórico. Bill Nichols, teórico e crítico de cinema, ressalta: A interpretação é uma questão de compreender como a forma ou organização do filme transmite significados e valores. A crença depende de como reagirmos a esses significados e valores [...]. A crença é encorajada nos documentários, já que eles frequentemente visam exercer um impacto

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GNARUS - 137 no mundo histórico e, para isso, precisam nos persuadir ou convencer de que um ponto de vista ou enfoque é preferível a outros (NICHOLS, 2005, p.27).

Por mais que a divisão entre documentário e ficção tenha suas fronteiras borradas por alguns atores e abordagens teóricas, no presente artigo, oriunda de uma pesquisa maior de doutorado, foi privilegiada uma abordagem conceitual, conforme enunciada por Ramos de “ferramentas analíticas que tem por trás de si uma realidade histórica” (RAMOS, 2013, p.22). O cinema documentário, aqui conceituado e analisado, está ligado às noções de representação e cultura do nosso tempo. Ainda em Ramos: Na tradição narrativa documentária podemos vislumbrar uma história na qual alguns traços estruturais são recorrentes formando períodos. À repetição de conjuntos, mais ou menos homogêneos, podemos dar nomes. Documentário é um desses nomes. Designa um conjunto de obras que possuem algumas características singulares a estáveis, que as diferenciam do conjunto de filmes ficcionais (RAMOS, 2013, p. 23).

Sobre as diferenciações entre documentário e ficção, o conceitual está na distinção da forma como ambos expressam suas assertivas acerca da realidade. Ramos explica Quando vemos um filme de ficção, nos propomos a nos entreter com universo ficcional [...].Entreter-nos deve ser entendido em seu sentido amplo, não exclusivamente de entretenimento. Entreter-nos com um universo ficcional, significa estabelecermos (entretermos) hipóteses, relações, previsões sobre os personagens, suas personalidades e as ações verossímeis que lhes cabem, e com eles estabelecemos empatias emotivas (emoções) [...] (RAMOS, 2013, p.25).

Sendo o documentário uma forma de erigir representações sobre o mundo, representações essas que aspiram a ser universais, contudo podem também trazer consigo a visão de um grupo social especifico ou hegemônico (SILVA, 2008, p. 124), ele se singulariza em relação aos filmes de ficção pela intenção social de seu autor fazer asserções sobre o mundo empregando uma linguagem manifestamente diferente daquela empregada nas narrativas de ficção. E, manifesta essa intenção, seguem-se os processos estéticos e éticos que irão servir como balizas epistemológicas para qualificar as asserções que serão levantadas pelo documentário.

Documentário e discurso histórico Antes de dar início a esse tópico, precisamos posicionar, mesmo que brevemente, a diferença entre filmes históricos e filmes de ambientação histórica. Os filmes históricos estetizam ou representam processos históricos conhecidos, que podem constituir uma versão romanceada de eventos ou da vida de personagens históricos. Já os filmes de ambientação histórica se referem a enredos criados livremente, mas sobre um contexto histórico bem estabelecido, tendo na condução de seu fio narrativo personagens fictícios. Um filme pode ser histórico tanto pelo tema que aborda em seu argumento, quanto pela sua relevância no âmbito das práticas cinematográficas que dão forma a história do cinema, conferindo-lhe um status particular em discussões que perpassam os âmbitos históricos e cinematográficos.

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GNARUS - 138 Sendo assim a divisão elencada no início desse parágrafo adquire novos contornos e possibilidades de leitura diante de uma abordagem que privilegie análises dialéticas que envolvam forma e conteúdo e não só o contexto de realização da obra fílmica, considerando também as tensões próprias da narrativa em consonância com as opções estéticas empregadas. O cinema é um projeto de poder que serve a interesses diversos, como também é um instrumento de contra poder, ou contra hegemônico. Marc Ferro conceitua o filme como uma contra-análise da sociedade, processo por meio da qual um filme, seja ele histórico ou não, deixa transparecer elementos que estão latentes nas narrativas cinematográficas. Seriam lapsos que permitiriam identificar a condição sócio histórica no momento da realização daquele filme, “a sociedade que o produz e o recebe”, nas palavras de Ferro. Elaborase uma perspectiva de análise que não se limita ao textual, mas que leva em conta também o misce en scene,9 torna identificável

que antes estariam vetadas ou sem o devido espaço de representação histórica (FERRO, 2010, p. 32 e 33). Para ilustrar a explicação de Ferro, gostaria de citar o filme A tristeza e a piedade (Marcel Ophüls, 1969). Realizado na década de 60 a partir de imagens de arquivos e de entrevistas com oficiais alemães, colaboradores e membros da resistência francesa, o filme desnuda o mito da República de Vichy, como a última defesa da França, e foca no colaboracionismo dos franceses com o invasor alemão, movidos por razões como o antissemitismo, xenofobia e o medo do bolchevismo. O filme ficou proibido na TV francesa por quase vinte anos, sendo permitido sua exibição na TV francesa na década de 80, momento em que a França, em suas guerras de memória, decide rever o papel da República de Vichy, pois entendia-se que na ocasião de lançamento esses temas

os elementos que estão sendo censurados por essa mesma sociedade, a partir da evidenciação de determinadas características político-ideológicas que transparecem nas escolhas estéticas e narrativas do filme. Para a adequada leitura dos lapsos de discordância que o filme projeta se faz necessária uma mudança de paradigmas de significação de uma determinada sociedade. Geralmente essa mudança, conforme assinala Ferro, estaria nas transições ideológicas de uma sociedade. Só assim seria possível a emersão de leituras 9 Movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podia gerar significados, construindo relações entre as tomadas através da montagem.

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GNARUS - 139 ainda eram muito recentes e poderiam trazer sérios problemas em um contexto delicado de Guerra Fria e no pós-guerra da Argélia. A abordagem de Ophüls também colocava na berlinda os bodes expiatórios permitidos pelo General De Gaulle e sua estratégia de expulsar os invasores, punir os colaboradores e enaltecer a resistência. O foco de A tristeza e a piedade é justamente o cotidiano das pessoas comuns diante do colaboracionismo francês, da luta da resistência (que está longe de ser uma unanimidade), e dos assédios nazistas. A tristeza e a piedade aborda daquilo que foi censurado em um dado contexto, por violar um determinado valor verdade atrelado a um grupo hegemônico. Contudo, com a mudança de paradigmas históricos, esse mesmo discurso foi revisto e ganhou seu espaço de representação na sociedade, ou seja, uma memória que deixa de ser subterrânea10 passa a adentrar nos campos simbólicos e das revisões históricas da sociedade, da memória coletiva.

articulação de um discurso histórico se funda em “representar adequadamente o real”. E o caminho teórico-metodológico para tal não se resume somente em “registrar, mas considerar caminhos possíveis, alternativas” acerca das leituras que se faz sobre o passado e que estão ancoradas no presente (REIS, 2010). A historiografia é uma representação dos fatos e de si mesma. Documentários que abordam temas históricos se constituem em discursos historiográficos por também serem instrumentos para expor uma representação histórica. E isso ocorre porque, mesmo levando-se em conta os elementos comuns a narrativa cinematográfica (estética, formas de produção, gênero, etc), é possível pincelar a partir desses elementos informações que corroborem a existência do fato histórico, de seus personagens e as leituras que se edificam sobre ele. O que o cinema nos proporciona são possibilidades de leitura acerca do fato histórico pela relação forma e conteúdo presente nas narrativas e estéticas dos filmes.

O documentário, seja ele histórico ou não,

O cinema documentário, enquanto instrumento de propaganda, mobiliza elementos da psicologia social que atuam também no plano individual, criando as condições mentais que podem ser favorecidas por contextos históricos. A manipulação conduzida pela propaganda no cinema não está restrita a simples imposição de valores e crenças, sejam elas pré-existentes ou não, mas sim a ressignificação histórica desses valores e crenças de modo que atendam a necessidade de um determinado momento histórico e de uma classe hegemônica. O público, ou as massas, são impelidos a agir em concordância com a propaganda porque o cinema colabora na ritualização e na catarse dos sentimentos mobilizados pela imagem.

constitui um precioso material para análise de representações históricas e historiográficas. Assunção Barros ressalta que: ...a partir de uma fonte fílmica, e partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX (BARROS, 2008, p.43)

No âmbito do cinema documentário, a 10 O conceito de memória subterrânea foi trabalhado por Michel Pollack e trata de memórias que estão às margens da história dita oficial e que afloram em momentos de crise engendrando conflitos e disputas, subvertendo as memórias coletivas capitaneadas pelos grupos hegemônicos. Cf. POLLACK, 1989.

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GNARUS - 140 Furhammar e Isaksson assinalam: A política é então reduzida a um jogo mágico no qual sinais morais inequívocos são o substituto da ideologia e onde não há lugar para argumentos racionais em meio a manipulação emocional. A propaganda é particularmente fascinante por sua orquestração das emoções (FURHAMMAR; ISAKSSON, 1975, p.159).

A URSS e a Alemanha nazista, só para focar nesses dois exemplos, mobilizaram uma ampla gama de recursos, além de criar outros, para empregar o documentário como um elemento político capaz de moldar e influenciar diretamente os processos históricos de suas respectivas sociedades. Para os soviéticos, no contexto da Revolução de 1917, o cinema era o meio pelo qual a boa nova da revolução era levada aos rincões da URSS, para os nazistas era o meio massificado para difundir sua propaganda antissemita e anticomunista. O cinema adquire uma clara função social, seja por meio do filme documentário ou de ficção. A grande questão que envolvia o documentário está sua capacidade de moldar a mentalidade do público por meio das atualidades, tão difundidas desde a virada do século XIX para o XX. As atualidades funcionavam como uma via para veicular mensagens políticas como aquilo que parecia irrefreável e assim construir consensos. O público se via envolvido na ação de naturalizar uma nova ordem política com seus códigos culturais e éticos. Da-Rin nos diz sobre a respeito da função social do cinema, no caso soviético A função social do cinema [...], na Rússia soviética era uma premissa inquestionável. O que estava em discussão era a definição dos métodos mais adequados à participação do cinema na construção do “homem novo” e de uma sociedade industrial e socialista. Ao

optar pelas atualidades – a “segunda via, a via da invenção” – integrando em seus filmes e textos os ideais leninistas aos princípios do Futurismo russo, Vertov assumia como tarefa essencial e programática “ajudar cada oprimido em particular e o proletariado em geral em sua ardente aspiração de ver claramente os fenômenos vivos que nos cercam (DA-RIN, 2004, p. 112).

No caso especifico do nazismo Pereira nos diz: Nesse aspecto, os nazistas elaboraram uma síntese de todas as técnicas de manipulação da opinião até então existentes – incluindo desde elementos da mitologia germânica e da liturgia católica até as técnicas modernas de agitação comunista e do estudo da psicologia de massas -, que somada ao controle estatal de todos os meios de comunicação, possibilitou condicionar homens e mulheres, de modo a transformá-los em autômatos do Estado (PEREIRA,2007, p. 257)

Foi assim que a URSS, onde o cinema se tornou política de Estado, e a Alemanha Nazista atuaram para moldar sua nova realidade política e cultural. Contudo, não mobilizo esses exemplos como uma forma de inferir que são “duas faces da mesma moeda”, mas sim como os primeiros e mais relevantes casos de mobilização do cinema enquanto instrumento da cultura de massas no século XX. Posteriormente o cinema se tornaria instrumento político nas mãos de diversos países, tais como as ações de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial promovidas por estadunidenses e ingleses. Outras iniciativas não necessariamente contaram com o apoio do Estado, como o Neorrealismo italiano, o cinema Terceiro Mundista,11 e o interessante caso do cinema

11 Cf, STAM (2012)

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GNARUS - 141 cubano,12 no qual artistas e o Estado socialista cubano negociavam limites de atuação e intervenção, algo que está refletido na filmografia do período dos anos 60,70,80. No caso soviético documentários como A queda dos Romanov (Esther Shub, 1927), Três Canções para Lenin (Dziga Vertov, 1934), ambos trazem versões sobre a Revolução de 1917, o primeiro enfocando o peso dos Romanov no atraso da Rússia e a necessidade de riscá-los da história (o filme ajuda a colocar mais polêmica sobre o assassinato da família Romanov por uma ala dos bolcheviques), enquanto o segundo traz a presença de Lenin em três canções que versam sobre: seu papel na revolução, um canto onde trabalhadores da indústria o homenageiam e uma ode à sua memória. Esse último filme particularmente chama mais atenção pelo nome que envolve, Dziga Vertov. 12 Cf. VILLAÇA (2010)

Vertov foi o idealizador do Cine-Olho, uma nova forma de conceber o cinema, como sendo eminentemente revolucionária. Vertov usava dos artifícios da montagem para potencializar a percepção do olho humano ao mesmo tempo em que liberta a câmera da “escravidão” de somente registrar e nunca realmente mostrar a realidade e seus efeitos. Um novo cinema passaria necessariamente pela construção de um novo olhar sobre a realidade, preparando a percepção humana para as maravilhas do socialismo (DA-RIN, 2012, p.113,114). É interessante notar que o processo de deslocamento das narrativas no documentário abarca diversas matrizes de conhecimento, incluindo a própria ciência histórica. As abordagens do documentário clássico, calcadas em um modelo sociológico, partiam de um princípio cuja interpretação das imagens, impetrada por uma voz em off e onisciente, sendo de uma natureza inequívoca, ou seja, traziam somente a verdade de forma objetiva.13 O modelo sociológico empregado na narrativa documental trazia também um caráter pedagógico baseado na assertiva da “verdade” e da “objetividade” a qual obrigatoriamente o documentário deveria se submeter. Percebemos a relação que esse modelo narrativo e estético do documentário clássico guarda com as abordagens históricas calcadas em visões absolutas e deterministas baseadas no historicismo e no positivismo. Enquanto a História-Problema que surge na década de 30 do século passado com a Escola dos Annales, desloca a História do factual para o analítico, abrindo novas possibilidades de 13 Para uma discussão mais aprofundada sobre esse modelo Cf. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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GNARUS - 142 narrativa e de representação histórica (BURKE, 1991) (HUNT, 1992). A mudança promovida na narrativa do cinema documentário, de certa forma, esbarra nas próprias mudanças que estão sendo operacionalizadas no campo do conhecimento histórico, onde o estatuto da verdade, embora não esteja desacreditando, passa a ser submetido a novos crivos teóricos e metodológico. Com isso passamos a ter documentários baseados em modelos, tais como poético-experimental, expositivo, observativo, participativo, reflexivointerativo, performático (NICHOLS, 2005). Com as devidas observações, mas correndo o risco de alguma generalização, cada uma dessas categorias de documentário abarca diferentes modos de explorar a narrativa histórica e historiográfica, vejamos alguns exemplos: poético-experimental: Terra sem pão (Luis Buñuel, 1933); Cartas da Sibéria (Chris Marker, 1957), Trilogia Qatsi (Godfrey Reggio, 1982,1988, 2002) expositivo: Terra Espanhola (Joris Ivens, 1937), Memphis Belle – a fortaleza voadora (William Wyler, 1944), observativo: Anna dos 6 aos 18 (Nikita Mikhalkov, 1995), Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Massagão, 1999); participativo: Crônica de um Verão (Jean Rouch, Edgar Morin, 1961), Isto Não É um Filme (Jafar Panahi, Mojtaba Mirtahmasb, 2011); reflexivo-interativo: Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), Shoah (Claude Lanzman, 1985)

Conclusões parciais É importante ressaltar o trabalho de cunho histórico e historiográfico coloquem em termos os efeitos e as consequências

sociopolíticas das representações que a narrativa do cinema documentário constrói. A ciência histórica e a historiografia, aliadas ao cinema, fazem um trabalho de suma importância no seio da comunicação de massas, ao trazer à tona discussões acerca das representações do passado. Mais do que estipular ou instituir fatos fundantes, o cinema documentário têm sua real preocupação com os entrelaçamentos da memória que podem surgir como demandas do presente em uma sociedade, trazendo aquilo que, até então, estava subterrâneo. O documentário pode ser visto como uma arena privilegiada das batalhas pela representação da memória que há em uma sociedade. Por outro lado, mais do que uma visão onde a metodologia histórica pega emprestado ou se deixa influenciar por recursos do cinema e vice-versa, ocorre um imbricamento entre a metodologia histórica e as estéticas cinematográficas, fazendo com que o cinema seja mais do que fonte histórica, sendo também um agente ativo no processo histórico.

