2021 18
LEGENDA
DE MVG: «Lugar
de
Camoio ou Lumupa,
a uns
45 Km
de
Caluquenhe,
região de
Caluquenhe
Família Botha
Outubro de 1957» FOTOGRAFIA:
MANUEL VIEGAS
GUERREIRO SET 19 UERENÇ A O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM HUMANISTA E ANTROPÓLOGO
A FUNDAÇÃO MANUEL
VIEGAS GUERREIRO agradece a generosa colaboração dos autores.
Os artigos reunidos nesta publicação vão além das comunicações apresentadas nos dias 18 e 19 de Setembro de 2021.
O envolvimento de todos/as aqueles/as que se participaram deste retiro científico, na aldeia de Querença foi, desde a primeira hora, inestimável.
Ficou agendada, para daqui a dois anos, uma sequela do Seminário ManuelViegas Guerreiro,opercursoea filosofiadeumhumanista eantropólogo .
Os textos são da responsabilidade dos/as seus/suas autores/as e o uso do Novo Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa é, por isso, uma opção dos/as mesmos/as.
MANUEL VIEGAS GUERREIRO
O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM HUMANISTA E ANTROPÓLOGO
DISTRIBUÍDA COM REVISTAFMVG N.º 30
JUN 2022
PUBLICAÇÃO
MAR
© 2022 FMVG
Fundação Manuel Viegas Guerreiro Rua da Escola, Povo de Querença, 8100 129 Loulé + 351 289 414 213 | fundação.mvg@gmail.com http://www.fundacao mvg.pt/
TÍTULO | Manuel Viegas Guerreiro: o percurso e a filosofia de um humanista e antropólogo COORDENAÇÃO | Marinela Malveiro
COLABORAÇÕES | Adriana Freire Nogueira, Ana de Sousa Prates, Carolina Palma, Diogo Vitorino, Egídia Souto, Francisco Melo Ferreira, Jean Louis Georget, João da Silva Miguel, Luísa Martins, Luísa Monteiro, Lucas Rodrigues, Maciel Santos, Pedro Félix, Richard Kuba
FOTOGRAFIA | Marinela Malveiro e Mário Lino DOCUMENTOS | Espólio FMVG
PRODUÇÃO, PAGINAÇÃO E DESIGN| Marinela Malveiro
APOIO | Câmara Municipal de Loulé IMPRESSÃO | Gráfica Comercial Arnaldo Matos Pereira, Lda., Zona Industrial de Loulé Lt. 18, Loulé T. 289 420 200
1.ª EDIÇÃO | Junho de 2022 ISBN | 978 972 99155 9 8 DEPÓSITO LEGAL | TIRAGEM | 500 exemplares
PREÂMBULO
Da Serenidade Por Luísa Monteiro .............................................................................................................. 11
CAPÍTULO I
Manuel Viegas Guerreiro, o erudito e o popular Dans la bibliothèque d’un savant : regards croisés entre le Portugal, l’Allemagne et la France
Por Jean Louis Georget, Richard Kuba e Egídia Souto ......................................................... 17 Habitat/civilização e os sentidos da existência Viegas Guerreiro a propósito da ideia de “ raça” de Oliveira Martins Por Luísa Monteiro ..................................................................................................................... 27
A filosofia humanista do antropólogo Manuel Viegas Guerreiro Por Egídia Souto ........................................................................................................................ 35
CAPÍTULO II
Manuel Viegas Guerreiro no mundo e entre pares
Intervenção na abertura do seminário internacional de Etnografia Por Adriana Freire Nogueira ..................................................................................................... 53
O conceito de povo em três textos de Manuel Viegas Guerreiro. Uma releitura Por Francisco Melo Ferreira ...................................................................................................... 57
Manuel Viegas Guerreiro, Boers de Angola 1957 Por Maciel Santos e Luísa Martins ............................................................................................ 65
CAPÍTULO III
Documentos históricos e a sua salvaguarda
Manuel Viegas Guerreiro, o arquivo pessoal de um “humanismo essencial” Por Pedro Félix ...................................................................................................................... 73
A conservação da colecção fotográfica Manuel Viegas Guerreiro Por Ana de Sousa Prates ........................................................................................................... 79
CAPÍTULO IV
Pontes de Saber Museu Interactivo Por Carolina Palma, Diogo Vitorino e Lucas Rodrigues ........................................................ 87 Exposição itinerante Boers de Angola, 1957 Fundação Manuel Viegas Guerreiro e CIDEHUS Universidade de Évora ........................ 90 Sessão de encerramento Por João da Silva Miguel ...................................................................................................... 93
Galeria fotográfica final
CONTEÚDOS ................................................................................................... 98
PREÂMBULO
DaSerenidade
LUÍSA MONTEIRO é professora de História do Teatro, de Teorias da Arte Teatral e de Teatro e Comunidade na Escola Superior de Teatro e Cinema. Doutorada em Literaturas Românicas Comparadas, Universidade Nova de Lisboa. Membro do CIAC Centro de Investigação em Artes e Comunicação Universidade do Algarve. Doutoranda em Filosofia Fenomenologia, Universidade de Évora.
Da Serenidade
Luísa Monteiro
Houve um momento no programa do seminário de setembro de 2021 que pontuou o espírito do encontro: a visita, a pé, à Fonte da Benémola. A par do curso da água da ribeira, uma profusão de plantas, de cheiros e sons de insetos, acabou por se instalar em cada caminhante, aumentando lhe o peso nos passos e na lassidão das palavras; fazia calor, o almoço tinha sido talhado da tradição, pelo que só de vez em quando uma frase se ouvia de alguém, um verbo desprendido de um outro, e sempre um sorriso na suspensão da palavra e no direito ao espanto, que é da ordem do silêncio. Era aquela serenidade de que falava Séneca nas cartas a Lúcio e eu, que convenço os meus alunos a terem um caderno para as citações do filósofo, lembrava me a par e passo: “Todo o tempo que passou até ao dia de ontem está extinto. Este mesmo dia que estamos a viver, dividimo lo com a morte”. Por isso disse a Marinela Malveiro de como tudo estava a ser tão precioso naquele encontro, e repeti o mesmo a Luísa Martins. Esta serenidade tinha, de resto, sido instaurada já pela organização e pelos restantes participantes do encontro. E nisso, Heidegger também se abeirava do caminho, lembrando que “somos levados a refletir e a perguntarmos: não faz parte do êxito de uma obra de sucesso o enraizamento no solo de uma nova terra natal?” E isso devolveu me o propósito da presença: Manuel Viegas Guerreiro, o filho pródigo de Querença. Mais de uma dezena de investigadores reuniram se para dar conta de como decorriam os seus trabalhos em torno do legado do antropólogo. Disse me a D. Rosa, proprietária do Café Central, mesmo ao lado da Igreja quinhentista da Aldeia, que o doutor ria muito, era de bom humor e que gostava de ouvir o seu pai, o único homem que sabia ler e escrever e que dali não tinha saído até morrer, pelo que o Estado Novo atribuiu lhe a dura tarefa de regedor da freguesia. O doutor quando ali ia, vindo de Lisboa, não era um homem grave, mas um escutador na sua serenidade habitual. E sorria e prezava a felicidade como um valor que era devido a todos.
Foram dois dias a ouvir os seus registos sonoros, a usufruir das pesquisas em torno dos Bochímanes de Angola, a saber dos livros existentes na sua biblioteca, a ouvir de viva voz a experiência de Lucinda Fonseca (a quem pedi humildemente um autógrafo, porque a si e a Marinela Malveiro devo o nascer do meu novo olhar sobre Viegas Guerreiro) e Francisco Melo Ferreira, alunos que calcorrearam o país com o seu Professor de Etnologia, a visitar o seu espólio e sempre sob o signo da serenidade das mulheres extraordinariamente serenas e atentas que fazem da
* Universidade de
Évora 11
ANTROPÓLOGO
Fundação Manuel Viegas Guerreiro uma potência de conhecimento; sem as garras ferozes da pressa, sem fúria de coisa alguma: guardiãs de um nome, com a capacidade de escuta das sábias de Alexandria e a serenidade das pitonisas de uma Grécia que já não volta, mas que aqui ressoa. Séneca considerava que “não existe o fim de coisa alguma” e que “tudo foi conectado num ciclo; as coisas vêm e vão”, tal como “a noite persegue o dia que persegue a noite, o verão desaparece no outono, o outono é pressionado pelo inverno, que é contido pela primavera. Assim, tudo passa para que possa voltar”. Em Querença sentimo nos fazer parte de algo grandioso: “a serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério dão a perspetiva de um novo enraizamento”, assim confere Heidegger. Essa perspetiva é nos sempre sugerida pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro em cada encontro que faz. Chegada a hora de partir, é em serenidade que o abraço se dá, pois “tudo passa para que possa voltar”. E esta é a grande força das raízes. E parece até, este encanto, mais um exemplo da frase de Viegas, que em Tradição oral e identidade cultural regional, afirma ser a “vida penosa e difícil a do homem da beira serra que não deixava espaço para os sonhos românticos, para a poetização da vida do campo, tão do agrado dos frustrados urbanos, saturados da civilização mecânica, em busca de refúgio puro e saudável”. Mas não. O que se trata, é dessa abertura ao mistério para que se possa alcançar um caminho que conduza a um novo chão, onde as obras imortais possam lançar novas raízes: e para que possam florescer e dar frutos novos. Por instantes fomos plantas no caminho para a Fonte da Benémola; se somos albardeiras, palmeiras anãs ou aroeiras, não importa. Importa que caminhámos e continuamos ao encontro da fonte.
12 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
E HUMANISTA
FOTOGRAFIA: Telma Veríssimo
DA SERENIDADE
Fonte da Benémola
A visita Na Senda da Água foi orientada por Sónia Silva e Ricardina Inácio, técnicas da Câmara Municipal de Loulé
CAPÍTULO I
ManuelViegasGuerreiro oeruditoeopopular nohomemenaobra
JEAN LOUIS GEORGET é professor de civilização alemã e de história da antropologia na Universidade Sorbonne Nouvelle. Responsável pelo programa francês ANR/DFG Anthropos Realiza documentários sobre a história da sua disciplina para a televisão francesa e alemã. Criador do mestrado franco alemão em etnologia e antropologia social na EHESS e na Universidade Goethe em Frankfurt, onde ensina. É membro associado do Instituto Frobenius (investigação em antropologia cultural) na Universidade Goethe em Frankfurt am Main.
RICHARD KUBA é investigador, curador das coleções do Instituto Frobenius na Universidade Goethe em Frankfurt am Main. Responsável alemão pelo programa ANR/DFG Anthropos. Co organiza o mestrado franco alemão em etnologia e antropologia social na EHESS. Foi curador de numerosas exposições no Instituto Goethe em Paris, no Martin Gropius Bau em Berlim em 2016, no Musée Théodore Monod em Dakar em 2017, no Museo nacional di Antropologia na Cidade do México em 2017, no Museum Giersch em Frankfurt em 2019 e no Musée Rietberg de Zurick. Áreas científicas: história pré colonial de África, história das explorações europeias e história da etnologia.
EGÍDIA SOUTO é professora associada de literatura africana e história da arte na Universidade Sorbonne Nouvelle. Doutorada em Arte, Literatura e Civilizações dos Países de Língua Portuguesa pela Universidade da Sorbonne Nouvelle. Investigadora associada no CREPAL Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa, CEAUP Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Instituto de Filosofia, Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal UP. Membro associado do Instituto Frobenius, Goethe University Frankfurt am Main e membro do comité científico do programa ANR/DFG Anthropos
Qu ’est ce qui peut amener des ethnologues européens, allemands ou français, à venir dans la bibliothèque de Manuel Viegas Guerreiro, dans ce site somptueux et préservé qu’est le petit bourg de Querença ?
D’abord l’intérêt pour l’ethnologie portugaise, mais aussi les projets de recherche tels qu’ils se sont développés ces dernières années entre l’université de la Sorbonne Nouvelle et l’Institut Frobenius de Francfort en intégrant peu à peu les savoirs lusophones, comme lors du colloque « Mythes des origines, point de rencontre en philosophies européenne et africaine » co organisé avec l’université de Porto en octobre 20201
L’ethnologie européenne, y compris portugaise, reste peu connue en France et en Allemagne : elle est trop souvent regardée par le filtre anglo saxon, sans savoir, à une époque où la place du continent dans le monde devient stratégique, comment les différentes ethnologies continentales se sont rencontrées et entremêlées, loin de la singularité nationale de chacune d’elles qui a été narrée dans de nombreux ouvrages d’histoire de l’ethnologie. Ce qui a été laissé de côté, ce sont précisément les traces et les histoires communes de cette histoire continentale.
Dans les projets menés ces dernières années dans le domaine franco allemand, à savoir celui sur l’histoire croisée des ethnologies allemande et française, mais aussi sur les rapports entre ethnologie et préhistoire, sont venus s’ajouter des entreprises qui ont enrichi la vision du champ ethnographique. Elles ont conduit à une collaboration avec des acteurs majeurs de l’ethnologie portugaise, les musées
* Universidade Sorbonne Nouvelle e Instituto Frobenius, Goethe University
** Instituto Frobenius, Goethe University
*** Universidade Sorbonne Nouvelle
1 Jean Louis Georget, Richard Kuba et Egidia Souto (éditeurs) África Mitos de Origem, Vol. 1 N.º 35 (2021), Revista Africana Studia, CEAUP, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/issue/view/740
Dans la bibliothèque d’un savant : regards croisés entre le Portugal, l’Allemagne et la France
Jean Louis Georget* Richard Kuba** Egídia Souto***
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O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
d’ethnologie de Lisbonne et de Coimbra, l’université de Porto, le musée de Foz Côa, classé au patrimoine de l’UNESCO, et la fondation Manuel Viegas Guerreiro. Des possibilités sont apparues tant les ressemblances et analogies entre les pratiques ethnologiques semblaient pertinentes. Dans le cadre de ce travail institutionnel se dessinent pour l’année 2023 deux concrétisations de ce travail qui se met en place : une exposition pour 2022 24 de la collection Frobenius, déjà montrée dans le cadre de nos projets à Berlin, Dakar, Mexico, Zurich à Foz Côa, donnant l’occasion d’ un travail plus approfondi entre chercheurs portugais, allemands et français ; le dépôt auprès de l’université franco allemande d’un projet d’école doctorale sur le thème des musées ethnologiques qui, outre les partenaires traditionnels que sont la France et l’Allemagne, comprendra cette fois ci le Portugal. Ces projets sont en bonne voie. Ce travail de coopération a par ailleurs débuté dans la bibliothèque de l’éminent ethnologue qu’est Manuel Viegas Guerreiro. En effet, l’idée de rapprocher et de comparer les ethnologies européennes semble pouvoir être un projet porteur pour les années à venir. Si l’on y regarde bien, la bibliothèque de Querença est un microcosme des multiples facettes et de la pensée universaliste que recèle cette ethnologie continentale et que pratiquait déjà à sa façon Manuel Viegas Guerreiro. En effet, ce lieu témoigne d’un savoir très large qui s’ancre dans de multiples domaines, la littérature, avec tous les ouvrages de l’antiquité classiques, depuis les philosophies de Platon et Sénèque jusqu’à l’histoire de Tacite jusqu’au travaux ethnographiques les plus savants, puisqu’il compte parmi les références incontournables de l’ethnologie portugaises. Il est à noter que la fondation, en conservant cette bibliothèque, fait un travail de mémoire très important et souvent négligé de nos jours, tant l’archéologie du savoir est centrale, pas seulement celle qui fonde nos disciplines et pour laquelle nous avons beaucoup à apprendre de ce qui se déroule ici, mais aussi de cette généalogie propre à chaque chercheur et que l’on ne peut reconstituer.
