CENTRO DE ESTUDOS ALGARVIOS, TRIBUTO A LUÍS GUERREIRO

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CENTRO DE ESTUDOS

ALGARVIOS TRIBUTO A

LUÍS GUERREIRO



BROCHURA PUBLICADA COM NEWSLETTER FMVG N.ยบ 24 | OUT - DEZ 2020


Os textos são da responsabilidade dos seus autores e o uso do Novo Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa é, por isso, uma opção dos mesmos.


A FUNDAÇÃO MANUEL VIEGAS GUERREIRO agradece a generosa colaboração dos autores dos artigos reunidos nesta brochura e da família de Luís Guerreiro. Desde o primeiro momento, todos se envolveram nesta homenagem justa ao «Engenheiro das letras».



TRIBUTO A LUÍS GUERREIRO 1960 - 2017


FICHA TÉCNICA TÍTULO | Centro de Estudos Algarvios, Tributo a Luís Guerreiro ORGANIZAÇÃO | Marinela Malveiro COLABORAÇÕES | Ana Isabel Soares, António Ventura, Artur Barracosa Mendonça, Carlos Guardado da Silva, Filipe da Palma, João Sabóia, José Gameiro, J. J. Dias Marques, Luísa Martins, Maria João Raminhos Duarte, Patrícia de Jesus Palma FOTOGRAFIA | Cedidas pelos autores dos ensaios com autoria identificada sempre que solicitado, espólio CEA, Marinela Malveiro e Telma Veríssimo DOCUMENTOS | Espólio FMVG PRODUÇÃO, PAGINAÇÃO E DESIGN | Marinela Malveiro EDIÇÃO | Fundação Manuel Viegas Guerreiro Povo de Querença, 8100-129 Loulé http://www.fundacao-mvg.pt/ APOIO | Câmara Municipal de Loulé Praça da República, 8104-001 Loulé IMPRESSÃO | Gráfica Comercial Arnaldo Matos Pereira, Lda., Zona Industrial de Loulé Lt. 18, Loulé T. 289 420 200 1.ª EDIÇÃO | Dezembro/2020 DEPÓSITO LEGAL | 478113/20 ISBN | 978-972-99155-8-1 TIRAGEM | 300 exemplares


ÍNDICE

Nota Prévia .................................................................................................................................................11 Nota biográfica Luís Guerreiro: A memória e o amor ao livro ............................................................ 12 Um trabalho imprescindível para o estudo de Portimão e do Algarve Por Maria João Raminhos Duarte ........................................................................................................... 15 A Bibliografia do Concelho de Loulé: Memórias Por João Sabóia ........................................................................................................................................ 21 O Algarve e o Turismo - Um relacionamento complexo Por José Gameiro ..................................................................................................................................... 25 Poesia e comunicação num poema de Pasolini e em três ensaios de António Ramos Rosa Por Ana Isabel Soares .............................................................................................................................. 31 Luís Guerreiro, os livros e a história do Algarve Por Artur Barracosa Mendonça .............................................................................................................. 37 Uma curiosidade sobre o trabalho de Geraldino Brites, pela mão de Luís Guerreiro Por Luísa Martins ....................................................................................................................................... 43 «É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.» (José Saramago) e O Algarve revisitado Por Filipe da Palma ................................................................................................................................... 46 Luís Guerreiro, um rosto do Carnaval de Loulé Por Carlos Guardado da Silva ................................................................................................................ 52 O Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga Por J. J. Dias Marques .............................................................................................................................. 61 Memórias para a história dos livros de Luís Guerreiro: Literatura e Imprensa Por Patrícia de Jesus Palma ..................................................................................................................... 67 Saudades de Luís Guerreiro Por António Ventura ................................................................................................................................. 73 Centro de Estudos Algarvios, Tributo a Luís Guerreiro: Bibliografia .................................................. 78



NOTA PRÉVIA O Tributo a Luís Guerreiro que aqui se materializa num conjunto de 11 ensaios e depoimentos erigidos a partir dos livros da sua colecção particular, pretende homenagear o seu fundador, valorizando o Centro de Estudos Algarvios (CEA). Luís Manuel Mendes Guerreiro (1960 - 2017), bibliófilo e homem de Cultura, reuniu milhares de livros ao longo da vida, constituindo a colecção CEA que se pode encontrar em Querença, aldeia natal do «Engenheiro das letras», na expressão de Joaquim Magalhães. O CEA está alojado na Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG), instituição a que Luís Guerreiro presidiu da primeira hora em que foi criada até à última da sua vida. Porque a designação é mais do que natural e justa, esta valência da FMVG passa a chamar-se Centro de Estudos Algarvios Luís Guerreiro. Três anos após o seu falecimento (Agosto de 2017) e no ano em que faria 60 anos, a FMVG celebra o seu legado convidando várias personalidades ligadas à Cultura para elaborar um breve ensaio e/ou testemunho, revelando um livro ou documento presente no CEA. Os artigos que se seguem reflectem esse espólio e o bibliófilo de memória prodigiosa. Revelam a sua paixão pela história, pela literatura e pelo convívio afectivo em torno das ideias. Evidenciam o coleccionador de livros, valores e amigos. Descubra agora reunidos em papel, os conteúdos científicos, temas, livros, documentos e memórias publicados em suporte digital ao longo dos meses de Agosto e Setembro, com um extra no dia 5 de Outubro, assinalando um dos momentos históricos nacionais de eleição de Luís Guerreiro: a I República. A ordem de apresentação dos ensaios respeita a da sua publicação semanal no site oficial da FMVG, igualmente divulgados no Facebook da instituição e na página virtual do FLIQ — Festival Literário Internacional de Querença, de que Luís Guerreiro foi mentor.


LUÍS GUERREIRO: A memória e o amor ao livro Homem da Cultura, foi e sempre será um dos bibliófilos mais respeitados do Algarve, dentro e fora da esfera académica. Considerado dos poucos com tão abrangente conhecimento da História local e regional, fundou o Centro de Estudos Algarvios, um dos maiores acervos bibliográficos particulares sobre o Algarve. É também seu legado o projecto da Hemeroteca Digital do Algarve (HDA), plataforma que aloja todos os periódicos publicados na região. A HDA integrou o primeiro Orçamento Participativo de Portugal, em 2017. O FLIQ - Festival Literário Internacional de Querença foi outro dos seus grandes sonhos, tornado realidade numa altura em que já se encontrava doente. O evento celebra a cultura sem restrições nem fronteiras, geográficas ou mentais e, todos os anos, leva centenas de pessoas até à sua aldeia natal. Luís Guerreiro começou por frequentar a escola nos Corcitos, a três quilómetros de casa, e cresceu a ouvir o pai e o tio a contar estórias à lareira. Licenciou-se em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico (1981-1986), tendo integrado a equipa do Município de Loulé, recém-licenciado e de regresso ao Algarve. Do sector de Saneamento Básico passou ao Gabinete de Turismo e Desenvolvimento Rural, altura em que foi nomeado adjunto do então presidente Joaquim Vairinhos. No exercício das funções coordenou, por delegação do presidente, vasta actividade no domínio da Cultura. Foi ainda Chefe do Gabinete de Apoio ao Presidente (1997/99), Coordenador do Gabinete de Imprensa (1994 a 2002), Chefe de Divisão de Turismo, Desenvolvimento e Animação (1999/2004), Chefe de Divisão de Cultura (2004/2013) e Coordenador do Gabinete de Eventos, Comunicação e Imagem (2013 a 2017). Paralelamente, dinamizou e participou em diversas actividades em associações socioculturais. Integrou a Comissão Instaladora da Fundação António Aleixo, foi cooperador e presidente da Assembleia Geral da CEUPA – Cooperativa de Ensino Universitário do Algarve, membro da direcção do Círculo Teixeira Gomes e Coordenador Técnico da Candidatura de Sagres a Património da Humanidade. Foi igualmente director, responsável editorial e colaborador assíduo do jornal A Voz de Loulé. Percorreu de forma sagaz os corredores de bibliotecas e arquivos. Fundou uma livraria e apresentou livros. Participou em inúmeras palestras e tertúlias, deu formação, comissariou exposições. Participou em diversos encontros e congressos e publicou inúmeros trabalhos, com destaque para Bibliografia do Concelho de Loulé (em co-autoria com João Sabóia), Loulé no ano da Revolução (XX Aniversário do 25 de Abril) ou Duarte Pacheco – O Edificador. Em 2017, teve honras de abertura da iniciativa do jornal Público, Historiadores Amadores, que distinguiu investigadores reconhecidos pela Academia. A sua memória será sempre presente e o agradecimento eterno pelo precioso, profundo e inquestionável contributo de Luís Guerreiro à Fundação Manuel Viegas Guerreiro, a Querença, ao Algarve e à Cultura.


FOTOGRAFIA: Telma Veríssimo



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Um trabalho imprescindível para o estudo de Portimão e do Algarve Por MARIA JOÃO RAMINHOS DUARTE Historiadora


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om a finalidade de valorizar o acervo do Centro de Estudos Algarvios, recebi da Fundação Manuel Viegas Guerreiro um desafio para que fizesse um ensaio, comentando o livro Portimão de Joaquim António Nunes. Aceitei o repto, feliz por contribuir para a continuação do trabalho do Engenheiro Luís Guerreiro na preservação da história e memória algarvia, mas também porque nos meus estudos eu já me debruçara sobre o regionalismo algarvio, tema muito grato ao nosso Engenheiro; estudara a sua génese e evolução no século XX e, por essas andanças, cruzara-me com Portimão e com o seu autor, Joaquim António Nunes, já em idade muito avançada, mas com uma lucidez e memória excelentes! Descobri-o em Lisboa, num prédio às Amoreiras, e lá fui eu, munida de gravador, entrevistar um dos Grandes do regionalismo algarvio. Surpreendeu-me um homem franzino, de pequena estatura, que se agigantava quando falava de Portimão, do Algarve e da sua «Casa». Joaquim António Nunes nasceu em 1905, em Vila Nova de Portimão, filho de quinteiros no Morgado do Reguengo. Os trabalhos agrícolas ocuparam-no e só começou a aprender as letras aos 13 anos. Fez a segunda classe e iniciou a aprendizagem do ofício de torneiro mecânico na Litografia de Júdice Fialho, o maior industrial portimonense. Nunes, desde cedo, demonstrou grande interesse pelo estudo. Os jornais operários e os livros das associações foram para ele uma verdadeira escola. Este autodidacta leu todos os clássicos que marcaram a sua geração. Nos anos 30, o Algarve atravessava uma grave crise de falta de trabalho, com as fábricas a laborar somente dois ou três dias por semana. A contestação operária fez-se sentir e os companheiros de Nunes foram