Renato Lopes Pessanha é colunista da Gnarus Revista de História, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro do LAHODOC (Laboratório de história oral e documentação), sob orientação da professora dr.ª Icléia Thiesen, com bolsa de demanda social fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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GNARUS - 143 Referências bibliográficas BARROS, D´Assunção José. Cinema e História: entre expressões e representações In NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção (orgs.) Cinema-História: Teorias e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p.43-84 BURKE, Peter. A revolução Francesa da historiografia: a escola dos Annales 1929-1989 – São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991 CHARNEY, L. & SCWARTZ, R. V. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac e Naify, 2004 COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro Cinema In MASCARELLO, Fernando (org) História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2012. p.17-52 DA-RIN, Silvio. O espelho partido. Tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004 FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010 FURHAMMAR, Leif. ISAKSSON, Folke. Cinema e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1976

ROSENFELD, Anatol. Cinema: Arte & Indústria. São Paulo. Editora Perspectiva, 2002. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo; Editora Senac, 2013 REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010 ROSENSTONE, Robert. A. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015 SILVA, Tarso Pereira da. História, documentário e exclusão social In NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção (orgs.) Cinema-História: Teorias e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 117-158 STAM, R. Introdução a Teoria do Cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003 (Coleção Campo Imagético). VILLAÇA, Mariana Martins. Cinema Cubano: Revolução e política cultural. São Paulo: Alameda, 2010 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 MORETTIN, Marcos. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro In CAPELATO, Maria Helena [et AL.] História e cinema: Dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007, p.39-64 NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005 PEREIRA, Wagner Pinheiro. O triunfo do Reich Mil Anos: cinema e propaganda política na Alemanha Nazista (1939-1945) In CAPELATO, Maria Helena [et AL.]. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007. 255-270 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989

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Coluna

O SERIADO HISTÓRICO NA CONTEMPORANEIDADE E A EXPERIÊNCIA DO PASSADO Por Rafael Garcia Madalen Eiras RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar o conjunto de seriados históricos produzidos para a televisão e para o serviço de streaming em larga escala no cenário cultural atual, dando destaque para o caso do seriado Vinkins (EUA, 2013). São obras que, de uma forma geral, buscam através de suas narrativas cinematográficas, não somente recontar fatos da história, mas fazer o espectador vivenciar uma experiência de passado no momento presente. De forma que a analise proposta não se debruça sobre a veracidade histórica das narrativas apresentadas, mais na percepção de que na contemporaneidade a disciplina da história perdeu o seu sentido, sua funcionalidade, pois o passado não seria mais referência para se perceber um futuro fechado e certo, como percebe Grumbrecht (2011). Palavras Chaves: Historia – cinema- seriados

E

ste artigo tem como objetivo analisar o conjunto de seriados históricos produzidos para a televisão e para o serviço de streaming em larga escala no cenário cultural atual. Dando destaque para o caso do seriado Vinkins (EUA, 2013), um grande sucesso de audiência e de critica mundo a fora Essas obras, de uma forma geral, buscam através de suas narrativas cinematográficas, não somente recontar fatos da história, mas

fazer o espectador vivenciar uma experiência de passado no momento presente. Um fenômeno popular mundial que marca uma logica contemporânea percebida pelo autor Hans Ulrich Gumbrecht (2011) em que, ao mesmo tempo em que existe um obvio fascínio pelo passado, há também uma perda eminente de um sentido de progresso que funda a disciplina da história propriamente dita.

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Títulos como Roma (EUA/ Itália/ Inglaterra, 2005) produzido pela HBO, narra à trajetória de dois soldados romanos interagindo com famosos acontecimentos na passagem de uma era republicana ao nascimento do império. Além de ser um produto televisivo de enorme sucesso, apresenta uma reconstrução da famosa cidade que dá nome a obra de uma forma nunca vista antes, isso devido às novas tecnologias digitais que permitiram a reconstrução dos locais históricos colocando o espectador virtualmente dentro dos ambientes do passado. Outras obras como The Tudors (Canadá/ Irlanda, 2007) Vinkins (EUA, 2013), The Crown (EUA/ Inglaterra, 2017), Os últimos czares (EUA, 2019), Marco Polo (EUA, 2014), Knightfall (EUA/ Republica Checa, 2017), Frontier (Canadá, 2018), Last Kingdom (EUA,2015), La catedral del mar (Espanha, 2019), Freud (Áustria/ Alemanha/ Republica Checa, 2020), Coisa mais linda (Brasil, 2019) e muitas outras, sequem essa tendência criando uma relação de imersão na historia.

São obras claramente vinculadas ao mercado, e que se desenvolvem em torno do simulacro,1 numa “espécie de ‘esfera autônoma’ da cultura” (RAMOS, 2016, p. 455), num estilo que ressignifica os gêneros (western, horror, musical, ficção científica etc.), ao lidar com “a mercadoria filme como produção de série, com traços estéticos cristalizados, sobre os quais o espirito pósmoderno se debruça com avidez” (RAMOS, 2016, p. 465). Diferente dos filmes históricos contemporâneos, que tem as mesmas características estéticas e narrativas que circundam essa percepção de simulacro, o seriado ganha um poder de continuidade em que a experiência se prolonga de forma sequenciada, ao mesmo tempo em que busca prender o espectador em uma experiência mais complexa de narrativa, com vários 1 O conceito de “simulacro”, conforme desenvolvido por Jean Baudrillard em Simulacros e simulações e outras obras. Baudrillard inicia essa obra com uma citação ao livro de Eclesiastes da Bíblia, em que afirma que “o simulacro é a verdade que oculta que não existe” (BAUDRILLARD, 1991)

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GNARUS - 146 níveis de enredos e personagens mais desenvolvidos. Nessa perspectiva o seriado histórico se apresenta como uma obra de ficção que usa do tempo passado como motivo principal de seu desenvolvimento. Ou seja, é uma narrativa que usa dos estudos existentes em relação ao período representado para validar uma postura de suposta verossimilhança e consequentemente reforçando a percepção do simulacro. No entanto, nem toda obra que representa o passado necessariamente pode ser considerado histórica, ela pode somente usar a ambientação do passado como um cenário para um romance ou uma aventura sem se preocupar em interagir com os diversos discursos historiográficos existentes sobre o período retratado. O seriado ou o “filme histórico, por outro lado, interage com aquele discurso fazendo e tentando responder perguntas que a muito tempo circundam um determinado tópico.” (ROSESTONE, 2010, p.74 ). Uma relação importante de se destacar é que esses formatos cinematográficos usam os fotos históricos, ao mesmo tempo em que se permite inventar outros, privilegiando, assim, muito mais as questões narrativas. A invenção no cinema esta em cada fotograma, mudança de período de um acontecimento, diálogos inventados para se entender melhor o personagem, cores de roupas para seguir uma paleta de cor que tenha algum significado importante para a narrativa, ações e gestos alterados por atores na hora da filmagem. Todos os elementos que se unem para gerar o drama. Dessa forma a analise proposta não se

debruça sobre a veracidade histórica das narrativas apresentadas, pois invariavelmente toda obra histórica é uma ficção. Mais na concepção de que na contemporaneidade há a percepção de que a disciplina da história perdeu o seu sentido, sua funcionalidade, pois o passado não seria mais referência para se perceber um futuro fechado e certo, como percebe Grumbrecht (2011). Para o autor o modelo historicista existia como base de previsões e projeções para o futuro que orientavam o homem para sua ação. O marxismo, por exemplo, traz essa ideia da história sendo movida pelos conflitos de classe em um caminho prodigioso para um futuro comunista. “Talvez tenha sido o experimento mais caro da história da humanidade, pois claramente não funcionou. Não estou falando da política socialista, mas da crença de que podemos identificar leis e regularidades na transformação histórica.” (GUMBRECHT, 2011, p.28). Porem, e contraditoriamente a esse movimento, os fatos históricos estão cada vez mais presentes nas mídias digitais e no audiovisual, uma dinâmica dicotômica entre a valorização de um passado sem o sentido de progresso que funda a disciplina da História. Na contemporaneidade surge uma polêmica entre um conceito de modernidade e um de pós-modernidade que acaba por enfraquecer essa convicção de que podemos aprender com o passado. “Não no sentido de dizer que foram os malvados pósmodernistas que abandonaram a história, mas a discussão foi intensa, foi um momento em que, na prática, abandonou-se a crença.” (GUMBRECHT, 2011, p.31) A principal polêmica estaria no texto do filósofo Jean-François Lyotard citado por Gumbrecht (2011). Para ele

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GNARUS - 147 não existiria uma história única, representada por uma narrativa, e sim múltipla histórias locais e regionais. “Para cada história existem uma infinidade de representações. Isto quer dizer que, de repente, o historicismo já não é mais a solução, já não consegue mais absorver a infinidades das representações” (GUMBRECHT, 2011, p.38). Característica pós-moderna que acaba por valorizar muito mais uma cultura da presença do que do sentido, como um importante conhecimento epistemológico que interpreta o mundo (GUMBRICHT, 2010) É de fundamental importância, nessa trajetória, perceber dois pontos inerentes a discussão da contemporaneidade: o que se define como o pós-moderno, e a confusão conceitual entre Pós-Modernidade e pósmodernismo. Para Ítalo Moriconi (1994) o prefixo “pós” surge como referente a um período posterior, mas em um diálogo constante com a modernidade; não a sua simples negação, mas a necessidade de repensá-la: “O pós refere-se ao balanço dos resultados dessa aventura e assinala um deslocamento e uma inversão em relação a suas metas iniciais, mas assinala também sua irreversibilidade.” (MORICONI, 1994, p. 25). Movimento que traz para o mundo uma temporalidade diacrônica e fragmentada, desconstruindo todas as explicações totalizantes e fixas do tempo moderno, em que os dogmas e as teorias passam a ser relativizadas e perdem sua força. Segundo o autor, uma das causas foi o fato de o capitalismo não se dar de maneira uniforme, da mesma forma que o projeto da Modernidade não foi um desejo de todos aqueles que dela participaram.

Já a relação entre Pós-Modernidade e pósmodernismo se dá de forma análoga a relação de Modernidade e modernismo: (...) a modernidade teria começado com a Revolução Industrial, em meados do século XVIII; o modernismo, mais de 100 anos depois, no final do século XIX segundo alguns, no início do século XX segundo outros, com Picasso, Stravinsky, James Joyce etc. Percebe-se que, assim como nem toda a cultura da Modernidade pode ser chamada de modernista, nem tudo é pós-modernista numa época pós-moderna. Da mesma forma, pós-moderno não equivale a contemporâneo, palavra que designa o que é atual, seja pósmoderno ou não. Em nossa época, tudo é contemporâneo, mas nela convivem o tradicional, o moderno e o pós-moderno, por exemplo, nas artes. (PUCCI Jr., 2016, p. 361).

Dessa forma o que Grumbecht evidencia é que a analise do passado para se perceber o progresso para um futuro foi profundamente modificado por esse sentido Pós-Moderno. Onde o futuro é hoje cada vez mais uma ameaça, um risco que toda a humanidade corre. Do mesmo modo, o passado para nós já não é uma realidade que estamos deixando para trás. Tenho a impressão de que ficamos cada vez mais inundados de passado. E acho que muitas vezes temos um excesso de produção de lembranças históricas. Temos tanto um excesso de lembranças históricas que as vezes, me pergunto se existe a cultura de nosso momento, uma cultura do tempo presente. A chamada arquitetura pósmoderna é cheia de lembranças, cheia de citações, cheia de referências; (GUMBRECHT, 2011, p.39-40)

De forma bastante semelhante o historiador Fraçois Hartog (2003) entende esse fim do sentido histórico através do que ele vai denominar de presentismo. Um processo que evidencia a quebra com um regime

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historiográfico moderno. ”O fim deste regime moderno significa que não é mais possível escrever história do ponto de vista do futuro e que o passado mesmo, não apenas o futuro se torna imprevisível ou mesmo opaco. Deve ser aberto” (HARTOG, 2003, p.11) Exemplos desta ideia estariam presentes, segundo Hartog, em algumas atitudes na contemporaneidade. Como a relação para com a morte, a extrema valorização da juventude, todas as técnicas que tendem a suprir o tempo, ou estendê-lo, através do computadores e novas mídias que fazem do presente um espetáculo à parte. Ocorre, então, uma extrema valorização do passado, mas como fascínio e não mais com o intuito de aprender. Ou seja, a própria disciplina da historia parece perder sua funcionalidade. E o fenômeno midiático dos seriados que se relacionam com os fatos da historia são exemplos deste processo. Pois

através de uma estética pós-moderna, que explora a percepção do simulacro, há uma busca pela experiência do passado, e não um sentido crítico de relacionar os fatos com o presente para projetar novas possibilidades futuras. O que ocorre é um cinema de presença que se sobrepõem a idea de sentido dialético existente em uma estética moderna. O caso do seriado Vinkings é um excelente objeto de analise, neste sentido, pois trás os elementos abordados acima de forma bastante explicita. A obra é classificada como um drama histórico, que tem como pano de fundo a disputa e conquista dos Vikins, povo nórdico que dominou territórios de leste a oeste da Europa durante a Idade Média. Criada pelo roteirista Michael Hirst para a emissora History, a narrativa acompanha a saga do viking Ragnar Lothbrok (Travis Fimmel) um dos mais conhecidos heróis

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GNARUS - 149 nórdicos lendários e chamado de flagelo da Inglaterra e da França. A premissa inicial se desenvolve na trajetória de Ragnar, um simples fazendeiro, que ganha fama por seus ataques bem-sucedidos na Inglaterra e, mais tarde, se torna um Rei escandinavo, com o apoio de sua família e colegas guerreiros. Hirts, que tem uma origem acadêmica, – se formou na Londons School of Economics e depois estudou inglês e literatura americana na Universidade de Nottingham - é o mesmo criador da também histórica série The Tudors, sobre o rei Inglês Henrique 8º e seus turbulentos matrimônios. Assim ele seque uma trajetória criativa que se preocupa com uma precisão histórica através de detalhes como o bordado nos figurinos á construção dos castelos bretões e os vilarejos do estreito da Dinamarca e a Suécia. Como explica o próprio criador em relação a Vikings, tudo que aparece na imagem vem de uma pesquisa histórica (HIRST apud BARSANELLI, 2019). Pesquisamos sete línguas diferentes, e algumas precisavam ser rejuvenescidas, para terem uma logica dentro dos diálogos, noutras vezes tivemos que entender como eram as pronuncias. Temos acadêmicos trabalhando nisso. Aparentemente eles brigam entre si para decidir como fazer (HIRST apud BARSANELLI, 2019).

O que chama a atenção na postura do criador é que ao mesmo tempo em que Hisrt usa de detalhes históricos em sua estética como legitimação de uma narrativa realista, sua perspectiva é claramente muito mais a da literatura ao não se fixar nas necessidades de uma logica historiográfica. Isso fica evidente quando se recriam línguas, ou quando se juntam personagens que historicamente nunca se encontraram relações recorrentes

em toda a narrativa da série. Nessa logica se cria uma fascinante emergência da historia, mas que o passado não é apresentado de forma complexa e critica. ”Foi minha ideia, por exemplo, dizer que os vikings se ofereciam para o sacrifício, achei que seria interessante para a história. Não sabemos ao certo, mas eu acho que na realidade eles apenas usavam escravos” (HIRST apud BARSANELLI, 2019). Além disso, também há temas, como a religiosidade e a participação feminina na sociedade, que se ligam diretamente com necessidade de uma identificação com a audiência do seriado. Por exemplo, a narrativa cria através de características que seriam nórdicas uma espécie de feminismo que surge com força em algumas personagens, como Lagertha ( Katheryn Winnick), uma guerreira e dominadora, e Torvi (Georgia Hirst, filha do criador), que se liberta do marido agressivo. Em uma clara tendência do criador de buscar “que os desafios delas fossem assuntos contemporâneos, com que mulheres de hoje pudessem se relacionar” (HIRST apud BARSANELLI, 2019). As obras históricas acabam não demostrando os fatos com uma rigidez acadêmica, mas usa das metáforas cinematográficas como forma de dialogo com a tradição historiográfica. Como ressalta Rosenstone (2010) isso é possível perceber já em filmes do diretor Russo Serguei Eisenstein como Outubro (1912) ao retratar o início do socialismo soviético no uso de diversas metáforas para encaixar as coisas no seu quadro temporal. Ele coloca em cada imagem, em cada movimento, em cada ângulo de câmera e em cada corte, ideias que explicam o contexto histórico que o filme se propõe.