Une bibliothèque microcosme des multiples facettes de Manuel Viegas Guerreiro Or à bien regarder la bibliothèque de Manuel Viegas Guerreiro, les influences sont multiples. Il y a Bronislav Malinowski pour la méthode ou Franz Boas, qui soulignait avec raison que chaque culture est le produit d'une histoire contingente, comme s ’en doute l’est chacune des ethnologies de nos pays respectifs. Puis il y a les ouvrages en langue française, comme les œuvres nombreuses de Jean Jacques Rousseau dont le naturalisme est dans le champ de l’ethnologie française la condition même de l’existence de la discipline, comme peut l’être Johann Gottfried Herder en Allemagne. Il y a naturellement les grands classiques, comme Marcel Mauss avec l’essai sur le don (1925) et le Manuel d’ethnographie (1947), Arnold Van Gennep avec les Rites de passage (1909), indispensable pour essayer d’écrire cette histoire croisée de l’ethnologie continentale, André Leroi Gourhan, sans doute l’un des plus grands préhistoriens de son temps, qui a mis en évidence les questionnements qui peuvent exister, à tort ou à raison, entre la préhistoire et l’ethnologie. Il y a naturellement le géant qu’est Lévi Strauss, qui rejoint sans doute
MANUEL VIEGAS
GUERREIRO:
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Manuel Viegas Guerreiro par l’amour de la langue et du style, partout présent ici au Portugal, à travers l’ouvrage majeur qu’est Tristes tropiques (1955), peut être le seul best seller de l’histoire de l’ethnologie. Mais la pensée est également présente dans cette bibliothèque. Les ouvrages présents le sont en langue française, espagnole ou portugaise, ce qui souligne l’importance de ces travaux mutuels où la traduction joue un rôle central. Il n’est en effet pas possible d’exprimer de manière aussi nuancée dans une autre langue ce que nous pouvons dire dans la nôtre et l’ethnologie européenne a toujours parlé des langues multiples. On trouve dans cette bibliothèque des grands classiques de la littérature allemande comme le Faust de Goethe (1790), des auteurs comme Stefan Zweig avec son œuvre universelle qu’est Le Monde d’hier, (1943) Heinrich Böll, écrivain et observateur attentif de l’Allemagne des années 1970, Franz Werfel mais aussi des ethnologues allemands comme Richard Thurnwald (1934), grand spécialiste de l’Afrique, ou encore Leo Frobenius avec L’Histoire de la civilisation (1936), dont l’institut situé à Francfort et qui travaillait comme Guerreiro à confondre sa vie avec son aventure scientifique. Manuel Viegas Guerreiro a suivi les travaux de l’ethnologue portugais Leite de Vasconcelos en ceci que sa bibliothèque regorge également de littérature orale, d’auteurs classiques portugais peu étudiés à son époque. Nous pouvons noter que Leite de Vasconcelos 2 est né le même mois de la même année que Franz Boas, à savoir en 1858. C’est une coïncidence qui a certainement marqué Leite de Vasconcelos, puis son disciple Manuel Viegas Guerreiro qui défendait l’idée que les Portugais ont toujours été extrêmement européens3. Contrairement à d’autres, la plupart des anthropologues portugais lisent et parlent à cette époque plusieurs langues étrangères. Ils sont donc familiers des textes français, anglais et allemands contemporains et maintiennent également des correspondances épistolaires avec des collègues au sein d’institutions étrangères importantes à ce moment précis, comme le remarque l’éminent anthropologue Joao Leal « Os antropólogos portugueses da época lêem muito e em várias línguas, estão a par dos grandes textos da época, fazem parte de sociedades científicas internacionais, vêem mesmo alguns dos seus textos publicados em Inglaterra e em França »4
Un travail collaboratif pour établir la cartographie d’une ethnologie européenne La bibliothèque Querença est une bonne opportunité pour mener un travail de recherche collaboratif et pluridisciplinaire pour dessiner la cartographie d’ une ethnologie européenne qui s’éloigne de tout ethnocentrisme européen. Mais l’héritage de Manuel Viegas Guerreiro comprend beaucoup plus que sa
2 Manuel Viegas Guerreiro, “Notas para uma Biografia do Doutor José Leite de Vasconcelos”, Revista Lusitana (n.s.) 12, 1994, p.53 79.
3 Cf, Francisco Melo Ferreira, Manuel Viegas Guerreiro Fotobiografia, Querença, Fundação MVG, 2006.
4 João Leal, Antropologia em Portugal Mestres, Percursos, Transições, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, p. 135.
DANS LA BIBLIOTHÈQUE D’UN SAVANT : REGARDS CROISÉS ENTRE LE PORTUGAL, L’ALLEMAGNE ET LA FRANCE
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ANTROPÓLOGO
bibliothèque savante : son instrument de travail principal est la boîte d’outils de tout ethnologue qui consiste à documenter ses recherches de terrain. Les archives d’ un ethnologue reflètent sa méthode de travail et renferment les données primaires de ses recherches, ses journaux de terrain, ses carnets de notes et souvent aussi une documentation visuelle au moyen de croquis et de photographies.
Il s'agit par conséquent de données brutes issues de sa recherche qui n'ont pas encore été nécessairement modifiées par la sélection et l’arrangement spécifique qu ’exige une publication. On estime que seul un quart des informations collectées se retrouve finalement dans les publications. Il s’agit donc d’une mine d’ or pour des recherches à venir. Souvent les archives contiennent aussi une correspondance scientifique reflétant le tissu des réseaux nationaux et internationaux d’un chercheur et par conséquent ses intérêts spécifiques. Certes ce dernier aspect est central pour l’histoire de la discipline, mais aussi au delà pour comprendre l’histoire des idées d’une époque entière.
Pour ce qui concerne les grands anthropologues tels Manuel Viegas Guerreiro, il faut bien noter qu’on est assis sur les épaules de géants. Nombre d’idées et de théories présentées comme des nouveautés sur le marché académique ont souvent déjà été pensées, parfois de manière plus consistante. Rentrer dans l’histoire d’ une science comme la nôtre est parfois un excellent exercice d’humilité.
La communauté des scientifiques européens ne fut pas la seule à s’intéresser à ce genre d’archives. Le public captif pour ce qui concerne les matériaux que Manuel Viegas Guerreiro a collectés en Afrique, ce sont les sociétés avec lesquelles il a travaillé et les descendants de ses interlocuteurs. Pour eux, ses photos et journaux de terrain constituent une riche mine d’informations historiques. Ce sont des sources écrites et visuelles d’une époque spécifique pendant laquelle ce genre de sources n ’était pas très fréquentes. Certes, les ontologies servant à déchiffrer et utiliser ces archives par les historiens angolais ou mozambicains de notre propre époque seront nécessairement différentes de celles pensées par Manuel Viegas Guerreiro dans les années 1950 et 1960.
Bien gérer la deuxième vie d’une archive après la disparition de son auteur n’est pas une tâche facile. Il pourrait s’agir d’une tâche commune au plan européen que d’ouvrir ce genre d’archives et d’essayer de jouer autant que faire se peut la transparence par rapport à un passé colonial parfois pénible. C’est en effet à travers les archives que l’on peut comprendre la méthode de recherche et les relations entretenues avec les informateurs et les autorités des pays visités.
Ce qui frappe dans les archives de Manuel Viegas Guerreiro, c’est la relation intime qu ’il a gardée avec ses origines paysannes et qui se traduit par l’acribie qu’il consacre à la documentation des coutumes rurales et des récits folkloriques au Portugal5
5 M. Guerreiro, Pitões das Júnias: esboço de monografia etnográfica, Lisboa, Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, 1981.
20 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
E HUMANISTA
comme au Mozambique et en Angola.6 C’est une vision universaliste de la culture, malheureusement bien trop rare parmi les ethnologies européennes du 20e siècle, notamment en Allemagne ou l’ethnologie se divise en deux disciplines : la « Volkskunde »7 pour l’ethnographie des milieux ruraux allemands et la « Völkerkunde »8 pour le reste du globe.
Si, à la suite d’ un archival turn inspiré par Michel Foucault et Jacques Derrida, on parle aujourd’hui de « décolonisation » des archives, elle ne concerne pas réellement la situation des archives Guerreiro, qui se présentent d’une manière exemplaire en ne hiérarchisant pas les différents terrains. Manuel Viegas Guerreiro s’est de fait positionné très clairement : en s ’inscrivant dans une tradition boasienne de relativisme culturel comme dans la tradition d’observation participante prônée par Malinowski, il a publié une critique fondée de "l'évolutionnisme systématique" d'Oliveira Martins9 et a rejeté de manière catégorique l'utilisation du concept de "race". Il a dénoncé la manière dont "le progrès scientifique des cultures européennes a naturellement généré une profonde conviction de supériorité, un ethnocentrisme effréné, qui s'est matérialisé dans les formes les plus abominables de racisme".
Pour Manuel Viegas Guerreiro, le cœur et l’âme d’une culture se transmettent à travers ses récits. Il s’inscrit alors dans un grand courant européen qui, pour citer les protagonistes allemands, s’étend des frères Grimm à Leo Frobenius. Ce dernier publia entre 1921 et 1928 douze volumes de contes et récits africains10. Pour Manuel Viegas Guerreiro, la culture existe chez tous les peuples, elle la même valeur partout et il n’ y a pas de hiérarchie entre elles11, que ce soit pour ce qui concerne les récits des
6 Luísa Guerreiro Martins, Caderno de Campo Manuel Viegas Guerreiro Moçambique 1957, Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto, 2016.
7 Hermann Bausinger, Volkskunde ou l’ethnologie allemande, Paris, Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 1993.
8 Pour le cas portugais se référer à l’analyse de João Leal, op cit., p.11 12
9 M. Guerreiro, Temas de Antropologia em Oliveira Martins, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação e Cultura, 1986.
10 Leo Frobenius, Atlantis Volksmärchen und Volksdichtungen Afrikas, 12 vol., Diederichs, Jena, 1921 1928. En partie traduit en espagnol : El Decamerón Negro, (Musas Lejanas. Mitos, Cuentos, Leyendas 1). Madrid Revista de Occidente, 1925
11 Cf Maria Lucinda Fonseca, Francisco Melo Ferreira, Manuel Viegas Guerreiro Mestre da Sabedoria do Mundo, Centro de Tradições Populares Portuguesas, Instituto de Cultura Ibero Atlântica, Lisboa 1997.
DANS
LA BIBLIOTHÈQUE D’UN SAVANT : REGARDS CROISÉS ENTRE LE
PORTUGAL,
L’ALLEMAGNE ET LA FRANCE 21
« Bochimanes » 'Khú d'Angola12, ceux des Makonde du Mozambique13 ou encore les traditions orales et musicales du Portugal14 Ceci est une bonne base pour développer des archives ethnographiques afin qu’elles puissent mieux servir les sociétés d’où elles proviennent et qui, souvent, n’ont pas ce type d’archives chez elles. Pour que ces archives ne deviennent pas un instrument d’oppression (Derrida) et pour éviter toute violence épistémique (Spivak)15, qui pourrait en découler par l’utilisation de systèmes de triage et de classification ou des thésaurus et mots clés connotés culturellement il faudra envisager trois étapes principales : l’accès, la transparence et la coopération.
L’accès implique nécessairement une numérisation du matériel et sa mise à disposition à travers d'infrastructures numériques appropriées. Sans ce premier pas, très peu de personnes intéressées provenant des pays concernés pourront consulter ces sources archivistiques. Quant au principe de transparence, celui ci implique une enquête aussi complète que possible sur les conditions de la recherche à l’époque évoquée et la manière dont la collecte des informations, des objets ou des photographies s’est effectuée.
Pour que les archives ethnographiques pourront mieux servir aux pays et sociétés concernes et pour éviter toute perspective euro centrique, il sera nécessaire de chercher une collaboration étroite avec des représentants des pays concernés. Comme la majorité du riche corpus d’information ethnographique que se cache dans les musées, collections et archives à travers les pays européens, les archives de Manuel Viegas Guerreiro présentent une mine d’information sous exploité. Le développement de cette mine en collaboration avec les pays concernés est une tâche et une responsabilité pour l’Europe entière.
12 M. Guerreiro, «A propriedade entre os Bochimanes de Angola», in: Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1966, vol. I, n.º1, pp. 91 98
13 Luísa Guerreiro Martins, Caderno de Campo Manuel Viegas Guerreiro Moçambique 1957, Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto, 2016. M. Viegas Guerreiro, Conto maconde de tema universal, da missão de estudos das Minorias étnicas do Ultramar português 261, Abril de 1961, Lisboa 1962.
14 Manuel Viegas Guerreiro, Para a História da Literatura Popular Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, M.E.C., Secretaria de Estado da Cultura, 1978.
15 Gayatri Chakravorty Spivak, Subaltern Studies: Deconstructing Historiography, Nova York, Routledge, 1988.
22 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
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23
DANS
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A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
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, Conto maconde de tema universal, da missão de estudos das Minorias étnicas do Ultramar português 261, Abril de 1961, Lisboa 1962.
, Para a História da Literatura Popular Portuguesa, Instituto de Viegas Guerreiro Manuel Cultura Portuguesa, M.E.C., Secretaria de Estado da Cultura, 1978.
, Para a História da Literatura Popular Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, M.E.C., Secretaria de Estado da Cultura, 1978.
__________________, Povo e Cultura in: No Jardim do Mundo, Junho de 1996.
__________________, Temas de Antropologia em Oliveira Martins, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação e Cultura, 1986.
__________________, Pitões das Júnias: esboço de monografia etnográfica, Lisboa, Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, 1981.
Zweig Stefan, Le Monde d’hier, Paris, Livre de Poche, 1996.
MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO
E
DANS LA BIBLIOTHÈQUE D CE
Conferência com Egídia Souto, Jean Louis Georget e Richard Kuba
Habitat/civilização e os sentidos da existência Viegas Guerreiro a propósito da ideia de “ raça” de Oliveira Martins
Luísa Monteiro
RESUMO: Neste artigo explora se o pensamento de Viegas Guerreiro a partir da Fenomenologia heideggereana no que concerne ao preconceito face à raça, expresso numa das obras do historiador Oliveira Martins. Guerreiro publica o ensaio “Habitat/Civilização” no ano da entrada de Portugal na CEE numa clara defesa de uma civilização que inclua o “Nós” no sentido do “habitar”, “cuidar“, no âmbito das estruturas ontológicas da Existência.
PALAVRAS CHAVE: Raça Presunção Fenomenologia Espaço.
Viegas Guerreiro (1912 1997), com formação de base em Filologia Clássica1 , teve a grande ousadia de “varejar” em público, em 1986, o gigante da História portuguesa da “Geração de 70”, Oliveira Martins (1845 1854). Não as datas, não os factos, mas o seu pensamento, no que respeita a um “ puro ” e “estreito” “determinismo geográfico”, para explicar factos da “civilização”. Dirigir a palmatória a quem foi venerado por gerações de intelectuais, é quase o mesmo que dar um açoite a todo um país que se preparava na altura para o seu segundo fôlego de liberdade depois da Revolução de Abril e que seria a entrada na CEE Comunidade Económica Europeia. O “açoite” surge em forma de ensaio, com publicação na série “Biblioteca breve”, volume 108, editada pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Ministério da Educação, com o título Temas de Antropologia em Oliveira Martins2. A epígrafe usada por Viegas Guerreiro, da autoria do rei D. Duarte I autor de Leal Conselheiro, tratado de ética e moral que se crê ter sido escrito por volta de 1438 , permite antever as intenções de Viegas Guerreiro, na medida em que escolhe este excerto:
1 Licenciou se em 1936 em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras de Lisboa.
2 GUERREIRO, Manuel Viegas (1986) Temas de Antropologia em Oliveira Martins. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa Ministério da Educação. Série “Biblioteca breve”, vol.108.
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Aprazer me ia que os leitores deste tratado tivessem os modos da abelha que, passando por ramos e folhas, [é] nas flores [que] mais costumam de pousar, e dali pilham parte do seu mantimento. E [que] não sejam como aqueles bichos que, ignorando todas as coisas limpas, nas mais sujas pilham a sua governança.
O alvo é a presunção intelectual e o preconceito em relação à mulher, à família, à província e muito em especial ao que Oliveira Martins denomina de “dotes psicológicos das raças”, “responsáveis pelos fenómenos da civilização”. É sobre este preconceito que nos iremos deter.
1. Altura. Preconceito. Dasein.
Apoiado nos “dotes psicológicos das raças”, o célebre historiador português traçou também os caracteres psicológicos dos portugueses: os minhotos como sendo “obtusos” e sem “elevação de espírito” por causa da “humidade“ que “torna flácidos os temperamentos e entorpece a vivacidade intelectual” (Guerreiro, 1986:71), os beirões como sendo “bandidos e anacrónicos” (Guerreiro, 1986:72), o alentejano “diz pouco e raro canta”, (Guerreiro, 1986:73) e o algarvio é sugerido como um preguiçoso que “põe no pensamento uma agitação meio tonta” (Guerreiro, 1986:74), só para citar alguns exemplos.