presos pela PVDE em finais de 1933. Ele escapou a essa leva, mas temia não escapar à seguinte. Entretanto, o seu irmão arranjou-lhe trabalho em Lisboa e ele mudou-se, em 1934, para a capital, já casado e com dois filhos. Gorada a primeira oferta de trabalho, Nunes concorreu às oficinas da Administração do Porto de Lisboa, tendo sido admitido. Terminou a instrução primária e seguiu o ensino industrial nas Escolas Fonseca Benavides e Marquês de Pombal. Pretendia fazer o Curso de Engenheiro Auxiliar, que não concluiu. Abandonados os estudos, iniciou a sua colaboração nos jornais do Algarve. Nunes continuou a exercer funções na administração do Porto de Lisboa, onde fez a sua carreira ao longo de 40 anos de serviço. Foi chefe dos Serviços de Depósitos e o primeiro a organizar a sua Casa do Pessoal. «O Nunes do Depósito» era conhecido de todos. Em todo o processo da actividade associativa regionalista algarvia, destacara-se Mateus Martins Moreno, um algarvio de Faro. A ele se deveu a concretização do desejo mais antigo dos algarvios, o estabelecimento dum centro na capital: a Casa do Algarve, em 1930. Joaquim António Nunes teve em Moreno um bom mestre e seguiu-lhe os passos. Dominado pela nostalgia do Algarve, Nunes desenvolveu um intenso trabalho no associativismo regionalista. Pensou em ressurgir a Casa do Algarve, que declinara, encerrando paulatinamente a sua actividade no início da década de 40. Nunes foi a figura de proa da refundação da Casa do Algarve; foi o grande entusiasta e organizador; fez a angariação dos algarvios, através da sua inscrição em listas espalhadas por toda a capital, a fim de reunir elementos para nomear uma comissão organizadora, que tomou o nome de Comissão Pró-Organização da Casa do Algarve. Essa comissão debateu as causas que tinham levado à decadência da


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primeira Casa do Algarve, concluindo-se que se dera uma má prova de regionalismo e de associativismo dos algarvios. Nunes trouxe à causa os jornalistas, os escritores, os políticos e todos os algarvios que podiam, de algum modo, ajudar à sua concretização. Nunes iniciou a sua actividade literária ao mesmo tempo que a regionalista e a sua obra constitui uma fonte fundamental para a história e evolução do regionalismo algarvio. Em 1956, Nunes publicou Portimão, o seu primeiro livro, uma elucidativa monografia de Portimão, a sua terra natal. O livro integrou a colecção «Estudos algarvios» da Casa do Algarve e dá-nos um retrato muito completo de Portimão, dos seus lugares, da sua história, da sua cultura, da sua economia e ainda dos homens cuja vida animaram essa terra. É um trabalho imprescindível para o estudo de Portimão e do Algarve, acompanhado de gráficos, tabelas e mapas, feito com grande rigor histórico. Quando deu por terminada a tarefa de ressurgimento da Casa do Algarve, que criou a partir do zero, Nunes publicou o seu sexto livro Regionalismo, Cultura e Turismo (1989), onde nos retrata o movimento regionalista algarvio. Nunes publicara anteriormente Jornais, Homens e Factos de Portimão (1962), onde fez uma inventariação e descrição da imprensa portimonense e dos seus mentores, jornalistas e tipografias. A admiração, uma verdadeira adoração, por Manuel Teixeira Gomes fê-lo publicar o ensaio Da Vida e da Obra de Teixeira Gomes (1976). E são ainda da sua lavra Imagens de Lisboa (1976); Crónicas Intencionais (1991) e Temas do meu Rosário (s.d.). A sua colaboração encontra-se dispersa em muitos jornais de Lisboa, do Porto e Monção e na imprensa regional algarvia. Nunes foi também director e editor de Algarve, o

boletim informativo da Casa do Algarve, em Lisboa. A Casa do Algarve teve sempre instalações «provisórias», deambulando por vários imóveis de Lisboa. Apesar disso, a instituição atravessou tempos áureos, com Joaquim Nunes à frente da sua direcção, promovendo uma vida social e cultural intensa em benefício dos algarvios da capital: exposições, palestras, visitas, comemorações de vultos algarvios e de efemérides, etc. Nunes deu vida à «Casa», granjeando-lhe um prestígio superior às suas congéneres. Por isso, a «Casa» também teve um grande papel no desenvolvimento do Algarve, pois actuou como um verdadeiro lobby para a fundação do Conservatório Regional, do Aeroporto de Faro e da Universidade do Algarve. Como Presidente da Casa do Algarve, Nunes realizou o II Congresso Regional Algarvio, em que se identificaram as necessidades da região e as respectivas soluções. O Estado Novo percebera a força regionalista, pelo que aceitara a existência da Casa do Algarve, tentando, reduzir a sua capacidade interventiva e reivindicativa através da sua normalização e ritualização de cerimónias nacionalistas, onde a região funcionava como uma «mini pátria». Na cortesia das instituições permitidas pela ditadura, o regionalismo foi legitimado, em contexto nacionalista, mas simultaneamente despojado da sua força política e reduzido ao nível simbólico e a pacíficas actividades artísticas, culturais e sociais. No entanto, apesar de a Casa do Algarve se subordinar ao ideário do Estado Novo, a associação deu cobertura a muitos oposicionistas algarvios e divulgou o trabalho de muitos seus associados inimigos figadais do regime ditatorial. Segundo Nunes, a PIDE vigiava atentamente as reuniões da associação regionalista, relatando o facto de muitos dos


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seus sócios serem «subversivos» e os cargos directivos estarem pejados de oposicionistas. Nunes adquiriu larga experiência na direcção da Casa do Algarve, estando à frente de todos os combates pelo Algarve, durante 36 anos. Só quando, em 1981, foi atribuído à «Casa do Algarve» o Estatuto de Utilidade Pública, por que ele tanto lutara, a sua luta regionalista findou. Nunes foi nomeado Presidente Honorário, mantendo-se até à sua morte como o sócio n.º 1 da Casa do Algarve. Por incúria e para desgraça dos algarvios, com ele morreu a sua e a nossa «Casa». MJRD, Julho 2020


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MARIA JOÃO RAMINHOS DUARTE | Nasceu em Moçambique em 1959. É doutorada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem publicado Portimão, industriais conserveiros na 1ª metade do séc. XX; João Rosa Beatriz. Esboço de uma biografia política; José Rodrigues Vitoriano: o «operário construído»; Presos políticos algarvios em Angra do Heroísmo e no Tarrafal, e a sua tese de doutoramento Silves e o Algarve, uma História da Oposição à Ditadura. No âmbito das Comemorações do Centenário da República e do 150.º aniversário de Manuel Teixeira Gomes, colaborou em Portimão e a Revolução Republicana, obra coordenada por José Tengarrinha. Em 2016, no âmbito do 75.º aniversário do Lar da Criança de Portimão, publicou Lar da Criança de Portimão: a utopia de um colo. Tem um vasto currículo, com artigos publicados e conferências no âmbito da História local e regional algarvia contemporânea, nomeadamente sobre os industriais conserveiros, o movimento operário corticeiro e conserveiro, a instituição do Estado Novo, a oposição ao Estado Novo, os movimentos femininos, a educação e assistência, a implantação do regime democrático, além de inúmeros e relevantes contributos biográficos de História Contemporânea algarvia. É investigadora associada do Grupo de Investigação em História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais do IHC, Doutorada integrada do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa e formadora acreditada pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua da Universidade do Minho.



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A Bibliografia do Concelho de Loulé: Memórias Por JOÃO SABÓIA Historiador


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m 1991 a Casa da Cultura de Loulé propunha a mim e ao Luís Guerreiro a tarefa de construirmos uma bibliografia a distribuir durante o I Congresso do Concelho de Loulé, 5 a 7 de abril desse ano. O ano de 1991 foi estimulante e interessante pois correspondeu a um período muito criativo do ponto de vista das ideias e das ações no que respeita às memórias, sejam patrimoniais, ou culturais. Procurava-se, deste modo, através do conhecimento a preservação dinâmica das mesmas e ao mesmo tempo interessar as populações por conhecer essas memórias, procurando-se, assim, contribuir para uma cidadania mais informada, responsável e participativa. Também encontramos esta atmosfera nas «Conclusões» do I Congresso - «Alertar, porque sem conhecimento do que existe não é possível preservar». Na mesma corrente, uma colaboração entre a «Almargem» e a Câmara Municipal de Loulé. A Divisão de Património Histórico, em março de 1991, enviava um convite às associações, Juntas de Freguesias, escolas e individualidades para uma reunião em abril a fim de se tratar da constituição de equipas de estudo no âmbito da história local. Os trabalhos produzidos seriam publicados na revista cultural a editar pelo Arquivo Histórico Municipal de Loulé, o 1.º número da al´-ulyã foi editado em 1992. Foi neste espírito que surgiu o convite para a elaboração de uma bibliografia do concelho, tal como a aceitação do mesmo. O trabalho iniciou-se com a definição do alcance e método, tendo em atenção o reduzido tempo que nos fora atribuído, assim começámos a reunir os textos já publicados e os que se encontravam ainda manuscritos ou dactilografados que tinham Loulé por tema. Ainda pensámos incluir os

jornais, as enciclopédias, e alguma documentação do Arquivo Histórico, no entanto o tempo disponível era insuficiente para tanta ambição. Sobre os documentos do Arquivo foi possível através da minha comunicação Arquivo Histórico Municipal de Loulé: uma instituição de defesa do património concelhio, Atas do I Congresso, 1991, p. 17-24, dar uma ideia geral da documentação. No ano seguinte, 1992, seria publicado o Inventário do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, suplemento do n.º 1 da al´-ulyã. As memórias que tenho de Luís Guerreiro durante este projeto são gratificantes. Numa época em que o Luís começava, a tempo inteiro, a dedicar-se aos temas da cultura e da história, o que reparei imediatamente foi na sua prodigiosa memória, útil na pesquisa de alguma bibliografia mais específica e pouco conhecida. Também verifiquei o enfoque, quase uma obsessão, que tinha pela história, a literatura e o património do concelho de Loulé, aliás, praticamente sobre tudo o que se relacionava com Loulé. Igualmente nas conversas que mantivemos soube da sua vertente de colecionador de publicações, artigos, textos e outros objetos que tinham Loulé por assunto, o que acabou por se tornar num importante repositório para a história e cultura louletana. Por último, esta colaboração também evidenciou um traço da personalidade do Luís que pude ao longo dos anos testemunhar e que registei no texto «Recordando o Luís Guerreiro», 2017. Humanamente, fui aprendendo a reconhecer no Luís o exemplo de alguém, raro, que procurava sempre manter a amizade e criar um bom ambiente à sua volta, em vez de se envolver em questiúnculas vazias que de uma forma, ou de outra, acabam por nos


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envenenar. Talvez, esta sua maneira de estar na vida seja uma das maiores heranças que ele nos deixa. Faro, 23 de julho de 2020

JOÃO SABÓIA | Nascido em 1956 em Évora, licenciado em História e especializado em Ciências Documentais (Arquivo), pela UL. Foi Chefe de Divisão do Património Histórico (1990-1994) e de Bibliotecas e Arquivo Municipal, Loulé (2006-2008); Diretor do Arquivo Distrital de Faro (1994-2004, 2008-2013). Entre outras atividades fez parte da direção do Curso de Especialização em Ciências Documentais, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve (2003–2005). Cientificamente integrou diversos grupos de trabalho tanto em Espanha como em Portugal, exemplo: La imagen de los extranjeros y enemigos durante los conflictos bélicos del siglo XVIII en España y América, apoio do Ministerio de Educación y Ciência de Espanha, HUM2007-60178/HIST. 2007. Para além de formador, também apresentou comunicações em seminários e congressos nacionais e internacionais e tem diversa obra publicada em Portugal e no estrangeiro.