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GNARUS - 150 Essa mesma logica se dá para outros diretores contemporâneos que trabalham a historia em suas narrativas como Oliver Stone em filmes como Nascido em 4 de julho (1989), JFK- a pergunta que não quer calar (1991), Nixon (1995), Alexandre ( 2004), entre outros. Para Rosenstone o diretor traz em seus filmes não só acontecimentos históricos, mas ousa trabalhar com o discurso historiográfico em seus significados estéticos e metafóricos. (ROSENSTONE, 2010). Ou seja, estes cineastas conseguem criar sentidos e discursos através de suas estéticas que dialogam de forma critica e a até dialética com a realidade em que seus discursos são processados. No caso do seriado Vikings, apesar da obra não se desenvolver em uma estética de fantasia, pois é uma narrativa hiper-realista, ela é uma simulação em que há um fascínio por parte do espectador, estudante ou não da historia, ao apresentar de forma realista e detalhista objetos e locais do passado. Porem o que se descortina na maioria desses seriados históricos voltados para uma logica de máxima audiência, não seria a valorização desse discurso histórico, mas sim o uso do passado como uma espécie de “chamariz de espectador”, em que o mais importante é trazer a experiência do passado através de técnicas cinematográficas do que discutir as problemáticas históricas. Dinâmica que uma estética cinematográfica moderna consegue articular ao diluir a ilusão da narrativa naturalista. A linguagem cinematográfica clássica foi sendo desenvolvida principalmente por americanos até mais ou menos 1915 como herdeira das tradições narrativas do teatro clássico e do folhetim do século

XIX, e se desenvolve como uma indústria do entretenimento de massa, tendo em Hollywood seus principais modelos, em que o fio condutor narrativo se dava pela a primazia da ilusão e do desenvolvimento do drama de forma naturalista. Com o surgimento do Cinema Moderno, no pós Segunda Guerra – paradoxalmente o momento em que a pós-modernidade se apresenta – se evidencia uma estrutura em que o fluxo narrativo ou, era diluído, ou, até mesmo quebrado. O cinema moderno seria um passo além dessa arte de ilusão e se apresentaria com a quebra da experiência passiva do espectador em um movimento modernizante, segundo um ponto de vista relacionado a Gumbrecht (2010); seria justamente o predomínio de uma cultura do sentido sobre a experiência; sobre a vivência de outro mundo e uma interação com o mundo real, colocando, assim, no fluxo histórico, principalmente do ponto de vista dialético, o filme. Um cinema “engajado em uma produção de mundo que não se limita em um ponto de vista sobre questões específicas, mas como produtor de modos de pensar o mundo em si” (MIGLIORIN, 2016, p. 19). Segundo Gumbricht (2010) o advento da Modernidade, valoriza uma cultura do sentido, baseada na interpretação, na hermenêutica, na metafísica, se contrapondo a uma cultura da presença, baseada nas experiências do corpo e tudo que pertence à materialidade. Havendo, assim, a prioridade da dimensão temporal sobre a dimensão espacial, ”numa cultura que deixará de centrar-se num ritual de produção de ‘presença real’, passando a se basear na predominância do cogito.” (GUMBRECHT, 2010, p. 50), tanto

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GNARUS - 151 que é na Modernidade que a dimensão da historicidade, se sobrepondo ao que seria um tempo mágico, circular uma simples justaposição entre começo e fim, inverno e primavera, morte e renascimento. Imagens que se movem “no círculo biocósmico do ciclo vital produtor da natureza e do homem [...]. A noção implícita do tempo contida nessa antiquíssima imagem é a noção do tempo cíclico da vida natural e biológica” (BAKHTIN, 1993, p. 22) Assim, para o autor, a pós-modernidade seria a prevalência de uma cultura de presença sobre a de sentido. Seguindo essa linha de raciocínio o que seria o cinema pós-moderno, seria, justamente, o fim da necessidade das características modernas, ou até a incorporação das quebras de linguagem no fluxo comercial e mercadológico, onde não existiria mais um tipo fechado de linguagem, mas exercícios estéticos. Características como a fragmentação, o pastiche, o hibridismo, a hipertextualidade, e principalmente, a releitura de códigos já utilizados em vários momentos da história do cinema, como a utilização da narrativa clássica hollywoodiana, das construções de ruptura da Nouvelle Vague” francesa, ou as tradições neo-realistas italianas. Assim, o hiper-realismo surge como forte característica do cinema mais convencional, principalmente de filmes e séries comerciais norte-americanos que usam das novas tecnologias para simular uma realidade impossível cada vez mais crível. (...) em uma sociedade cujas narrativas são fragmentadas e dispersas, o cinema precisa se adaptar ao aparato sensorial desse novo espectador, o que motiva o uso de estratégias

de manipulação (ou intensificação) das relações de tempo/espaço, tornando as narrativas mais atrativas que a própria fruição corriqueira de suas vidas. Esses espaços de culto, como a igreja, os shows e o próprio cinema, passam a fazer uso de estratégias de espetacularização, seja no dispositivo, com recursos imersivos de tecnologia, seja na linguagem, com alterações nos elementos formais das obras. (JUNIOR, 2019, p.112)

Por outro lado esse movimento também gera outro tipo de cinema em que a diferença se encontra no próprio uso das inovações tecnológicas, não só para recriar esse simulacro, como também tornar a narrativa antinaturalista, e inserindo a presença do espectador através do uma característica pessoal e lúdica, talvez uma das poucas formas de separar, hoje em dia, o filme comercial do filme artístico. Desta forma os seriados percebidos neste artigo circundam o universo comercial e por tanto sequem o padrão do simulacro hiperrealista em que os fatos históricos surgem como espetáculos midiáticos sem um objetivo concreto de critica, ou uma relação dialética com o passado. Em Vikings, afinal de contas, o mais importante não é como as dinâmicas desse passado nos influenciam hoje, mas sim a própria presença deste passado no presente, na experiência do simulacro pós-moderno. Isso pode ser percebido também na forma como a violência se apresenta nesses seriados, de forma exageradamente explicita e muitas vezes chocante, muito mais com o objetivo de impactar o espectador do que o fazer refletir sobre o ato. Gumbrecht percebe que em uma cultura de parecença o corpo, a relação entre os seres humanos seria uma relação em que a violência é inerente, pois

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GNARUS - 152 estaria expressa numa dinâmica de “ocupação e no bloqueio do espaço pelos corpos contra outros corpos” (GUMBRECHT, 2010, p. 111), da mesma forma que, se o espaço é percebido como a principal dimensão da presença, em uma cultura de sentido o tempo seria primordial, “pois leva tempo para concretizar a ações transformadoras por meio das quais as culturas de sentido definem a relação entre os seres humanos e o mundo” (GUMBRECHT, 2011, p. 110). Para as culturas de sentido, em contrapartida, é habitual (talvez seja mesmo obrigatório) adiar infinitamente o momento da verdadeira violência e, assim, transformar a violência em poder, o que poderemos definir como o potencial para ocupar ou bloquear espaços com corpos. Quanto mais a autoimagem de determinada cultura corresponde à tipologia da cultura de sentido, mais ela tentará ocultar e até excluir a violência como o mais avançado potencial de poder. (GUMBRECHT, 2010, p. 110-111).

Quando o ato da violência se esconde, estratégia muito utilizada em filmes de abordagens modernas se cria um símbolo. Um esforço estético de inserir as ideias filmadas num tempo histórico, em que todas as representações se debruçam sobre o esquema temporal passado-presentefuturo. Muito diferente quando se assume a violência como estratégia de presentificação, de experiência, onde não existe essa dialética entre o ver e o não ver. Ou seja, a estética pósmoderna se esvazia do sentido Histórico em vários sentidos gerando o que pode entendido como uma relação pseudo-histórica. Outro caso bastante particular é o seriado Freud (2020) que utiliza o gênero criminal através de uma forte reconstrução histórica da Cidade de Viena, no século XIX. A narrativa

apresenta Sigmund Freud como um jovem psicanalista que desenvolve suas teorias revolucionárias enfrentando uma forte oposição de seus colegas do meio acadêmico. No entanto, o que move a narrativa não é a criação das teorias freudianas, mas sim uma trama policial que se inicia quando o jovem psicanalista se une a uma vidente e a um detetive de polícia para investigar uma serie de crimes. Por tanto, a série trabalha exatamente como em Viking, uma dinâmica em que a violência, o sexo, os fatos históricos e invenções, buscam colocar o espectador em contato com o universo apresentado de forma que a narrativa seja assimilada facilmente ao espectador comum. Freud é uma narrativa de suspense, da mesma forma como Vinkngs um drama. Relação muito parecida também ocorre com o caso brasileiro Coisa mais linda (2019) que dentre as series citadas de longe é a menos representativa, por não apresentar os lugares e ambientes históricos de forma a detalha-los com precisão e riqueza como os outros exemplos. Isso basicamente devido ao baixo orçamento e as complexidades de se produzi o audiovisual no Brasil. Mas, no entanto, ela merece uma breve analise por se tratar de uma tentativa nacional de trabalhar uma narrativa histórica na buscar de uma parecença do passado. No trama a vida de Maria Luiza (Maria Casadevall), uma moça conservadora que vive em São Paulo no final da década de 50, toma um rumo completamente diferente quando seu marido desaparece ao viajar para o Rio de Janeiro para montar um restaurante. Ela seque os rastros do marido e muda completamente sua vida abrindo uma casa

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GNARUS - 153 noturna em terras cariocas. Descobrindo, assim, um novo mundo na companhia de mulheres feministas e liberais e ao som da Bossa Nova. Novo mundo característico do momento histórico representado, que gerou a Bossa Nova, o Cinema Novo, toda uma áurea de mudanças que vai acarretar em 1964 no golpe militar. No entanto a narrativa não discute essa complexidades históricas e sim se debruça sobre o drama da independência feminina, através de uma perspectiva contemporânea de empoeiramento. Desta forma esses seriados se apresentam como um fenômeno na contemporaneidade, principalmente pelo impulso de produtividade que a surgimento dos serviços de streamings trouxeram para o mercado audiovisual mundo a fora. Um fenômeno que como já visto, seque as características de uma mídia voltada para o espetáculo do hiper-realismo, em que a estética busca uma valorização de uma cultura de presença. Um movimento que também seque a perspectiva de Gumbrecht( 2011) no sentido de dialogar com a percepção pósmoderna de que cada vez mais o sentido do progresso histórico se desconstroem, como se no presente esse passado fosse barrado pela espetáculo midiático, impossibilitando a vinda de um possível futuro. E esse movimento pode ser percebido principalmente devido às relações cada vez mais intermediadas pelas logicas das mídias digitais e do mundo virtual, que inserem o individuo em uma nova experiência de mundo. A interatividade virtual é um lugar em que o tempo logico e histórico não existe como na vida ordinária. Um problema que se desdobra em vários outros: como a possível descrença na ciência, um problema cada vez

mais frequente no Brasil contemporâneo; e até a proliferação dos tão debatidos Fake News. Estariam esses seriados, apesar de erguidos sob a pesquisa histórica, seguindo uma logica que também é a do Fake News, ao exemplo do seriado O mecanismo (2018) que recria um passado muito recente do Brasil, de forma descomprometida com a realidade critica e histórica gerando conhecimentos e conclusões falsas a respeito do próprio processo histórico? A resposta parece ser mais complexa do que parece. Pois o problema em si não esta na produção dos seriados, que através de uma estética de presença buscam novas formas de lidarem com as dinâmicas do mundo atual, mas sim em como consumimos esse audiovisual. O grande problema ainda reside em uma educação critica, que deve ser consolidada dês da educação básica, e que no Brasil e em países periféricos como um todo são problemas estruturais da própria questão democrática.

Rafael Garcia Madalen Eiras é Mestre pela UNIGRANRIO, Pós-graduação Latus Senso em Fotografia, Memória, e Imagem pelo IUPERJ, Licenciado em História pela UCAM e Bacharel em Cinema pela UNESA.

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GNARUS - 154 gosto-de-fantasia-diz-criador-da-serie-vikings. shtml> Acesso em: 10/04/2020 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de “Depois de aprender com a história”, o que fazer com o passado agora? In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 25-42.

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Coluna:

DIMENOR: UM RETRATO DA VIDA DE CRIANร AS E JOVENS MORADORES DE RUA. Por Aderaldo Januรกrio de Almeida

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Introdução

E

m 2019 foi comemorado 30 anos da Convenção Geral sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas como forma de garantir a proteção e cuidados especiais para crianças e jovens.1 A assembleia tinha como objetivo propor aos países participantes que adotassem medidas para melhorar às condições de vida e garantir os direitos da infância das crianças e dos adolescentes. Sendo ratificada pelo Brasil e se tornando Lei federal nº 8.069 de junho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. A Convenção das Nações Unidas tinha como base quatro aspectos principais: (…), o direito à vida e ao de ter as suas necessidades básicas atendidas (moradia, alimentação, saúde); o direito ao desenvolvimento de suas potencialidades (educação, esporte, cultura, informação; o direito à proteção (contra maus tratos, violência, arbitrariedade, exploração, abuso e negligência) e o direito à participação (associação e expressão). 2

Foi proposto para os países participantes, diretrizes que guiassem leis e políticas públicas, entretanto apesar de termos leis específicas para vários casos a realidade de sua efetiva aplicação é outra. Anteriormente, a lei que tratava especificamente sobre crianças e jovens, era o Código de Menores de 1979, que era uma atualização do código de 1927. Segundo Silva,

O Código de Menores de 1979 não era diferente do de 1927 no que dizia respeito ao tratamento do menor, consistindo apenas de uma releitura deste, ou seja, mantinha-se o caráter corretivo-repressivo dele. Ambos tratavam apenas da Assistência ao menor de forma paliativa, ao invés de preocuparse com o que realmente seria efetivo na resolução do problema que a cada dia ia tomando proporções cada vez maiores e que na verdade estava cravado na formação das famílias e em seus problemas sociais cotidianos. 3

De acordo com a pesquisadora, as leis anteriores não davam um completo amparo para crianças e adolescentes, eram apenas medidas paliativas, não focavam na resolução central dos problemas. Inicialmente, o Estatuto das Crianças e Adolescentes poderia ser considerado equivalente ao Código de Menores de 1927 e 1979, não nas leis, mas na falta de medidas públicas concretas. Silva argumenta, “analisando todo o aspecto histórico do amparo ao menor, observa-se que o ECA não funciona como deveria pois nunca houve amparo algum”. 4 A falta de amparo e políticas públicas podem ser vistas nas ruas das grandes metrópoles, onde crianças e jovens de todas às faixas etárias e sexo vivem ao léu sem nenhuma perspectiva de vida. Uma forma de retratar a vida de meninos e meninas de rua, foi idealizado sob a forma

1 http://primeirainfancia.org.br/superior-tribunal-de-justicacomemora-30-anos-da-convencao-sobre-os-direitos-dacrianca/. Acesso dia 26/03/2020.

3 SILVA, Deny Martins da. Estatuto da Criança e do Adolescente: uma abordagem sobre o seu cumprimento e políticas públicas relativas. Revista Âmbito Jurídico. Edição 166. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/ revista-166/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-umaabordagem-sobre-o-seu-cumprimento-e-politicas-publicasrelativas/. Acesso dia 02 de Abril de 2020.

2 VARGAS, 2011. P, 26.

4 Idem.

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GNARUS - 157 de tirinha pelo cartunista Ferreth.5 A tirinha do Dimenor, que antes de ser um conteúdo de humor, é uma denúncia da exclusão social, do descaso, da falta de políticas públicas, além de apresentar de forma implícita os problemas socioeconômicos que parte da sociedade, principalmente entre os pobres, estão sujeitos.

Dimenor: Imaginação e realidade. O personagem Dimenor, como protagonista, junto com sua turma tiveram a primeira aparição nas páginas do jornal O Dia em 10 de Dezembro de 1991. A tirinha rotineiramente impressa em preto e branco tem um estilo gráfico que podemos definir como cartunesco. O estudioso da área dos quadrinhos Roberto Elísio dos Santos explica que. Estilo cartunesco – diferencia-se do realista no que se refere à anatomia: os personagens são desenhados com nariz grande e redondo, 5 Francisco de Assis Ferreira. Ferreth nasceu no Rio Grande do Norte na cidade de Natal em 16 de março de 1961, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Começou a publicar seus trabalhos no Pasquim nos anos de 1970, trabalhou com Ziraldo na publicação de livros infantis e no mais celebre personagem criado por Ziraldo, O menino Maluquinho. Com isso não é de se espantar que os traços dos dois personagens Dimenor e menino maluquinho sejam parecidos, a influência de Ziraldo é evidente.

os olhos podem ter só às pupilas, a cabeça é grande e o corpo, menor, não obedece às proporções normais. Mazur e Danner (2014, p,24) designam esse estilo de “cômico pé grande”, por causa do tamanho grande dos pés e dos sapatos dos personagens. 6

O estilo cartunesco fica evidente nos traços da criação do cartunista como na figura 2, mãos, dentes, nariz, pés de formas desproporcionais. Podemos compreender que essas formas mais exageradas e desproporcionais são uma maneira de evidenciar sentimentos e expressões. No que diz respeito à escrita, Cagnin argumenta que a linguagem nas histórias em quadrinhos (tirinhas, vinhetas) são constituídas por dois elementos básicos. De acordo com Cagnin, “A história em quadrinhos é um sistema narrativo formado de dois códigos de signos gráficos: a imagem, obtida pelo desenho; a linguagem escrita”.7 Em relação a linguagem dos quadrinhos somos capazes de identificar uma característica notável nas tiras do Dimenor, um recurso muito utilizado na literatura: a metaficção. Santos esclarece o que é metaficção,

6 SANTOS, 2015, p, 45. 7 CAGNIN, 2015.

Figura 1: Ferreth. Quadrinhos Dimenor. Rio de Janeiro: Editora AKS. 1999.p, 11. Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


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Figura 2: FERRETH. Op.Cit., P, 16. (…), uma narrativa em que o personagem sabe de sua verdadeira natureza, de ser ficcional, que conversa com o autor (que muitas vezes se encontra fora da história) ou que conhece ou descobre seu destino como parte da narrativa. Recurso comum na literatura – reconhecível, por, exemplo, quando o personagem “fala” diretamente ao leitor no caso dos quadrinhos especificamente no que se refere às tiras, (..). 8