É certo que em fenomenologia, o espaço é sempre afetado por uma coloração afetiva fundamental; a tonalidade climática especifica uma forma de presença, ou seja, um modo de comunicação determinado com as coisas num mundo que não está simplesmente diante de nós mas que atravessa o pathos inerente à situação. Mas não é este lado fenomenológico que está em causa, pois, diz nos Guerreiro, o “fenómeno é complexo e a tal ponto, que ainda nos casos mais simples de culturas tecnicamente atrasadas é difícil distinguir, com rigor, o que pertence ao homem e o que provém das condições naturais” (Guerreiro, 1986:68).
É contra este modo de apequenar o povo português, que se insurge Viegas Guerreiro no capítulo que intitula de “Habitat/Civilização”; é aqui que nos surge como filósofo, numa abordagem antropológica da essência individual do ser humano o que impõe uma leitura da mesma à luz do Dasein da fenomenologia do filósofo alemão, Martin Heidegger (1889 1976), bem como uma aproximação à sua conferência Construir, habitar, pensar, de 19514 É logo no início do capítulo “Habitat/Civilização” que Viegas Guerreiro rejeita
4 No original: Bauen, Wohnen, Denken (1951); conferência pronunciada pelo filósofo Heidegger por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em HEIDEGGER, M (1954). “Bauen Wohnen Denken“.Vortäge und Aufsätze, Günther Neske: Pfullingen. Para este artigo usamos a tradução de Victor Hugo de Oliveira Maques (Universidade Católica Dom Bosco) in Multitemas Revista da UCDB. Vol.23, n.º 53, jan./abr. 2018, pp. 275 294. Campo Grande.. DOI: http:// dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593
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MANUEL
VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
ANTROPÓLOGO
E HUMANISTA
parcialmente a conceção do Homo Natura, edificado sobre o modelo das ciências naturais, que tomam o homem como um mero sistema de funções orgânicas.
Diz nos:
As relações do homem com a natureza constituem um dos problemas centrais das Ciências Humanas. E pensamos que o seu esclarecimento está em uma compreensão exata dos dois termos deste binómio. E aqui se confrontam duas atividades filosóficas: criou Deus o homem e pô lo no mundo como uma entidade em outra entidade, e estamos com uma teoria perramente metafísica; ou é o homem um ser vivo como os outros seres vivos, uma parte da natureza, e estamos com uma teoria puramente naturalistas. […] E, deste modo, quer se queira, quer não, temos um poder dentro de outro poder, considerado tradicionalmente o segundo como antagónico do primeiro, conceção que a ontologia cristã favorece ao lançar a sua mais perfeita criatura num mundo de trabalhos, mundo hostil que ela tem de vencer para a superior especificidade de seus atributos. E desta dualidade nasce, consequentemente, a mitificação da natureza, sua antropomorfização, que a dota de vontade, e intencional resistência à satisfação das necessidades humanas. […] E aí fica a natureza, como que o princípio do mal, a resistir à modelação que o espírito superior do homem lhe quer impor, o que só imperfeitamente consegue […] (Guerreiro, 1986:67)
Contra o determinismo cultural e o determinismo geográfico, Guerreiro entende ser mais “sólido” considerar o homem como elemento da natureza, “mas existindo nela”, importando lhe o ser aí, a presença humana, o existente com um pensar que lhe permite “agir ora adaptando se, umas vezes sem a modificar e outras produzindo nela profundas alterações”, estabelecendo se “uma inter relação dinâmica, dialética, sem preconceitos de domínio ou sujeição no vasto quadro do universo” (Guerreiro, 1986:67). Conclui que “o quadro natural” variavelmente condiciona a cultura e “não a determina necessariamente” (Guerreiro, 1986:68). Ou seja, é o humano um ser com, um “ ser no mundo”, cujas estruturas, de resto, foram largamente elaboradas por Heidegger, que afirma: “O Dasein é um Mitsein” (ser com).
Heidegger procurou desvendar as estruturas ontológicas da existência entenda se por ontológico, o ser em geral, por oposição ao ôntico, os seres em particular. Por “existencial” entenda se o termo como “constitutivo do existir humano”.
Para o filósofo de Ser e Tempo (1927), as estruturas existenciais são primeiramente o tempo e o espaço, mas também o ser no mundo, em uma relação originária no mundo, o ser com outro, com os outros. O mundo é sempre um mundo comum. Mas há outras estruturas existenciais, como o humor, a disposição, a tonalidade afetiva, a Stimmung (entendida como experiência de mundo operada inicialmente na coloração afetiva), o compreender, a fala e a preocupação. Resumindo, o ser é primordialmente temporal, espacial, ser no mundo, um ser com
HABITAT/CIVILIZAÇÃO 29
o outro, afetado, compreendendo. Entenda se este termo não exclusivamente na aceção do entendimento, mas na de empreender com, apreender em o que acontece mediante o entender comum, pelo meio primordial da linguagem e como parte de um afetivo.
2. Habitar cuidar
Acontece que este espaço não é o espaço matemático euclidiano, mas sim, o existente nos atos quotidianos que abre, que cria e recria esse espaço, no qual o ser se implica, se desenvolve e se projeta.
A linha de pensamento assente nas Ciências da Natureza era defendida, por exemplo, por Freud, tendo por substrato o domínio das pulsões, apontando que o espirito provém do corpo, mas como já referimos a propósito do poeta popular de Querença, Silva Varejota5, Viegas Guerreiro explora a existência subjetiva do ser entendida na sua totalidade, um ser presente no mundo responsável pela sua existência, pelo que, no seu entender, o espírito vem do próprio espírito. O olhar filosófico e antropológico de Viegas Guerreiro recai sobre a presença do homem nas suas estruturas espaciais e temporais, mas é o habitat que mais lhe importa. Com preocupações próximas, na já referida conferência Construir, habitar, pensar6 , Heidegger refere:
A maneira como você é e eu sou, o modo segundo o qual nós homens somos sobre a terra, é o construir, o habitar. Ser homem quer dizer: ser mortal sobre a terra, quer dizer: habitar. A antiga palavra construir, que impõe ao homem que ele seja à medida que ele habita, significa apenas, mas ao mesmo tempo: lavrar e cultivar, como nos exemplos: construir o campo, construir a videira. Tal construir apenas guarda o crescimento dos seus frutos que amadurecem por si mesmos. No sentido de lavrar e cultivar, construir não é produzir. Por outro lado, a construção naval e a construção de um templo certamente fabricam o seu próprio produto. O construir é, nesse caso, ao contrário de cultivar, um edificar. Ambos os modos de construir construir como cultivar, colere, em latim, cultura, e construir como edificar prédios, aedificare estão retidos no construir original, o habitar. O construir
5 MONTEIRO, L. (2021). “Escavar a Fala. Viegas Guerreiro e Varejota à luz de Heidegger”. Revista da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. N.º 26. Abr Jun. Querença, pp. 14 21. ttp://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593
6 O texto traduzido no original é: Bauen, Wohnen, Denken (1951) e corresponde a uma conferência pronunciada pelo filósofo Heidegger por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em HEIDEGGER, M (1954). “Bauen Wohnen Denken“.Vortäge und Aufsätze, Günther Neske: Pfullingen. Trad. de Victor Hugo de Oliveira Maques. Multitemas, Campo Grande, MS, v. 23, n. 53, p. 275 294, jan./abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593 ttp://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593
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como habitar, isto é, ser sobre a terra […] Na verdade, porém, algo decisivo se esconde lá dentro, a saber: a vivência do habitar não se dá como ser do homem; o habitar nunca se dá por completo quando se pensam as características fundamentais do ser do homem.(Heidegger, 2018: 279 280)
Outra dúvida é lançada por Heidegger: diz que nós “não moramos porque construímos, antes, nós construímos e temos construído desde que moramos, isto é, desde quando somos habitantes. Contudo de onde vem a essência do habitar?” (Heidegger, 2018: 281) e conclui que o habitar é da ordem do cuidar, pela via do apaziguamento:
Habitar, feito para a paz, quer dizer: manter se apaziguado no Frye, [“proteger se do dano e da ameaça”] cuidar de qualquer um na sua essência. A característica essencial do habitar é esse cuidar. Ele perpassa o habitar em toda a sua vastidão. Esta última mostra se, a nós, logo que nisso pensamos, que no habitar os homens se assentam mais precisamente no sentido de permanência mortal sobre a terra. Ora “sobre a Terra“ já quer dizer “sob o céu”. Ambos querem dizer “morada dos deuses” e encerram “ o co pertencer dos homens”. Por meio de uma unidade original, se pertencem os quatro: a Terra, o céu, as divindades e os mortais.
A terra é o sustento servente, o fruto florescente, vastamente penduraria na rocha e nas águas, nascente para planta e bicharada. Dizemos terra, então, já pensamos nos outros três também, contudo não refletimos sobre a simplicidade dos quatro.” (Heidegger, 2018: 281 282)
Porém, esta “unidade original” composta pela “Quadrindade”7, implica que se pense sob um sentido, em direções, em coordenadas. Que sentido pode ter pensamento? Viegas Guerreiro, reitera não só no capítulo em questão, como um pouco por todo o ensaio, que Oliveira Martins “não cai continuamente“ num “estreito e tradicional determinismo geográfico e nisso bem aproveitou das lições do evolucionismo contemporâneo”, mas cai. E cai demasiadas vezes, à semelhança de muitos dos seus pares, segundo o pensador de Querença. O sentido de queda no pensamento português constitui uma das preocupações de Viegas Guerreiro. Há no seu pensamento um privilégio antropológico da altura: a direção do sentido do alto e do baixo. Mas para o homem, o que é cair? Será, na esteira do pensamento fenomenológico, a perda de apoio e da harmonia, uma
7 ‘Geviert’ no original; os ingleses traduzem geralmente o termo por ´´he fourfold’, no Brasil usam ‘quadradatura’ e em alguns países latinos, ‘cuaternidad’. Usamos ‘Quadrindade’, na linha proposta pela investigadora Irene Borges Duarte.
HABITAT/CIVILIZAÇÃO 31
rutura na corporeidade tranquila, o oposto da elevação.
A imagem da queda traduz em si a essência da perda de esteio do Dasein, constituindo se como desequilíbrio enquanto forma, enquanto sentido e enquanto sentimento. Antropologicamente falando, a altura corresponde ao desejo de triunfar, ascender, sobre o peso terrestre. Para o homem, a realização de si é o ponto mais alto que pode alcançar e esta aspiração depende das duas direções de sentido: verticalidade e horizontalidade, ou seja, entre a experiência do crescer e a do alargar da vida.
Há milhões de anos, o homem pôs se de pé e dispôs se a caminhar. Altura e largura, expansão e limitação são do âmbito da natureza animal, mas o paradigma da realização de si, diz respeito à natureza humana. Porém, quando esta realização de si se separa do nós, do ser com, o que surge é a presunção. O ser presumido transbordante do mundo é um exilado dessa harmonia do cuidar, um não habitante desse “ co pertencer dos homens” de que fala Heidegger e que Viegas Guerreiro faz notar a Oliveira Martins, concluindo no seu ensaio que o célebre historiador de Portugal “não assumiu” a “atitude equilibrada dos seus melhores mestres”. E não obstante as suas desmesuras de ficção literária, nunca Oliveira foi um artista, pois é pela arte que se pode encontrar a justa proporção antropológica, o paradigma da realização de si, tal como encontra em certos poetas, de que Silva Varejota é, para Viegas Guerreiro, um dos exemplos. E de tudo isto se faz uma civilização, cujo esteio maior é o da proteção do Nós como parece ter querido Viegas Guerreiro dizer, numa altura em que a entrada de Portugal na C.E.E. levantava acérrimas discussões em torno da identidade do povo português, à semelhança do que acontecia também nos restantes onze países integrantes. “Quando refletimos sobre o experimentado modo de relação entre lugar e espaço, mas também a relação entre homem e espaço, recai uma luz sobre a essência das coisas, somos lugares e designamos construções”, disse Heidegger.
REFERÊNCIAS
GUERREIRO, Manuel Viegas (1986) Temas de Antropologia em Oliveira Martins. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa Ministério da Educação. Série “Biblioteca breve”, vol.108.
HEIDEGGER, Martin. [1951] “Bauen, Wohnen, Denken” G. Neske, Pfullingen (1954)..Vortäge und Aufsätze, Trad. Victor Hugo de Oliveira Marques (2018). Multitemas. Campo Grande: MS, v. 23, n. 53, p. 275 294, jan./abr. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593
MONTEIRO, L. (2021). “Escavar a Fala. Viegas Guerreiro e Varejota à luz de Heidegger”. Revista da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. N.º 26. Abr Jun. Querença, pp. 14 21.
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MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
HABITAT/CIVILIZAÇÃO
Conferência com Luísa Monteiro
EGÍDIA SOUTO é professora associada e investigadora do CREPAL Sorbonne Nouvelle, do Centro de Estudos Africanos, do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e do Instituto de Antropologia Cultural Frobenius, Universidade Goethe de Frankfurt.
O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
Mia Couto1
Osonho é um ideal que garante o acesso ao que por vezes não imaginávamos possível. E, sem sonhos não há outros possíveis e muito menos expectativas. Decorreram já quase três anos sobre o meu primeiro encontro com a obra e o espólio de Manuel Viegas Guerreiro. Encontro esse que tem vindo a constituir para mim um desafio. Pois, a obra desta figura incontornável abriu novos caminhos para aprofundar o meu estudo sobre os primórdios da etnografia portuguesa e as suas especificidades ligadas à literatura popular. Em pleno mês de maio, no Festival Literário Internacional de Querença (FLIQ 2019) consagrado ao poeta algarvio Nuno Júdice, a sessão inicia se com uma homenagem ao antropólogo e criador dos Estudos Gerais Livres, Manuel Viegas Guerreiro. Quando encontros desta natureza acontecem e a poesia se cruza com a antropologia, no lugar onde nasceu o pensador e na Fundação que valoriza o seu espólio é, sem dúvida, um feliz acaso. Com efeito, é esse caminho, onde todas as coincidências e espontaneidades acontecem, que me leva a questionar sobre o pensamento deste homem nascido no barrocal algarvio. Como afirmaram os autores especialistas Maria Lucinda Fonseca e Francisco Melo Ferreira, “o convívio na infância e juventude com a gente simples dos campos do seu querido Algarve, foi a Escola onde adquiriu, quase sem dar por isso, a extraordinária capacidade de comunicação e comunhão com outros homens, independentemente dos contextos geográficos, culturais e sociais em que os encontrasse2”.
1 Mia Couto, Terra Sonâmbula, Lisboa, Caminho, 2013.
2 Maria Lucinda Fonseca, Francisco Melo Ferreira, “Manuel Viegas Guerreiro: evocação de um mestre e amigo” in Finisterra, Janeiro de 1998. (consultado20/08/21) https:// www.researchgate.net/ publication/28181201_Manuel_Viegas_Guerreiro_evocacao_de_um_mestre_e_amigo
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A filosofia humanista do antropólogo Manuel Viegas Guerreiro Egídia Souto
Nascido em Querença no dia 1 de Novembro de 1912 e falecido em 1997 com 84 anos, Manuel Viegas Guerreiro foi, sem dúvida, uma figura marcante do século XX, não só no Algarve popular que muito o marcou e quiçá determinou a sua vocação de etnólogo, mas em Portugal aquém e além mar com as viagens a Angola e Moçambique a partir de 1948 em plena ditadura militar. Sair do país para resistir parecia ser uma via para acalmar a curiosidade de MVG. Em jeito de introdução, recordemos as palavras do filósofo e amigo de Manuel Viegas Guerreiro, Agostinho da Silva, que fazem eco às considerações que pretendo tecer.
Reservemos para nós a tarefa de compreender e unir; busquemos em cada homem e em cada povo e em cada crença não o que nela existe de adverso, para que se levantem barreiras, mas o que existe de comum e de abordável, para que se lancem as estradas da paz; empreguemos toda a nossa energia em estabelecer um mútuo entendimento; ponhamos de lado todo o instinto de particularismo e de luta, alarguemos a todos a nossa simpatia. [...] Aprendamos a chamar irmão ao nosso irmão e façamos apelo ao nosso maior esforço para que se não quebre a atitude fraternal, para que se não perca o dom de amor, para que se não cerre o coração à mais perfeita voz que nos chama e solicita.3
Na obra de Manuel Viegas Guerreiro, o “dom de amor” a que se refere Agostinho da Silva, o humanismo e, dir se ia mesmo, o universalismo que procurou encontrar, são pontos fundamentais. Destaca se pela forma como defendeu o estudo dos povos, dos seus hábitos e a maneira como transmitiu junto dos seus pares e estudantes, uma lição de vida no sentido antropológico sem hierarquia de raças, teorias ainda vigentes na sua época. Ora MVG, etnólogo e antropólogo, estudou como poucos a tradição popular portuguesa no sentido mais universal e legou uma obra profícua e variada, sempre submetida a rigor metodológico. Neste apontamento, procurarei salientar estes aspetos e farei convergir, de forma não exaustiva, o olhar para o depoimento humanista com que, em 1981, o etnólogo escreveu:
(...) O povo de Pitões me ensinou a ser mais directo, mais autêntico, mais o que sou e menos o que me obrigam a ser. Na sua linguagem livre estava o homem livre com que cada um de nós devia reencontrar se neste mundo de formalidades e disfarces. Esta é, uma das grandes lições que me deu. A outra, porventura maior, foi a que quotidianamente de todos recebi e constitui a própria substância do livro. Eles mo ditaram,
3 Agostinho da Silva, Considerações [1944], in Textos e ensaios filosóficos, I, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p. 117.