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O Algarve e o Turismo - Um relacionamento complexo Por JOSÉ GAMEIRO Director Científico do Museu de Portimão


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com todo o prazer que aceito o convite da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, para participar nesta iniciativa de reconhecimento e relevância do precioso legado do Luís Guerreiro, prestando igualmente uma merecida homenagem à sua profunda dedicação e generoso contributo, no desenvolvimento e concretização do Centro de Estudos Algarvios, em resultado da sua grande paixão, não apenas enquanto dedicado e atento «colecionador de livros», mas sobretudo como grande «colecionador de valores e amigos». Com ele e na companhia de mais alguns colegas de museus da região algarvia, iniciámos, no último trimestre de 2006, os primeiros passos na procura de uma plataforma museológica de cooperação e partilha, tendente à construção de uma pioneira Rede de Museus do Algarve (RMA), que seria formalmente constituída em Albufeira em 16 de outubro de 2007. E é precisamente dentro do espírito coletivo de contribuir para uma melhor e mais diversificada valorização regional, onde o papel do Luís Guerreiro seria decisivo, que continuamos, desde então, a trabalhar dentro dessa desafiante realidade museológica, tentando acrescentar mais cultura e património a um Algarve demasiado formatado e absorvido pela dimensão turística. Essa foi a razão porque escolhi o número 2 da revista Promontoria Monográfica História do Algarve, intitulada Fragmentos para a História do Turismo no Algarve, como publicação a destacar nesta minha participação em que igualmente o Luís colaborou, dando-nos conta no seu texto da «Primeira ação de propaganda externa do Algarve: A visita de jornalistas ingleses em 1913». Esta segunda publicação, de um total de

três números editados pelo Centro de Estudos em Património, Paisagem e Construção (CEPAC), da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, teve a coordenação de Alexandra Gonçalves, António Paulo Oliveira e Cristina Fé Santos e apresenta-se estruturada em três grandes capítulos temáticos, sendo o primeiro «Património, Cultura e Turismo», seguindo-se «História do Turismo» e finalmente «Infra-estruturas e Turismo». Para além do próprio Luís Guerreiro, colaboraram nessa edição Vítor Neto, Alexandra Gonçalves, José Gameiro, Ana Ramos, João Pedro Bernardes, António Faustino Carvalho, Artur Barracosa Mendonça, Miguel Godinho, Cristina Fé Santos, Ana Lourenço Godinho, Alberto Strazzera, José Gonçalo Duarte, António Correia Mendes, João Romão, João Guerreiro e Paulo M. M. Rodrigues. Através dos vários textos, distribuídos pelos três referidos capítulos temáticos, os seus autores procuraram abordar o Turismo sob uma diversidade de perspetivas, relacionadas com: história, museologia, cultura, património, imprensa, saúde, paisagens, natureza, vias de comunicação, transportes e economia, numa interessante síntese entre as origens, percursos, constrangimentos e expectativas sobre a evolução do Turismo, neste seu complexo relacionamento com o Algarve. A data da sua publicação, em 2015, foi escolhida precisamente para coincidir com as comemorações dos 100 anos do I Congresso Regional Algarvio, realizado no Casino da Praia da Rocha entre 3 e 7 de setembro de 1915, em plena 1.ª Grande Guerra, o qual constituiu uma importante afirmação do regionalismo algarvio, unindo monárquicos e republicanos, acerca dos desafios e graves problemas que condicionavam o


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desenvolvimento da região. O seu lançamento no Museu de Portimão, numa tertúlia especialmente articulada em colaboração com o Grupo de Amigos daquele museu, no qual igualmente se exibia a exposição temporária «1915 - O Despertar do Algarve», sobre esse memorável Congresso Regional Algarvio, acabou por se traduzir num excelente e oportuno momento para uma agradável visita guiada, complementando e valorizando desse modo todo o contexto de uma iniciativa, fortemente inspirada nas problemáticas do turismo da região. O texto da autoria de Luís Guerreiro, integrado nesta edição da Promontoria Monográfica - História do Algarve, dá-nos conta dos preparativos e da organização da primeira ação de propaganda do Algarve, fora do nosso país, realizada através da deslocação de um grupo de jornalistas ingleses. Esta iniciativa surgiria dois anos depois do IV Congresso Internacional do Turismo, ocorrido em Lisboa em maio de 1911, na sequência da frustração então sentida pelas entidades e personalidades algarvias, que viram goradas as suas expectativas de receber no Algarve a visita dos congressistas participantes neste IV Congresso, conforme lhes tinha sido prometido pela Sociedade de Propaganda de Portugal (S.P.P.). Como forma de compensar o Algarve duma tal atitude de abandono e esquecimento, a S.P.P., através do dinâmico algarvio Jaime Pádua Franco, natural de Portimão e sócio-fundador da referida Sociedade, comprometeu-se a incluir a região num futuro roteiro, que viria a ter lugar em 1913, com a vinda do grupo de jornalistas ingleses. A comitiva inglesa acabou por desembarcar no porto de Leixões, em 16 de fevereiro de 1913, percorreu o norte e o centro do país, passando igualmente

por Sintra e Lisboa, tendo chegado ao Algarve no dia 24 de fevereiro. Seguiram-se as receções oficiais e populares ao tão aguardado grupo de jornalistas, tendo estes visitado Portimão, Praia da Rocha, Monchique, Lagos, Praia da Luz, Faro, Estoi e ruínas de Milreu, terminando a sua viagem em Olhão, de onde partiriam no dia 25 para Lisboa. Na sua conclusão, Luís Guerreiro considera bastante positiva esta iniciativa, entre outras desenvolvidas pela Sociedade de Propaganda de Portugal, pelo seu pioneirismo e impacto promocional, tanto para o Algarve como para o país, «porque deu a conhecer no estrangeiro as nossas belezas naturais e riquezas artísticas, no início de uma longa caminhada que conduziu à posição que, hoje, possuímos no contexto do turismo internacional». Obrigado Luís!


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JOSÉ GAMEIRO | Diretor Científico do Museu de Portimão (Prémio Museu Conselho da Europa 2010 e Prémio DASA/Dortmund - Mundo do Trabalho 2011). - É membro fundador da RPM - Rede Portuguesa de Museus (2001) e da Rede de Museus do Algarve (2007), pertence aos órgãos sociais da Comissão Nacional do Conselho Internacional dos Museus (ICOM-Portugal) e do Grupo Coordenador da Rede de Museus do Algarve. - Exerceu entre 2011 e 2019, as funções de júri do Prémio Museu Europeu do Ano (EMYA - European Museum of the Year Award) e Prémio Museu Conselho da Europa (Council of Europe Museum Prize), desempenhando entre 2015 e 2018, o cargo de Presidente do Júri do EMYA, para o qual foi designado pelo European Museum Forum (EMF). - Integra desde 2014, a Secção dos Museus, da Conservação e Restauro e do Património Imaterial (SMUCRI) do Conselho Nacional de Cultura, nomeado na qualidade de «personalidade de reconhecido mérito». - É coordenador do acordo de parceria entre o European Museum Forum (EMF) e o Museu de Portimão. - É membro da Rede COOPMAR, para a cooperação transoceânica, políticas públicas e comunidade sociocultural ibero-americana. Para além das comunicações apresentadas a nível nacional, Europeu e na América do Sul, tem exercido as funções formador e consultor nas áreas da museologia e do património cultural, sendo responsável pela programação de projetos e atividades em parcerias nacionais e europeias do Museu de Portimão. - Mestre em Gestão e Administração do Património Cultural, pela Universidade do Algarve e Licenciado em Artes-Plásticas, pela Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa, tendo estagiado no Musée Dauphinois - Centre du Patrimoine de L’Isère de Grenoble, França.