No caso da tira em questão,9 a utilização da metaficção não é empregada através da linguagem escrita, ela é uma metaficção através da imagem. Analisando as tiras, vemos que o personagem principal quase sempre está olhando diretamente para o leitor, exemplo da figura 1 e na figura 2. O leitor participa das tirinhas “ouvindo” e observando às reclamações, denúncias, a indignação de um menino de rua. Arriscamos a dizer que é um artifício que o criador da tira encontrou para chamar atenção do leitor, pois Dimenor está olhando diretamente para os leitores e são eles que podem transformar o mundo no qual ele está inserido e retrata. A inspiração para a criação do personagem 8 SANTOS, Op.Cit., P, 33. 9 THOMAS. M. Inge classifica esses quadrinhos de metacomics. In: SANTOS, Roberto Elísio dos. VERGUEIRO, Waldomiro., (Orgs). Op. Cit., P, 33.

e seus amigos vieram da realidade vista nas ruas da cidade do Rio de Janeiro da década de 1990, como explica o cartunista Ferreth, Aí tio!… tira a mão de mim que sou dimenor! Era sempre essa a frase ouvia os menores de rua, que fazia a via cheirando cola e fazendo ganhos em cima de pessoas menos avisadas. Os meninos de rua, principalmente os da Cinelândia, lugar aonde eu ia tomar um chopinho no amarelinho, sempre me chamava a atenção. Foi aí que eu achei que seria importante, retratar a vida dessas crianças, que vivem nas ruas. Foi então que criei o Dimenor (…). 10

Podemos vislumbrar com a citação anterior, que a inspiração para a criação do personagem e sua turma origina-se da realidade cotidiana que o cartunista está inserido de forma direta e indireta, pois o mesmo vivencia cotidianamente a realidade dos menores de rua, situações de violência, momentos dito como de “lazer”, ou seja, situações que exprimem às mais diversas emoções na cidade do Rio de Janeiro. O estímulo para a criação do cartunista Ferreth tem uma interpretação segundo o pesquisador Mauro Sérgio da Rocha, baseado no entendimento de Vigotisk,

10 FERRETH. 1999. p, 2.

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GNARUS - 159 A fantasia possui suas bases no real vivido e, portanto, tem sua origem na realidade social e histórica. Para este autor, toda prática, seja ela criativa ou não, possui ligação direta com o meio material em que se constrói. Nesse sentido, a fantasia presente nas Hqs, entendida por esse viés, é constituída através da relação constante e dialética entre o social e o individual. 11

podemos ter uma compreensão de uma das funções do símbolo. Os autores argumentam,

Seguindo o entendimento do pesquisador Sérgio Mauro da Rocha com base em Vigotisk, podemos compreender que, a realidade, os acontecimentos, experiências oculares, contribuíram para criação dos personagens e o seu universo, que não fugia da realidade dos grandes centros urbanos. Essa interpretação também é defendida pelos estudiosos François Laplantine e Liana Trindad. Os autores argumentam,

Deste modo, podemos deduzir que a intenção do autor era introduzir um sentimento de reflexão, revolta, angústia através das tirinhas do Dimenor. Uma forma de denúncia para sensibilizar os leitores e assim pudesse trazê-los para perceberem o problema que estava a sua volta e muitos não olhavam, principalmente o poder público. A maneira que o cartunista conseguiu dar voz as suas denúncias foi através da tirinha publicada em um jornal de grande circulação. Uma tirinha de traços limpo e desenhos bem-acabados, mas pesada em símbolos e revolta.

Imagens são construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências visuais anteriores. Nós produzimos imagens porque as informações envolvidas em nosso pensamento são sempre de natureza perceptiva. Imagens não são coisas concretas, mas são criadas como parte do ato de pensar.12

De uma forma simples, podemos entender que o criador das tirinhas passou os acontecimentos que o mesmo presenciou, possa ter ouvido ou lido em jornais, para ter como base a sua criação, já que era recorrente ver garotos e garotas pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro em situação de abandono, para os quadros das tirinhas, infelizmente tal fato ainda persista nos dias atuais. Pode ter sido de uma forma simples, porém é carregada de símbolos e intenções. Com respaldo nos estudos de Peter Berger e Thomas Luckman,

A função do símbolo não é apenas instituir uma classificação, mas também introduzir valores, modificando os comportamentos individuais e coletivos e indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos. 13

Apesar da tira ter sido um sucesso ela não teve uma vida longa no jornal carioca O Dia, tendo sido publicada de 10 de dezembro de 1991 até outubro de 1992, essa vida curta pode ser por causa do conteúdo crítico nas tirinhas e da censura do jornal, nas palavras do cartunista, “(…) um sucesso em tiras de quadrinhos, apesar da censura que havia por parte da redação do jornal”.14 No jornal Diário: A Hora do Povo, Dimenor teve uma vida uma pouca mais estendida, teve publicação de junho de 1993 até junho de 1995.15 Em 1999 13 BERGER, P.; LUCKAMN, T. A Construção Social da Realidade: Tratado de Sociologia do Conhecimento. Nova Iorque .1966. In: BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social” In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, ImprensaNacional/Casa da Moeda, 1985.

11 ROCHA, 2014.P, 1.

14 FERRETH, Op. Cit., P, 5.

12 LAPLANTINE, 1997. P, 10

15 Eram republicações das tiras do Dimenor.

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GNARUS - 160 a tirinha teve um edição especial publicado pela editora AKS, com um compilado de suas aventuras.

Dimenor: “Menor” e/ou menor de idade? Na perspectiva histórica, a expressão “menor” vem carregada de historicidade, pois, são reflexos de antigos códigos que tinham como alvo crianças e jovens desvalidos no Brasil. Os estudiosos John Drexel e Leila R. Iannone apresentam inicialmente uma definição do termo “menor”, indicando que a palavra “menor”, antônimo de “maior”, passa a ideia de pequeno, ainda por formarse, que não é sujeito pleno, que depende de um maior, sob cuja tutela e custódia deveria estar.”16 Drexel e Iannone explicam que o termo “menor” tornou-se um uma conotação depreciativa quando se referem às crianças pobres, abandonadas. Argumentam que, Para os demais - os pobres, os abandonados, os internos em orfanatos ou órfãos do Estado-, a palavra “menor” assume conotação pejorativa, trazendo em seu conteúdo semântico a insinuação preconceituosa de “marginal”. Assim comumente na sociedade brasileira, o nome “menor” é usado discriminatoriamente” 17

Segundo os pesquisadores, o sentido de marginal é utilizado quando se trata de crianças em situação de precariedade, desvalidas. Todavia quando se trata de crianças com “famílias bem constituídas e estáveis”,18 o termo “menor” quando é empregado não tem sentido de marginal e sim em seu sentido

inicial, cru. São menores, pois não atingiram a idade de 18 anos completos. Drexel e Iannone ainda informam que, “para os filhos de famílias estáveis, usa-se “crianças”, “jovem” e, quando há referência a alguma situação jurídica, o termo é usado na forma de locução: “menor de idade”.19 A historiadora Sônia Câmara com base no primeiro Código de Menores de 1927 nos informa, que foi estabelecido uma dualidade para qualificar a identificação de “menor”. Segundo Câmara, Com o Código de Menores, estabeleceuse à composição do termo “menor” como uma categoria social de análise que, ao ser aplicada, supunha demarcar os sentidos para a infância pobre. Nesse movimento, atributos legais passaram a qualificar a identificação do “menor”, delimitando a localização faz crianças em dois grupos: o primeiro, abrangendo os “menores abandonados” como sendo os desamparados, vadios, mendigos e libertinos; e o segundo grupo, os “menores delinquentes”, identificados como autores ou cúmplices de crimes e os pervertidos.20

Na primeira parte da citação, vemos que o “menor” é designado para demarcar a infância pobre, isso corrobora com a explanação dos pesquisadores Drexel e Iannone, quando estes argumentam que o termo “menor” pode mudar de sentido dependendo da situação econômica, social e familiar da criança ou jovem, que a pobreza é um estigma para definir se uma criança será classificada como “menor marginal’. Como pudemos ver na citação anterior, era possível classificar menores de idade em dois grupos, conforme o contexto da época, uma criança pobre poderia ostentar negativamente o cunho de

16 DREXEl; IANNONE, 1989. P, 24. 17 DREXEl, John; IANNONE, Leila R. Op. Cit., P, 24.

19 Idem.

18 Idem.

20 CÂMARA, 2010. P, 271.

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Figura 3: Os sete personagens que formam a tirinha Dimenor. FERRETH, Op. Cit,. P, 5. delinquente, desvalida, infeliz, abandonada.21 Em vigência desde julho de 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA,22 considera criança até 12 anos incompletos e jovens entre 12 anos até 18 anos incompletos. A tira foi criada em 1991, sob uma nova lei, todavia carrega socialmente várias estigmas e preconceitos sociais. Podemos dizer que aos olhos da sociedade Dimenor e seus amigos, com exceção de um personagem, que compõem a tira são marginais, pois são crianças abandonadas, 21 Sônia Câmara esclarece, a classificação de “menor” tinham como um dos critérios a idade. 22 LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso dia 29 de março de 2020.

moradoras de rua que estão em constante contato com todo tipo de violência tanto praticada, quanto sofrida.

Dimenor: Esta é a sua vida.23 As aventuras do personagem principal junto com seu grupo apresentam constantes violações dos direitos das crianças e dos adolescentes, além de abordar a exclusão social.24 A tira apresenta várias situações que meninos e meninas que vivem nas ruas, principalmente das grandes cidades, estão 23 Frase retirada da capa da revista Dimenor publicada em 1999 pela editora AKS. 24 Não pretendemos discorrer sobre a exclusão social diretamente, pois a tira do Dimenor é muito complexa é o tema não caberia neste artigo.

Figura 4: FERRETH, Op. Cit., P, 25.

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Figura 5- Diário a Hora do povo- S/D sujeitas. Oscilam da condição de malfeitores à de vítimas ou vice-versa, podem estar em constantes convivência a todo tipo de violência, assassinato, estupros, aliciamentos por adultos para cometerem crimes, furtos e assaltos. O personagem principal interage com o leitor, tem consciência política e social, sabe ler e apresenta questões que devem ser refletidas e os desejos que crianças e jovens desvalidos anseiam. Dimenor não tem nome, é apenas Dimenor um apelido como várias da qual fazem parte da sua tira, com exceção de Mauricinho e Carlinha, os demais são todos nominados com apelidos. Sua turma são representações de crianças e jovens que moram nas ruas das cidades do Brasil, apesar da tirinha estabelecer como recorte espacial a cidade do Rio de Janeiro, tais problemas sociais ainda podem ser vistos em várias cidades brasileiras. Com exceção do personagem Mauricinho, ele é um menor que ainda não alcançou a maioridade, é uma criança, pois não é visto como um marginal diferentemente dos demais. Acreditamos que esse personagem foi idealizado para fazer um contraponto com os demais personagens. Mauricinho é apresentado sempre bem-vestido, calçado,

sabemos que tem família estabilizada economicamente, serve como contraponto entre pobreza e riqueza, em um futuro estruturado e um futuro marginal. A tira deixa implícito o possível futuro marginal dos outros dois personagens, todavia esse futuro é incerto, visto que é possível serem assassinados, tanto por vingança por um delito cometido ou para uma dita “limpeza urbana”. Vargas argumenta que em tempos de crise econômica e aumento da violência a prática de extermínio toma corpo. 25 O futuro de crianças e adolescentes que vivem nas ruas e não tem proteção, podem ser assassinadas, como o caso da Chacina da Candelária ocorrida na madrugada de 23 de julho de 1993.26 A figura 5 retrata a violência em sua forma mais brutal, a violência física, o assassinato, o extermínio, para uma dita limpeza como explica Vargas, “é fato que entre diferentes protagonistas a morte ou a execução encontram a mesma justificativa: a limpeza urbana”. 27

25 VARGAS, Joana Domingues. Op. Cit., P, 29. 26 “Em 1993, na madrugada de 23 de julho, oito meninos de rua que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no Rio, foram mortos a tiros. O crime chocou o país e o mundo”. In: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/ chacina-na-candelaria/jornal-nacional-sobre-a-chacina/. Acesso dia 07 de Abril de 2020. 27 VARGAS, Joana Domingues. Op. Cit., P, 36.

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Figura 6: FERRETH. Op. Cit., P, 6. O artigo primeiro do ECA estabelece: “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”,28 ou seja, o ECA tem como princípio a proteção integral de crianças e jovens, porém na realidade ela ainda deixa a desejar. A figura 6 apresenta Dimenor lendo alguns dos direitos que crianças e jovens tem garantidos, ademais não era apenas falta de direitos, mas também violação como destacado na figura 5, onde os personagens correm o risco de serem assassinados, isso já era bem exposto 29 anos atrás com a recente lei federal. O protagonista vive nas ruas, a sua “casa” é a rua, esse contradição é explicada pelo 28 LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA.Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso dia 29 de março de 2020.

antropólogo Roberto Damatta, o pesquisador elucida que “(...), rua e casa se reproduzem mutuamente, posto que há espaços da rua que podem ser fechados, ou apropriados por um grupo, categoria social ou pessoas, tornandose sua ‘casa’ ou seu ponto”.29 Dimenor e seu grupo vivem, se divertem, fazem seus ganhos (furtos), todavia não são imunes aos perigos que nela existe, Damatta destaca que “ a rua é um local perigoso, aliás sempre foi assim, e as descrições deste espaço como zonas livre são copiosas”.30 Apesar da rua ser sua “casa” o personagem sabe da sua condição e dos outros, sabe que não deveriam viver nas ruas. Os perigos que crianças e jovens assim como os personagens estão sujeitos, são 29 DAMATTA, 1985, p, 47. 30 Idem. P, 48.

Figura 7- FERRETH. Op. Cit., P, 16. Direito à vida e ao de ter as suas necessidades básicas atendidas (moradia, alimentação, saúde).

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Figura 8- Diário A Hora do Povo - 25 de maio de 1994. variados. Podemos destacar dois tipos de violência segundo concepção de Nilo Odalia. A violência sob forma de privação, Odalia diz que “com efeito, privar significa tirar, destituir, despojar, desapossar alguém de alguma coisa”, e a violência em sua pior forma, “(...) a mais cega, aparentemente a mais gratuita- a violência contra a pessoa, (...)”.31 Esses dois tipos de violência podem ser vistos claramente nas figuras 5,6, 7 e 8 como em várias de suas tiras. Na figura 6 vemos o que Nilo Odalia descreve como violência por privação. Dimenor e outros meninos dormem na rua, são privados de lares, de uma segurança, conforto que uma casa pode oferecer. A dita “limpeza urbana” poderia ser de duas formas, o extermínio de grupos de moradores de rua ou a “limpeza de embelezamento”, quando principalmente em períodos de grandes eventos ou reformas nas cidades, grupos são forçadamente retirados de determinados locais e levados para as periferias ou interior para deixar os grandes centros urbanos “limpos” para os visitantes, estrangeiros principalmente. 31 ODALIA, 1983. P, 90-91.

O protagonista da tirinha tenta chamar a atenção para às mazelas que essas crianças e jovens que vivem à margem da sociedade estão sujeitos e que precisam de medidas e ajuda, pois como deixa claro Drexel e Iannone, “ As crianças não são capazes de pedir para si com a força dos adultos. São os maiores que precisam lutar por elas, impedindo que lhe seja tirado o fundamental, evitando que morram de fome, pela discriminação e pelo descaso”.32 A tira do Dimenor é um excelente conteúdo reflexivo social e político, pois apresenta às condições de vida de meninos e meninas que moram nas ruas, a violência e abusos que convivem diariamente, a falta de políticas públicas que podem ser apontadas e ainda fazer relações com os dias atuais e perceber que algumas coisas mudaram e outras não. A tira apesar de ser um conteúdo classificado com humor, não tem nada de alegre, é um soco bem dado no estômago de todos nós.

Aderaldo Januário de Almeida é Pós-graduado em História social e cultural do Brasil pela Feuc/ Faculdades Integradas Campo-grandenses.

32 DREXEL; IANNONEOp. Cit., P, 25.

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GNARUS - 165 Referências bibliográficas: BERGER, P.; LUCKAMN, T. A Construção Social da Realidade: Tratado de Sociologia do Conhecimento. Nova Iorque .1966. In: BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social” In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, ImprensaNacional/Casa da Moeda, 1985.