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ANTROPÓLOGO MANUEL VIEGAS GUERREIRO
só o escrevi.4
Em algumas palavras podemos resumir esta experiência em duas características essenciais: a lição de humildade e resistência que apreendeu o etnólogo durante os longos meses de trabalho de campo em Pitões das Júnias em 1978. A pequena aldeia a 1200 metros de altitude rural do norte do país, é nos apresentada como um topos à primeira vista utópico. No entanto, a partir dali Manuel Viegas Guerreiro observa outro tipo de sociedade autêntica e com valores que ele opõe à sociedade do tempo dele e do contexto intelectual vigente da época.
“A infinita liberdade de aprender” O texto de MVG promove no leitor, um depoimento que demonstra que nada é linear. Denota se com estas palavras que há, nas suas monografias etnográficas de pendor ensaístico, uma polifonia e uma polissemia que assentam numa perspetiva de desconcertante empatia perante o povo estudado e que, ao invés de serem puramente analíticas, ganham ecos numa observação apraz, justa e desenvolvida num sentido de alcançar a sabedoria comum. Por essas razões, dir se ia que este lugar não é utópico, pois, não provém de uma fantasia, de um "lugar que não existe", mas corresponde sim à construção viável de um lugar que é dinâmico e que tem por isso a possibilidade de existir. Pitões das Júnias e as suas gentes fazem parte do grande empreendimento que sempre animou MVG: o desenvolvimento da responsabilidade individual e cívica de cada um para que fosse possível atingir um processo de construção de valores que não se restringem a um só lugar, mas que o antropólogo queria ver circunscritos à humanidade. Como se lê na citação, o povo foi quem “ditou” e “deu lições”, em suma, o etnólogo vê se aqui no papel de escritor e de mediador entre os discursos e os mundos, contribuindo para o dever de ensinar, aprender e difundir os saberes. Vejamos que se trata de aprender em todas as circunstâncias e com todas as realidades sociais “o tal pendor pedagógico” de que nos fala MGV. É esse o lema que o guiou ao longo dos anos, das missões africanas de 1948 até 1985 quando viajou a Cabo Verde para ensinar antropologia cultural. Não nos esqueçamos que também aprendeu com a terra/húmus, a terra do sul e a terra de África.
Na sua incansável vocação para tudo aprender e para empreender, o método do antropólogo é o da ousadia para encontrar nesse outro uma permanente fonte de interesse. É o confronto que permite avançar na reflexão. O discurso de MVG traça o seu próprio roteiro, quer seja pela profundidade do pensamento com que aborda tudo o que ao humano se refere, quer seja pela complexidade das fontes, pela natureza e pelo tipo de terreno que estuda. É um homem com ideias do seu tempo certo, no entanto, tem uma outra cosmovisão desenhada pelos depoimentos e pelos
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4 Manuel Viegas Guerreiro, Pitões das Júnias: esboço de monografia etnográfica, Lisboa, Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, 1981.
A FILOSOFIA HUMANISTA DO
textos de vários cânones. Ao longo da sua existência MVG cruza geografias e aproxima latitudes, cartografa maneiras de ver o mundo, recria informações e deixa testemunhos. Fala se do homem que “defendia o estudo da cultura expurgado de qualquer tipo de juízo valorativo, entendido como um vício do etnocentrismo europeu ”5 como refere Rita Mendonça Leite. A historiadora Isabel Castro Henriques também reforça a tese que o etnólogo criticou “a utilização do conceito de «raça», contrapondo o modelo etnocêntrico6. Como referi, grande parte da obra de MVG assenta no humano, na sua história e compreensão, para comprová lo basta consultar a erudição da sua biblioteca. Manuel Viegas Guerreiro viveu durante a ditadura e lembremo nos que, em 1948, numa carta ao amigo Agostinho Silva, na altura exilado no Uruguai, pede lhe ajuda para sair do país7. Ora, tal nunca aconteceu e parece me que uma forma de lidar com a opressão do regime terá sido a etnografia, as viagens para África a partir de 1948 assim como o trabalho pedagógico que empreendeu. Ressalve se que nunca deixou o ensino, mesmo sendo assistente de alguns dos mais importantes nomes da etnografia portuguesa tais como Leite Vasconcelos.
Tudo aprender para empreender Manuel Viegas Guerreiro reconhece e evidencia o compromisso que tem com os que tudo lhe ensinaram: os inúmeros poetas da terra, para além dos povos com quem convive, os Bosquímanos em Angola e Macondes em Moçambique. Esta admiração pelo povo, à semelhança de Agostinho Silva, não terá sido um grito para que fosse feita nas instituições e na academia o trabalho de reconhecimento da “sabedoria do povo”? Segundo MVG “(com) esse resultado havemos de chegar, quando em diversidade e profundidade se conduzir a análise etnográfica. Sem essa informação de base não é possível caracterizar minimamente cultura de classe e cultura nacional e nem em toda a sua extensão o que é universal no homem”8. Estas asserções levam me a pensar na importância do rigor para estabelecer um método científico. Etnografia, historiografia, literatura e ensino terão sido o desafio de toda uma vida, como referiu num colóquio em 1986 sobre literatura popular e que tão
5 Rita Mendonça Leite, “Manuel Viegas Guerreiro”, in Dicionário de Historiadores Portugueses, 2014, (consultado a 7/09/2021), https://dichp.bnportugal.gov.pt/imagens/guerreiro.pdf
6 Isabel Castro Henriques Rita Mendonça Leite, Manuel Viegas Guerreiro, Ovakwankala (bochimanes) e Ovakwanyama (bantos): aspectos do seu convívio uma interpretação histórica Consultado a 3/02/2022 http://www.fundacao mvg.pt/o patrono/viagens pela obra de manuel viegas guerreiro/ovakwankala bochimanes e ovakwanyama bantos aspectos do seu convivio
7 In Rita Mendonça, op.cit.
8 Manuel Viegas Guerreiro, « Litterature Orale Traditionnelle Populaire », Actes du Colloque, Paris 20 22 Nov. de 1986, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian Centre Culturel Portugais, 1987. Digitalizado e revisto por Domingos Morais em Novembro de 1999. (Consultado a 10/09/2021) in http://alfarrabio.di.uminho.pt/cancioneiro/etnografia/manuelViegasGuerreiro literaturapop.pdf
38 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
bem demonstra o profundo engajamento de um intelectual humanista militante nas suas vertentes de estudo:
Vivemos sob o signo do povo: em política, em sociologia, em religião e até nos domínios da arte. Os governantes são do povo e para o povo. Tudo pelo povo, onde antes estava pela nação. Os sociólogos buscam servi lo, não é outra a doutrina social da Igreja. A arte popular ganha força e prestígio9
O interesse que se evidencia na obra de MVG pelas tradições populares e pela cultura local é notório desde os anos de liceu quando se interessa pela recolha das “poesias do senhor Francisco Martins Faria” em 1927, e em 1930 destaca se o texto de cariz antropológico “O Homem através do Tempos”, publicado no jornal Comércio de Portimão em 1957. Atentando nas diferentes versões que recolheu ao longo dos anos pelos vários países, percebemos que foi, desde sempre, um recolector incansável. E, creio que, este interesse não é mero acaso na medida em que, desde jovem, convive com a poesia de Silva Varejota, poeta popular da aldeia10. Releia se estes versos coletados por MVG em 197711: “É na terra que semeio/de todo o meu alimento (...) Na terra tudo é criado”.
O corpo da criatura
É só terra e nada mais,
Os nossos restos mortais
Estão sujeitos à sepultura;
Isto é a verdade pura.
Tudo na terra é criado, Depois torna ao mesmo estado,
Visto na terra viver, E a terra me há de comer
Depois de ser sepultado.12
9 Idem
10 Os versos de Francisco Martins Farias, poeta popular prefácio de Manuel Viegas Guerreiro, Querença, Junta de freguesia de Querença, 1991.
11 Manuel Viegas Guerreiro, “O Homem e a Terra em um Poeta popular do Algarve” in Natureza e Paisagem, n.º 2, Março, Lisboa, Secretaria de Estado do Ambiente Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, 1977, pp. 52 55.
12 Manuel da Silva Varejota, sítio dos Funchais, f. de Querença, c. de Loulé. Colector: Manuel Viegas Guerreiro
39 A FILOSOFIA HUMANISTA DO ANTROPÓLOGO MANUEL VIEGAS GUERREIRO
Para uma antropologia humanista
Entendemos que não é a técnica, nem o valor artístico, nem mesmo a mestria dos versos que MVG convoca, mas sim o diálogo com a terra, as suas mitologias, o seu povo, a poesia e a arte popular. Digamos que a literatura e os “dizeres do povo”, foram o mote para reflexões acerca do tempo, da morte e sobretudo da condição humana. Talvez tenha sido esta génese a encaminhar e a forjar o olhar humanístico e o caráter de sensibilidade voltada para a alteridade. Sem dúvida, o seu périplo por variadas geografias foi fulcral.
Ao longo da história, as inovações introduzidas pelo olhar antropológico possibilitaram uma conceção atenta ao diálogo para permitir encontrar novas soluções perante as nossas diferenças culturais (MONTIEL). Contudo, com base neste princípio de diálogo entre culturas, observa se que é preciso estabelecer bases ideais, pois, as culturas interpelam se mutuamente no processo de permuta. Acredita se que as convivências, a partir de 1957, com Margot Dias e Jorge Dias em África13, terão contribuído para alargar os horizontes do método de trabalho de campo14 de MVG15
No caso de MVG, digamos que o mestre praticou até ao fim da vida uma antropologia cívica a partir das conceções dos três humanismos de Claude Lévi Strauss (1956) e aplicou sobretudo o terceiro humanismo que estaria mais voltado para o alvorecer do olhar antropológico. Para MVG, tal como para Claude Lévi Strauss16, a etnologia é um humanismo capaz de desmoronar os alicerces de um pensamento antropocentrista17 como defende Claude Lévi Strauss neste texto fundamental publicado em 1973.
A etnologia, que busca a sua inspiração nas sociedades mais humildes e desprezadas, proclama que nada do que é humano pode ser estranho ao homem, e assim funda um humanismo democrático que se opõe aos que o precederam, criados para privilegiados, a partir de civilizações privilegiadas. E por mobilizar
13 Jorge Dias/Manuel Viegas Guerreiro, Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português: relatório da campanha de 1957 (Moçambique e Angola), Lisboa, Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação do Ultramar, 1958, p.2.
14 Destaque se as publicações de MVG na década de 60, «Literatura oral dos Macondes», in Comércio do Porto de 10 de Março de 1959 ou ainda O Conto Maconde de tema universal (1962).
15 Referir se ao estudo exaustivo de Luísa Guerreiro Martins, Caderno de Campo Manuel Viegas Guerreiro Moçambique 1957, Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto, 2016.
16 Claude Lévi Strauss, « Les trois humanismes », de 1956, republié dans l’Anthropologie structurale II [1973], Paris, Plon, 1996, p. 319 322.
17 Cf a análise do antropólogo João Leal, Antropologia em Portugal Mestres, Percursos, Transições, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, p.81 99.
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métodos e técnicas emprestados de todas as ciências para fazê los servir ao conhecimento do homem, ela convoca à reconciliação entre o homem e a natureza, num humanismo generalizado.18
Pois, se as gerações parecem destinadas ao esquecimento, o ensaio etnográfico permite resgatá las ao figurar como uma espécie de depósito da memória dos tempos e dos seres. Em suma, o kairos que tudo funde num imenso universo humano. Diria mesmo que este lugar imerso na natureza de Querença, com a tradição oral e os mestres do povo, bem antes dos eruditos, foram os que mais influenciaram Manuel Viegas Guerreiro para prosseguir os estudos de etnologia.
Resgatar a memória
Para melhor compreender o homem e a obra, de modo breve e para quase a concluir, atentemos no seu percurso de Querença para o mundo19. Estuda no Liceu de Faro e licencia se em 1936, em Filologia Clássica, na Faculdade de Letras de Lisboa, percorre em seguida o país de lés a lés para lecionar. Os anos de 1932 e 1936 foram crucias pois deram lhe a possibilidade de fazer parte do grupo de investigadores que mais marcaram os estudos antropológicos, geográficos e a reflexão filosófica em Portugal e que exerceram uma influência notória no seu trabalho. Este grupo integrava Orlando Ribeiro (1911 1941), o pai da geografia cultural, Rodrigues Lapa (1897 1989), Agostinho Silva (1906 1994), o grande filósofo do século XX e Leite de Vasconcelos (1858 1941). Este último foi o mentor de MVG, que viria a tornar se seu assistente entre 1940 e 1941 e de 1955 a 1970, data em que ordenou e publicou os manuscritos de Leite de Vasconcelos, em particular a Etnografia Portuguesa, em 10 volumes (1948 1989), a partir do 4.º volume. Uma certeza temos, a de que a literatura popular e o estudo dos povos africanos desde 1955 levaram o autor a instaurar um profícuo diálogo entre literatura e antropologia. Acima de tudo, interessa ser científico e comparar, analisar, fazer trabalho de campo para perceber. E isto fê lo com mestria MVG como demonstram as inúmeras publicações na área. Assente numa informação plurifacetada e de grande amplitude científica, o ensaísmo de MVG é iluminado por um rigoroso conhecimento clássico e filosófico. Saliente se que em 1969 doutorou se em Etnologia na Universidade de Lisboa e em 1971, já com esta experiência e apoiado pelos mestres Leite de Vasconcelos e Orlando Ribeiro20. Estes anos, como relembra o antropólogo
18 Claude Lévi Strauss, op.cit. Antropologia estrutural II, Cosac Naify, 2013. Trad Beatriz Perrone Moisés, p.320.
19 Para uma visão mais ampla Cf Rita Mendonça Leite, in Dicionário de Historiadores Portugueses, op. cit.
20 Manuel Guerreiro Viegas Etnografia e Geografia: Leite de Vasconcelos e Orlando Ribeiro, in Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro, I, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1984, pp. 63 75.
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A FILOSOFIA HUMANISTA DO ANTROPÓLOGO MANUEL VIEGAS GUERREIRO
HUMANISTA
João Leal, são também anos de transição na história da antropologia portuguesa21 Neste período, várias escolas se constituem, MVG exila se na sua própria escola e filosofia influenciada pela renovação trazida por Jorge Dias22. Ciente dessas mudanças, num dos livros já citado, coloca uma questão essencial em antropologia23: como escrever o terreno e como tornar legível as notas para o leitor, como insistia Margaret Mead (1977)? Numa atitude que demostra bem esta observação participante por parte de Manuel Guerreiro, este afirma:
Não saberei dizer em que escola, propriamente, me filio, na posição teórica que assumo. Talvez um funcionalismo de forte acento social, um imenso desejo de que o que escrevo venha a servir a comunidade que estudei e a nação a que pertenço. E, juntamente, um pendor pedagógico que me vem da vocação e do ofício. Sempre estou querendo ensinar, tornar claro e acessível o que escrevo.24
O que se conclui com esta afirmação é sem dúvida o engajamento social de um homem que procurou levar o saber a todos e aproximou a cultura popular da cultura universitária. Foi precisamente com este intuito que criou com Agostinho da Silva os Estudos Gerais Livres Ensino Público e Gratuito em 1988, reunindo assim os maiores especialistas nacionais, nas mais diversas áreas do conhecimento. Certo, nos últimos anos, nomeadamente com o trabalho da Fundação, têm se multiplicado os estudos académicos, científicos e as homenagens a MVG. No entanto, carece ainda que seja dado maior relevo ao estudo do pensamento etno filosófico desenvolvido por este investigador que cedo se preocupou com a transmissão da memória e no ser um modelo do Homem das leis, tal como que proclamou Montesquieu (1748). Lembro que MVG marcou a etnologia, mas foi sobretudo pioneiro na forma como defendeu a educação como chave para a compreensão do outro, evitando desta feita o reducionismo. E isto deve se, sem dúvida, à sua curiosidade e grande erudição. Termino com esta interrogação e mensagem de Manuel Viegas Guerreiro, que nos lança um desafio a todos nós seres humanos: o de resgatar a nossa humanidade.