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Poesia e comunicação num poema de Pasolini e em três ensaios de António Ramos Rosa Por ANA ISABEL SOARES Professora Universitária CIAC – Universidade do Algarve


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m dos manuscritos de Pier Paolo Pasolini, achados depois da morte do poeta às mãos trágicas de um assassino, tem por título «Who is me.» Assim mesmo, numa estranha locução em língua inglesa. Terá sido escrito aquando de uma passagem do poeta italiano por Nova Iorque, no Verão de 1966. «Who is me» tem a forma de uma entrevista de Pasolini a si mesmo: é um relato da sua vida, Nele se pormenorizam episódios concretos e se põe em perspectiva a relação que manteve com os pais, com o irmão assassinado e com um dos seus atores fetiche – Ninetto Davoli (com quem, pouco tempo antes, gravara o filme Passarões e Passarinhos). Tudo, ao longo deste longo poema, são palavras carregadas de sentidos, de informação sobre acontecimentos concretos de uma vida, de mensagens políticas, mensagens que o poeta pretendeu comunicar. Em momentos chave do poema, repete-se o verso «Contei-vos estas coisas / num estilo não poético / para que me não lêsseis como se lê um poeta.» [1] Pasolini parece dizer ao leitor que o estilo poético não serve a comunicação de factos. O poeta narra, ao invés de fazer poesia (coisas que sejam lidas como tendo sido escritas por poetas), para que não desvie o leitor a atenção em direção ao como se narra e se fixe no que é narrado – o certo é que, mesmo abdicando do estilo da poesia para contar «estas coisas,» Pasolini escreveu um poema e nele sentiu a necessidade de incorporar aquele aviso, aquele comentário sobre a linguagem com que narrou. Mas poderá alguma narrativa, que a si mesma se pense e se diga, deixar de ser poesia, produto de labor inventivo, jogo de disposição de forma sonora e visual, e de sentidos? A consciência do verbo sempre deu espaço ao poético, naquilo em que

este parece ser mais autocentrado, autotélico, ensimesmado no jogo formal, assumidamente lúdico. Sabem os grandes poetas que poética e coisa narrada, forma e mensagem são faces de uma moeda só. António Ramos Rosa soube pensar de maneira profunda no valor desta equação quando, no mesmo ano em que Pasolini escrevia aquela autoentrevista, refletiu sobre «o complexo tema da comunicação poética.» «O poeta que não queira comunicar,» diz o escritor português, é o poeta «ilegível,» condenado à «incomunicabilidade» por sua decisão ou por sentença dos leitores que nele não acham o sentido de uma mensagem (p. 17). Mas Ramos Rosa identifica a comunicação como sendo, por natureza, «característica indesmentível da palavra poética» (p. 17) – logo, entende na constituição da palavra poética a presença inelutável da comunicabilidade; e descobre a complexidade do problema quando afirma que «a poesia ... é talvez um ser, ou, pelo menos, um modo de ser» (p. 18). Invocando pensadores como Kenneth Burke, Roland Barthes e, por detrás deles, toda uma tradição teórica que se ocupou do nó em que se emaranham comunicação e poesia, Ramos Rosa – crítico, poeta, mas antes de tudo o mais pensador livre dos conceitos que interroga, desestabilizador de crenças – propõe para a poesia a mesma liberdade, a mesma pluralidade que se subentende nas interrogações dos seus ensaios: «Exigir [à poesia] a clareza conceptual, a univocidade, o primado da denotação sobre a conotação, é, sem dúvida, matá-la porque é arrancá-la à própria complexidade do real que não comporta essa traição esquemática e mortal» (p. 19). Mais afirma: a antinatural exigência significaria «liquidar a comunicação, congelar a vida do acto comunicativo que todo o acto poético


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efectivamente é» (id.). Mas, se «a palavra poética é uma palavra extremamente comunicativa,» o que comunica ela? A pergunta enuncia-a o próprio Ramos Rosa, e a resposta pode o leitor encontrá-la dispersa, jamais como via de sentido único, em momentos também eles dispersos pelos textos, à medida do tempo e do espaço da reflexão: as palavras do poeta-crítico são a deambulação do seu pensar. Aquilo que a poesia não comunica é «a afirmação fácil, porque se ela é uma afirmação do que o poeta logra arrancar à confusão e ao caos, não poderá [...] satisfazer-se com o mero enunciado das certezas superficiais» (p. 15). O que a poesia comunica, então, para Ramos Rosa, é a si mesma, porque, estando liberta do peso das coisas – porque não é coisa, mas palavra –, é livre de o fazer – de comunicar. «Não são as coisas [...] que o poeta nos dá, mas a apresentação delas em novas relações que a palavra poética descobre» (p. 16) – o que a poesia revela, nessa descoberta, é o seu mecanismo, «um processo de equivalências livres que nos vão dando o próprio movimento das relações com esse real redescoberto» (p. 16). Ramos Rosa discorre sobre este carácter livre da poesia, vista a partir do tempo em que o pensa: «A liberdade da linguagem poética moderna» só pode ser entendida «como uma queda na própria realidade da linguagem, como o reconhecimento do vazio da linguagem.» (p. 21). Não preocupa a um poeta com esta consciência a ligação que se estabeleça entre os versos e o que estiver antes ou para lá deles. A poesia surge, precisamente, da quebra dessa ligação, e está nessa quebra não apenas a hipótese do dizer poético, mas o desvelamento do real (ou do que possa pretender ser comunicado): «A ruptura que o acto poético implica é, efectivamente, um descondicionamento do convencionalismo

social, uma desancilose, e daí que, ao distender-se, o real surja ao poeta não como já definitivamente dado, mas como campo total de indefinidas (por definir) possibilidades» (p. 15). O real, a mensagem, o sentido, para Ramos Rosa como para Pasolini, são indícios contingentes da linguagem – na poesia, é esta que funda a existência verbal, é a linguagem que institui a comunicação ela mesma, que existe desprendida do que se quer dizer e que, se diferentemente poderia ser dito, é naquela forma, trabalhada, escolhida, poeticamente disposta, que se diz.

António Ramos Rosa, «a palavra poética e o real,» «o complexo tema da comunicação poética» e «a palavra poética ou a palavra no poema,» in a poesia moderna e a interrogação do real – I, Arcádia, Lisboa, 1979, pp. 15-16, pp. 17-20 e pp. 21-23.

Pier Paolo Pasolini, Poeta de las cenizas, ed. bilingue, tradução de Marcelo Tombetta, DVD ediciones, Barcelona, 2002.

Agosto de 2020

[1] No original, «Vi ho raccontato queste cose / in uno stile non poetico / perche tu non mi leggessi come si legge um poeta.» (p. 58)


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ANA ISABEL SOARES | Doutorada em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa e Professora Auxiliar na Universidade do Algarve, onde tem tido a cargo aulas nas áreas de Literatura Inglesa, Teoria da Literatura, Literatura e Cinema, História do Cinema, Teoria da Imagem, e Estudos Culturais. Fez pós-doutoramento sobre Poesia e Cinema Documental Português (Faculdade de Letras de Lisboa, 2009-2010). Foi uma das pessoas que fundaram, e a primeira presidente da AIM - Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento. É membro integrado do CIAC - Centro de Investigação em Artes e Comunicação. Tem publicado artigos e orientado seminários em várias universidades sobre literatura portuguesa (especialmente, poesia contemporânea) e sobre cinema português.


FOTOGRAFIA: Vasco Célio

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Luís Guerreiro, os livros e a história do Algarve Por ARTUR BARRACOSA MENDONÇA Professor Ensinos Básico e Secundário


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o longo da minha licenciatura em História, na FLUC (1990-1994), comecei a apaixonar-me pela pesquisa e pela investigação de assuntos relacionados com a História do Algarve. Durante esse período comecei a frequentar, durante os períodos de férias, o Arquivo Municipal de Loulé, na época dirigido pelo Doutor João Sabóia e consultava alguma bibliografia na Biblioteca Municipal de Loulé. Comecei a encontrar com alguma frequência o Eng. Luís Guerreiro e a trocar algumas conversas com ele. Já o conhecia, mas ainda não tinha a confiança que viria a ter mais tarde. Numas férias de Verão, salvo erro, em 1999, quando estava a frequentar o Mestrado em História Contemporânea, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ganhei coragem e levei um dos trabalhos que tinha realizado durante a licenciatura para apresentar na Câmara Municipal de Loulé para saber se tinham interesse em publicar o texto sob a forma de artigo. Foi a partir daí que se estreitou a relação com o Eng.º Luís Guerreiro. Em Coimbra, eu tinha encontrado um conjunto de jornais de Loulé e do Algarve, que se encontravam disponíveis e com muita informação para recolher. Começamos a trocar regularmente informação, com telefonemas, com e-mails e encontros em Loulé quando eu vinha a Loulé visitar a minha família. Todo este introito para referir que, a dada altura, foi o Luís que me indicou a obra Evocações, de José Guerreiro Murta (1871-1979). O autor era natural de Loulé, com formação na área do Direito e da Filologia Românica. Como professor, lecionou em vários liceus, tendo sido reitor do Liceu Passos Manuel em Lisboa. Tinha sido uma figura com alguma importância na sua época e tinha deixado uma obra curiosa com apontamentos memorialísticos muito

interessantes sobre o período da I República e algumas das figuras em destaque na região e no País, embora uma personalidade próxima do regime salazarista. Nesse período da minha vida estava a tentar compreender como tinha evoluído a propaganda republicana no Algarve. Foi o «Engenheiro das letras», como intitulou Joaquim Magalhães, que acabou por me oferecer a obra em causa em ano que não consigo precisar. Evocações, foi uma obra publicada em edição do autor, impressa em Lisboa, em 1970, com 468 páginas, tendo como depositário a Livraria Sá da Costa. O autor organizou a obra em quatro partes: a Vida Estudantil, o Labor Didáctico, as Lides Sociais e os Perfis do Natural. A primeira parte ocupa 130 páginas e nelas vêm referências curiosas, embora pessoais, a algumas das figuras conhecidas do Algarve no início do século XX e como as pessoas sentiram e acompanharam alguns episódios da vida política, económica e social nesse período. Recordo as referências ao professor José Júdice dos Santos, aos advogados João Lúcio Pousão Pereira, Diogo Mascarenhas Marreiros Neto, Carlos Fuzeta, o cónego Manuel Pedro Nogueira, António Caetano Celorico Gil, contando episódios, anedotas e interessantes apontamentos memorialísticos. A segunda parte desta obra centra-se na atividade de Guerreiro Murta como professor em vários liceus pelo País. Começou no Liceu de Gil Vicente, passou pelo Liceu de Passos Manuel, de Setúbal, de Faro e por outros liceus. Estabelece a diferença entre palestra e conferência, as finalidades e processos de cada uma. Refere-se às muitas figuras de professores e intelectuais que conheceu e conviveu nas primeiras décadas do século XX. A descrição prende a atenção do leitor porque encontra referências a dezenas de


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nomes conhecidos da política, da literatura e da ciência em Portugal com quem conviveu e estabeleceu relações mais ou menos próximas. Esta parte ocupa mais cento trinta e nove páginas. As Lides Sociais constituem a terceira parte da obra. Como é óbvio dedica particular atenção aos temas da cultura. Evoca a dedicação e os colaboradores na Casa do Algarve em Lisboa, sobretudo o também algarvio Mateus Martins Moreno, escritor, jornalista e militar. Relembra também a sua passagem pelo Montepio Geral e os elementos dos corpos sociais da instituição, que contou com a presença de várias figuras ligadas ao Algarve, bem como as ações que foi desenvolvendo ao longo dos muitos anos que permaneceu na direção. A passagem pela organização rotária e a boa imagem que teve desta organização internacional. Devido à sua ligação ao movimento rotário foi convidado para integrar o Conselho Superior de Previdência e da Habitação Económica. Transcreve depois excertos de conferências realizadas sobre João Lúcio, Mário Lyster Franco, Ataíde Oliveira e várias outras figuras. Na última parte da obra, intitulada Perfis do Natural, dedica atenção a muitas das personalidades como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, José Maria Rodrigues, David Lopes, Queirós Veloso, Agostinho Fortes, Fidelino de Figueiredo e vários outros. Narra episódios de convivência frequente com algumas personalidades. As situações relatadas e o conhecimento que revela de algumas pessoas mostra a proximidade das relações que estabeleceu ao longo do tempo. A particularidade desta obra é que deu lugar à publicação de uma adenda, com o mesmo título (1976), já publicada em Loulé e que narra a ligação com o pintor Samora Barros onde destaco, se me permitirem, um conjunto de notas muito interessantes não só sobre o

pintor de Albufeira. Descreve também um conjunto de situações e personalidades menos conhecidas, mas que em dado momento estiveram ligados ou passaram pelo Algarve. Esta adenda complementar é muito interessante por estes apontamentos sobre a paisagem, as exposições e pintores que pintaram a região. Uma leitura que se recomenda e pode ser encontrada no Centro de Estudos Algarvios, na Fundação Manuel Viegas Guerreiro, em Querença.