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Coluna:

MORT CINDER: SUAS MUITAS VIDAS E MUITAS MORTES Por Aderaldo Januรกrio de Almeida

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ogo em sua capa Mort Cinder nos traz uma dúvida atroz: quem é realmente o “imortal” da trama. Héctor G. Oesterheld (1919-1977), quadrinista argentino assassinado em algum momento de 1977 durante os anos de chumbo da Junta Militar Argentina e cujo corpo nunca fora encontrado;1 Alberto Breccia (1919-1993) considerado um dos maiores artistas da arte sequencial e grande influenciador de diversas gerações de desenhistas; ou o misterioso Mort Cinder, o “homem das mil mortes”, nada fácil de ser enquadrado em perfis tais como herói, antiherói, vilão em redenção. Bem, ao longo da leitura percebe-se que essa pergunta não é necessariamente imperiosa, se as coloco aqui é para que o leitor tenha em mente o peso do material que tem ao alcance das mãos e dos olhos. Em um dia comum, em algum momento da década de 60, o antiquário londrino Ezra Winston, cercado de fragmentos materiais da história, percebe que um relógio que remonta a Luís XVI volta a funcionar misteriosamente. Quase no mesmo momento um estranho amuleto chega em suas mãos. A partir da combinação desses dois fatores, Ezra se vê às voltas com uma série de situações nos subúrbios londrinos que acabam por conduzilo uma pessoa: Mort Cinder, o homem das mil mortes. Originalmente publicado na revista argentina Misterix, entre agosto de 1962 e março de 1964, Mort Cinder, ao longo de suas edições acabaria se tornando um dos maiores 1 Para saber mais sobre a trágica história de Héctor G. Oesterheld acesso a edição 6/dezembro de 2015, da Gnarus – Revista de História, onde trato de outra grande obra do autor: O Eternauta.

sucessos da dupla Oesterheld e Breccia e ganharia amplo destaque no panorama dos quadrinhos mundiais. Mort Cinder pode ser considerado um interessante exercício sobre as experiências temporais, começando pela própria aparência do antiquário Ezra Winston, que tem as feições do próprio desenhista Alberto Breccia, que fez um exercício de envelhecimento impressionante para o período. Cada peça, detalhe da loja de Ezra tem um detalhe que remete a uma provável história vivenciada por Mort Cinder. Até mesmo uma peça, uma relíquia, cuja autenticidade pode e deve ser questionada, ganha contornos interessantes, além de abrir uma discussão, que interessa muito a nós historiadores, sobre buscar entender não só aquilo que é verdade, como também tentar entender os processos discursivos e históricos que norteiam até mesmo uma falsificação. Mistério e suspense são muito bem

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GNARUS - 168 dosados ao longo da trama, o conceito do “homem das mil mortes” é conduzido longa e efetivamente desde o prólogo até a aparição de Mort Cinder quase 40 páginas depois. A arte de Breccia é epidérmica, podemos perceber no desenho os efeitos do tempo sobre todos os personagens, em cada cicatriz que Cinder carrega e as muitas rugas que Ezra passa acumular, ou que passam a ficar evidentes, em seu contraste com Morte Cinder. A edição da Editora Figura recupera ao máximos as artes originas de Breccia muito arrojadas já para o período, de modo que não puderam ser reproduzidas com a qualidade que mereciam devido as limitadas capacidades gráficas do período. O texto de Oesterheld mostra-se muito refinado e casa perfeitamente com a arte de Breccia, sempre encontrando ótimos recursos narrativos para as transições que vão da ativação da memória de Mort Cinder, permitindo-o se deslocar por entre tempo e

espaço, a partir de algum objeto ou situação. Oesterheld não se preocupa necessariamente em ser didático, não sabemos de onde provém a condição de imortal de Mort Cinder, que motivos o levaram a trabalhar em um navio que realizava o tráfico negreiro no atlântico, ou que motivos o levaram ser soldado na Primeira Guerra Mundial, nem porque foi parar atrás das grades nos EUA da década de 30. Muitas especulações ficam no ar, há uma sutil referência ao fato de que Mort Cinder tenha chegado ao Novo Mundo junto com os colonizadores e até mesmo participado da conquista espanhola na américa. Mas são só possibilidades, tantas quanto o tempo pode oferecer e a mente humana é capaz de compreender. Oesterheld sempre trouxe um componente político em suas obras. Quando se conhece o contexto em que a obra foi escrita é impossível não traçar paralelos com a história recente de golpes militares na Argentina, repressão,

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GNARUS - 169 violência e projetos políticos que visam controlar “as mentes” e dos corpos, algo muito parecido com as ambições do professor Angus, inimigo de Mort Cinder. Os implacáveis perseguidores de Cinder, conhecidos como “olhos de chumbo”, representam bem essa dinâmica. Quem está acostumado com quadrinhos em preto e branco vai identificar na arte de Breccia a principal referência para diversos trabalhos. O próprio Frank Miller é um fã confesso de seus trabalhos. Cabe destacar o excelente trabalho editorial da Editora Figura, que em pouco tempo de existência lançou excelentes trabalhos tais como “Informe sobre cegos”, baseado no conto de Ernesto Sábado e com arte de Breccia, “Tanka”, do italiano Sergio Toppi (que aliás, precisa urgentemente ser “descoberto” por essas bandas) e “Crimes e castigos”, do também argentino Carlos Nine. Talvez enquanto você está lendo esse texto já tenha sido lançado a campanha de financiamento de “Ernie Pike”, uma história em quadrinhos de guerra, também criada por Héctor G. Oesterheld e com desenhos de outro grande nome dos quadrinhos mundiais, o italiano Hugo Pratt (Corto Maltese). Mort Cinder está entre os melhores lançamentos do mercado editorial brasileiro e brinda a nós brasileiros com um trabalho de altíssimo nível realizado bem aqui, do nosso lado. Gnarus recomenda.

Renato Lopes Pessanha é colunista da Gnarus Revista de História, Mestre e Doutorando em História Social pela UNIRIO.

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Coluna

Fotografias da História

A COR DA PELE NUNCA É INVISÍVEL1 RESUMO: A partir do confronto entre dois grupos de comentários deixados nas mídias sociais do jornal Extra a respeito da publicação de 08/07/2015, “Do Tronco ao Poste” (com a capa ganhadora do Prêmio ExxonMobil - antigo prêmio Esso - daquele ano), propomos uma série de reflexões sobre raça (MUNANGA, 2014) e racismo (SOUZA, 2017; SCHWARCZ, 2012) no Brasil contemporâneo. O primeiro grupo traz os comentários que o próprio veículo destacou e o segundo, uma amostra que retiramos diretamente da página do Facebook do jornal. A capa apresenta o caso do linchamento de Cleidenilson Pereira da Silva em São Luís (MA) – jovem negro de 29 anos, suspeito de tentar assaltar um bar que foi rendido e espancado até a morte.

Por Angélica Fontella

“200 anos e a reflexão: evoluímos ou regredimos?

E

is a capa do jornal Extra desta quarta-feira, 8 de julho de 2015. Um bom dia.”. Foi com esse texto que o jornal Extra apresentou a capa da edição do dia na sua página do Facebook.

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Figura 1 - Edição de 08/07/2015 do jornal Extra, p.1.2

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GNARUS - 172 Essa capa foi ganhadora do Prêmio ExxonMobil (antigo prêmio Esso) daquele ano e a cobertura como um todo suscitou uma série de questões. O caso apresentado na primeira página é o do assassinato de Cleidenilson Pereira da Silva em São Luís (MA) – jovem negro de 29 anos, suspeito de tentar assaltar um bar, rendido, despido, atado a um poste e linchado até a morte – por uma massa simultaneamente amorfa e reconhecível (pessoas comuns). Não se trata da primeira vez em que a violência contra corpos negros ou até mesmo a indignação contra essa violência é abordada pelo jornal Extra, que consideramos marcado pela tipologia de notícias “jornalismo de sensações” (BARBOSA, 2004). Caracterizada pela centralidade das imagens e forte carga descritiva, que apela a sensações físicas e psíquicas (BARBOSA, 2007, p. 216), trata-se de uma narrativa que apela ao imaginário, estabelecendo eixos discursivos com as sensações do leitor, invocando os mais variáveis sentidos físicos (BARBOSA, 2004). Conforme análise mais detalhada de Fontella e Barbosa (2017), essa primeira página traz elementos marcantes. Na gravura de 1815 do artista parisiense Jean-Baptiste Debret (1768-1848), uma audiência diversa assiste com ar de “impotência” a aplicação de um castigo por um escravo, fazendo as vezes de feitor,3 contra outro. Trata-se de um dia como outro qualquer “na rotina de corretivos que poupavam ‘apenas ‘os homens de sangue azul, juízes, clero, oficiais e vereadores’, denuncia o texto que legenda a capa” (FONTELLA e BARBOSA, 2017, p. 4). É inegável que grande parte do nosso conhecimento acerca da América Portuguesa está diretamente

ligado aos retratos de Debret que “povoam o imaginário popular brasileiro, no que diz respeito ao reconhecimento [...] do período da escravidão no país” (idem). Em outro retrato da vida real, porém contemporâneo, imediatamente abaixo do desenho, encontramos um patíbulo da atualidade, um tronco da modernidade. Atado a um poste que parece ser de energia elétrica, jaz outro corpo de um jovem negro, despido e seviciado, mas, dessa vez, sem vida. Uma plateia também é mostrada na fotografia, “mulheres e homens, jovens e idosos [...], como se esperassem pelo ônibus que está demorando a chegar [...]” (FONTELLA e BARBOSA, 2017, p. 4). Para demarcar com ainda mais clareza seu posicionamento, o Extra apresenta o seguinte texto na primeira página: Os 200 anos entre as duas cenas acima servem de reflexão: evoluímos ou regredimos? Se antes os escravos eram chamados à praça para verem com os próprios olhos o corretivo que poupava apenas ‘os homens de sangue azul, juízes, clero, oficiais e vereadores’, hoje avançamos para trás. Cleidenilson Silva, de 29 anos, negro, jovem e favelado como a imensa maioria das vítimas de nossa violência, foi linchado após assaltar um bar em São Luís, no Maranhão. Se em 1815 a multidão assistia, impotente, à barbárie, em 2015 a maciça maioria aplaude a selvageria. Literalmente – como no subúrbio de São Luís – ou pela internet. Dos 1.817 comentários no Facebook do EXTRA, 71% apoiaram os feitores contemporâneos. (Extra, edição de 8 de julho de 2015, p. 1). 4

A exemplo do que já havia feito em outras coberturas - como a do espancamento do adolescente negro no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro (RJ) em 2014, que também foi atado a um poste por uma trava de bicicleta

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GNARUS - 173 - o Extra trouxe novamente a internet para dentro do impresso, mas, dessa vez, para condenar e responsabilizar os autores dos comentários de incentivo à ação violenta, os “sentenciadores”. Em 2014, a internet é mencionada na matéria para fornecer o único contexto a respeito da vítima de espancamento: “Internautas afirmaram que o adolescente praticava roubos e furtos na região do bairro da Zona Sul”.5

O caminho que traçamos para chegar a essa quantidade de três dezenas foi estruturado a partir da ferramenta “nuvem de palavras” (Figura 2). Partimos de um total de 10.153 comentários encontrados no post6 – elencando as primeiras 65 reações verbais exibidas em ordem cronológica, sem diferenciação entre comentários direcionados à foto da primeira página e comentários em resposta a outros usuários da rede.

O entretítulo “As sentenças da rede”, empregado no interior do jornal, acompanhando a cobertura completa do caso, reforça essa ideia de transformar o público leitor em algoz, condenando-o. São expostos 8 comentários retirados de um total de 1.817 analisados pelo jornal: seis indivíduos encorajam em maior ou menor grau a ação (as únicas três mulheres da amostragem se encontram nesse grupo), dois a condenam. Estranhamente, apesar de todas as referências indicadas pela própria cobertura e do uso da palavra “negro” no texto-legenda, nenhum comentário mencionou a questão da cor da pele, da raça, ou sequer da escravidão.

Constatamos então a recorrência marcante de uma palavra que não aparece entre os comentários da retranca: “negro”, terceira palavra mais frequente nesse conjunto de dados. Ao lado de “bandido” (segunda palavra mais frequente) e da conjunção “que” (primeira palavra mais frequente), foram as três palavras mais recorrentes nessa primeira massa de falas. No intuito de compreender essa frequência, bem como a ausência da palavra “negro” na retranca “As sentenças da rede”, restringimos nossa análise aos 30 comentários em que “negro” e “bandido” aparecem.

Cabe então a reflexão: os comentários trazidos pelo jornal na retranca “As sentenças da rede” seriam representativos? O que mais pode ser avaliado ao ampliarmos essa massa de falas extraída do Facebook? Para responder a essa questão, contrastamos duas massas de texto: uma que reuniu os comentários destacados pela retranca “As sentenças da rede” (Figura 3) versus outra com 30 comentários extraídos diretamente da publicação na página do Facebook do Extra (Quadro I) que divulgou a capa de 8 de julho de 2015. Figura 2 – Elaboração da autora

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Figura 3 – Destaque da página da edição do jornal Extra de 08/07/2015 (p.3).7

QUADRO I

Comentários colhidos da página do Facebook do Extra a respeito da publicação de 08/07/2015, “Do Tronco ao Poste”

Nº 1

Comentário principal

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Resposta a algum comentário Beatriz Santos: Um lindo bandido desses podia pegar vc ou alguém da sua família, queria ver se vc tbm ia defender. Se a justiça não faz nada o povo tá tão cansado q está agindo com as próprias mãos. Eu sei q estou dizendo pois fiquei órfã de pai quanto eu tinha 4 anos e até hoje minha mãe e eu nunca fomos procuradas por ninguém pra saber como estamos. Bandido safado tem.q.morre msm e pronto. Vai defender vagabundo, então vcs são iguais. Felipe Cabral: Heliana Castro Alves se o estatuto do desarmamento cair, eu posso ter uma arma, você também e muitos outros, todo mundo vai evitar sair arrumando confusão por aí. E o mais importante, bandido vai pensar bem antes de assaltar, hoje tiramos fotos, logo poderemos dar tiro.

Elder Ladeia: LIXOS! Comparar pessoas que eram obrigadas aos trabalhos forçados, à escravidão, com bandidos. Regredimos, sim, vocês da imprensa são o maior exemplo do quanto regredimos, seus idiotas. Karla Patricia: Regredimos se a imprensa tem a coragem de comparar escravidão com bandidos....Ridículos vcs né Vitor Zazenco: Comparem a importância dada a morte de um bandido e a morte de um PM, pelo jornal extra. A capa é de ontem!

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Comentário principal Paulo Ferreira: E o médico que foi covardemente assassinado por jovens NEGROS e FAVELADOS? As meninas que foram covardemente espancadas estupradas? O estudante que foi esfaqueado indo a escola por outro jovem NEGRO POBRE E FAVELADO?Ele não foi espancado por ser negro ou pobre ou favelado,a população já está cansada de sofrer com política de merda,políticos de merda,imprensa de merda!este jovem pobre,NEGRO e favelado está as margens das leis!Se ele está disposto a sair de casa pra roubar e matar,também tem que estar disposto a morrer!Bandido é bandido,independentemente da cor e classe social! Fábio Rodrigues Oliveira : EXTRA vai defender bandido no quintos dos inferno. Ah 200 anos um negro apanhava por ser negro, não compare um bandido com um inocente. Sou contra esse tipo de atitude, mas essa comparação foi ridícula. Leonardo Mataleone: Regredimos. A imprensa naquela época não defendia bandidos como vcs de hoje em dia. Angela Rabello: fala serio,querer comparar escravos com bandidos!!O povo está de saco cheio de tanta impunidade.Essa capa é demagogia pura. Ronaldo Da Cruz Azevedo: Convém ressaltar, que são situações comparativas totalmente diferentes... O negro historicamente era açoitado por rebeldia, negar se a trabalhar, por não concordar desfazer-se de suas famílias e/ou lutar por liberdade. A outra situação decorre de uma situação de roubo, assalto ou crime cometido costumeiramente onde o Governo e’ o grande responsável pela insegurança generalizada em que se instalou no País e nos Estados, oriundo de corrupções refletindo assim num grande crescimento de desigualdades sociais. Desigualdades essas que abrange tantos negros como brancos indistintamente. Não são apenas negros ladrões... Este e’ um País laico e várias raças dentro desse imenso País estão em condições iguais no cometimento de delitos. Quem deveria estar hoje sendo amarrado e açoitado, seriam os Políticos corruptos que nos cercam!!!

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Comentário principal Gutierre Knust: Comparar um escravo que era inocente com um bandido??? Estão incriminando o escravo ou inocentando e protegendo o bandido ? Ou os 2? É.... Ta SERTO .... Afinal estamos no Brasil.... Natália Rodrigues: Podres! E pior que isso não é burrice, é canalhice mesmo, a eterna luta de classes que vocês da mídia querem propagar. Mas o povo não cai nessa armadilha idiota que jornalistinha como vocês querem plantar. Comparar bandido com escravo não rola, meus caros. Gabriel de Almeida: Na realidade mudou muita coisa ! Os valores foram invertidos, policiais são desrespeitados enquanto criminosos são protegidos ! As pessoas se preocupam mais com o que gays podem ou não fazer, se a mulher tem um suvaco escroto cabeludo e etc. O problema do país é os playbozinhos que vivem uma vida de ouro quererem dar uma de socialistas, negro se vitimizando, é tanta merda que deixa o país como está que a preguiça de escrever é gigante ! Só queria realmente ver a ordem e o progresso. Roberto Antonio: o Extra é racista,está insinuando que um ladrão que foi agredido por cidadães não brancos,mas brancos,negros,pardos,amarelos,etcs,é uma vitima do mesmo caso da historia da escravidão, hora onde pode ser tão mau caráter,de um lado temos uma injustiça e a ignorância do outro o cansaço e revolta,um era escravo e outro um homem livre,um tinha suas açoes ditadas o outros ia com as próprias pernas,extra é racista,dizendo que todo negro é ladrão e tem condição de ser

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Salomão Domingos: Evoluímos com certeza. Hoje matamos vagabundos, assassinos, estupradores e latrocidas de qualquer cor, no poste (quando damos a graça de pegar um), e antes açoitavam negros inocentes. O jumento redator da peça ideológica não sabia disso? É lógico que sabia. Sergio Cunha :É muita ignorância comparar o pobre de um escravo que não fez nada a não ser querer lutar pela liberdade com um bandido vagabundo e assassino que só não vitimou pessoas trabalhadoras e de bem porquê a arma falhou. Vão esquerdar pra lá.