21 op.cit, p.115 116.
22 Cf João Leal, p.149 166.
23 Mondher Kilani « L'anthropologie de terrain et le terrain de l'anthropologie. Observation, description et textualisation en anthropologie » in Réseaux. Communication Technologie Société, 1987, pp. 39 78.
24 op.cit.,1981, p. 30.
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ANTROPÓLOGO
E
Como reconstituirá o historiador o passado sem recorrer à lição que os textos populares dão? Como há de prescindir de uma comunicação directa e autêntica tantas vezes arredia da documentação dos arquivos? E o psicólogo, o filósofo como hão de erguer suas construções? E como achar as coordenadas que definem a identidade de uma nação sem a voz do povo, que é afinal tudo o que fomos, somos e seremos?25
Afinal, não terá sido investido nesta filosofia humanista, universal e democrática, de que nos falava Claude Lévi Strauss, que Manuel Viegas Guerreiro procurou seguir e transmitir com a “infinita liberdade de ensinar” em tempos, antes, durante e depois do Regime, novos caminhos para a liberdade de pensar?
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25 op.cit.,1986.
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ANTROPÓLOGO MANUEL VIEGAS GUERREIRO
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MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
VIEGAS
A FILOSOFIA HUMANISTA DO ANTROPÓLOGO MANUEL
GUERREIRO
Centro de mesa da conferência
Conferência jantar com Egídia Souto
Almoço serrenho com Rui Penas
CAPÍTULO II
ManuelViegasGuerreiro nomundoeentrepares
ADRIANA FREIRE NOGUEIRA é directora regional de Cultura do Algarve e professora auxiliar na Universidade do Algarve.
É de Etnografia Manuel Viegas Guerreiro: o percurso e a filosofia de um humanista e antropólogo
Como Diretora Regional de Cultura do Algarve, apraz me ver que há pessoas, lugares e instituições que não confundem «grandeza» com «tamanho» (espaço físico, espaço ocupado), mas a entendem e disseminam com o sentido de «excelência».
É o caso desta fundação (que leva o nome do patrono, hoje homenageado), nesta aldeia de Querença, que prima pela excelência do trabalho das pessoas que aqui promovem a cultura, que aqui desenvolvem um trabalho para a comunidade e para além dela, demonstrando essa mesma grandeza.
Como classicista, é com muito satisfação que vejo a repercussão do trabalho que um outro classicista fez. Sim, porque Manuel Viegas Guerreiro também era licenciado em Estudos Clássicos (no seu tempo, Filologia Clássica, no meu, Línguas e Literaturas Clássicas), e poderá ter sido num dos autores gregos que estudamos, talvez Heródoto, que descobriu o gosto pela etnografia.
No séc. V a.C., quando Heródoto viveu, este ramo do saber ainda não se configurava como tal, nem como começou a ser tratado, ainda no séc. XVIII, como um corpo de conhecimento científico, com uma determinada metodologia, mas, sim, como um modo de descrever e representar o Outro.
Mesmo nos estudos da antiguidade, tem havido desenvolvimentos: para além das questões da identidade grega que os documentos literários nos trazem, passou se a olhar para outras fontes, como a pintura ou a escultura, para obter conhecimento de usos, costumes, modos de vida, etc.
Bla, bla, bla, bla, dizemos nós, quando alguém fala e não percebemos. Bar bar bar bar (βαρ, βαρ, βαρ, βαρ) era a forma de transcrever o som que os gregos diziam que ouviam dos que não falavam grego e, por isso, não percebiam. Os outros eram, pois, os bárbaros (βάρβαρος), isto é, os que não falavam a língua grega, porém, esquecemo nos facilmente que, para os Outros, somos nós os Outros, somos nós os bárbaros: quando, na Bíblia, 2.º Macabeus 2.19, os judeus se referem aos gregos chamam lhes, precisamente, «bárbaros»: têm outra língua, têm outros costumes, outra religião, e, para o povo judaico, são violentos, sentido que a palavra, entretanto, também adquiriu (após a guerra contra os Persas, naquele mesmo séc. V a.C., a palavra evoluiu semanticamente, acrescentando o significado
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Intervenção na abertura do seminário internacional de Etnografia
Adriana Freire Nogueira
que lhe damos hoje, de «brutal», «rude»).
Relativamente à etnografia, na sua etimologia, a palavra reúne os nomes éthnos (έθνος) e graphé (γραφή).
Na origem, éthnos significava um grupo de pessoas que viviam em comunidade, uma tribo, por exemplo. Depois, o sentido estendeu se para «nação», «povo».
Também os gregos usavam esta palavra, no plural (éthnea), para designar as «nações estrangeiras», «bárbaros», por oposição a «Gregos» (Héllenes). Encontramo la, em português, em «etnia», «étnico», ou como elemento de composição, «etno », em palavras como etnologia ou, precisamente, etnografia.
O nome graphé significa «escrita», «documento escrito», «tratado», «descrição», entre muitos outros sentidos daí derivados.
Encontramos a raiz graph em palavras portuguesas onde o sentido de «escrever» esteja presente, como em «caligrafia» (uma escrita bonita), ou grafologia (estudo da escrita), ou no final desta que nos ocupa, etnografia Então, literalmente, etnografia poderá ser entendida como a descrição de outros povos. A esta se juntam outras ciências, como a etnologia, a antropologia e todas aquelas que nos ajudam a compreender o ser humano nas suas múltiplas dimensões.
O historiador grego Heródoto, que mencionei acima, viajou muito, ouviu versões diferentes sobre tradições, e descreveu lugares, povos, costumes, estabelecendo correlações. Apresento alguns exemplos das suas observações:
«Os Agatirsos são um tipo de gente particularmente sofisticada, muito dados ao gosto pelas joias. Praticam a comunidade de mulheres, para que se estabeleçam, entre uns e outros, laços de parentesco; e assim, constituindo todos uma família, acaba se com invejas e rivalidades mútuas. Quanto aos restantes costumes, assemelham se aos Trácios.
Os Neuros partilham os hábitos citas. (…) Afirmam os Citas e os Gregos que habitam a Cítia que, uma vez por ano, cada um dos Neuros se transforma em lobo por uns dias, para depois retomar a forma primitiva. A mim, esta história que eles contam não me convence; mas nem por isso deixam de insistir nela, assumindo até compromisso de honra pelo que estão a dizer.
Os Andrófagos são, de entre todos os povos, o que tem hábitos mais selvagens. Não respeitam a justiça, nem fazem uso de qualquer tipo de lei. São nómadas, usam um vestuário semelhante ao dos Citas, têm uma língua própria e são os únicos, de entre estas comunidades, que comem carne humana» (Hdt. 4.104 106)*. Mas Heródoto também descreve costumes gregos e as conexões que percebe com outros povos não gregos, nomeadamente os Persas, contra quem lutaram várias vezes. É o caso dos Lacedemónios (habitantes da Lacónia, região onde se situava a cidade grega de Esparta): «A tradição que os Lacedemónios observam aquando da morte dos seus soberanos é semelhante à dos Bárbaros da Ásia. De facto, a maior parte deles procede da mesma forma por altura do falecimento dos reis. Quando um rei lacedemónio morre é obrigatório que, de toda a Lacónia, além dos Espartanos, um número determinado de Periecos compareça também no funeral. E assim que estes, os
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INTERNACIONAL DE ETNOGRAFIA
Hilotas e os próprios Espartanos se reunirem aos milhares num mesmo sítio, batem, acompanhados pelas mulheres, no rosto, de forma violenta, e abandonam se a prantos intermináveis, enquanto vão afirmando todo o tempo que o último rei falecido era verdadeiramente o melhor (…).
Os Espartanos coincidem com os Persas noutro costume: assim que ao falecido sucede outro rei, este, ao entrar em funções, libera dos encargos qualquer Espartano que devesse alguma coisa ao rei ou ao Estado. Entre os Persas, o rei que toma posse desconta a todas as cidades o tributo que antes deviam.
Os Lacedemónios concordam ainda com os Egípcios noutra tradição: entre eles, os arautos, tocadores de flauta e cozinheiros herdam a arte dos pais, e assim um flautista é filho de um flautista, um cozinheiro de um cozinheiro e um arauto de um arauto. E outros que possuam uma voz forte não poderão excluí los dessa tarefa, antes serão os filhos dos arautos a continuar o mester paterno. É este, portanto, o estado das coisas». (Hdt. 6. 58.2 60.1)*
Como se pode perceber, os clássicos e os estudos etnográficos tocam se, e Manuel Viegas Guerreiro é um bom exemplo dessa compreensão.
Esta é uma ciência que contribui para o humanismo e a tolerância, pois, ao observarmos e estudarmos os outros, percebemos, para além das diferenças, o quão somos semelhantes.
Que todos os que aqui estão reunidos nestas jornadas contribuam para que Querença não seja apenas a «Aldeia Internacional da Etnografia e Antropologia por Dois Dias», mas a Aldeia Internacional da Etnografia e Antropologia, sem aspas e sem limites temporais.
Bom trabalho!
* Heródoto, Histórias (Livro 4.º), Lisboa, Edições 70, 2000. Introdução, versão do grego e notas de Maria de Fátima Silva e Cristina Abranches Guerreiro.
*Heródoto, Histórias (Livro 6.º), Lisboa, Edições 70, 2000. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira e Delfim Leão.
INTERVENÇÃO NA ABERTURA DO SEMINÁRIO
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FRANCISCO MELO FERREIRA é professor do ensino secundário, licenciado em Geografia e com um Curso de Formação Avançada em Ciência Cognitiva. Amigo de Manuel Viegas Guerreiro desde que foi seu aluno até à sua morte, acompanhou diferentes iniciativas do Professor, cuja pessoa e ideias considera que iluminaram o mundo. Integrou os Estudos Gerais Livres e é investigador do CLEPUL/Grupo de Investigação de Tradições Populares Portuguesas Manuel Viegas Guerreiro, FLUL. Autor da Fotobiografia de Manuel Viegas Guerreiro (2006) e de Estudos Gerais Livres, a apologia do sonho ou a infinita liberdade de ensinar (2019), obras publicadas pela Fundação que leva o nome do Mestre.
It is not the kings and generals that make history, but the masses, the people.
Nelson Mandela
O conceito de povo marcou o século XX, a que alguns chamaram o “Século do Povo”. O conceito teve configurações muito marcadas pelas ideologias que, tanto o podiam entender como o motor das transformações revolucionárias, como a raiz dos valores tradicionais. Entre o “Bom Povo Português” e o “Povo Unido” estendia se a distância que separava estas diferentes conceções.
Para Manuel Viegas Guerreiro o povo não era apenas um conceito, mas um ambiente que lhe era por um lado familiar e, por outro, o seu objeto de estudo, de trabalho e de preocupação com o conhecimento, preservação e valorização da sua produção cultural.
Essa preocupação está presente em grande parte da sua obra em múltiplas formas, quer na observação detalhada e na valorização das práticas culturais de povos africanos, quer nas reflexões sobre Literatura Popular. O foco para onde convergem estas reflexões é a ideia da importância das expressões culturais do “ povo”. Esta pluralidade de sentidos levou a que Fernando Mão de Ferro, responsável da editora Colibri, tenha escolhido para a coletânea de textos preparada ainda em vida de Manuel Viegas Guerreiro, o título Povo, Povos e Culturas integrando no mesmo espectro conceitos que representam diferentes vertentes do seu trabalho.
Mas, antes de analisar a reflexão conceptual manifestada em textos do Mestre, parece me importante referir algum do pensamento que tem vindo a ser produzido em áreas como a História dos Conceitos e a Antropologia Cognitiva. A preocupação com os contextos históricos, sociais e culturais que produzem determinados conceitos e o entendimento particular que lhes é dado está presente nestas correntes de pensamento.
Esta necessidade de historicizar os conceitos e entender a sua alteridade, evitando anacronismos, tornou se essencial uma vez que “As palavras são, pois, as mesmas,
O conceito de povo em três textos de Manuel Viegas Guerreiro. Uma releitura
Francisco Melo Ferreira
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mas não os conteúdos e vivências a elas associados”1 sendo estes dependentes dos contextos históricos em que decorreram.
Para Reinhardt Koselleck (1923 2006), historiador alemão considerado como um dos criadores da História dos Conceitos, “anthropologically speaking, every ‘history’ is formed by the oral and written communications of generations living together and conveying their respective experiences to each other”2 . Curiosamente, esta perspetiva aproxima se das preocupações de Manuel Viegas Guerreiro com a importância da oralidade na produção cultural, entendida como uma permanente recriação. Também do ponto de vista da Antropologia a procura permanente dos significados dos pensamentos do Outro contribuiu decisivamente para uma abordagem situada de questões como a cognição, a forma de estruturar os conceitos que nos permitem entender o mundo que nos rodeia. Um dos autores que criou as bases do que designamos por Antropologia Cognitiva, Maurice Bloch, explica de forma muita clara a necessidade de estabelecer pontes entre o estudo da cognição e da Antropologia.
«The reason is that cognition is different because it is always central to what is at issue. This centrality is due to the fact that anthropologists are forced, by the very nature of their subject matter, to 'do cognitive anthropology' all the time. They, like many other social scientists, are 'doing cognitive anthropology' as soon as they claim to represent the knowledge of those they study, as soon as they try to explain the actions of people in terms of that knowledge, as soon as they warn the general public, or each other, of the dangers of ethnocentrism, as soon as they discuss the extent, or the limits, of cultural variability.»3
Uma das abordagens mais originais de Manuel Viegas Guerreiro ao conceito de povo surge no notável livro Para a história da literatura popular portuguesa, que teve a 1.ª edição em 1978. Na tentativa de clarificar a essência da cultura popular define a como a que corre entre o povo, quer de sua autoria quer a que este integra, «E populares são quantos escritos de outros géneros passem pelo coração do povo.»4 Daqui decorre a definição de dois tipos de artífices, povo e não povo, que adiante procura caracterizar.
«Mas tornemos ao nosso tema que é o dos artífices da literatura popular. Nos que provêm do povo há que ter em conta os analfabetos, os de poucas letras e os semiletrados, os do campo e os da cidade, a maior ou menor distância a que aqueles se encontram dos centros urbanos;
1 Sebastián (2008), pág. 7
2 Koselleck (1998), pág. 28
3 Bloch (2004), pág.7
4 Guerreiro (1978), pág. 9
58 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
e, em cada um deles, sua biografia, sua específica conceção da vida.»5
Partindo desta dicotomia entre povo e não povo, passa para uma extraordinária abordagem da oralidade e da escrita e das virtudes, tantas vezes esquecidas, da palavra falada. Mas a escrita traz consigo novas separações que agravam as desigualdades entre quem lhe tem ou não acesso.
«À riqueza e pobreza, já de si suficientes para criar esta discriminação, outro grande poder se junta e também privilégio de abastados, que é o da escrita. Vai esta igualmente constituir, por assim dizer, monopólio de poucos, aspiração distante de muitos. Ficam mais rudes os rudes e porventura mais soberbos os senhores iletrados de antes. Um poderoso instrumento cultural que agrava a distância entre o vulgo e o não vulgo, sobretudo depois da invenção da Imprensa, do século XV em diante.»6
E chegamos a um dos temas centrais do pensamento de Manuel Viegas Guerreiro, a valorização da produção cultural do povo. Eis o que afirma sob o título Povo ignorante
«No que chamamos o mundo ocidental sempre as classes privilegiadas, económica, social e politicamente, têm manifestado desprezo pela plebe, pelo populus in populo ou «povo popular». Para além das constantes universais do comportamento gera a desigual repartição da riqueza grupos sociais bem individualizados, com casa, alimentação e vestuário próprios, específicas relações sociais e consequente ideal de vida ou visão do mundo»7
No resto do livro dedica se a uma análise detalhada das diferentes visões do popular e da sua subalternização ao longo dos tempos, desde a Antiguidade até ao pensamento antropológico dos séculos XIX e XX. Para cada momento analisado são dados exemplos do desprezo do que vem do povo e argumentos a favor da sua valorização.