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ARTUR ÂNGELO BARRACOSA MENDONÇA | Natural de Santa Bárbara de Nexe (Faro), residiu em

Loulé até aos 18 anos. Professor do Ensino Básico e Secundário, actualmente a leccionar no Agrupamento de Escolas de Condeixa e aí residente. Investigador integrado do Instituto de História Contemporânea - FCSH UNL, no Grupo Economia, Sociedade e Inovação. Co-responsável pelo blogue Almanaque Republicano. Autor de: 1) «As Associações Operárias do Algarve Durante a I República», Anais do Município de Faro, Faro, 2019, vol. XLI, p.185-233. 2) «Condeixenses na Grande Guerra», Algar. Revista de Cultura, n.º 4, Casa Museu Fernando Namora, Condeixa-a-Nova, 2018, p. 71-82. 3) «A Casa Bancária Manuel Dias Sancho no contexto do Algarve nas primeiras décadas do século XX», 3.º Encontro S. Brás de Alportel: Tradições e Memória, Museu do Trajo, São Brás de Alportel, 17 de Março de 2018. 4) Eleições em Loulé no Final da Monarquia Constitucional (1870-1910), Conferência, Arquivo Municipal de Loulé, 20 de Janeiro de 2018; [aguarda publicação]. 5) «Marçal Pacheco (1847-1896). Um político algarvio do século XIX», Encontro de História de Loulé, 8 e 9 de Setembro de 2017, Auditório do Convento Espírito Santo, Loulé [comunicação]; Publicado em Atas do I Encontro de História de Loulé, Loulé, Câmara Municipal de Loulé/Arquivo Municipal, 2018, p. 233-253.


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Uma curiosidade sobre o trabalho de Geraldino Brites, pela mão de Luís Guerreiro Por LUÍSA MARTINS Historiadora


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á mais de 20 anos, falando com o meu saudoso amigo Pedro Encarnação, veio à colação o médico Geraldino Brites [1] , que trabalhou em Loulé nos primeiros anos do século XX e que publicou um relatório sobre o concelho de Loulé. Lembro-me que na altura procurámos em vão um exemplar desse livro. Na altura era complicado reunirmos condições para se ir a Lisboa procurar um título na Biblioteca Nacional. Recorremos à ajuda de pessoa conhecedora do património e da história do concelho de Loulé, que nos informou que o livro não seria desejado no contexto do regime político instalado após a Primeira República, não só por reação ao seu autor, que se opunha ao regime de Salazar e sofreu um período de prisão, mas também, segundo se dizia, porque «não seria simpático para as gentes louletanas». Desconhecia-se, pois, a existência de algum exemplar do Relatório. Os anos passaram, as pessoas partiram e outros olhares se foram encontrando. Um dia, em conversa com o Eng.º Luís Guerreiro, com quem trabalhei e colaborei, ouço-o falar de Geraldino Brites. Invado-o de perguntas sobre o médico e sobre o trabalho que desenvolvera em Loulé. E eis que o Luís Guerreiro sabia onde se encontrava um exemplar da obra. Debaixo do meu nariz. Mesmo no Centro de Documentação do então Arquivo Histórico, guardado em depósito, e que «desencantara» num daqueles dias em que ali ficava horas a ver título a título. Finalmente consegui ver, tocar e ler o exemplar. Ainda está acessível aos leitores no Centro de Documentação do Museu Municipal de Loulé. Mais tarde, Luís Guerreiro conseguiu adquirir num alfarrabista um exemplar que atualmente consta do fundo do Centro de Estudos Algarvios da Fundação Manuel Viegas

Guerreiro. Penso que esta experiência marca dois aspetos que gostaria de deixar registados. O primeiro, que a obra do médico Geraldino Brites constitui hoje uma fonte documental fundamental para quem queira desenvolver estudos sobre a contemporaneidade do concelho de Loulé e do território algarvio. O segundo, porque esta situação transparece a procura constante de Luís Guerreiro pelo saber e o seu empenho na reunião de material bibliográfico que constitui o que temos hoje: a Biblioteca do Centro de Estudos Algarvios da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. Luísa Martins 31.07.2020

[1] (n. Porto, 25.07.1882-f. Lisboa, 23.08.1941). Em 24 de Abril de 1908 vem residir para Loulé, tendo-se candidatado a um concurso para facultativo médico. Aqui trabalhou até 1910, tendo então desenvolvido estudos que foram publicados mais tarde: - Febres Infecciosas: notas sobre o concelho de Loulé. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1914, 433p. - Clima do Algarve: o inverno. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1916, 138p. É autor de 236 publicações científicas, alguns livros e dezenas de artigos de opinião e de imprensa. Em 1927 foi preso na penitenciária de Lisboa, por suspeita de conspiração contra a ditadura militar. Em 1928 publicou artigos de opinião sobre o Ensino na revista Seara Nova. Foi desenhador e fotógrafo, com mais de cem quadros, desenhos a carvão e fotografias do meio envolvente.


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LUÍSA MARTINS | Trabalha no Serviço de Investigação da Câmara

Municipal de Loulé; doutorada em História / Presença portuguesa em África no século XIX, pela Universidade de Évora; é membro doutorado integrado no Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora; colabora no projeto Diaita da Universidade de Coimbra no âmbito da História Local e da História da Alimentação.


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«É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.» José Saramago Por FILIPE DA PALMA Fotógrafo


FOTOGRAFIA: Filipe da Palma

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FILIPE DA PALMA 1971, Algarve, fotรณgrafo


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pós a leitura da lâmina em papel intitulada ESCLARECIMENTO - à semelhança da frase de Dante em A Divina Comédia: DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS! - que acompanha o livro O ALGARVE REVISITADO (1994), de Jacinto Palma Dias e João Brissos, cada um é livre de continuar, após advertência, por sua inteligência e inquietação, para o imenso trabalho que se nos apresenta ao longo das 109 páginas. Não se trata, de facto, de uma «obra para clientes de agência de viagens nem para algarvios embebedados pela miragem do turismo.» «Dirige-se, sim, a quem queira perceber», sendo que necessariamente terá de acompanhar a narrativa de Jacinto ao longo de uma linha cronológica que não segue a direito, mas ora avançando, ora infletindo, edificando um corpo de texto ao sabor das múltiplas ligações e leituras da existência de elementos vários que dão corpo singular ao território. Um bloco de páginas A4, impresso em papel reciclado, encadernado numa horizontalidade que remete quer para uma gráfica e tangível representação do território, quer para o elemento platibanda. Na capa, figura um motivo oculado que se por um lado poderá afastar do livro a contaminação de um discurso e uma historiografia clássica edificada por lugares comuns, por outro nos chama a mergulhar de cabeça numa viagem que teve seu início há milhares de anos. Logo no início, na primeira página, as palavras arquitectura, supérfluo, decorativo, devaneio, e fantasia surgem como estrelas por onde tirar o azimute da Obra, constituindo-se numa forte possibilidade de navegação/leitura da mesma. À semelhança do território algarvio – singular pela sua diversidade, constituindo-se em torrão policromático e multiforme – O

ALGARVE REVISITADO é obra que utiliza num mesmo plano de importância informação em vários meios. Texto, fotografias, desenho, ilustração complementam-se, criando um corpo de texto consumível não de um trago, mas em pequenas e quase homeopáticas doses, à colherinha, portanto. Escreve-se acerca do território, acerca do ser humano que desde cedo marcou presença em sua paisagem, por ela marcado, mas igualmente como agente modificador da mesma. Dos por cá nascidos e dos que cá chegaram ao longo da História, do encontro de culturas, da assimilação de elementos civilizacionais, cuja incorporação se faz hoje sentir nos ainda tangíveis testemunhos do passado. De um remoto início pré-histórico - mas recuperado em arqueológicas narrativas passando pela presença de tartessos, fenícios, gregos, cartagineses, celtas, romanos, visigodos, árabes, berberes, judeus; trazendo à luz do conhecimento eventos que de um ou outro modo, de forma impactante, mudaram por vezes uma certa imutabilidade, como o foram a Expansão Marítima Portuguesa ou a Grande Depressão; cruzando as informações de uma rica paleta de autores onde constam nomes como os de Orlando Ribeiro, Cristiana Bastos, Teresa Gamito, Fernando Galhano, Victor Gonçalves, Joaquim Romero Magalhães e muitos outros; invocando dezenas de obras onde não se ancora mas onde vai buscar linhas e pensamentos, dúvidas e certezas, Jacinto Palma Dias cria um texto denso e pleno de história. Não se tratará de uma abordagem rememorativa do Passado no sentido de celebração de um ou mais momentos cristalizados no tempo e na história, mas e sim de perceber o intrincado fio da mesma, que se desenvolve num novelo que convoca múltiplos elementos de tantas e variadas


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áreas da acção e do saber humano. O início tem lugar com o reconhecimento de identidade de um povo através da «cumplicidade das formas», sendo esta o elemento invocado ao longo de toda esta revisitação como alicerce/raiz estrutural da coluna que confere singularidade ao povo. É na arquitectura, com forte expressão em seus vários elementos, que recai grande parte da Obra, mas igualmente abarca os motivos pictóricos das embarcações de madeira, a agricultura, o pastoreio, a pesca, a literatura, a economia, a música, a dança, os conflitos sociais, o geometrismo, que marcam presença em tantos e variados suportes. «Aquilo que no entanto se retém, após a viagem agora interrompida neste terminus livresco é a visão de uma cultura ritmada por alternâncias civilizacionais, ora verticalizando as imagens ora horizontalizando as mesmas, ora arredondando os espaços, preenchendoos socialmente, ora esvaziando-os e precarizando os laços humanos, mas ritmos que de um modo ou de outro obedecem ao princípio de que algures um raio luminoso, fulminante, constitui subitamente um atributo do olhar, guindando-o para a esfera superior como órgão do poder, para mais além e muito para além do verbo, o que para quem tem estas gentes do sul por gentes de permanentes algarviadas constitui - sem dúvida - surpresa grande, porque evidencia que apenas pelo silêncio se assoma.» (in O Algarve Revisitado) Uma revisitação que se metamorfoseia em descoberta. Filipe da Palma


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CARLOS GUARDADO DA SILVA | Doutor em História Medieval, pela Universidade de Lisboa, e Agregado em Ciência da Informação, pela Universidade de Coimbra. É Investigador do Centro de Estudos Clássicos e Professor Auxiliar com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde dirige o mestrado em Ciências da Documentação e Informação.