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Comentário principal Alan Kanaro Extra vcs sao ridiculos, Essa materia doida mais racista que ja li nos ultimos tempos, fizeram a mesma coisa com um bandido Branco no Rio Grande Do Sul e porque a foto do Branco nao foi publicada ai? Fala serio, que lixo de materia.

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João Victor Ferreira : E depois desses 200 anos. O jornal quer comparar os negros que corriam atrás da liberdade, com um mero bandido q revolta a sociedade. Cris Lira: A que ponto chegamos não é mesmo? Uma mídia manipulada defendendo bandidos e o comparando a época escravatura por ele ser negro? O povo já não aguenta mais e ainda temos que lidar com esse tipo de sensacionalismo barato esquerdista. Lamentável para uma publicação que deveria ser imparcial. Dê a notícia. Apenas. Camila Barros: Vão mudar a foto de perfil em homenagem ao bandido agora??? Povo hipócrita Peterson Paiva: Só esqueceram de mencionar que um era um escravo e o outro um bandido frio e calculista! Fredy Fernandes Bandido bom é bandido morto! Ta com pena leva pra casa Fonte: página do Facebook do Extra8

É impossível narrar o Brasil, sem levar em conta a importância da cor da pele. Ainda que a palavra “negro” ou “negra” não esteja colocada como questão explícita, a tensão racial está sempre presente de uma forma ou de outra. Até porque, como explica o sociólogo Jessé Souza (2017), as categorias podem receber outros nomes hoje em dia, mas as sensações que dirigimos a elas permaneceram: “o ódio ao pobre de hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes” (SOUZA, 2017, p. 67). Importante mencionar o que estamos chamando de “raça” no contexto do nosso trabalho. Segundo as considerações de Lilia Schwarcz em Nem preto, nem branco, muito

pelo contrário (2012), trata-se de um tema que reúne muitas tensões, especialmente no Brasil, onde “inexistem [...] regras fixas ou modelos de descendência biológica aceitos de forma consensual” (SCHWARCZ, 2012, p. 26). Concordamos com a autora quando atesta que, por mais que o termo costume ser travestido no conceito de “cor”, transformando-se em condição passageira e relativa, e já tenha sido desmistificado cientificamente, não podemos abrir mão das implicações sociais que traz (SCHWARCZ, 2012, p. 26-27): Com efeito, raça persiste como representação poderosa, como um marcador social de diferença – ao lado de categorias como gênero, região e idade que se relacionam

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GNARUS - 178 e se retroalimentam – a construir hierarquias e delimitar discriminações. [...] Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreendida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto pertence à ordem das representações sociais – assim como o são fantasias, mitos e ideologias – como exerce influência real no mundo, por meio da produção e reprodução de identidades coletivas. e de hierarquias sociais politicamente poderosas. (SCHWARCZ, 2012, p. 26).

Partindo das considerações de Kabengele Munanga, em seu trabalho clássico Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia (2004), quando comenta sobre o emprego de “raça” no âmbito acadêmico, concluímos ser possível aplicá-lo no nosso trabalho. Trata-se de explicar o racismo, refutando a realidade biológica do termo, [...] na medida em que este fenômeno continua a se basear em crença na existência das raças hierarquizadas, raças fictícias ainda resistentes nas representações mentais e no imaginário coletivo de todos os povos e sociedades contemporâneas. (MUNANGA, 2004, p. 12).

Na obra de Achille Mbembe (2014), o termo raça ganha uma complexidade essencial às reflexões propostas. Traduzido na expressão “razão negra” (que também dá título ao trabalho do autor), o termo é classificado como ambíguo e polêmico, designando simultaneamente modelo de exploração e depredação; paradigma da submissão e das modalidades da sua superação e, até mesmo, um complexo “psiconírico” (MBEMBE, 2014, p. 25). Tudo é explicado no campo da linguagem, em especial, o último aspecto que Mbembe explica citando Frantz Fanon:

[...] a raça é também o nome que deve dar-se ao ressentimento amargo, ao irrepreensível desejo de vingança, isto é, à raiva daqueles que lutaram contra a sujeição e foram, não raramente, obrigados a sofrer um sem-fim de injúrias, todos os tipos de violações e de humilhações e inúmeras ofensas. (MBEMBE, 2014, p. 26).

Trazendo todo esse contexto objetivamente para a realidade brasileira, Jessé Souza (2017) tece outras considerações. Para ele, é possível enxergar a origem da formação da classe média brasileira nos incipientes centros urbanos do Brasil colonial, a partir do início do século XIX. É quando detecta um mecanismo de distinção social que, segundo ele, ainda prevalece: “a distinção em relação aos de baixo” (SOUZA, 2017, p. 66): [...] o processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo, quanto o pária dos mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos queriam se distinguir. (SOUZA, 2017, p. 66).

Souza (2017) está falando sobre um momento de transformações estruturais em curso, chamado de “reeuropeização” em Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre (1936). O excesso de arbítrio do patriarca torna-se limitado, o velho conhecimento com base na experiência, marca das gerações antigas, torna-se sem valor e, acima de todo, sofremos um “impacto verdadeiramente democratizante” (SOUZA, 2017, p. 62) com o advento do mercado e da formação de um aparelho estatal autônomo. Elementos ocidentais e individualistas são revalorizados, as ideias liberais conquistam setores da imprensa e a introdução da

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GNARUS - 179 máquina resume o cerne das mudanças em andamento: A máquina veio desvalorizar a base mesma da sociedade patriarcal, desvalorizando o trabalho muscular e desqualificado do escravo, diminuindo tanto a importância relativa do senhor quanto do escravo, agindo como principal elemento dissolvente da sociedade e cultura patriarcal. (SOUZA, 2017, p. 63-64).

Esse movimento de desvalorização dos dois polos que marcam a sociedade escravocrata acaba valorizando o segmento intermediário que já existia, mas não tinha um lugar definido: “o elemento gestado na família patriarcal ampliada e poligâmica” (SOUZA, 2017, p. 64), o mulato, o mestiço, o agregado. Com isso, novas possibilidades de ascensão e mobilidade social surgiram, independentes da condição inerente da raça, “dentro da complexa ritualística que, como consequência da maior proximidade social entre os diversos estratos sociais que a urbanização enseja” (SOUZA, 2017, p. 65). Surge um elemento diferenciador novo, mais ligado a qualidades e talentos pessoais que a privilégios herdados, esclarece Souza (2017, p. 65). Para Souza (2017, p. 65), esse é o elemento efetivamente democratizante que se apresenta, proporcionando “uma ‘democratização’ que tinha como suporte, ainda, o mulato habilidoso” (idem) e, futuramente, o imigrante europeu, especialmente na região sudeste. Além dessa possibilidade de ascensão social – “de ‘baixo para cima’”, pelo aprimoramento de funções manuais, o que era considerado indigno pelos brancos, aumentando rivalidades e preconceitos (SOUZA, 2017, p. 65-66) -, Souza

acrescenta outra possibilidade, uma “de ‘cima para baixo’”, cujo representante fundamental, poderíamos dizer, seria o “mestiço bacharel” (idem): [...] uma nobreza associada às funções do Estado e de um tipo de cultura mais retórica e humanista do que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão”. (SOUZA, 2017, p. 66).

Esmiuçando o mecanismo de distinção de que fala Souza (2017), importante notar que, para o autor, em primeiro lugar, há poucas mudanças entre o início do século XIX e o período atual. Aliás, para ele, a função social do grupo que chama de “raça condenada” se mantém ainda hoje, passando a chamá-lo de “classe condenada”: que permanece servindo aos grupos incluídos enquanto mecanismo de distinção em duas dimensões. No campo simbólico, proporcionam o prazer da “superioridade” e do mando, enquanto no campo material, constituemse como “classe sem futuro que pode, portanto, ser explorada a preço vil” (SOUZA, 2017, p. 66-67). Traduzindo para o âmbito da nossa pesquisa, é possível dizer, segundo a leitura dos comentários analisados que se trata de um grupo mais do que passível de assassinato, é um grupo que merece o assassinato. Uma pista de que essa visão de mundo já se impunha nos centros urbanos em formação no início do XIX é a “violência das humilhações públicas contra os mestiços que usavam casaca ou luva” (SOUZA, 2017, p. 67) de que trata Souza. Jessé Souza (2017) explica também que a importância da vestimenta se estabelecia naquele momento enquanto elemento de

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GNARUS - 180 diferenciação social. E o vigor com que as pessoas exibiam seus trajes e humilhavam indivíduos pertencentes ao segmento intermediário [...] já demonstram, como uma consequência mesma do acirramento das contradições a partir da competição com indivíduos brancos antes seguros de sua posição, a possibilidade real de ascensão e a contradição entre elementos constitutivos do sistema: um segregador, que exclui classes sociais inteiras, e outro inclusivo, que funciona individualmente. (SOUZA, 2017, p. 67).

Outra questão importante em A elite do atraso (SOUZA, 2017) é a reflexão sobre a flexibilidade do racismo brasileiro. Na incipiente modernização do centro-sul do Brasil (na primeira metade do século XIX), Souza observa que a cor da pele se colocava como um empecilho até certo ponto: “havia formas de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial” e, diferentemente de outros sistemas, abandonamos a dimensão biológica da segregação: nos apoiávamos (e ainda nos apoiamos em certa medida) mais na utilidade social do individuo, do que na sua cor especificamente. Ou seja, cunhamos um “padrão de ascensão social seletiva do mestiço [que] só seria mudado decisivamente com a chegada dos milhões de europeus a partir do fim do século XIX” (SOUZA, 2017, p. 70). Esse é um ponto-chave para Souza (2017), sendo a partir desse momento que apreende a relação entre classe social e raça no Brasil: Ser considerado branco era ser considerado útil ao esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma de se embranquecer, fechada em outros sistemas com outras características. Branco era (e

continua sendo) antes um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais do que a cor de uma pele. (SOUZA, 2017, p. 67).

A cor negra, remetendo a valores diferentes da cultura europeia, “civilizada”, representava o atraso e a incapacidade de exercer as atividades esperadas de um “membro de uma sociedade que se ‘civilizava’” (SOUZA, 2017, p. 71). Para Souza (2017), é esse desejo intenso de modernização, que passa a reinar sobre a sociedade como um preceito básico que unifica todas as diferenças sociais. Além de estabelecer uma “hierarquia social” que vai determinar critérios legitimadores de duas visões: alguns indivíduos são superiores e dignos de privilégios e outros são inferiores e merecedores de sua posição marginal e humilhante (SOUZA, 2017, p. 71). A respeito da flexibilidade do racismo brasileiro, o trabalho da antropóloga Lilia Schwarcz em Nem preto, nem branco, muito pelo contrário (2012) se faz indispensável. Ao estudar os censos realizados no país, a autora identificou que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 1976, no quesito cor, ao contrário do que vinha sendo feito nas demais pesquisas, solicitou resposta espontânea. Como resultado, a Pnad obteve 136 cores diferentes, sendo que 43% das respostas foram diferentes das categorias censitárias – branca, negra, indígena, amarela e parda (SCHWARCZ, 2012, p. 84). Para a antropóloga, esse resultado é uma espécie de minuciamento da categoria parda, até então, um verdadeiro “saco de gatos”, ironiza Schwarcz (2012, p. 83). A complexidade revelada por esse conjunto de respostas que vai de “Acastanhada” à

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GNARUS - 181 “Vermelha”, passando por “Branca-suja”, “Branquinha”, “Quase negra” e “Queimada de sol” confirma a expectativa anunciada pela obra: “No Brasil, a mistura de definições baseadas na descrição da cor propriamente dita e na situação econômica e social teria gerado uma indeterminação” (SCHWARCZ, 2012, p. 84). Essa diferenciação maleável, mutável e relativa, inclusive, está presente desde a época da escravidão, quando se fazia uma distinção semântica entre “negro” que era o escravo insubmisso e rebelde e “preto” que era “o cativo fiel” (idem). Assim como Mbembe (2014), Schwarcz (2012) também se preocupa com a linguagem em si, ressaltando que “definir a cor do outro ou a sua é mais do que um gesto aleatório” é um ato que conecta outros marcadores indispensáveis à conformação das identidades (SCHWARCZ, 2012, p. 88). Um exemplo, explica a autora, é o uso de diminutivo e aumentativo nas respostas “branquinha”, “moreninha” e “morenão”: revela-se um “jogo da intimidade” e, em relação aos negros, reproduz estereótipos relativos à sexualidade, ou seja, marcadores de gênero são adicionados, mostrando a oscilação dos termos em função do sexo (SCHWARCZ, 2012, p. 88-89). Outros dois dados são notáveis na pesquisa de Schwarcz (2012): o grande número de variações em torno do termo “branca” (“branca-melada, branca-morena, branquiça” (SCHWARCZ, 2012, p. 89). “Mais do que uma cor, essa é quase uma aspiração social, um símbolo de inserção social”, atesta a pesquisadora (SCHWARCZ, 2012, p. 89); e o que a autora chama de “situação passageira” (idem): definições como “queimada de praia,

tostada” que [...] sinalizam como no Brasil, muitas vezes, não se é [grifo da autora] alguma coisa, mas se está [grifo da autora]. Ou seja, por aqui a aspiração geral é de que raça não é situação definitiva; por isso o termo cor (mais fluido em seu uso) se generaliza. (SCHWARCZ, 2012, p. 89).

Em suma, Schwarcz (2012) conclui que a informação mais relevante a ser notada é “a subjetividade e a dependência de sua aplicação” (SCHWARCZ, 2012, p. 89). Assim como Jessé Souza (2017), a autora também encontra uma questão relacional vinculada à identificação racial no Brasil: é determinada de acordo com o indivíduo, o lugar, o tempo e o próprio observador. Trata-se de um “uso social da cor”, explica, o que traz um caráter subjetivo ao termo e torna a sua aplicação – em conversas, documentos e na vida privada – um objeto de disputa; assim, “joga-se o preto para o ponto mais baixo da escala social” (SCHWARCZ, 2012, p. 89-90). Isto é, as discrepâncias entre cor atribuída e cor autopercebida estariam relacionadas com a própria situação socioeconômica e cultural dos indivíduos. [...] No país dos tons e dos critérios fluidos a cor é quase um critério de denominação, variando de acordo com o local, a hora e a circunstância. É isso também que faz que ‘a linha de cor’ no Brasil seja, no limite, um atributo da intimidade e do fugidio, na qual se distingue ‘raça oficial’ de ‘raça social’. (SCHWARCZ, 2012, p. 90-91).

Essas teorias explicam, pelo menos em parte, o motivo de tanta virulência despertada pelo uso da palavra “negro” e quando as associamos com as reflexões de Martín-Barbero (1997) acerca da estrutura dramática – que está nas bases do “jornalismo

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GNARUS - 182 de sensações” – também somos capazes de compreender a comparação despertada entre um jovem negro mais facilmente identificado como Traidor e outro jovem negro, no caso, escravizado, momentaneamente identificado como Vítima. O eixo central do melodrama gira em torno de quatro sentimentos básicos – medo, entusiasmo, dor e riso – correspondentes a quatro “situações que são ao mesmo tempo sensações” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 162) – terríveis, excitantes, ternas e burlescas –, personificadas por quatro personagens: o Traidor, o Justiceiro, a Vítima e o Bobo. 9 Refletindo a partir de Lukács, Benjamin, Hoggart, Goimard e Freud, Martín-Barbero (1997, p. 162-163) defende que a intensidade pretendida pelo melodrama só poderia ser alcançada à custa da complexidade, o que força a aplicação de uma estratégia que remete a uma matriz cultural: esquematização e polarização. Trata-se de um processo que esvazia os personagens da trama, convertendo-os em signos sem o peso e sem a espessura das vidas humanas, explica. É nos comentários extraídos da página do Facebook do Extra que os universos do maniqueísmo e do racismo se entrelaçam. Ao interpelar os leitores com o texto-legenda de primeira página que traz a pergunta “evoluímos ou regredimos?”, por mais de uma vez, encontramos respostas, no mínimo, constrangedoras. Cabe lembrar que, nos comentários extraídos pelo próprio jornal (Figura 3), a questão da cor não aparece. Mas na amostragem que recolhemos da página

do Facebook do Extra, mais de 40% falam objetivamente em racismo, “raça” ou “negro”. Ao mesmo tempo em que o jornal parece forçar a reflexão sobre escravidão e racismo, ignora a tensão racial que aparece nos comentários. Tudo indica que o jornal optou por omitir qualquer menção ao tema “racismo” na sua retranca especial “As sentenças da rede”. Essa negação do racismo é um ponto de encontro entre a construção do mundo do texto em adição à construção do mundo do leitor, em uma leitura a partir de Ricoeur (1994, 1995 e 1997). Na percepção desse público, existe um total descolamento entre o período da escravidão e a definição de Cleidenilson como “bandido”, enquanto categoria completamente esvaziada. Tal desconexão pode ser apreendida por meio da distinção entre “negro” e “preto”, lembrada por Schwarcz (2012). Somando às reflexões de Souza (2017), ganha força a ideia de que essa diferenciação tem uma utilidade: garantir a existência de um grupo capaz de proporcionar o prazer da “superioridade” e do mando e que, simultaneamente, pode ser explorado. Em grande parte dos comentários, também encontramos uma crítica expressa à comparação estabelecida pela matéria de primeira página. Prova de que o mundo do leitor não é determinado pelo mundo do texto, por mais que o mundo do texto tente conduzilo. Aliás, as discrepâncias entre: 1) o conteúdo da cobertura, que aborda o tema racismo; 2) a retranca “As sentenças da rede” que se eximiu de expor comentários sobre racismo; e 3) os comentários retirados da página do Facebook do Extra abordarem racismo/raça

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GNARUS - 183 em quase 50% dos casos levam à seguinte conclusão: o veículo não se constrangeu ao chamar seu público de feitor contemporâneo, mas optou por evitar chamá-lo de racista. Angélica Fontella é Doutoranda em Comunicação e Cultura, na linha Mídia e Mediações Socioculturais, pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ); Bolsista CAPES; mestre em Comunicação e Cultura, na linha Mídia e Mediações Socioculturais pela ECO/UFRJ e graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela ECO/UFRJ. Notas: Esta é uma versão modificada de tema abordado pela autora na sua dissertação de mestrado “Cenas de linchamento da imprensa”, defendida em fevereiro de 2019. 1

DO TRONCO AO POSTE. In jornal Extra, 08/07/2015, p. 1. 2

Conforme explicado no texto legenda, no rodapé da primeira página. DO TRONCO AO POSTE. In jornal Extra, 08/07/2015, p. 1.