5 Ibidem, pág. 10
Ibidem, pág. 16
Ibidem
6
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59 O CONCEITO DE POVO EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO. UMA RELEITURA
«Tudo o que vem do povo há de ser necessariamente tosco, imperfeito, irregular. Não produz ciência, mas sabedoria, porque não confronta, relaciona, generaliza. Acumula factos, empiricamente, não conhece a complexa causalidade que os explica. É espantoso que se erre tanto a respeito de uma entidade com a qual se vive ou de que se provém. Estranha alienação, esta! O povo compara, reflecte, conclui, organiza os seus conhecimentos do mesmo modo que o não povo.»8
A conclusão do livro está bem espelhada numa frase duma clareza e simplicidade lapidar em que reafirma a unidade do conceito de cultura e a necessidade de estudar todas as manifestações culturais.
«E, para distinguir o letrado do iletrado, do primeiro se diz que é culto e do segundo inculto. Iguala se cultura a saber escolar, como se na prática quotidiana o homem comum se não instruísse, como se o seu saber fosse qualitativamente diferente do outro. Não há gente culta e gente inculta. A cultura é só uma, tudo o que aprendemos do nascer ao morrer, de nossa invenção ou alheia, sentados nos bancos da escola ou da vida. Não há uma alta cultura e uma baixa cultura, uma cultura superior e outra inferior ou popular, mas só cultura. Acabemos de vez com essa absurda e injusta discriminação.»9
O segundo texto que irei analisar foi escrito em 1987 e publicado no número 15 da Revista Lusitana Nova Série, em 1996 quando Manuel Viegas Guerreiro se encontrava já hospitalizado. Com o título Tradição Oral e Identidade Cultural Regional Textos de camponeses de Querença constitui uma introdução a uma história de vida contada por seu pai e recolhida em 1962. Como se referia na apresentação feita na Revista Lusitana, «Esse texto mereceu ao Professor Viegas Guerreiro muitas dúvidas quanto à sua publicação, apesar de já ter decidido fazê lo neste número da mesma publicação, ainda antes da sua doença. Para introduzir esse texto, utilizámos um extrato de uma comunicação apresentada ao Congresso «O Algarve na Perspectiva da Antropologia Ecológica», realizado pela Universidade do Algarve em 1987. Essa comunicação, que na altura da sua apresentação foi entrecortada pela extrema emoção do Professor Viegas Guerreiro, constitui um documento de grande interesse na análise da importância da História Oral na sua relação com o relato etnográfico. O texto começa por uma curiosa análise das relações sociais na Idade Média que enquadra uma primeira definição do conceito de povo, classe oprimida e silenciada
pág.
pág.
8 Ibidem,
19 9 Ibidem,
24 60 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
VIEGAS GUERREIRO. UMA
por oposição a outros grupos que podiam fazer ouvir a sua voz.
«Concelhos ou classes populares, braço popular, povos, povo, mas entenda se que na composição social dos concelhos predominavam os homens bons, ricos mercadores, abastados proprietários, um que outro mestre de ofícios endinheirado, e onde não faltavam a alta e baixa nobreza. O povo, a classe autenticamente popular, o comum povo, o povo miúdo, o populus in populo, a massa dos assalariados das cidades e dos campos, essa nenhuma voz tinha em assembleias consultivas ou deliberativas, e de tal maneira oprimido, silenciado, que quase não existe nos documentos oficiais.»10
Mas, para Manuel Viegas Guerreiro, é essa voz que devemos procurar ouvir quando pretendemos compreender a identidade cultural de uma região. Numa frase com uma brilhante clareza e acutilância caracteriza, por um lado as ferramentas de trabalho de campo que devemos utilizar para incorporar este conhecimento, ao mesmo tempo que alerta para os riscos duma análise demasiado superficial ainda que precedida de alguma fundamentação teórica, «um relance de olhos de feição etnológica, em geral precedido de falso juízo teórico».
«Para definir a identidade cultural de uma região, havemos de nos socorrer do discurso oral da sua gente, misturando nos com ela, ouvindo a na rua e em casa, participando se pudermos, em seu labor quotidiano. O trabalho de campo tem de ser contínuo, duradouro, abranger todos os períodos da vida rural, que para pouco serve num relance de olhos de feição etnológica, em geral precedido de falso juízo teórico.»11
O último texto aqui abordado data de 1995 e foi apresentado na abertura do Colóquio Retratos do País organizado pelo Centro de Estudos de Antropologia Social do ISCTE e pelo Centro de Tradições Populares Portuguesas, em 11 e 12 de outubro desse ano. Manuel Viegas Guerreiro começa por reconhecer a singularidade da iniciativa de acolher o povo na Faculdade, para depois voltar a uma definição extensiva de povo.
«Deu se ao Colóquio o nome de Retratos do País, fico me só com o de Retratos do Povo, que é principalmente dele que se há de tratar. Iniciativa quase singular esta de trazer o povo para dentro da Faculdade, para o explicar, numa buscada tentativa de lhe
10 Guerreiro (1995), pág. 9
11 Ibidem, pág. 24
O CONCEITO DE POVO EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL
RELEITURA
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determinar as coordenadas da cultura, alguns traços específicos da identidade nacional.»12
E encontramos uma nova tentativa de definição extensiva do conceito de povo que, curiosamente, se conclui com a identificação com o Outro.
«Mas povo, que povo? O popular, é evidente, o comum povo, o menos favorecido economicamente, a gente da rua, de meia tigela por oposição à gente fina, de boas famílias, o Zé Povinho de Bordalo, os outros em relação a nós. O povo, em suma, que os políticos há pouco muito buscavam e de quem se irão alheando, o povo dos governos, que vive no aconchego verbal dos intelectuais e de artistas snobes.»13
E, de certa forma já num contra ciclo, Viegas Guerreiro termina com um apelo para quebrar este alheamento e criar uma nova aproximação a este território longínquo do povo.
«E se nos organizássemos num novo Serviço Cívico, agora de estudantes, professores, investigadores, com sede no Centro de Tradições Populares Portuguesas, e fôssemos ao encontro do povo, como foram os brigadistas do Serviço Cívico Estudantil que o génio de Michel Giacometti concebeu e tomou realidade?»14
É um desafio que perdura e que nos interroga sobre qual o lugar do povo no nosso entendimento do mundo atual.
Reler Manuel Viegas Guerreiro é um desafio que nos permite redescobrir tesouros escondidos num pensamento com uma abrangência muito maior do que a particularidade dos estudos de Antropologia ou de Literatura Popular poderia fazer supor. A permanente preocupação com a valorização da cultura popular, por exemplo, ajuda nos a pensar a questão do valor através dos tempos.
12 Guerreiro (1996), pág. 13
13 Ibidem, pág.14
14 Ibidem, pág. 17
62 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
ANTROPÓLOGO
E
HUMANISTA
BIBLIOGRAFIA
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Guerreiro, Manuel Viegas, Para a história da literatura popular portuguesa, Biblioteca Breve / Volume 2, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1978.
Guerreiro, Manuel Viegas, Algumas reflexões em torno do tema in Revista Lusitana (Nova Série), 13 14 , 1995, pp. 13 18.
Guerreiro, Manuel Viegas, Tradição Oral e Identidade Cultural Regional Textos de camponeses de Querença in Revista Lusitana (Nova Série), 15 , 1996, pp. 9 12.
Koselleck, Reinhardt, “Social history and Begriffsgeschichte” in Hampscher Monk et al, History of Concepts. Comparative Perspectives. Amesterdão, Amsterdam University Press, 1998, pp. 23 36.
Sebastián, Javier Fernández “Apresentação” in Ler história, n.º 55 História Conceptual no Mundo Luso Brasileiro, 1750 1850, Lisboa, 2008.
O CONCEITO DE POVO EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO. UMA RELEITURA 63
MACIEL SANTOS é professor auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Coordenador Cientifico de Centro de I&D Centro de Estudos Africanos, UP.
LUÍSA FERNANDA GUERREIRO MARTINS é doutorada em História (estudos da resistência das populações do norte de Moçambique à implantação do sistema colonial português na passagem do século XIX para o século XX). É investigadora no Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora e investigadora colaboradora no projeto Diaita Património Alimentar da Lusofonia, da Universidade de Coimbra. Neste momento desenvolve o pós doutoramento com um projeto de registo, divulgação e estudo do espólio que o antropólogo Manuel Viegas Guerreiro reuniu ao longo dos seus estudos sobre as populações africanas que estudou e visitou. Participa em colóquios internacionais e nacionais nas áreas da sua formação académica e profissional. Publica artigos em revistas e sites científicos. É técnica superior na Câmara Municipal de Loulé.
Manuel Viegas Guerreiro Boers de Angola 1957
A biografia de Manuel Viegas Guerreiro já é conhecida, assim como a globalidade do seu trabalho antropológico e etnográfico em Portugal e nas antigas colónias portuguesas de Moçambique e Angola. Dessa experiência em África resultaram dois trabalhos de fundo: um sobre os Macondes (juntamente com Jorge Dias e Margot Dias) Os Macondes de Moçambique: Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos (vol. IV, 1966) e outro sobre os Bochímanes Bochímanes !Khü de Angola (1968). O etnógrafo contactou ainda com outras populações dos territórios moçambicano e angolano, nomeadamente as minorias potencialmente dissidentes. Assim surgira o relatório sobre os denominados Boers ou Afrikaners de Angola. A missão etnográfica liderada por Jorge Dias àqueles territórios foi, como se sabe, um projecto das Missões de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português. Como tal, tratava se de observar cientificamente mas sempre de acordo com prioridades politicamente orientadas.
Enquanto a Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português estava em Moçambique, coube a Viegas Guerreiro a viagem até ao sul de Angola. É muito provável que lhe tenha cabido a responsabilidade dessa viagem uma vez que esse território já lhe seria familiar. Nos anos de 1949 e 1950 Guerreiro tinha lecionado no liceu Diogo Cão, na cidade então designada por Sá da Bandeira (Lubango).
Além disso, esse regresso a Huíla terá igualmente tido a utilidade de permitir recolha de material para a sua futura tese sobre os Bosquímanos de Angola.
O conjunto das visitas feitas no quadro da Missão de Estudos foi de curta duração. Sabe se que para o contacto com os Bochímanes, a presença efetiva do investigador junto deste povo se resumiu a dois meses, sendo que parte do tempo foi perdido a tentar localizá los.
A visita à comunidade boer fez se em Outubro de 1957, de acordo com as legendas
* Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto
** CIDEHUS Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, Universidade de Évora
Maciel Santos* e Luísa Martins**
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das fotografias que Manuel Viegas Guerreiro tirou às famílias dessa comunidade. Tudo indica que estes encontros terão sido também muito breves. As próprias observações sobre o seu objeto de estudo foram, neste caso, ligeiras e, por vezes, lacunares o que também demonstra o circunstancialismo destas observações, muito provavelmente periféricas nos interesses de Viegas Guerreiro na altura.
Os Boers ou Afrikaners, uma minoria étnica instalada no sul de Angola, descendentes dos que, no início da década de 1880, tinham realizado o trek desde o Transvaal. O relatório confirma o enquadramento político do inquérito: mais do que um estudo de tipo monográfico, Viegas Guerreiro deveria avaliar o tipo de relação que mantinham com os seus vizinhos portugueses e africanos e particularmente com a administração portuguesa. Através de várias observações de carácter pessoal e político, Viegas Guerreiro manifesta se negativamente sobre o grau de integração destes Boers em Angola, concluindo pela grande plausibilidade de mais um êxodo em direção ao Sudoeste Africano.
Boers de Angola 1957 dando seguimento à coleção Experiências de África, série Manuel Viegas Guerreiro, é uma publicação em coedição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto e da Câmara Municipal de Loulé, que conta com a colaboração do Centro de Investigação Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora e da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. De acordo com o padrão da coleção, a estrutura do livro inclui três partes.
A primeira é um estudo de contexto: explica a génese do trabalho de Angola de Viegas Guerreiro, os seus itinerários e sintetiza o que se sabe sobre a comunidade Boer do sul de Angola até ao momento em que foi descrita pelo etnólogo.
A segunda parte inclui, com notas críticas, os documentos que pela primeira vez se publicam a transcrição do manuscrito que serviu de base ao relatório e a reprodução deste, que constituiu um capítulo do Relatório de Estudo sobre as Minorias Étnicas do Ultramar Português. Nesta segunda parte, incluem se também 29 fotografias originais do autor sobre os Boers.
A terceira parte materiais de apoio pretende contribuir para uma melhor compreensão desta documentação e contém: cartografia baseada nos itinerários e informações de Manuel Viegas Guerreiro e dos Boers, um glossário, um índice toponímico e uma lista bibliográfica (sobre esta missão bem como sobre os Boers de Angola).
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MANUEL VIEGAS GUERREIRO BOERS DE ANGOLA 1957
Biblioteca Museu Manuel Viegas Guerreiro
Conferência, por Maciel Santos e
Luísa Martins
Conferência, por Adriana Freire Nogueira
Conferência, por Francisco Melo Ferreira
CAPÍTULO III
Documentoshistóricos esuasalvaguarda
PEDRO FÉLIX é coordenador da Equipa Instaladora do Arquivo Nacional de Som, membro dos centros de investigação INET md e do IHC, ambos da UNL. Colaborou com o Museu do Fado onde coordenou e desenvolveu o programa de digitalização do espólio fonográfico. Integrou a equipa responsável pela produção da candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade (UNESCO).
Tem organizado vários arquivos de som privados e colaborado com entidades públicas e privadas no tratamento de espólios fonográficos. Tem realizado trabalho de gravação, digitalização, restauro e masterização de áudio. Concebeu e coordenou o projecto europeu HeritaMus.
Manuel Viegas Guerreiro O arquivo pessoal de um “humanismo essencial”
Pedro Félix*
Ahistória da Etnografia em Portugal terá duas figuras tutelares: Leite de Vasconcellos e Jorge Dias. Essas duas figuras tocam se em Manuel Viegas Guerreiro.
Leite de Vasconcelos é o perfeito exemplo do intelectual romântico da viragem de século que cruzava as ainda indistintas fronteiras disciplinares da Arqueologia, da Etnografia, da História, da Geografia e da Filologia.
Jorge Dias e o seu grupo de que fazia parte a sua mulher Margot Dias, Fernando Galhano, Benjamin Pereira e Ernesto Veiga de Oliveira representam uma linhagem mais reconhecidamente moderna num contexto em que a prática etnográfica ainda se articulava bastante com a prática folklórica e em que a “recolha”, mais do que uma técnica, era um instrumento.
Manuel Viegas Guerreiro teve por mestre Leite de Vasconcelos. Acompanhou o até ao final dos seus dias e projectou o no futuro, não só por ter assumido a responsabilidade de editar e fazer publicar os materiais dispersos do mestre, mas sobretudo por encontrarmos intensas linhas de continuidade da obra de Vasconcelos na mundo visão de Viegas Guerreiro. No que diz respeito a Jorge Dias, Viegas Guerreiro foi nomeado seu assistente em várias missões em Angola e Moçambique, integrado na “Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar”, tendo procedido a importantes recolhas juntos de Bosquímanes e Maconde. Marcado pela pluralidade de uma abordagem “ecológica” e “humanista” que terá raiz profunda no mestre Vasconcelos, com Dias reforçou o seu fascínio por África.
Na década de 1970, já académico afirmado e reconhecido, Viegas Guerreiro cruzou se com outra figura central da Etnografia em Portugal, o corso Michel Giacometti, com quem se mobiliza no Serviço Cívico. Nesses intensos anos, Viegas Guerreiro assumiu a direcção do Museu Nacional de Arqueologia, entidade herdeira do Museu Etnográfico Português criado, em 1893, pelo mestre Leite Vasconcelos.
*Coordenador da equipa de instalação do Arquivo Nacional do Som
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ANTROPÓLOGO
HUMANISTA
Desta muito sintética nota biográfica, fica nos a imagem de alguém que parece estar presente ao lado de figuras tutelares, mas que nunca se coloca no centro da “fotografia”. Na verdade, a personalidade discreta e suave de Viegas Guerreiro esteve associada à produção de todo um manancial de informação etnográfica produzida praticamente durante todo o século XX de que foi agente determinante. Então, porque permanece tão discreto o seu papel na história da Etnografia em Portugal? Não será só por efeito da sua personalidade, mas, creio, deve se sobretudo à sua visão da ciência como domínio sem barreiras disciplinares. Habitualmente, estes autores “transversais” acabam remetidos para uma zona cinzenta raramente reclamada e acabam, tantas vezes, secundarizados por um mundo moderno preocupado com o confinamento epistemológico.