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Luís Guerreiro, um rosto do Carnaval de Loulé Por CARLOS GUARDADO DA SILVA Historiador


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m Apaixonado pelas letras, um fazedor de cultura, um promotor da Região do Algarve (de que a Fundação Manuel Viegas Guerreiro é um meio), um engenheiro do Carnaval de Loulé, como o conhecemos hoje, Luís Guerreiro era tudo isto e, porém, tudo isto é tão pouco para definir o Homem, que conhecemos insuficientemente. Porque insuficientemente se conhece cada Homem, porque insuficientemente cada Homem se dá a conhecer, porque tamanha era a grandeza de Luís Guerreiro, porque o conhecemos apenas em 2015, dois anos antes da sua partida para onde vivem as estrelas e de onde lançam gargalhadas aos foliões do Carnaval. Portugal, teve e tem, muitos Carnavais, com raízes semelhantes no entrudo rural, «civilizado» nas primeiras décadas do século XX, tornado uma festa cívica republicana, de substituição das festas religiosas, que evoluíram, mais tarde, em sentidos distintos. Porém, não são muitos os investigadores, que se dedicam a tempo inteiro, nacional e internacionalmente, ao tema do Carnaval, sendo exceção, em Portugal, António Pinelo Tiza, para a região de Trás os Montes, integrando-o nas festas cíclicas do Inverno Mágico, de que são exemplos, entre outros, os carnavais/entrudos de Lazarim, Podence e Vinhais. Também não são muitos os carnavais portugueses que tenham sido objeto de um estudo, em forma de artigo ou monografia, de que são exempla, não querendo ser exaustivo, os carnavais «civilizados» de Lisboa (1903), Loulé (1906), Loures, Ovar (1952), Porto (1905) e Torres Vedras (1908). Estes são alguns dos muitos carnavais, que são centenários ou quase, remontando a maior parte à década de 80 do século XIX, recriados, quando sobreviveram, na década de 80 do século XX, aproximando-se dos

desfiles e das festas de rua, que conhecemos atualmente. Outros carnavais estão, porém, por estudar: o carnaval de Sines (1926), os carnavais de Estarreja, Mealhada e Figueira da Foz, estes três de influência brasileira, e o Carnaval de Elvas, de influência espanhola. Outros ainda se podem juntar: Arcos de Valdevez, Coruche, Madeira, Nazaré, Olhão e… Sendo um tema tão caro à folia e tão atrativo em termos de gentes, inclusive como produto turístico, era, como continua a ser, parco em investigação e, simultaneamente, do maior interesse o seu estudo. Assim se justifica(va) a organização de um encontro científico sobre a temática do Carnaval, perscrutando a identidade de cada um, mormente quando Torres Vedras projetava a abertura do Centro de Artes, com uma grande parte do projeto dedicado às Artes do Carnaval, com inauguração para breve, e o seu registo patrimonial. Impunha-se realizar um evento, que reunisse especialistas de alguns carnavais nacionais, mas também internacionais, sobretudo, neste caso, dos inscritos (em número de oito) na lista da Unesco do Património Imaterial da Humanidade. Loulé tinha então em curso um estudo aprofundado sobre o Carnaval, um estudo de que só é possível encontrar idêntica dimensão para Torres Vedras e os entrudos transmontanos. Um estudo que saiu nesse mesmo ano de 2015, intitulado Carnaval «civilizado» de Loulé: 1906-1976, de Luísa Martins. Luís Guerreiro conhecia o conteúdo do livro e este Carnaval, porque também investigava, e conhecia como ninguém o Carnaval após 1976, porque o organizava, porque o vivia, porque o sentia como ninguém. Convidámos ambos, tendo apenas sido possível, nessa altura, receber o Engenheiro Luís Guerreiro, o rosto do Carnaval de Loulé, como todos os Louletanos


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sabem, como todos os que estudam e se interessam pelo Carnaval, enquanto manifestação cultural, reconhecem. Conhecer o Carnaval de Loulé era, como é, particularmente importante para a Cultura, para o conhecimento do fenómeno do Carnaval, afinal, muito próximo, nas origens, bem como na sua evolução, do Carnaval de Torres Vedras. Em Torres Vedras, Luís Guerreiro fez uma apresentação oral brilhante, muito bem estruturada e coerente, viva, sem um único apontamento escrito, recorrendo apenas à sua memória, bem como às imagens do carnaval por si visualizadas e vividas. Ele era a imagem, o rosto do Carnaval de Loulé, do qual sem nos ter mostrado uma imagem, o Carnaval de Loulé passou todo ali em imagens. Uns meses depois, já doente, enviou-nos o seu artigo - «Carnaval civilizado de Loulé: da filantropia ao cartaz turístico», que integra o livro Carnaval: história e Identidade, sob a nossa coordenação (Edições Colibri, Câmara Municipal de Torres Vedras e Instituto Alexandre Herculano da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2016), talvez o seu último texto publicado. Carlos Guardado da Silva



Artigo de Luís Guerreiro sobre o Carnaval de Loulé: manuscrito e dactiloscrito. Publicado no jornal A Voz de Loulé e no livro organizado por Carlos Guardado da Silva.


AS BRASAS DE QUERENÇA, 1954


O carro alegórico que desfilou na Av. José da Costa Mealha em 1954, foi concebido e produzido pelo povo de Querença com forte apoio do Padre João de Jesus Martins e das professoras D. Amélia e D. Leopoldina. Durante o desfile, este ocultou as cinco «brasas de Querença» da fotografia acima até passar em frente ao palanque onde se sentavam as mais altas figuras do concelho de Loulé. Recorde-se da esquerda para a direita «as moças» Maria da Ponte Guerreiro (conhecida por Jacinta), Amarília Rita Martins, Maria Fernanda Correia da Ponte, Maria de Lurdes da Silva Ribeiro (conhecida por Lurdes do Pirinéu) e Maria José Guerreiro dos Santos (Zézinha do Altinho, eleita Dama de Honor nesse ano). Do carro «As Brasas de Querença» eram lançados pequenos sacos com serradura com a seguinte inscrição bordada: «Para nós é uma ofensa Dizer-se que há frio em casa, Lá no Povo de Querença, Cada moça é uma BRASA!»



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O Romanceiro do Algarve de Estรกcio da Veiga Por J. J. DIAS MARQUES Professor Universitรกrio


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ebastião Filipes Martins Estácio da Veiga nasceu em Tavira, em 1828, e faleceu em Lisboa, em 1891. Homem de múltiplos interesses, começou por ser poeta, coletor de literatura oral, historiador e até botânico. Mas foi sobretudo enquanto arqueólogo que ficou conhecido. De facto, as escavações que levou a cabo em Mértola e sobretudo no Algarve e as obras que sobre elas escreveu [1] fazem dele um dos pioneiros da arqueologia científica em Portugal. Estácio da Veiga foi também muito importante como coletor de literatura oral, mais especificamente do cancioneiro e do romanceiro, de que fez recolhas no Algarve entre, ao que parece, 1856 e 1858. As versões de canções ficaram todas inéditas, mas o mesmo não aconteceu às de romances, pois, em 1870, publicou o Romanceiro do Algarve. Antes de avançarmos, talvez não seja demais lembrar que, nos estudos de literatura oral, o termo «romance» designa um tipo de poemas narrativos (isto é, que contam histórias, assim se distinguindo dos textos líricos –as canções–, em que o «eu» exprime os seus sentimentos ou ideias, mas não conta nada), formado por versos longos compostos por duas metades de 7 sílabas cada, versos esses que têm a mesma rima, do início ao fim do texto. [2] O termo «romanceiro», por seu lado, designa ou o género literário composto pelos romances ou uma coletânea de romances. O Romanceiro do Algarve, se tivesse sido publicado na época em que foram recolhidos os textos em que se baseia (1856-1858), teria sido o segundo romanceiro português, antecedido apenas pelo Romanceiro de Almeida Garrett (3 vols, 1843-1851). E, além disso, teria sido o primeiro romanceiro regional do nosso país, pois a obra de Garrett inclui versões recolhidas em

várias províncias, enquanto a de Veiga foi pensada, desde o início, como dedicada apenas ao Algarve. Mesmo tendo em conta a data em que foi publicada (1870), a obra de Veiga continua a ser pioneira, pois, antes dela, apenas tinha havido outro romanceiro regional: os Cantos Populares do Arquipélago Açoriano, de Teófilo Braga, publicados em 1869. Nos trabalhos de campo que realizou em várias localidades do Algarve, Estácio da Veiga (ajudado por alguns amigos) conseguiu 100 versões de romances, [3] cujos manuscritos tive a sorte de descobrir no Museu Nacional de Arqueologia, em 1993. Tais manuscritos contêm as versões orais quer da maioria dos romances que Estácio da Veiga publicou no seu romanceiro, quer de muitos outros, não incluídos nessa obra. Em geral, tais versões orais são de boa qualidade, o seu texto foi anotado fielmente por Veiga e muitas delas têm mesmo a indicação do nome do informante e o local de recolha, dados que, por exemplo, Almeida Garrett raramente anotava. Foi com base em parte desse corpus que Veiga formou o Romanceiro do Algarve. Mas, se o trabalho de recolha foi, até segundo os critérios de hoje, bem feito, o mesmo está longe de se poder dizer da metodologia que presidiu ao estabelecimento do texto daquilo que Veiga publicou no Romanceiro do Algarve. De facto, dos 33 romances que ali se incluem, nada mais nada menos que 11 são falsos, tendo sido totalmente inventados por Veiga ou por ele traduzidos de versões espanholas. E mesmo os textos que não são falsos são, normalmente, versões factícias, ou seja, textos compostos por Veiga, com versos que ele retirou de duas ou mais versões que possuía de determinado romance. E, depois, tudo foi retocadíssimo, com inúmeras alterações da sua lavra,


