CRIATURAS QUASE
INVISÍVEIS
Guilherme de Moura
Januária Cristina Alves Guilherme Augusto de Moura Souza
CRIATURAS QUASE INVISÍVEIS
1ª edição
Tijolo de Vidro Editora Minas Gerais - 2021
Copyright © Guilherme Augusto de Moura Souza, 2021 Copyright © Tijolo de Vidro Editora, 2021
Coordenação Editorial: Guilherme de Moura Preparação: Guilherme de Moura Revisão: Guilherme de Moura Projeto Gráfico: Guilherme de Moura Ilustrações: Guilherme de Moura Produção Gráfica: Guilherme de Moura Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) de Moura, Guilherme Criaturas quase invisíveis / Guilherme Augusto de Moura Souza; ilustrações Guilherme Augusto de Moura Souza - 1. ed. - Minas Gerais: Tijolo de Vidro Editora, 2021. ISBN: 978-85-96-01118-1 (Tijolo de Vidro Editora) 1. Cultura popular — Brasil 2. Folclore — Brasil 3. Lendas — Brasil 4. Mitologias — Brasil 5. Personagens I. de Moura II. Título. 17-05149
CDD-398.220981 Índices para catálogo sistemático: 1. Personagens lendárias: Folclore Brasileiro 398.220981
Tijolo de Vidro Editora 30140-092 Belo Horizonte, MG (31) 99999-9090 tijolodevidroeditora.com.br
Sumário
Prefácio.....................................08
BICHOS......................................49
SERES FANTÁSTICOS............11
Arranca-Línguas......................51
Mãozinha-Preta.........................13
Maria Caninana......................54
Chibamba..................................16
Motucu....................................56
Cumacanga................................18
Bacurau...................................58
Mão de Cabelo..........................20
Minhocão................................60
Iapupiara..................................22
Sucuriju..................................62
Nibetad....................................24
Urutau...................................64
Pisadeira..................................26
A autora.................................68
HUMANOS................................29
Bibliografia.............................70
Amazonas................................31 Princesa Encantada..................34 Alamoa....................................36 Marido da Mãe d’água.............38 Vira Roupas.............................42 Ualri.......................................44 Cabeça Errante........................46
Prefácio
Na maioria das vezes, o nosso encontro com a manifestação cultural chamada folclore, se dá por meio de experiências, pelo ouvir de histórias, por pais e familiares, por meio dos repentes e “causos” contados nas ruas e praças. O encontro com essas personagens em diferentes lugares nos fascina. Capazes de ignorar línguas e distâncias, se fazem poderosas e presentes pela emoção que causam. O livro se dá envolto da produção “Abecedário de personagens do folclore brasileiro: e suas histórias maravilhosas”, escrito por Januária Cristina Alves e ilustrado por Berje. Esse abecedário consiste numa sequência alfabética sobre personagens do folclore brasileiro, que traz não apenas informações sobre elas, mas também suas “histórias maravilhosas”. O abecedário se faz eficiente. O “Criaturas quase invisíveis”, partiu-se da ideia de que existe um universo de personagens pouco conhecidos, sem nunca terem sido retratados antes e será realizado uma seleção de algumas dessas criaturas do livro de Januária, em que o novo livro conterá imagens ilustrativas feitas por mim e textos da autora, com o objetivo de explorar e destacar a riqueza do folclore. Através de técnicas como a colagem e ilustração, tentarei trazer mais 8
registros imagéticos contendo os elementos mais significativos de cada personagem, pensando em uma unidade de cores e materiais alusivos ao assunto. A diversidade é o fator mais importante. Foi contemplado personagens dentro das diversas origens que integram o folclore nacional: a indígena, a africana, a europeia, a oriental — que são também as principais —, mas há muitas outras que só enriqueceram esses contos maravilhosos. A diversidade também ajudou a dividir essas personagens em três categorias: os seres fantásticos, os humanos e os bichos. Essas figuras mitológicas se compõem de traços que são, muitas das vezes, estranhos e outros tantos tão próximos de nós que chegam a nos assustar de verdade. É fascinante ver como homens, bichos e seres fantásticos convivem e se misturam no nosso folclore, nos brindando com suas aventuras espetaculares. É fundamental salientar ainda que há, nesse livro, personagens que são específicos de algumas regiões do país. Foi importante incluí-las tanto como forma de registro, como para marcar as imensas diferenças regionais que existem aqui. Os diferentes nomes foram registrados cuidadosamente, juntamente com outros nomes com os quais se relacionam. O folclore é notadamente o retrato de um povo e de sua cultura e, por isso, relevante para a educação. Ao unir personagens não tão retratados com uma nova visão, acredito na colaboração com o imaginário popular, proporcionando uma experiência formativa e cativante. Sobre essas personagens, a gente sabe só o que ouviu, mas acredita nelas. Porque se é assim que contam, é assim que é.