Por outro lado, estes autores, nas suas múltiplas e diversas actividades, vão acumulando documentação de todos os tipos, documentos que servem de base para a produção de conhecimento cuja face publicamente visível são as comunicações, os artigos, as monografias e as exposições. Sob essa “superfície” estão centenas, por vezes milhares, de documentos: fichas, correspondência, diários de terreno, notas dispersas, recortes de imprensa, fotografias, pequenos filmes, objectos, livros de outros autores que formam a percepção do mundo e o quadro conceptual, material gráfico (desenhos, postais) e... por vezes, documentos sonoros. Sendo diversos, o seu tratamento torna se muito mais complexo. Os documentos valem por si, autonomamente, pela informação que neles está contida, mas valem também pelo conjunto que integram e que se convenciona designar, nas ciências da informação, por “arquivos pessoais”: conjuntos documentais, produzidos e reunidos por uma pessoa, tantas vezes articulado com a actividade de uma ou mais instituições (museus, universidades, centros de investigação). O seu tratamento exige, por isso, uma imensa variedade de recursos técnicos e tecnológicos para que o máximo de informação possa ser recuperada. Se essa complexidade própria de uma grande variedade de temas e formatos não fosse já o bastante, porque estes autores são especialmente dinâmicos, a sua produção documental surge muitas vezes dispersa por instituições com missões bem distintas, com capacidade de processamento muito variáveis, constituindo essa dispersão um risco para os próprios documentos mas sobretudo para a informação que neles está registada.
No caso de Manuel Viegas Guerreiro, a sua produção documental estará sobretudo custodiada pela Fundação de que é patrono e pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) de que é figura tutelar. Outras entidades por onde terá passado terão certamente documentação relevante para melhor conhecer a pessoa e o investigador, em particular no Museu Nacional de Arqueologia do qual foi director ou, sobretudo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde foi destacado Professor.
No caso de Manuel Viegas Guerreiro, é precisamente essa pluralidade e diversidade que é conceptual, epistemológica, filosófica, mas também biográfica que importa
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sublinhar e fazer ressaltar. Tratar a sua documentação de forma atomística, seja a sua biblioteca pessoal (tratada como tal) ou a sua colecção de objectos (que poderíamos ter a tentação de tratar museologicamente), ou, pior, tratar os seus documentos conforme a sua tipologia material (os documentos textuais separados dos documentos fotográficos e dos documentos sonoros) seria exactamente igual a amputar um membro a um corpo, no caso vertente ainda mais grave dada a própria diversidade conceptual que subjazeu à sua produção.
Além de tudo isto, a dispersão institucional e geográfica é factor a considerar, no que isso tem de obstáculo à integração e articulação de documentos, mas de riqueza contextual que importa fixar.
Mas contra si, estes fundos têm o problema da fragmentação. As linhas que unem estes materiais é a figura de quem os criou ou reuniu. Por isso são tantas vezes secundarizados e dispersos até à sua diluição e mesmo desaparecimento. Mas é precisamente aqui, neste campo, que as mais inesperadas e produtivas associações podem ser geradas, pois ainda que, eventualmente, fragmentária e dispersa, não serão nunca mero “gabinete de curiosidades” mas um reflexo fiel e verdadeiro do seu criador, de Manuel Viegas Guerreiro.
Só a pluralidade articulada num ecossistema documental poderá fazer jus à memória e à prática do seu criador.
Acresce a todas as dificuldades sinalizadas, a inexistência de uma entidade habilitada a tratar arquivisticamente os documentos sonoros. Esse enorme obstáculo, sinalizado desde meados da década de 1930, só muito recentemente começou a ser ultrapassado. Nos últimos três anos, com a criação, por Resolução de Conselho de Ministros, de uma estrutura de missão; tutelada pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; com o objectivo de preparar a instalação do Arquivo Nacional do Som, tem sido possível conhecer melhor o património sonoro nacional e poder mesmo actuar em casos pontuais.
Foi precisamente isso que aconteceu com este pequeno fundo de Manuel Viegas Guerreiro.
Nos trabalhos preparatórios para a criação do Arquivo Nacional do Som, sinalizamos diversos fundos documentais que não se encontravam tratados, na sua maioria, ainda por digitalizar. São colecções dispersas por entidades que não têm como missão específica o tratamento desta tipologia documental, e que quase nunca dispõem ou têm acesso a tecnologia específica para a leitura destes materiais. Tal contexto deve ser tido como importante factor de risco pois é dado adquirido que só a digitalização assegura a preservação e acesso futuro aos documentos sonoros. Qualquer suporte de som, independentemente da sua qualidade e estado de conservação, está inexoravelmente em degradação, mecânica e química. Só a extracção do conteúdo viabiliza a sua salvaguarda e futuro acesso em segurança. Confrontada com a obsolescência tecnológica, a Fundação Manuel Viegas Guerreiro solicitou à equipa de instalação do Arquivo Nacional do Som a leitura e digitalização desses conteúdos. Ainda que não tenha operacionais os laboratórios, mas
MANUEL VIEGAS GUERREIRO O ARQUIVO PESSOAL DE UM “HUMANISMO ESSENCIAL”
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especialmente atenta à urgência da digitalização, a estrutura de missão criou as condições mínimas para a leitura das tipologias de suportes de som mais habituais.
Num dos documentos preparatórios da linha de Acção n.º 4 “Recolha e Estudo de Literatura Popular Portuguesa” do Centro de Estudos Geográficos, Manuel Viegas Guerreiro, elaborou uma tão simples quanto importante nota: “No que concerne a tradições orais muito pouco se juntou às preciosas colecções dos fundadores e mestres da Etnografia Portuguesa, Teófilo Braga, Adolfo Coelho e a todos sobrelevando Leite de Vasconcelos, apesar dos modernos recursos técnicos e dos novos métodos de pesquisa da Etnografia” (Ferreira 2007: 119). Ao propor se retomar essa linha, coloca a tecnologia como actor fundamental e verdadeiramente transformador da prática etnográfica.
São os materiais produzidos graças a esses “modernos recursos técnicos” que vamos aqui tratar. O arquivo custodiado pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro integra 18 bobinas de fita magnética de ¼’’ em enrolador plástico de 3’’ de diâmetro das marcas BASF (LGS, LGS 26, LGS 35), Philips (EL 3953 DP, 3953 LP, EL 3952), AGFA (PE41), Lancer (LT101). Também integram esse fundo documental, 5 cassetes das marcas BASF (LH e LH EI, Ferro Extra I), NordMende, e TDK.
Todos os suportes encontram se nos contentores originais, com indicações manuscritas sobre os seus conteúdos, com excepção de uma fita magnética e de uma cassete.
O formato de fitas em enroladores de 3’’ é relativamente habitual, especialmente no período em que foram feitas as gravações e pelo facto de serem gravações de terreno. O gravador teria de ser transportável e capaz de funcionar a bateria, logo, os enroladores teriam de ser de pequena dimensão. No entanto, actualmente, é precisamente a sua dimensão que levanta sérios problemas à leitura. Máquinas profissionais de estúdio ou de arquivo estão vocacionadas para ler fitas em enroladores de 7’’ a 10’’, os motores que puxam as fitas exercem muito mais força de arrasto do que aquela que estas pequenas bobinas conseguem suportar, o que pode fazer com que a fita deforme quando reproduzidas. O facto de algumas dessas fitas magnéticas serem de acetato também constitui um risco. Para a sua correcta leitura era portanto fundamental encontrar um equipamento em bom estado, mas que não constituísse, ele próprio, um factor de risco para os suportes.
O conteúdo foi gravado em Moçambique, junto dos Macondes (1952 1953 e 1961), Angola, junto dos Bosquímanes (1952 e 1961), em Querença (1965, 1968, 1975, Páscoa de 1976, 1995), e em Salvaterra do Extremo (1994). Duas fitas têm indicações de leitura difícil, mas que é possível ler, numa, 1961. Trata se de recolhas no campo da linguística, da literatura popular e da música, tanto no Algarve como em Moçambique (Macondes) e Angola (Bosquímanes).
As fitas estão todas em bom estado, mas, por não ser muito habituais no contexto dos Arquivos de Som, foi necessário, primeiro, recolher informação técnica sobre as fitas e sobre os equipamentos de gravação e leitura antes de qualquer tentativa
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MANUEL
VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
ANTROPÓLOGO
E HUMANISTA
de leitura.
Após diversas consultas com especialistas internacionais, e tendo encontrado uma máquina adequada para realizar a leitura, procedemos à sua digitalização. Não foi realizado qualquer restauro do som.
Agora importa cuidar do acesso.
Mas esse acesso deverá, para benefício da informação, reflectir a pluralidade do criador destes documentos. Importa recuperar os materiais, as peças de que esse conhecimento foi feito para melhor compreendermos o autor e os seus métodos, e enriquecermos o conhecimento sobre estas matérias. Encontrando se documentação dispersa por várias entidades (na Fundação Manuel Viegas Guerreiro, na Faculdade de Letras, no CLEPUL, na Escola Secundária João de Deus, em Faro, entre outras), a digitalização dos materiais tornará possível reuni los e disponibilizá los para consulta, de forma articulada. De certa forma, a pluralidade será mantida, mas de modo articulado e centralizado, com um só ponto de acesso e onde os cruzamentos tão queridos a Manuel Viegas Guerreiro serão não só uma constante, mas uma marca indissociável desses materiais.
MANUEL VIEGAS GUERREIRO O ARQUIVO PESSOAL DE UM “HUMANISMO ESSENCIAL”
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ANA RITA DA CUNHA E MELO DE SOUSA PRATES nasceu a 12 de Julho de 1971, em Coimbra. Licenciada em História, variante História da Arte, pós graduação em Artes Decorativas Portuguesas, e Doutoramento iniciado em História da Arte, na especialidade Arte, Património e Restauro, com o tema Preservação de colecções documentais a importância da conservação preventiva. O caso da colecção de desenhos do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa
De 1997 a 2004 trabalhou na empresa Bleu Line, sendo responsável pelo apoio técnico em Conservação e Restauro a Arquivos, Bibliotecas e Museus.
De 2004 2009 foi responsável pelo Departamento de Bibliotecas e Arquivos na Neschen Portugal, S. A.
Em 2009 fundou a empresa Ph Neutro, Unipessoal Lda, empresa especializada em materiais e equipamentos para Conservação & Restauro e na prestação de serviços de consultoria e apoio técnico em Conservação Preventiva a Arquivos, Bibliotecas e Museus, onde exerce funções de directora desde então.
A conservação da colecção fotográfica Manuel Viegas Guerreiro
Ana de Sousa Prates*
Acomunicação que apresento no âmbito deste seminário dedicado a Manuel Viegas Guerreiro tem como tema a Conservação da Colecção Fotográfica Manuel Viegas Guerreiro
Trata se de uma intervenção que a Ph Neutro realizou em 2019, ao espólio fotográfico com o mesmo nome, tendo o primeiro contacto com a Fundação acontecido em Junho de 2018, altura em que foi feita a visita à colecção para conhecimento da mesma, nomeadamente para avaliar o seu estado de conservação, as tipologias e quantidades de espécies a tratar.
Após adjudicação, os trabalhos iniciaram se em Junho, nas nossas instalações em Lisboa, tendo sido realizados pela técnica de Conservação e Restauro de Fotografia Sandra Garrucho, sob nossa orientação.
Os trabalhos decorreram durante cinco meses, tendo ficado concluídos em Dezembro de 2020.
O objetivo principal deste projeto era garantir a conservação da colecção de diapositivos e a sua preservação a longo prazo, nomeadamente através de açcões como higienização e reacondicionamento.
A Colecção fotográfica
Esta colecção engloba duas tipologias de diapositivos cromogéneos com suporte em acetato de celulose, com os formatos 35mm (1044) e 6x6cm (109) montados em caixilhos, num total de 1153 diapositivos.
Este conjunto fotográfico é constituído pelo tipo de película Safety, isto é, são películas em acetato de celulose.
Nos bordos das películas é comum a gravação da marca do fabricante Kodachrome, Ferraniacolor, Agfacolor, bem como o tipo de película, ex.: Kodak Safety Film.
Temáticas
As principais temáticas identificadas nesta colecção referem se a trabalhos
* Directora da PH Neutro, Conservação Preventiva e Restauro
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desenvolvidos junto das comunidades dos Bosquímanos de Angola e dos Macondes de Moçambique, embora se tenham identificado também pinturas e gravuras rupestres, paisagens, imagens da Madeira/Funchal e de várias cidades portuguesas, entre outros.
Alguns dos diapositivos apresentam se datados entre 1959 e 1961.
Estado de conservação
De uma forma geral, o espólio fotográfico, apresentava um estado de conservação classificado como razoável (apresenta formas de deterioração visíveis, mas não interfere na leitura da imagem fotográfica).
Os diapositivos encontravam se originalmente acondicionados em caixas de cartão, plástico e metal, apresentando se algumas das caixas originais envelhecidas, sujas e com ferrugem e, por isso, pouco adequadas para acondicionamento de conservação a longo prazo em arquivo. Alguns diapositivos encontravam se enrolados em papel de embrulho.
As principais patologias encontradas nas películas fotográficas foram essencialmente: sujidades, poeiras, riscos, dedadas, manchas e fungos. Visualmente, algumas imagens fotográficas apresentavam já um ligeiro desvio de cor e algum amarelecimento e desvanecimento, patologias estas muito características em diapositivos cromogéneos. Não foi identificada libertação de teor ácido acético. Alguns dos caixilhos apresentavam também sujidades, poeiras, manchas e metal oxidado.
A intervenção de conservação e restauro
A intervenção realizada pressupôs 4 etapas:
1) Avaliação da colecção, do todo, em função do seu estado de conservação e das tipologias presentes, de forma a realizar uma intervenção que a preservasse para as gerações vindouras.
Esta etapa inicial revelou se de grande importância, pois é nesta fase que se avalia o estado de conservação real da colecção, e se define a estratégia de actuação a seguir, nomeadamente ao nível das intervenções a desenvolver tendo em vista a sua preservação, acondicionamento, bem como definição de condições ambiente favoráveis à sua estabilidade.
É também nesta fase que tomamos a noção concreta das diferentes tipologias que compõem o espólio, de forma a escolher a melhor abordagem para o seu tratamento e organização.
2) Higienização
A higienização é a etapa mais importante pois permite a remoção de todo o tipo de sujidades que causam abrasão e atraem outro tipo de sujidades, que em muito contribuem para a degradação dos diapositivos.
80 MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
ANTROPÓLOGO
E HUMANISTA
FOTOGRÁFICA MANUEL VIEGAS GUERREIRO
A limpeza foi feita em duas fases, por via seca com pera de sopro, pano macio de microfibras, borracha e bisturi para remoção de poeiras superficiais, e por via húmida, sempre que necessário, para remoção de eventuais resíduos mais impregnados de sujidade, bem como fungos e manchas (estas já irreversíveis), com recurso a álcool, água destilada e algodão.
A limpeza foi efetuada diapositivo a diapositivo, no suporte, na emulsão fotográfica, no caixilho (interior e exterior) e nos vidros auxiliares pertencentes ao mesmo caixilho.
Os caixilhos foram desmontados (os que foram possíveis), para serem limpos no seu interior e exterior. Após a limpeza foram novamente montados.
Todo o processo de limpeza foi realizado sobre papel mata borrão limpo e manuseado com luvas (as películas podem aparentar ser resistentes, mas basta algum descuido para facilmente se riscarem, vincarem e absorverem dedadas, tanto no suporte como na emulsão).
Após a limpeza dos caixilhos, os diapositivos foram arrumados em novas caixas de conservação e em dossiers próprios para arquivo que garantem a sua preservação para as gerações vindouras, bem como a sua consulta a investigadores e público em geral.
A CONSERVAÇÃO DA COLECÇÃO
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Conferência, por Pedro Félix
Conferência, por Ana de Sousa Prates
CAPÍTULO IV
PontesdeSaber
CAROLINA PALMA
Pessoalmente identifico me muito com o projeto e trabalhei arduamente para o sucesso deste. Ao longo do processo fui descobrindo novas paixões como a ilustração e o design gráfico. Durante os três anos do curso não ponderei o prosseguimento de estudos. O Museu Liceu foi o ponto de viragem: candidatei me à Universidade do Algarve e sou caloira do curso de design e tecnologias multimédia.