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Centro de Estudos Algarvios, FMVG

incluindo o acrescento de versos que não existiam nas versões orais e que ele inventou. Na introdução que escrevi para a reedição fac-similada do Romanceiro do Algarve que há anos foi publicada, [4] abordei, com algum pormenor, a questão dos retoques introduzidos por Estácio da Veiga. Para cada um dos 33 textos que nessa obra se incluem, expliquei o modo como ele foi formado, enunciando os manuscritos (guardados no Museu Nacional de Arqueologia) em que ele se baseia. Analisei também um dos textos publicados na coletânea, mostrando concretamente como ele foi criado por Veiga, com versos extraídos de duas versões orais. E tentei compreender as razões que levaram Veiga a proceder do modo como procedeu, sem qualquer respeito pelo que recolhera da boca dos informantes. O curto espaço do presente estudo não permite entrar em pormenores, mas, em resumo, podemos dizer que as enormes alterações que Estácio da Veiga introduziu nos textos que publicou têm a ver com ideias nacionalistas e regionalistas correntes na época, que encaravam a poesia oral como a expressão mais genuína da alma de um país ou região. Assim, para não deixar ficar mal

os habitantes desse país ou região, os textos recolhidos, no momento de serem publicados em livro, deveriam ser retocados, corrigindo a sua linguagem e versificação (segundo o modelo da poesia escrita), corrigindo a sua lógica e dando-lhes uma aparência o mais antiga possível. Portanto, a coletânea de Estácio da Veiga, não obstante a época recuada da sua recolha, não apresenta, de modo algum, uma imagem correta do que foi o romanceiro da tradição oral algarvia. Mas, para conhecer tal romanceiro (hoje infelizmente em grande decadência), o leitor interessado tem à sua disposição outras obras fidedignas: o Romanceiro e Cancioneiro do Algarve, de Ataíde Oliveira, [5] e, sobretudo, o Romanceiro Tradicional do Distrito de Faro, de Vanda Anastácio, [6] e os dois volumes do Património Oral do Concelho de Loulé em que há romances. [7] Estas obras devem, sem dúvida, ser preferidas ao Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga, que, hoje, quase só tem um valor histórico, ao permitir conhecer as ideias do Romantismo sobre a tradição oral e sobre o modo de a publicar.


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[1] Memória das Antiguidades de Mértola Observadas em 1877, Lisboa, 1880. Antiguidades Monumentais do Algarve, Lisboa, 1886-1891, 4 vols. [2] Os editores antigos (como Estácio da Veiga) costumavam transcrever os romances em versos curtos, de 7 sílabas, pelo que, nos textos publicados por eles, apenas os versos pares rimam. [3] Neste número, incluo também algumas, poucas, canções narrativas, que, rigorosamente, não são romances, por serem compostas por estrofes, em que a rima muda, em vez de por versos de rima seguida do início ao fim do texto. [4] Faro, Universidade do Algarve, 2005. [5] Publicada inicialmente em 1905, esta obra pode ser mais acessivelmente consultada através da sua reedição fac-similada publicada pela Algarve em Foco (Faro, s. d.). Embora se trate de uma obra antiga (publicada apenas 35 anos depois da de Veiga), o respeito pelos textos orais, tal como terão sido recolhidos, é incomparavelmente maior que o da obra de Estácio da Veiga. [6] Romanceiro Tradicional do Distrito de Faro, vol. I, Madrid, Universidad Complutense de Madrid / Santiago do Cacém, Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 1998 (único volume publicado). [7] Idália Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz e Isabel Cardigos (orgs.), Património Oral do Concelho de Loulé, vol. II: Romances, e vol. V: Vária, [Loulé], Câmara Municipal de Loulé, 2006 e 2013.


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J. J. DIAS MARQUES | Doutorado em Literatura, especialidade de Literatura Oral, pela Universidade do Algarve, onde é professor auxiliar. Desde 1980, tem-se dedicado à recolha e estudo da literatura oral portuguesa, nomeadamente do romanceiro. Sobre este género publicou numerosos artigos e a ele dedicou a sua tese de doutoramento. Nos últimos anos, tem-se dedicado também ao estudo de outros géneros orais, nomeadamente das lendas e do cancioneiro. É coautor do Catalogue of Portuguese Folktales (2006), de Romances Tradicionais do Distrito de Bragança (2019) e d e O C o n t o T r a d i c i o n al P o r t u g u ê s n o s é c . X X I (2 0 1 9 ). Coordena o Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve, dedicado ao estudo da literatura oral.



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Memórias para a história dos livros de Luís Guerreiro: Literatura e Imprensa Por PATRÍCIA DE JESUS PALMA Historiadora do Livro


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O

afastamento do Eng.º Luís Guerreiro do nosso convívio deixou enlutados não só a família e os amigos, mas também os objectos da sua mais dilecta paixão: os livros. Desejados, procurados, lidos ou apenas folheados, uma e outra vez, os seus livros permanecem nas estantes sem o convívio de quem lhes prestou cuidados, os transformou e se transformou pelo seu uso, os inquiriu e desfrutou, de quem tinha, para cada um, a história e as estórias da sua identidade, dos caminhos percorridos até às prateleiras de sua casa ou da biblioteca da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. De entre todos, ergue-se-me na memória o exemplar que terá tido mais protagonismo público nas suas mãos. Refiro-me à Monografia do Concelho de Loulé, de Francisco Xavier d’Ataíde Oliveira, uma espécie de chave de acesso à história da formação da colecção, que Luís Guerreiro apresentava aos frequentadores do Centro de Estudos Algarvios. Já separado da ordem interna da biblioteca, o volume cuidadosamente encadernado dava as boas vindas ao universo intelectual do coleccionador. Felizmente, o Amor aos Livros, em Luís Guerreiro, sendo força cultural, foi pretexto contínuo para aprender e repartir, para conversar e gerar afectos, habituando assim os seus livros e documentos a conhecer o afago de outros tactos. Não estranharão agora novas mãos, novos desejos. Permitir que os seus livros continuem a agir sobre diferentes leitores, será, certamente, das mais belas e justas homenagens a Luís Guerreiro. Conheci-o pessoalmente no ano de 2006, em Faro, a um sábado à tarde, no armazém do livreiro e alfarrabista, Sr. Carlos Simões. Por essa altura, eu frequentava a casa, procurando identificar e descrever os textos literários impressos no Algarve durante os

séculos XIX e XX. O Sr. Simões, como é geralmente conhecido, destinou-me uma pequena mesa de trabalho e permitiu que descrevesse generosamente os espécimes que naquela época apenas localizei na sua livraria e cuja proveniência está devidamente assinalada no catálogo da minha dissertação de mestrado. Diz-se que as livrarias não são obras filantrópicas, mas Carlos Simões tem contrariado este princípio e, por isso, desejo também homenageá-lo, manifestando-lhe o meu sincero reconhecimento e apreço. E nesse dia, como ia dizendo, Carlos Simões tinha outro cliente a explorar as estantes, a quem me apresentou. O Eng.º Luís Guerreiro procurava livros, folhetos ou fotografias para a história do turismo no Algarve [1]. Nessa altura, não era o bibliófilo que eu procurava, era, sim, o bibliógrafo. Foi a Bibliografia do Concelho de Loulé, cuja co-autoria assinou com João Sabóia [2], que abriu as portas ao nosso diálogo. Interessava-me perceber que informações os autores poderiam ter recolhido sobre as tipografias algarvias. Esse elemento não fora colhido, mas ao mesmo tempo que despendeu alguns minutos da sua atenção querendo saber mais sobre a pesquisa, partilhou prontamente, com o seu entusiasmo característico, indicações bibliográficas e o conhecimento pessoal sobre as oficinas e tipógrafos de Loulé. A literatura e a imprensa marcaram desde então as nossas conversas, originando colaborações efectivas em publicações, tais como a Promontoria, n.º 10 [3], Promontoria Monográfica História do Algarve 3 [4], e em projetos colectivos, como a Hemeroteca Digital do Algarve (http:// hemeroteca.ualg.pt/) e o Festival Literário Internacional de Querença (FLIQ: https:// www.facebook.com/Festival-Liter%C3%A1rio -Internacional-de-Queren%C3%A7a1934487873437964). Celebro o tanto que este convívio


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continuamente estimulante me proporcionou, tirando da estante o livro do capitão Vieira Branco: Subsídios para a história da imprensa algarvia: de 1833 aos nossos dias, impresso em Faro, na Tipografia Caetano, em 1938. Trata-se da primeira publicação sistemática sobre a imprensa periódica publicada no Algarve e, embora, com elementos hoje já desactualizados, é um livro de culto para quem se dedica à história do periodismo e das artes gráficas. Livro raro, pois. O seu autor, militar de carreira, ganhou o primeiro vencimento como aprendiz de tipógrafo aos sete anos, na oficina do jornal Progresso do Algarve, em Faro. Fascinado pelo mundo das letras, conheceu pessoalmente quase todos os escritores, jornalistas e tipógrafos algarvios do seu tempo, coligindo informações preciosas

sobre este universo de letrados, só ao alcance de quem as testemunhou ou viveu. Destas, desejo destacar uma história em particular que suscitou o entusiasmo de Luís Guerreiro: refiro-me ao processo do sapateiro «Francisco Pereira Sales», causado pela publicação de um folheto de 20 páginas, intitulado Elementos de Geografia Astronómica, cerca de 1891/1893. No folheto, que o próprio Vieira Branco deu à estampa, o sapateiro declarava «não acreditar em Deus nem no diabo, em santos, bruxas ou labishomens, nos padres e eficácia das orações» (Subsídios, p. 62), acrescentando que, de acordo com a Carta Constitucional, ninguém poderia ser perseguido por razões de religião. Os folhetos, ao contrário das melhores expectativas do seu autor, foram apreendidos logo após a impressão, seguindo-se um processo no Tribunal Administrativo. Nunca mais foram vistos, mas a possibilidade de encontrar um destes exemplares enchia de vibrante e genuína alegria o bibliófilo e investigador algarvio, Luís Guerreiro. Retomemos, pois, os Subsídios para a história da imprensa algarvia e deixemo-nos invadir pela insubstituível alegria da descoberta de um Livro. Patrícia de Jesus Palma, 29 de Setembro de 2020

Pág. 62 de Subsídios para a história da

imprensa algarvia: de 1833 aos nossos dias

[1] Dessa pesquisa resultou o artigo que José Gameiro apresentou neste ciclo de homenagem, que se lê em: http://www.fundacao-mvg.pt/ iniciativas/cea-tributo-a-luis-guerreiro/artigo-lgin-promontoria-monografica-por-jose-gameiro


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[2] Livro apresentado por João Sabóia em: http:// www.fundacao-mvg.pt/iniciativas/cea-tributo-a-luis -guerreiro/a-bibliografia-do-concelho-de-loule-por -joao-saboia [3] PALMA, Patrícia de Jesus (2013) - «Restauração e imprensa no Algarve (1808-1811): um impressor, a independência de duas nações». Promontoria: Revista de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve. Faro: Centro de Estudos de Património e História do Algarve – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve, n.º 10, p. 231-255. [4] Promontoria Monográfica História do Algarve 03. Apontamentos para a História das Culturas de Escrita: da Idade do Ferro à Era Digital. Faro: Centro de Estudos em Património, Paisagem e Construção da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, Dez./2016.