3

DO TRONCO AO POSTE. In jornal Extra, 08/07/2015, p. 1. 4

RICARDO, Igor; LUCCIOLA, Luisa. “Delegacia vai apurar lesão” In jornal Extra, 04/02/2014, p. 9. 5

Cf. página do Facebook do Extra. Disponível em: https://www.facebook.com/jornalextra/ photos/a.208847352481556/10283394338656 73/?type=3&theater Acessado em: 20/12/2018

6

AS SENTENÇAS DA REDE. In jornal Extra, 08/07/2015, p. 3. 7

Cf. página do Facebook do Extra. Disponível em: https://www.facebook.com/jornalextra/ 8

photos/a.208847352481556/10283394338656 73/?type=3&theater Acessado em: 20/12/2018 Unidos, esses elementos transfiguram-se em quatro gêneros: romance de ação, epopeia, tragédia e comédia (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 162). 9

Referências BARBOSA, Marialva Carlos. Jornalismo popular e o sensacionalismo. Revista Verso e Reverso. XVIII (39) 2004/2. Verso e Reverso. ________________________. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. FONTELLA, Angélica e BARBOSA, Marialva. De “vítimas virtuais” a “feitores contemporâneos”? Potências das notícias sobre linchamentos: a matéria “Do tronco ao poste” do jornal Extra. In 11º Encontro Nacional de História da Mídia, 2017, São Paulo. Anais 11º Encontro Nacional de História da Mídia, 2017. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Portugal: Antígona, 2014. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira [S.l: s.n.], 2004. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus Editora, 1994, tomo I. _____________. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus Editora, 1995, tomo II. _____________. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus Editora, 1997, tomo III. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco. Muito pelo contrário. São Paulo: Claro Enigma, 2012. SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

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Coluna:

EDUCAÇÃO A HISTÓRIA DA FÍSICA CONTADA EM SALA DE AULA: PROPOSTA INTERDISCIPLINAR Por Adílio Jorge Marques

RESUMO: O presente trabalho foi desenvolvido com aproximadamente 280 alunos do 1º ano do Ensino Médio de um colégio particular na cidade do Rio de Janeiro/RJ durante 01 ano letivo completo. Enquanto proposta que foi implementada por 6 anos, sempre na mesma série. A proposta consistiu em discutir, em três partes, os conhecimentos histórico-científicos de seis diferentes épocas: da Antiguidade até os dias atuais. Contudo, foram ultrapassados os aspectos físicos e históricos, acrescentando-se importantes outros, tais como: humano, filosófico, social, moral, político, ético, religioso, artístico, técnico e ambiental, e que permeiam o desenvolvimento da ciência ao longo dos tempos. Buscamos assim estimular o desenvolvimento do pensamento crítico por meio de reflexões sobre questões relacionadas com a ciência e a tecnologia, a sua relação mútua e, ainda, seus benefícios ou malefícios sobre a humanidade e o meio ambiente. O produto final – chamada de 3ª parte - consistiu de representação artística aos professores e colegas de classe que demonstrasse a criatividade, a oralidade e a expressão escrita individual, além da plástica, da organização e da cooperação em equipe. Objetivamos também propor uma nova maneira de chegar à introdução e discussão de tópicos de Física Moderna e Contemporânea (FMC) no âmbito do Ensino Médio. Palavras Chaves: História da Física; FMC; ética; meio ambiente.

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pelos alunos até o fim do projeto); a relação com a religião; e implicações políticas.

Introdução

O

projeto surgiu a partir da solicitação do colégio no sentido de que fosse introduzida de forma interdisciplinar no currículo de todas as disciplinas uma nova abordagem - a humanista, discutindo como um dos principais elementos de pensamento a ética. Buscamos, na Física, usar um paradigma de experiência, reflexão e ação para aprofundar aquilo que intitulamos “Evolução Histórica das Idéias na Física”. O conteúdo foi apresentado a partir do capítulo 09 do livro-texto adotado e que se refere à evolução do conceito de movimento ao longo da História, desde a Antiguidade até Isaac Newton. Texto que apresenta importantes nomes da Física e que normalmente são desconhecidos dos alunos, como, por exemplo, Oresme e Buridan , ambos na Idade Média.

METODOLOGIA Parte I - A Pesquisa Escrita No planejamento anual foram introduzidos elementos que norteariam este trabalho aqui explanado, a começar com a apresentação de elementos básicos de Filosofia, com textos disponibilizados aos alunos sobre ética e o nascimento da ciência. Necessitávamos levantar questões que pudessem tangenciar a Física e a ciência em todas as épocas: a ética; o cientificismo; a relação do conhecimento e da tecnologia com o homem e o meio ambiente (este o mais recorrente dos assuntos trazidos

Os estudantes deveriam realizar de imediato uma pesquisa escrita, com número livre de páginas, sobre os conhecimentos da Física que evoluíram desde a Idade Antiga até a atualidade. Foram divididos em seis grupos de 6 a 7 componentes, dependendo no número de alunos de cada turma. Assim: a) A pesquisa deveria conter minimamente: a biografia das personalidades estudadas; a contribuição científica e filosófica das mesmas; a explicação dos conceitos da Física que marcam o tema do grupo; aspectos político-sociais, morais, éticos, religiosos, artísticos e também que chegaram até nossos dias. Propusemos perguntas que deveriam permear a linha de ideias dos alunos e alunas: O que é o senso comum? Qual o papel da ciência e do cientificismo nas sociedades? Qual a relação com as guerras e a religião? O que as novas tecnologias nos deixam? Ciência central, ciência periférica, ciência marginal: o que são? A relação entre ciência e tecnologia? Como era/é tratada a ética na ciência? b) Deveriam ser entregues com capa como folha de rosto constando o título do trabalho, nome e número dos componentes do grupo. A formatação interna: letra tamanho 12 (Word), espaçamento 1,5. O tipo de letra à escolha do grupo. Constando ainda no final as referências, quaisquer que fossem: sites, livros, apostilas, etc. Os temas foram escolhidos por sorteio de forma que o processo fosse o mais democrático possível. Seguem abaixo, como foram apresentadas pelos professores de

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GNARUS - 186 Física, as divisões temáticas que foram baseadas na forma de apresentação do livro texto do colégio Guimarães e Fonte Boa, Física - Ensino Médio, Mecânica, Cap. 9): 1 – IDADE ANTIGA: Contribuições da Grécia ou da Pérsia, Egito, Babilônia. Arquimedes e suas idéias. Os atomistas gregos. Sócrates e a divisão na Filosofia; os sofistas; a política ateniense. Platão: o idealismo; a Academia. Aristóteles: o Liceu; a lógica; a Física proposta. 2 – IDADE MÉDIA/RENASCIMENTO: Árabes e os textos trazidos; a evolução das práticas alquímicas para a farmácia, a medicina e a química; a matemática; Santo Agostinho e o platonismo; Tomás de Aquino e o aristotelismo; as construções das catedrais medievais e as técnicas. As descobertas marítimas posteriores. 3 – GALILEU GALILEI: As questões científicas com a Igreja; o atomismo galileano; do geocentrismo ao heliocentrismo copernicano; as experimentações de Galileu: foram feitas ou não? Sua importância no pensamento humano; a visão realista da natureza. 4 – ISAAC NEWTON: O resgate de aspectos da Renascença; as revoluções newtonianas com a Mecânica, a Óptica, a Astronomia. O determinismo newtoniano. A Química atual que surgirá com Lavoisier, assim como a Medicina e Farmácia - as ciências naturais em evidência; a relação com a Revolução Francesa e o Iluminismo. 5 – ALBERT EINSTEIN: Seus trabalhos revolucionários de 1905 e 1915; que mudanças causaram no pensamento humano? Suas posições como pacifista, político, religioso. A fuga do nazismo. A participação na questão

atômica na 2ª Guerra Mundial. 6 - FÍSICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA (FMC) / ATUALIDADES CIENTÍFICAS: Utilizar um ou no máximo dois temas, a escolher, tais como: Nuclear; Astronomia; Laser e suas aplicações; tecnologias das comunicações; Física Médica; Nanotecnologia; utilização da Física Quântica; ou outro tema sugerido.

Parte II - Aspectos Humanistas: debate Quando da entrega da parte escrita os estudantes tiveram um debate com o professor da 1ª série do Ensino Médio. Seguiu-se a uma “reflexão-resgate”, baseada inicialmente nas impressões que a pesquisa despertou nos alunos e alunas. Em seguida, buscamos, com algumas questões, manter o debate em uma linha de pensamento. Ou seja, este foi o momento em que eles deveriam pensar não como um “aprendiz de historiador da ciência”, ou “um Físico” (expressões dos discentes), mas como seres humanos inseridos em um mundo pleno de transformações. Destacamos algumas das respostas que consideramos relevantes a este texto: a) Qual a relação entre ciência e tecnologia para você? “Temos que desenvolver de forma consciente, e sem desperdícios, a relação ciência-natureza, assumindo o papel de coresponsáveis pelos seus efeitos sobre todos.” b) Na relação com o meio ambiente, qual o seu papel?

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GNARUS - 187 “A solução não é passar a bola para as próximas gerações, esse é um problema de todos e é atual. Porque não tentar o desenvolvimento sustentável? Evoluir tecnologicamente, preservando o que temos de mais precioso.” c) Qual é a postura do cidadão mundial como beneficiário dos avanços da ciência e da tecnologia? “É dever de cada cidadão preservar a natureza, toda matéria e recursos que ela oferece. É necessário ressaltar que o homem deve inverter os efeitos que causam sérios problemas ao mundo (como o aquecimento global) enquanto essa inversão ainda é possível. Caso a atitude não seja tomada agora, e se não lutarmos por nosso planeta e consequentemente por nossas vidas, podemos acabar sem ter pelo que lutar.” “Enquanto utilitários de seus benefícios ou malefícios científicos resta ainda levantar a voz e denunciar os usos que levam à destruição da vida e da natureza.” d) A ciência é ou não neutra? Ela é verdade absoluta? “A ciência é uma ferramenta importante para o conhecimento. Porém, o desenvolvimento científico tem que ter limites, de acordo com a ética do ser humano. O homem deve usá-la para melhorar o mundo em que vive e não para destruí-lo. A ciência e a tecnologia devem estar a serviço do homem e não o contrário.”

Parte III – As Apresentações Orais Após os grupos se apropriarem dos principais conhecimentos históricos e científicos das variadas épocas, cada grupo apresentou oralmente - e da forma mais criativa possível – o seu tema. A proposta era não repetir – e isso foi muito enfatizado – o trabalho escrito, porém criar novas ideias. Os critérios para avaliação da última parte do trabalho foram antes apresentados aos alunos em fichas distribuídas em sala, e foram os seguintes: - Utilização dos conceitos básicos estudados. - Discussão das reflexões propostas. - Clareza nas informações fornecidas. - Organização do grupo e do trabalho. - Plástica da forma de apresentação escolhida. O tempo para a apresentação foi de aproximadamente 12 minutos, ao final com perguntas e observações feitas pelos colegas e Professor. Objetivou corrigir algum dado histórico ou físico, ou provocar o debate. Neste momento, cada turma consumiu dois tempos de aula para o fechamento de todos os grupos. Conseguimos apresentações com utilização de ferramental da Informática (datashow, além de mostra de links interativos da internet); excelentes grupos com teatro; poesias; músicas; jornal; revistas; cartazes; e a oralidade de cada aluno (pois era obrigatório que todos falassem).

“Há os que deturpam valores fundamentais da humanidade para apenas usufruir seus resultados”.

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GNARUS - 188 DISCUSSÃO Ressaltamos o quanto foi significativo o incentivo provocado nos alunos. Eles acreditaram na proposta, aceitando o desafio conjuntamente e percebendo que o trabalho estava sendo construído paulatinamente por todos. Percebemos mais facilidade, dentre todos os temas abordados, no entendimento e discussão das Leis de Newton, após eles terem compreendido o contexto social e histórico do cientista inglês. As notas finais do bimestre melhoraram significativamente em relação ao 1º semestre (esta foi uma atividade do 3º bimestre), e em uma análise rápida entre os alunos, todos foram unânimes em apontar que estudar a Física pelo viés da sua historicidade - e pelos princípios das ciências humanas – ajudava-os na compreensão dos conceitos físicos envolvidos. Além do entendimento social e contextualizado que as discussões permitiram para que pudessem entender o papel da ciência nos vários momentos da humanidade.

CONCLUSÕES A falta de tempo foi um grande desafio, assim como compatibilizar o projeto com o conteúdo formal, pois o projeto demandou a criação de espaços especiais para discussão. Assim como novas perguntas e interesses pela FMC surgiram após a entrega da parte escrita, quando eles puderam perceber a diferença entre a Física clássica estudada por eles pela ementa escolar, e a Física atual. Um dos mais recorrentes foi o tema Astronomia.

é possível tornar a Física mais próxima da realidade discente, e mais contextualizada, por meio da História. E que a FMC depende apenas dos exames nacionais ou locais para ser recebida pelo Ensino Médio. Consideramos o projeto positivo e enriquecedor para a interdisciplinaridade e a sua implantação no ensino do Brasil.

Adílio Jorge Marques é Professor da UFVJM e colunista da Gnarus Revista de História

REFERÊNCIAS Guimarães, L. A. e Fonte Boa, M. Física - Ensino Médio, Mecânica, Cap. 9, Futura, 2006. Chauí, M. Convite à Filosofia, Ática, 2007. Ronan, Colin A. História Ilustrada da Ciência, 4 vols., Cambridge Univ., Círculo do Livro, 1987. Sovone, O. A. Física Moderna para o Ensino Médio, Nova Didática, 2002. Júnior, D. B. Tópicos de Física Moderna, Companhia da Escola, 2002. Pinguelli Rosa, L. Tecnociências Humanidades, vol. 1, Paz e Terra, 2005.

e

Azevedo, F. As Ciências no Brasil, 2 vols., UFRJ Editora, 1994. Scientific Brasil American – História. A Ciência na Idade Média, Duetto, nº 01, 2005. Scientific American Brasil – Coleção Gênios da Ciência: Aristóteles, Arquimedes, Galileu, Newton, Einstein, Quânticos, A Ciência no Renascimento, A Ciência da Antiguidade; Duetto, 2005/2006.