DIOGO VITORINO
Este projeto foi um desafio: compreendi que com dedicação e trabalho consigo realizar um trabalho com muita qualidade. Gostei particularmente de trabalhar em equipa.
LUCAS RODRIGUES
Este projeto exigiu muita autonomia e responsabilidade. Tive de procurar soluções através de muita pesquisa, muitas delas alcançadas por tentativa e erro. É gratificante ver o trabalho quase concluído.
Museu Interactivo
Carolina Palma, Diogo Vitorino e Lucas Rodrigues*
OProjeto Museu Liceu pretende apresentar um conjunto de peças doadas à Escola Secundária João de Deus por Manuel Viegas Guerreiro aquando da sua presença em Angola como professor permutante entre 1948 1950. Deste período surge o espólio que dá origem ao Museu sala de Angola, no Liceu Nacional de Faro.
O Museu Interativo é um projeto que tem como objetivo preservar e divulgar o património material e imaterial da Escola Secundária João de Deus contribuindo para a criação de um espaço digital vivo e sem muros, onde se contam as histórias dos artefactos, das pessoas e da escola.
Os alunos dos cursos profissionais realizam a sua Formação em Contexto de Trabalho (FCT) no último ano do curso. Esta componente decorre normalmente em empresas, espaço privilegiado para aplicar os conteúdos programáticos apreendidos ao longo dos três anos de curso. Este ano, devido à pandemia, não foi possível a realização da FCT em empresas e, em substituição, aplicou se a metodologia de prática simulada. Formaram se equipas de trabalho multidisciplinares e surgiram ideias de projetos a desenvolver. A partir do inventário do espólio doado por Manuel Viegas Guerreiro realizado pela investigadora Luísa Martins em 2013 surge o projeto do Museu digital do Liceu de Faro.
O trabalho foi desenvolvido em 3 fases:
Numa primeira fase, Carolina Palma (sempre a partir do Inventário da Drª Luísa Martins) analisou e distribuiu as peças por categorias; pesquisou sobre a vida e obra de Manuel Viegas Guerreiro; contactou com a Fundação MVG. De uma reunião com a Drª Marinela Malveiro e a Drª Luísa Martins surge o convite para visitar as instalações da Fundação em Querença de onde se recolhe muita informação importante. A pesquisa continua agora com a orientação da Drª Luísa Martins, ao arquivo da Escola Secundária João de Deus (recolhe se dados de atas, fotografias, relatórios, etc).
Numa segunda fase, elabora se a maqueta da revista (planeamento) e a criação das ilustrações que identificam as várias categorias e a ilustração de Manuel Viegas Guerreiro. Também nesta fase se selecionam as fotografias e elaboram se os textos
*Finalistas de 12.º ano na Escola Secundária João de Deus, Faro
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ANTROPÓLOGO
para a revista.
Na última fase, procede se à composição final da revista com as fotografias captadas e editadas pelo Diogo Vitorino e Adam Lomas.
As peças fotografadas requereram bastante cuidado no seu manuseamento, devido à sua idade e à fragilidade da sua conservação. Todo o manuseamento das peças teve de ser feito com luvas e tiveram de ser transportadas peça a peça para o estúdio fotográfico. As 118 peças foram fotografadas de diferentes ângulos: foram realizados 70 fotogramas de cada peça. No total, foram realizadas e editadas 8260 fotografias. Estas fotografias foram utilizadas pela Carolina Palma na composição da revista e pelo Lucas Rodrigues no site interativo. Neste, cada objeto 3D é constituído por cerca de 70 imagens, obtidas através de registo fotográfico rotacional. O modelo 3D resulta da junção dessas imagens no software Meshroom. Os modelos tiveram que ser preparados no Blender, aplicando alguns ajustes na recolocação do objeto nos eixos X, Y e Z.
Na fase da programação, foram utilizadas diversas ferramentas e técnicas: a biblioteca THREE.JS para a construção dos modelos 3D; para um site “responsive” e para os botões, utilizou se um “ canvas” em HTML com a inserção dos modelos 3D. Quando o site estava completo e pronto para a demonstração surge um problema: era demasiado lento. O tempo de respostas da visualização dos modelos era de cerca de 60 segundos, devido ao tamanho e qualidade do ficheiro. Houve necessidade de pesquisa para otimizar o código que foi atingido com a ferramenta gltfpack, que comprime o ficheiro e diminui entre 10% a 50%, dependendo do modelo e do seu tamanho.
O site também foi otimizado para dispositivos móveis.
Os software utilizados foram Visual Studio Code, Meshroom (para a criação de modelo 3D a partir das fotografias) e o Blender (utilizado para ajustar a posição, rotação e forma dos modelos 3D).
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MANUEL
VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
E HUMANISTA
MUSEU INTERACTIVO
Escola Secundária João de Deus
EXPOSIÇÃO ITINERANTE
FICHA TÉCNICA
TÍTULO | Boers de Angola, 1957
COMISSARIADO | Luísa Martins
ORGANIZAÇÃO | Fundação Manuel Viegas Guerreiro
COORDENAÇÃO EXECUTIVA | Hermínia Vasconcelos Vilar, João Carlos Brigola, José Maciel Morais Santos, Luísa Martins, Marinela Malveiro, Miriam Soares
INSTITUIÇÕES PARCEIRAS | Câmara Municipal de Loulé, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Universidade de Évora Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) Cátedra UNESCO em Património Imaterial e Saber Fazer Tradicional e Linha de Investigação G1 Mudanças Societais
TEXTOS | Luísa Martins Introdução Manuel Viegas Guerreiro Legendas das fotografias e excertos do manuscrito Boers de Angola, preparado para o Relatório da Campanha de 1957 (Moçambique e Angola), Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, por Jorge Dias (Chefe da Missão) e Manuel Viegas Guerreiro (1.º Assistente), Lisboa, 1958
CONCEPÇÃO E DESIGN GRÁFICO | Bloco D
A imagem ao lado representa a exposição itinerante Boers de Angola, 1957. Trata se do primeiro de três painéis.
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JOÃO MANUEL DA SILVA MIGUEL é juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e diretor do Centro de Estudos Judiciários. É presidente do Conselho Geral da Fundação Manuel Viegas Guerreiro.
Natural de Querença, frequentou o Liceu de Faro e a Faculdade de Direito de Lisboa, onde se licenciou em Direito.
Em 1978, ingressou na magistratura do Ministério Público, onde ascendeu à mais elevada categoria profissional, numa carreira rica e diversificada, incluindo no estrangeiro.
Foi juiz substituto do tribunal administrativo da OCDE, e é juiz ad hoc do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
No país e no estrangeiro, tem participado como conferencista em inúmeras atividades científicas, muitas publicadas em revistas da especialidade.
Em 2021 foi agraciado com a medalha de mérito municipal, grau ouro, da Câmara Municipal de Loulé.
O texto que segue corresponde à intervenção proferida, a partir das notas recolhidas durante o Seminário, salvo as saudações e agradecimentos iniciais, que, agora, dada a natureza do escrito foram omitidas.
Sessão de encerramento
Inicio a minha intervenção felicitando a Fundação Manuel Viegas Guerreiro e toda a equipa que concebeu e pôs em prática este Seminário, onde destaco a relevância do tema, que distingue e enobrece o patrono da Fundação, a excelência da organização, e a criteriosa conciliação e equilíbrio entre as dimensões científica, cultural e, porque não, a gastronómica ligada à região, todas elas associadas numa simbiose perfeita.
O Seminário honra a Fundação, o conselho de administração, o seu fundador, e Luís Guerreiro, o seu primeiro presidente, hoje aqui evocado e que reavivou a saudade e a emoção na visita ao Centro de Estudos Algarvios e ao seu espólio.
Na pessoa da Marinela Malveiro expresso o meu reconhecimento, que julgo ser de todos, pela incansabilidade em nos guiar nestes dois dias.
Na Newsletter distribuída anunciava se Querença: Aldeia Internacional da Antropologia
Quem não esteve presente e leia o título pensará tratar se de um exagero próprio dos publicitários.
Quem cá esteve sabe que não é assim.
Corresponde ao que aqui se passou.
A síntese que se apresenta é a minha leitura do fruto das excelentes comunicações e intervenções de todos os oradores, moderadores e participantes, a todos também significando uma palavra de agradecimento.
Houve expressão do conhecimento, houve vivacidade, houve partilha e troca de saber e saberes.
Todos estamos mais ricos.
Da minha parte estou profundamente reconhecido pelo que aprendi, sentimento que julgo ser partilhado por todos.
Não conheci profundamente Manuel Viegas Guerreiro (MVG). Mal o conheci.
Falei pessoalmente com ele, uma ou duas vezes.
Conhecia o do Livro A Nossa Pátria, de que foi coordenador. Era o assim chamado “livro de leitura” do então 1.º ano do 1.º ciclo do curso geral dos liceus, como a memória recorda esse tempo, porventura sem o rigor das designações, e em cujas
João da Silva Miguel*
* Director do Centro de Estudos Judiciários e presidente do Conselho Geral da FMVG
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ANTROPÓLOGO
páginas constava a lenda do Gil da Pena, da Rocha da Pena, ali entre Salir e Alte, de que não mais me esqueci.
Conhecia o, também, dos Estudos Gerais Livres, ideia sua que espelha bem o perfil e a dimensão de intervenção cívica de Manuel Viegas Guerreiro. Humanista, dedicado ao seu povo, que queria ver dignificado e reconhecido. Fiquei a conhecê lo melhor ao fim destes dois dias. Muito obrigado por me terem concedido esta oportunidade.
Haverá outros momentos para retomar e desenvolver o estudo, reflexão e debate, desta pessoa singular, a crer pelo que foi dito e do espólio ainda por tratar. Sobre o seminário, pede se me que faça uma síntese dos trabalhos, o que cumpro, associando uma declaração de interesses: como outsider da etnologia, é a minha leitura e só a mim vincula, falando sob o controlo de todos vós, que me corrigirão se algum aspeto for menos rigoroso.
Expresso a minha visão das comunicações e debates, através das seguintes ideias força, que enuncio e desenvolvo sinteticamente, socorrendo me, tanto quanto possível, da palavra ou expressões usadas pelos autores:
Humanismo Humildade Comunicação Memória Cooperação Futuro e digitalização Divulgação
Humanismo
MVG era um “humanista, completo, autêntico e com domínio da multidisciplinaridade”. Foi um etnólogo hipotecado com a cultura popular e o seu aproveitamento, como fator de inclusão do povo, que estudou com método científico, produzindo obra extensa, em múltiplas dimensões: estudo dos povos, hábitos, tradições, nas músicas e outras tradições orais (de que gostava muito, como foi aqui dito), tudo captando e registando, porque, como afirmava: “Sem a voz do povo não sentimos a dimensão exata do saber”, com isso expressando também uma função de inclusão.
A sua ideia de educação para todos, para aproximar culturas, é também uma visão profundamente humanista e democrática.
O estudo da sua época perpetuou se e continua a ter interesse.
Nessa dimensão continua na modernidade.
MVG foi um homem do Mundo Portugal, de norte a sul e regiões autónomas, África, Oriente , como o roteiro da sua biblioteca mostra.
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MANUEL
VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM
E HUMANISTA
Foi, como aqui mencionado, “um sábio e curioso incurável”1 Estabeleceu e firmou, favorecendo, como mais ninguém, o conhecimento do Outro, na sua dignidade diria, também, na sua dimensão ética , hoje tão em voga, em todas as profissões.
Aqui destaco a comunicação da Prof.ª Luísa Monteiro, de há pouco, em que MVG “levanta a voz” para Oliveira Martins.
Hoje dir se ia que era um defensor, promotor e divulgador dos direitos humanos.
Humildade
MVG foi um homem do povo, de Querença, onde tinha as raízes e entre cuja gente se sente bem e com à vontade, no “mundo rural, ladeado de valados”, entre os camponeses, como com outros desfavorecidos. Essa mesma humildade e à vontade sente a com as elites. Humildade e liberdade, de todas as liberdades, sua e da natureza, sua aspiração maior.
Comunicação
MVG tinha uma comunicação exímia; era impossível não se aproximar das pessoas. Era autêntico. Era fácil pô las à vontade.
De forma natural estabelecia comunicação franca com qualquer pessoa, característica que lhe facilitava a aquisição do saber que lhe interessava.
Memória
A memória que o espólio de MVG incorpora.
Memória riquíssima, em texto, em imagem (com destaque especial para os diapositivos), em som, nalguns casos filigrana sonora, não estudado.
Um espólio com forte valorização da memória e da ciência; valorização que tende a globalizar se e a devolver à comunidade, a toda ela, incluindo a académica, através das imagens já disponíveis e de acesso livre.
Cooperação
Os trabalhos do seminário mostraram uma forte componente colaborativa, não só nacional como estrangeira, com a participação de investigadores estrangeiros. Interpreto essa participação como um interesse que a obra e pensamento de MVG despertam, e o que isso significa também na divulgação e aprofundamento da compreensão da mesma.
Futuro e digitalização
O futuro do espólio e do saber de MVG é hoje. Ou, num lugar comum, já começou. Começou com a digitalização da coleção de artefactos oferecida ao Liceu Nacional
SESSÃO DE ENCERRAMENTO
1 Referência de Richard Kuba, Frobenius, Goethe University Em francês “un savant et curieux incurable”
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de Faro efetuada pelos alunos desta escola secundária, num excelente trabalho, pelo envolvimento e interesse da comunidade escolar, pelo rigor da técnica e pelo resultado ofertado à comunidade e, em particular à científica; mas a toda ela operada dos arquivos.
E prossegue com a digitalização do espólio fonográfico e da imagem (fotografia e diapositivos), como ontem vimos.
Divulgação
Uma última ideia é transversal a todas as outras: a divulgação.
É «absolutamente essencial divulgar, dar a conhecer todo este saber», como foi afirmado durante os trabalhos.
Divulgar a memória, a dimensão de humanidade, humildade e poder de comunicação de MVG.
Há muito a fazer.
Há muito que estudar.
Temos responsabilidade para o fazer, para estudar e divulgar o conhecimento e as ideias desta pessoa singular, com obra notável e, no seu contexto, pioneira. Está a finalizar o seminário.
Está já aí aberta a porta para um outro.
Interpreto essa aspiração das palavras dos intervenientes.
A obra e o pensamento de MVG interpelam nos.
A reflexão e o debate sobre a obra e o pensamento de MVG, como via e visão de futuro convocam nos como missão da Fundação.
Esse, um desafio que fica lançado.
Muito obrigado à Fundação, muito obrigado a todas e todos Vós, pela partilha de saberes que tanto nos enriqueceram, que tanto me enriquecem.
E, com estas palavras, com a permissão do Presidente da Fundação, dou por encerrados os trabalhos do Seminário.
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MANUEL
VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
SESSÃO DE ENCERRAMENTO
Sessão de encerramento com João Manuel da Silva Miguel
Galeria fotográfica final
Centro de Estudos Algarvios Luís Guerreiro
Da esq. para a dir.: Gabriel Guerreiro Gonçalves, pres. FMVG, Margarida Correia, pres. União de Freguesias de Querença, Tôr e Banafim e Sr. Mário da Silva Miguel, natural de Querença
Visita ao Pólo Museológico da Água, Querença
Inauguração da exposição itinerante Boers de Angola, 1957, comissariada por Luísa Martins
Visita dos alunos da Escola Secundária João de Deus à Fundação Manuel Viegas Guerreiro
Numa iniciativa paralela ao seminário, a Praça da Fundação recebeu, na noite de 17 de Setembro, uma sessão do 1.º ciclo de Cinema Lençol, promovido pela associação cultural Figo Lampo, em parceria com a Fundação Manuel Viegas Guerreiro. Exibiu se o documentário Gunda, de Viktor Kossakovsky. Na abertura: a curta Vestido feito de água, conto de Maria Adelaide Fonseca filmado na Fonte da Benémola por Verónica Guerreiro e Paulo Tomé.
Igreja da Nossa Senhora da Assunção, Querença
Frente e verso do programa do seminário dedicado a Manuel Viegas Guerreio. Num cancelamento de última hora, não se verificou a conferência O desafio do estudo do património imaterial no quadro do programa científico do CIDEHUS, pela directora do centro de investigação da Universidade de Évora, Hermínia Vilar.
www.fundacao mvg.pt fundacao.mvg@gmail.com
Povo de Querença
R. da Escola, Povo de Querença 8100 129 | Loulé T. 289 422 607
Junho de 2022