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PATRÍCIA DE JESUS PALMA | Investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades da FCSH/UNL, onde desenvolve temas como a circulação cultural no espaço europeu e transatlântico, a história e o património da imprensa e da edição, ou as relações entre a cultura e o desenvolvimento territorial. É fundadora das marcas Lugar Comum e Moinho d'Ideias, projetos colaborativos que criou para fins de investigação, consultadoria, ação cultural e educativa, fomentando o acesso ao conhecimento e à fruição cultural.



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Saudades de Luís Guerreiro Por ANTÓNIO VENTURA Historiador


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Referência a Luís Guerreiro na pág. 11 do livro de António Ventura


O

meu livro 120 Anos de Maçonaria no Algarve 1816-1936, publicado em 2019 pela editora Sul, Sol e Sal, começa com estas palavras: «Este livro começou a ser esboçado há anos atrás, numa conversa com o engenheiro Luís Guerreiro, que entusiasticamente acarinhou o projecto. Infelizmente, as Parcas não o deixaram ver a sua concretização». De facto, ele ficaria muito feliz se tivesse tido a oportunidade de folher o livro, embora já conhecesse parte dos seu conteúdo que ainda desvendei em diversas palestras e conferências que fiz em várias localidades algarvias. Conheci Luís Guerreiro em Julho de 2007, em Loulé, no Curso Livre de História Contemporânea, «O Algarve no contexto da II Guerra Mundial», onde proferi a conferência «Os Anos 40 à luz dos memorialistas algarvios». Diga-se que o contacto fora estabelecido através da minha antiga aluna, amiga e colega Maria João Duarte. Fiquei de imediato muito bem impressionado pela forma dinâmica e empenhada como Luís Guerreiro olhava e vivia a História em geral e da sua região em particular, embora não tivesse uma formação naquela área, o que, aliás nunca foi condição indispensável para fazer História. Recordemos que alguns grandes historiadores portugueses como Jaime Cortesão, Rainaldo dos Santos e mesmo Leite de Vasconcelos, eram médicos, e que Luís Albuquerque era licenciado em ciências matemática e em engenharia geográfica, mas esse facto não os impediu de se terem distinguido em campos para os quais não tinham uma formação inicial. Ora, Luís Guerreiro, se não frequentou cadeiras de História na universidade, soube compensar essa eventual carência com leituras, com o estudo e o amor à sua pequena pátria de

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Loulé em particular e do Algarve em geral. O engenheiro Luís Guerreiro foi um «amador» da História, no sentido etimológico da palavra. Gosto muito de a usar no seu verdadeiro sentido: amador é aquele que ama, e Luís Guerreiro amava profundamente a sua região e manifestou esse amor por uma dedicação sem limites, pela recolha e inventariação de documentos e outras fontes em especial da época contemporânea – mas não só – e produzindo diversos estudos que são modelares a todos os níveis. Olhou sempre com especial interesse para a I República - época que também tenho estudado - e, por isso, tivemos diversos contactos mesmo antes das comemorações do centenário da proclamação da República. A seu convite, lá fui de novo até terras algarvias, a 15 de Outubro de 2008, para outra conferência, em Loulé, na alcaidaria do castelo sobre «A Maçonaria em Loulé». Comecei nessa época a estudar a Maçonaria no Algarve, com um levantamento das fontes maçónicas disponíveis, mas que tinha que ser complementado com outras informações biográficas, que só a nível local se podiam descortinar. Importava não só fazer o levantamento das estruturas maçónicas algarvias, mas também dos homens e mulheres que as integraram ali ou noutros pontos do território nacional. A conclusão do livro foi sucessivamente adiada por várias razões, a principal das quais foram as solicitações variadas e os compromissos com projectos mais urgentes, alguns até relacionados com efemérides, como o centenário da proclamação da República em 2010. Luís Guerreiro insistia sempre comigo, para que o terminasse e publicasse o trabalho e forneceu-me informações preciosas tanto biográficas como iconográficas, não só referentes a Loulé, mas também a outras localidades algarvias. Recordo a alegria e a surpresa que


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manifestou ao ter encontrado e salvo um conjunto de documentos sobre o Partido Republicano Evolucionista em Loulé… Voltei por diversas vezes àquela cidade para participar em iniciativas de índole cultural. Uma delas incidiu sobre a figura do almirante Mendes Cabeçadas, com uma belíssima exposição e a publicação do volume colectivo José Mendes Cabeçadas Júnior e a Primeira República no Algarve, que ele coordenou e no qual colaborei. Encontrámo-nos em variadíssimas ocasiões, sempre no quadro de interesses comuns, vários, e com os quais nos identificámos. Finalmente, Luís Guerreiro foi a Portalegre – a minha terra natal – como há muito pretendia. Foi a última vez que o vi. Estas palavras pretendem ser uma modesta homenagem ao Homem, ao Estudioso e acima de tudo ao Amigo, com quem partilhava o apego aos ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. António Ventura Professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa


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ANTÓNIO VENTURA | Doutor em Letras (Histórias Contemporânea), com o título de Agregado. Professor catedrático do Departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa. Foi Vice-Presidente do Conselho Científico, Director do Departamento de História, do Centro de História da Universidade de Lisboa, da Área de História da mesma Faculdade e da Revista da Faculdade de Letras. Académico de Número da Academia Portuguesa da História (Cadeira n.º 5). Sócio Efectivo da Academia de Marinha (Classe de História Marítima). É autor de uma vasta bibliografia sobre História Contemporânea.


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TRIBUTO A LUÍS GUERREIRO BIBLIOGRAFIA Branco, Capitão Vieira - Subsídios para a História da Imprensa Algarvia: de 1833 aos nossos dias. Faro : Composto e Impresso na Tipografia Caetano, 1938.

Brites, Geraldino – Febres infecciosas: notas sobre o Concelho de Loulé. Coimbra : Imprensa da Universidade, 1914. Carnaval, história e identidade / XVIII Encontro Turres Veteras... ; coord. Carlos Guardado da Silva. Lisboa : Colibri : Instituto Alexandre Herculano ; Torres Vedras : Câmara Municipal de Torres Vedras, 2016 Dias, Jacinto Palma; Brissos, João - O Algarve revisitado. Lisboa : Festa do Livro, 1994. Guerreiro, Luís - A primeira acção de propaganda externa do Algarve: a visita dos jornalistas ingleses em 1913. In Fragmentos para a história do turismo no Algarve. Faro : CEPAC, UALG: FCHS, 2015. p.135-151 (Promontoria Monográfica = História do Algarve 2). Murta, José Guerreiro – Evocações: vida estudantil, labor didáctico, lides sociais, perfis do natural. Lisboa : Edição do autor, 1970. Nunes, Joaquim António - Portimão. Lisboa : Casa do Algarve, 1956. Rosa, António Ramos - a poesia moderna e a interrogação do real – I. Lisboa : Arcádia, 1979 Sabóia, João; Guerreiro, Luís - Bibliografia do Concelho de Loulé. Loulé : Secretariado do I Congresso do Concelho de Loulé / Casa da Cultura de Loulé, 1991. Veiga, S. P. M. Estácio da - Romanceiro do Algarve. Lisboa : Joaquim Germano de Sousa Neves, 1870 Ventura, António - 120 anos de Maçonaria no Algarve 1816-1936. Loulé : Sul, Sol e Sal, 2019.


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O engenheiro Luís Guerreiro foi um «amador» da História, no sentido etimológico da palavra. Gosto muito de a usar no seu verdeiro sentido: amador é aquele que ama; e Luís Guerreiro amava profundamente a sua região e manifestou esse amor por uma dedicação sem limites, pela recolha e inventariação de documentos e outras fontes em especial da época contemporânea – mas não só – e produzindo diversos estudos que são modelares a todos os níveis. ANTÓNIO VENTURA Historiador Iniciativa de reconhecimento e relevância do precioso legado do Luís Guerreiro, prestando igualmente uma merecida homenagem à sua profunda dedicação e generoso contributo, no desenvolvimento e concretização do Centro de Estudos Algarvios, em resultado da sua grande paixão, não apenas enquanto dedicado e atento «colecionador de livros», mas sobretudo como grande «colecionador de valores e amigos». JOSÉ GAMEIRO Director do Museu de Portimão O Amor aos Livros, em Luís Guerreiro, sendo força cultural, foi pretexto contínuo para aprender e repartir, para conversar e gerar afectos, habituando assim os seus livros e documentos a conhecer o afago de outros tactos. Não estranharão agora novas mãos, novos desejos. Permitir que os seus livros continuem a agir sobre diferentes leitores, será, certamente, das mais belas e justas homenagens a Luís Guerreiro. PATRÍCIA DE JESUS PALMA Historiadora do Livro Em Torres Vedras, Luís Guerreiro fez uma apresentação oral brilhante, muito bem estruturada e coerente, viva, sem um único apontamento escrito, recorrendo apenas à sua memória, bem como às imagens do carnaval por si visualizadas e vividas. Ele era a imagem, o rosto do Carnaval de Loulé.

CARLOS GUARDADO DA SILVA Historiador

www.fundacao-mvg.pt fundacao.mvg@gmail.com Povo de Querença Rua da Escola | 8100-129 | Loulé T. 289 422 607 Outubro de 2020


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