Este projeto é mais um indício de que Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


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Entrevista

MESTRE BIMBA, DIRETOR DA BANDA HARMONIA DO SAMBA: QUANDO O ARTISTA REFLETE A HISTÓRIA Por Diego da Rocha Viana Muniz

A

banda de Pagode Baiano, Harmonia do Samba, teve auge de popularidade, no final anos 90 e início dos anos 2000. Além dos inúmeros pagodes baianos de sucesso, como Vem Neném, Nova Dança, Desafio, Nossa Paradinha, Destrambelhada, Joga o Laço e Comando; a banda, também, sempre dialogou com outros gêneros musicais. O Harmonia Light, foi um álbum especial só com MPBs, Bossa Nova, Pagode Romântico e outros estilos. Chamam atenção as influências de jazz, merengue, salsa etc., no repertório, que iremos detalhar posteriormente. Numa conversa quase informal que tivemos, eu e Mestre Bimba - baixista e Diretor de Harmonia, da banda – falamos sobre as influências de todos esses ritmos e gêneros em seu repertório. Nascido nos anos 90, e vindo de uma família tradicional musicalmente, fui criado ouvindo

tanto músicas “tradicionais” como jazz, samba de raiz, gafieira, MPB e chorinho – classificados como “música boa” pelos mais antigos da família - quanto músicas mais novas que curtia com pessoas da minha geração. Além de escutar desde a infância e ter pesquisado sobre o Axé Music e o Pagode Baiano durante a minha trajetória universitária; o repertório do Harmonia do Samba, desde o começo, me chamou atenção pelo diálogo que fazia entre o Pagode Baiano (com origens diversas que remetem ao samba de roda, samba-chula e o samba-duro), e outros gêneros/ritmos como a salsa, o merengue, o jazz, ritmos relacionados à MPB etc. Lembro da alegria com que conversava com meus professores da UERJ ao mostrar os naipes de algumas músicas. Samba Merengue, como o nome evidencia, é uma mistura extremamente bem sucedida do Pagode Baiano com o Merengue. Os naipes de Uva e Casa do Harmonia são salsas

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explícitas. A introdução de Deslizando, um jazz. Mas e os naipes de Vem Neném – que se encaixa perfeitamente num jazz acelerado – e Elevador? Assim como outras bandas e estudos, a formação daquela musicalidade mostrava claramente a influência histórica do “Caldeirão de Ritmos” da música soteropolitana, que incluía os mais diversos gêneros.1 Quais seriam as referências musicais dos para tamanha hibridez no repertório? Como bons pesquisadores, vamos às fontes!

DIEGO: Durante as minhas pesquisas, as partes que mais tive dificuldade de entender as influências foram o naipe de Vem Neném, e a introdução de Elevador, no primeiro álbum do Harmonia do Samba. Estava numa livraria quando escutei um naipe de jazz muito parecido. Na hora saí correndo para perguntar à moça do caixa que artista era aquele. Como ela me passou o artista errado, mesmo após buscas incessantes, eu nunca consegui referenciar exatamente a qual jazz esse naipe se assemelhava – faço o solfejo dos “metais”. Você se inspirou no jazz pra compor o refrão de Vem Neném? MESTRE BIMBA: Se houve algum tipo de influência foi inconsciente, porque eu quando fiz a música, o arranjo foi baseado no refrão – começa a cantar “Vem neném, neném, vem neném (...)” – o naipe na verdade é o solfejo do refrão. E quando eu fiz, eu não estava

1 DA ROCHA, 2013.

pensando em outra música, não. Foi uma coisa que “veio”. Eu ficava tocando o cavaquinho – “Tém demquitem, quitem, démquitem quitem” – fazendo uma base assim, aí me veio uma ideia do refrão e a partir do refrão eu desenvolvi o restante da música. O arranjo tecnicamente segue a mesma linha. Mas assim, eu sempre ouvi todo tipo de música. Eu ouço jazz, ouço MPB pra caramba, música africana, música de todo tipo. Sempre ouvi muito! E nessa época foi uma época em que eu estava estudando muito, ouvindo muito música, de modo geral. Então provavelmente pode ter acontecido sim. Inconscientemente isso poder ter acontecido. Mas não foi uma coisa de ter ouvido e feito, assim, não. Tudo o que a gente faz aqui hoje, você de alguma forma absorveu de algum lugar. Mas não foi uma inspiração direta não. Uva foi o mesmo fato. Uva é uma “parada” de salsa – solfeja o baixo e os metais “parapápá pará pá pumpum. Taquitiquita (...)” – eu ouvia muita salsa também nessa época. Ouvia muito Michel Camilo, Juan Luis Guerra... eu ouço de tudo! De tudo, mesmo! Eu comecei tocando Fundo de Quintal, Jovelina essas coisas. Toco até hoje com os amigos! Vira e mexe eu faço um sambinha com os amigos. Comecei a tocar Axé, Novos Baianos, aquela coisa. Quando eu comecei a tocar baixo, violão... enfim! Comecei tocando Axé, mas depois migrei para o samba. Samba mesmo, Partido Alto! E foi aí que iniciamos o Harmonia. O Harmonia começou inclusive nessa linha. Os instrumentos eram repique-de-mão, tantã... nossa maior influência era o Fundo de Quintal. Tinha um grupo que eu tocava antes do Harmonia, chamado Expressão do Samba. A partir do Expressão do Samba que o Roque

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GNARUS - 191 César teve a ideia de fazer o Harmonia, mas antes era samba. Samba mesmo! E os outros instrumentos vieram naturalmente, porque a gente ouvia muito samba de roda, e aí era um pouco de tudo, sabe? Ouvia muito Djavan... a gente ouvia um pouquinho de tudo. Na verdade eu acabei trazendo pra galera esse universo musical. O Harmonia tem influência de tudo quanto é lado. Por isso que nos arranjos das músicas eu sempre coloquei muitas coisas melódicas em muitas divisões, como você falou. De jazz, porque eu ouvi muito jazz também, como John Coltrane, por exemplo. Ouvi muita MPB: Tom Jobim, Chico Buarque que eu ouço até hoje. Djavan nem se fala! É o artista que mais nos inspirou. Todo mundo aqui é muito fã de Djavan! Djavan eu sabia todos os arranjos. Aprendi a fazer arranjo ouvindo o Djavan. Entendi que tinha introdução, uma parte A, uma parte B... e assim eu aprendi a fazer música intuitivamente – porque eu sou autodidata – ouvindo muito esses caras, sacou?! O Harmonia é um grupo popular. Só que o Harmonia não começou com essa ideia de ser popular! A gente fazia música porque a gente gostava de fazer música. E como eu te falei, a gente tinha todas essas influencias. A gente veio tocando sambas, partidos, coisa e tal, e depois foi mudando, porque ouvíamos muito o samba duro. Chama-se samba duro aqui, que é o samba junino, o samba de roda, aqueles bordões de viola... cultura do Recôncavo Baiano. E aí ocorreu essa mistura do samba de lá, com o samba de roda. Trocamos instrumentos, porque o Roque César antes de ir para a bateria, tocava repique-de-mão, exatamente como o Fundo de Quintal fazia com marcação de mão; aí a gente foi trocando. Nós tiramos o repique-de-

mão e botamos repique-de-baqueta. Tiramos marcação tantã e botamos conga. Também influenciado pelo universo próximo da gente, em Salvador, que era o Gera Samba, influência do Terra Samba... falo influência nesse sentido de samba de roda. Antes do Gera Samba ser o É o Tchan, a gente já fazia muito samba de roda, aprendendo muito com eles. Então a gente teve essa influência do samba de roda juntamente com o Axé. O repique, por exemplo, é um instrumento de Axé que foi introduzido no pagode. Assim como o torpedo foi introduzido com o Psirico, mas antes era o surdo do samba, o repique do Axé, congas que é muito tocado na salsa, timbal da Timbalada, do Olodum, foram coisas que a gente pegou. O Harmonia foi pegando um pouquinho de cada coisa. Aliado a isso, todas as influências musicais que tivemos, de jazz, disso, daquilo, nós fomos fazendo esse “Caldeirão”. E como eu disse anteriormente, o Harmonia é uma banda popular porque a nossa música é uma música popular na Bahia, e consecutivamente no Brasil. Mas nunca foi uma coisa de “vamos fazer uma música popular, fácil de fazer, fácil de entender” até porque a gente sempre buscou apurar nossa musicalidade. Chega uma hora em que obviamente você começa a viver de música e abre o mercado em gravadora; vem produção, e tem horas que você tem que pensar comercialmente, porque você sabe que tem que atualizar a sua música, se não você fica pra trás. A gente tem vinte anos de sucesso e tem conseguido conciliar isso, bem. Independente de estar em cima, no meio ou embaixo, às vezes em alta, às vezes nem tanto, mas eu acho que a gente conseguiu manter bem esse papel de atualizar e manter

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GNARUS - 192 nossa música. Não é qualquer banda. A gente tem orgulho de ter mais de vinte anos na estrada. Foi correria! A gente por exemplo, acabou de fazer quatorze shows, em seis dias! Dois shows por dia nos Estados Unidos, ou seja: é bem intenso, e chega uma hora que você tem que pensar também como negócio, sem perder a honestidade e a essência. Eu acho que isso é o mais importante, entende, Diego?

DIEGO: Opa! Se quiser continuar... estou adorando! MESTRE BIMBA: É muita informação, se deixar a gente vai falando! Com certeza você vai ver muita influência de todos os lados. Se eu parar com calma pra ouvir, você vai ver que isso saiu do jazz, aquilo da salsa, do samba, uma melodia de Djavan; um pouco de tudo. Porque eu como Diretor musical e arranjador já escuto, e os caras da banda também escutam pra caramba. Sempre escutaram! E a gente sempre se desafiou a fazer coisas deste tipo. Hoje a gente tem tentado ao máximo se atualizar porque o seu público muda. A menina que tinha vinte anos quando a gente começou, tem quarenta hoje. Quem tinha trinta, está com cinquenta. Quando começou a aparecer na mídia porque o Harmonia tem vinte e seis anos. Ficamos seis anos no anonimato, e em 2000 quando a gente estourou pelo Brasil, que as pessoas começaram a conhecer o nosso trabalho. Então a gente tem que se atualizar, porque vai aparecendo muita coisa, e a música muda. Se você não tentar se atualizar, você fica pra trás. E a gente que depende disso e vive de música tem que estar atento, viu?

Só pra fechar, a gente entende que a nossa música é uma música popular, e muitos não entendem. Entendem que é só mais uma banda que está ali fazendo música pra vender e tal. Na verdade não foi isso. Nosso caso foi o contrário! A gente fazia nosso tipo de música, nossa música é de verdade, porque a gente já fazia isso daí. Eu conheço música, de verdade! Se você citar jazz eu vou te dar vários nomes que eu escuto até hoje. A gente vai falar de música africana, vai falar de música latina, de música instrumental, de MPB... de tudo! Se eu for sentar aqui e falar de MPB, de samba, tudo o que você me falar de samba. Samba é o estilo musical que eu mais tenho propriedade pra falar, pra dizer a verdade! Eu até tenho um grupo de samba: o Samba do Mestre; que a gente toca de vez em quando. Sempre toquei Jovelina, Almir Guineto, Fundo de Quintal pra caramba! Então eu posso sentar e falar de tudo, porque a gente tem influência de todo lado! Mas de fato a nossa música tem uma característica e essência nossa. Tem algo de “verdade” que as pessoas que não conhecem tanto acham que é só mais uma música de mercado. Mas se não fosse uma música de verdade eu acho que não estaríamos aí por vinte anos. Eu sou mais tranquilo, calado. Mas quando se fala de música eu falo muito, mesmo. E volto a dizer, quando se fala de Pixinguinha você não precisa falar nada mais. Você é parente de um dos pilares da música popular brasileira, junto com Noel Rosa, Cartola, Tom Jobim e outros, né? Então não dá nem como comentar sobre Pixinguinha. Dispensa comentários. Parabéns! Que bom você ter nascido de uma família de um maestro tão maravilhoso. E obrigado! Obrigado por ter se interessado por nosso trabalho. É o legado que a gente deixa.

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GNARUS - 193 É o que você escreve hoje que vão ouvir daqui a vinte, trinta anos. A gente nem vai estar aqui mais, mas as pessoas vão entender um pouquinho mais, porque tiveram pessoas que pesquisaram. Nós provavelmente vamos fazer um documentário sobre a nossa carreira porque, de fato, é algo muito extenso. Se a gente for contar como a banda nasceu até hoje, é muita história pra contar. Mas com calma a gente vai fazer. Já estamos idealizando. E é bom que fomenta as pessoas que não conhecem, para gente passar a nossa verdade.

DIEGO: Eu mesmo na família tenho membros mais velhos que são musicalmente mais tradicionais. Sempre tento trazer à tona que vejo influências diversas dos gêneros que eles valorizam, na música de vocês. O Netinho é outro. Aquele CD do Ao Vivo de 1996 (Universal Music) com paralelos na salsa, no chutney de Trinidad e Tobago. Os arranjos... é uma coisa maravilhosa! MESTRE BIMBA: É completamente compreensível a resistência ao nosso tipo de música. O Axé mesmo! O nome Axé foi um termo pejorativo dado por um repórter daqui que gostava de Rock, que acabou “pegando”. Mas por aí você tira que a gente sofreu muito, apesar de ser uma música muito rica! Essa época então - os anos 90 - foi de uma riqueza percussiva! A Timbalada; o Olodum tocou com o Michael Jackson, então não precisa dizer muito. Sem contar a parte harmônica, também. Esse disco do Netinho, que você citou, é um marco. Inclusive a banda era muito boa. Hoje os caras são meus amigos. Naquela época eu “pagava pau”. Já tocava, e tocava

Axé. Para mim aquele CD é muito bom. Para a gente, a música boa é sempre a da nossa época; os arranjos e tal. Pode até ser que sim, eu acho que a música regrediu mesmo à nível de arranjo etc. mas eu também tenho que entender que a música muda, e que eu não posso querer que meu filho sinta a mesma emoção que eu senti ouvindo Djavan, ouvindo Gil, ouvindo o próprio Pixinguinha... ele pode ouvir e receber bem, como pode ouvir e de repente aquilo não passar nada pra ele. Eu tenho que respeitar isso, porque na minha época eu tinha um tio que dizia “música boa era no meu tempo”, que era Nelson Gonçalves, Trio Iraquitan que não me fazia vibrar tanto. Era uma coisa assim “demodê”. Mas é natural porque, para ele, a época dele que era boa. A gente tem que ter um olhar profundo, mas nem sempre nós estamos abertos. Pra eu falar do funk, eu vou ter que olhar mais profundamente, mesmo que eu não goste, eu tenho que ouvir e entender que é uma música de gueto, criada em periferia como a nossa música também é criada em periferia. Nós somos de um bairro humilde de Salvador, que seria uma favela no Rio, e nesses lugares surgem muita coisa natural que as pessoas às vezes não entendem, mas tem uma “verdade” daquele lugar. Se você for analisar com um sentido mais técnico, você terá critérios técnicos. Para as pessoas que estão ouvindo e não entendem de música, elas vão analisar com o coração, e não com a razão. Elas vão ouvir aquilo e dizer se elas gostam ou não. Do nosso primeiro álbum até hoje, a gente sentiu uma necessidade de aprender e evoluir musicalmente. Existia uma simplicidade musical que se aprimorou. Esses arranjos que você fala são todos meus, mesmo. Eu fiz

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GNARUS - 194 todos os arranjos dos três primeiros discos: eu solfejava o naipe, o solo do cavaco... eu solfejava as coisas. Então muita coisa surgiu de fragmentos que eu tinha de várias coisas, inclusive eu tenho um CD instrumental que é um outro lado meu: tem chorinho, tem samba, tem música africana, tem pop... tem um pouco de tudo. Porque ainda que eu use isso no Harmonia, são músicas que eu pude mostrar um outro lado meu que muitos não conheciam. Mas de fato muita gente tem uma rejeição porque pensam que é uma coisa só mercadológica. No caso do Harmonia, nunca foi. Aconteceu de virar uma música popular, mas sempre houve uma “verdade”. Há uma “verdade” ali. Essência de amor naquilo que foi feito.

DIEGO: E sobre a introdução de Elevador? MESTRE BIMBA: Elevador é uma composição de Xanddy, mas os arranjos são meus. O jazz já fazia parte da gente ali – tanto que a gente sempre tocou um pouco disso, então provavelmente você vai encontrar ali. Eu sou autodidata mas comecei a estudar depois, tenho faculdade de música trancada, mas eu estudei bastante sozinho. Do Harmonia, até o sucesso o que eu fazia era autodidata. Tocava muito por intuição. Chega uma hora que você fica limitado, e precisa dar uma estudada, se não você fica pra trás. Mas a ideia sempre foi essa mesmo: trazer elementos de outras músicas e aplicar ali. Eu sempre pensei em fazer.

Diego da Rocha Viana Muniz é Graduado em História pela UERJ (2013), ex-professor da kommun de Sigtuna e Huddinge, bem como da iniciativa privada, na Suécia e atualmente estudante, da Essex University.

Leituras Recomendadas: DA ROCHA, Diego. Que swing é esse?! A Formação Histórica do Caldeirão de Ritmos da Axé Music. Amazon, 2013. GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Ed. 34, 2000. MOURA, Milton. Carnaval e Baianidade. Arestas e Curvas na Coreografia de Identidades do Carnaval de Salvador. Tese de doutorado, UFBA. 2001.

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Articles inside

ENTREVISTA

14min
pages 189-194

COLUNA: EDUCAÇÃO

9min
pages 184-188

discurso histórico

40min
pages 127-143

DIMENOR: um retrato da vida de crianças e jovens moradores de rua

19min
pages 155-165

Renato Lopes Pessanha O SERIADO HISTÓRICO NA CONTEMPORANEIDADE E A EXPERIÊNCIA DO PASSADO Rafael Garcia Madalen Eiras

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pages 144-154

ÁFRICA NA TELA: o uso em sala de aula dos filmes “o último rei da Escócia” e “Hotel Ruanda” para retratar confrontos ocorridos no continente africano no decorrer do séculoXX Edivaldo Rafael de Souza

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DE NORTE A SUL: fundamentalismo religioso e intervenção na política nacional 3

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