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SERES FANTÁSTICOS
Seres Fantásticos
MÃOZINHA-PRETA
Literalmente o que chamamos de “uma mão na roda”: uma mão solta no ar que faz todos os trabalhos da casa de maneira eficiente, com uma força e resistência que nenhum ser humano tem. Se você precisar de alguma ajuda, é só chamar: “Mãozinha de Justiça! Quero merecer a sua ajuda”. Porém, ao que parece, a Mãozinha-Preta é uma assombração que mais mete medo do que ajuda. As “mãos errantes”, como também é conhecida a Mãozinha-Preta, tanto fazem carinho, como ajudam nas tarefas corriqueiras e ainda aplicam castigos, fazendo justiça, literalmente, “com as próprias mãos”. Sua tarefa só acaba quando alguém manda: “Chega, Mãozinha de Justiça!”. E, por ser negra, é claro que nunca castigava nem assustava os escravos, como conta o escritor Herberto Sales em O Lobisomem e outros contos folclóricos (1975), numa lenda em que a escrava tenta explicar à sua dona como consegue obter a ajuda da Mãozinha: — Só quero saber quem lhe ensinou o segredo da mãozinha [questiona a dona da escrava que viu a mão fazendo o serviço]. — Foi um sonho que eu tive. Uma mulher alta me apareceu no sonho, e me ensinou como pedir a ajuda da mãozinha [...] 13
Seres Fantásticos — Mulher alta, preta que nem você, só pode ser a finada sua mãe [...] Pegue aquela crioulinha e traga ela até aqui! [...] Mas a mãozinha, se parada estava, parada ficou. Pois sendo ela da mesma cor da crioulinha, nenhum mal lhe ia fazer. [...] a crioulinha gritou: — Mãozinha de Justiça! Venha em meu socorro! [...] começou a bater-lhe [na dona da escrava, D. Leonor) e a escrava Júlia fugiu. A Mãozinha-Preta é famosa nos folclores europeus e das Américas. No Brasil, é mais conhecida em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
OUTRO NOME: Mãozinha de Justiça REGIÃO DO PAÍS: Sudeste (MG, RJ, SP) ORIGEM: Europeia 14
Seres Fantásticos
CHIBAMBA “Ê vem o Chibamba, neném, ele papa minino, cala a boca!...”, dizem os mineiros quando querem assustar as crianças que choram sem parar. Esse fantasma que anda envolto em uma longa esteira de bananeira, que ronca e funga bem alto como se fosse um porco e que gosta de dançar num compasso lento é uma personagem bem falada entre os que vivem no sul de Minas Gerais. Acredita-se que essa lenda vem da África, pois em Angola e no Congo os negros costumam dançar vestindo folhas, ramos e galhos. Segundo a mitologia africana, o Chibamba (lá eles escrevem com dois bês) é o rei dos animais encantados, é o único que se recusou a ser divino para ficar aqui neste mundo, presidindo toda a obra criada. Assim que a terra, céus, águas e o ar se formaram, ele surgiu, e por sua vontade nasceram todos os animais, plantas, a natureza como um todo. Ele observa e dirige tudo o que existe e não tem nenhuma religião nem apoia qualquer culto. Como se diz por lá, ele realmente é “o bamba”, o sábio, o criador, o juiz, o mago... tudo ao mesmo tempo agora! Por outro lado, pode ser que sua origem também esteja ligada aos índios brasileiros, pois os pajés de alguns povos indígenas, como os Pankararu e os Xerentes, também dançavam vestidos com folhas. Em São Paulo, o Chibamba é um velho escravo que, de tanto apanhar num tronco, de tanto sofrer, passou a ajudar todos os outros escravos na mesma situação. Nessa região também há quem diga que, na verdade, ele é uma espécie de Saci-Pererê ou um cabrito que aparece de repente em algumas festas para assustar os convidados.
REGIÃO DO PAÍS: Sudeste (MG, SP) ORIGEM: Africana, indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Bicho-Papão, Saci-Pererê, Rainha Quiximbi 16
Seres Fantásticos
Cumaganga Esta espécie de Lobisomem tem algo especial: nas noites de sexta-feira, sua cabeça se solta do corpo e sai voando pelos ares como se fosse uma bola de fogo, apavorando a todos que encontra estrada afora, especialmente no Pará e no Maranhão, onde esse mito é mais conhecido. Mas a Cumacanga nem sempre foi um Lobisomem. Diz-se que era uma mulher casada com um padre, ou mesmo a sétima filha desse amor proibido (na religião católica, os padres não podem se casar nem ter filhos), o que faz lembrar o mito da Mula Sem Cabeça. Só há uma maneira de se livrar dessa maldição: a filha mais velha deve se tornar madrinha de batismo da mais nova. O mito da cabeça de fogo é bastante comum na mitologia indígena. Os Kaxinawá do Acre acreditavam que a Lua se originou de uma cabeça luminosa que subiu aos céus (semelhante ao mito da Cabeça Errante) e os índios da Bolívia acreditam que a Catecate ou Cabeça em Fogo sai de se mulo para vir assombrar quem matou seu corpo. Já no Peru acredita-se que o pássaro kefka é a cabeça em fogo de uma feiticeira que voa até a convenção das bruxas, enquanto seu corpo mágico fica em casa.
OUTRO NOME: Curacanga REGIÕES DO PAÍS: Nordeste (MA), Norte (PA) ORIGEM: Universal PERSONAGENS RELACIONADAS: Cabeça Errante, Mula Sem Cabeça, Lobisomem 18
Seres Fantásticos
MÃO DE CABELO “Oiá, si neném mijá na cama, Mão de Cabelo vem te pegá e cortá minhoquinha de neném”, cantam as mães e cuidadoras das crianças mineiras, querendo assustar a criançada que faz xixi na cama. E assustam mesmo! Ninguém quer dar de cara com esse ente que parece um ser humano bem magro e esguio, vestido numa roupa branca, tendo nas mãos muitas mechas de cabelo, para conferir se os lençóis estão secos ou úmidos. Alguns dizem que o Mão de Cabelo tem uma coruja de estimação que o acompanha em suas andanças, rondando as camas das crianças no meio da noite... Há quem diga que Mão de uma velha muito magra, vestida de branco, que macios como cabelo, e que ela vem passar as mãos no rosto para que a pessoa pegue logo no sono. Ele (ou ela) também é conhecido como o Espantalho das Crianças do sul de Minas Gerais.
OUTRO NOME: Espantalho das Crianças REGIÃO DO PAÍS: Sudeste (MG) ORIGEM: Brasileira PERSONAGEM RELACIONADA: Bicho-Papão 20
Seres Fantásticos
IAPUPIARA Pode ser homem ou mulher. Os homens possuem olhos encovados, e as mulheres são bonitas e têm cabelos bem compridos. Inimigos dos pescadores, mariscadores e lavadeiras, esses homens e mulheres-peixes são muito ferozes e repugnantes, e costumam atacar suas vítimas virando suas embarcações afogando-as e matando-as ao abraçá-las e beijá-las com tanta força de maneira que lhes quebram todos os ossos. Algumas eles levam consigo, para comer seus olhos, nariz, ponta dos dedos dos pés e das mãos e os órgãos genitais. Outras, largam nas águas. O padre José de Anchieta escreveu sobre o Ipupiara, em maio de 1560, em sua Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente: “Há também nos rios outros fantasmas, a que chamam Igpupiára, isto é, que moram n’água, que matam do mesmo modo aos índios”. Ou seja, esse é um dos mitos mais antigos do imaginário nacional. Em tupi-guarani, y-pypiára quer dizer “o que é de dentro da água”, “o que vive no fundo da água” ou “o aquático”. Segundo Pero Magalhães Gandavo, em História da província Santa Cruz (1564), para os povos indígenas de São Vicente, o monstro marinho era Hipupiàra, que significa “demônio-d’água”.
REGIÕES DO PAÍS: Nordeste (BA, CE), Sudeste (SP) ORIGEM: Indígena PERSONAGEM RELACIONADA: lara 22
Seres Fantásticos
NIBETAD Nibetad é uma entidade da mitologia indígena muito poderosa que, um dia, desceu do céu, casou-se com uma índia Kadiwéu e deixou aqui na Terra dois filhos, que se tornaram grandes feiticeiros. Os Kadiwéu, que viviam no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, saudavam Nibetad nas cerimônias em que observavam as Plêiades. Esse famoso grupo de estrelas brilhantes e quentes possui muitos significados em diferentes culturas e tradições. Na mitologia grega elas são filhas de Atlas e Pleione, filha de Oceano. Essa personagem está ligada a uma outra, bastante conhecida na mitologia do Amazonas, em particular na região do rio Negro, o Sete-Estrelo. Os Kadiwéu, hoje em dia, celebram Nibetad na figura de São João, porque as festas sempre foram comemoradas em junho, mês desse santo. Porém, há registros de que os ritos atuais são bastante diferentes dos de antigamente.
REGIÃO DO PAÍS: Centro-Oeste (ms) ORIGEM: Indígena PERSONAGEM RELACIONADA: Sete-Estrelo 24
Seres Fantásticos
PISADEIRA No jornal A Gazeta, de São Paulo, de 13 de outubro de 1962 há registro de uma oração contra a Pisadeira, que foi transcrita assim: São Vicente cum São Simão me disse que a Pisadeira tem a mão [furado; S. Vicente cum S. Simão me disse que a Pisadeira tem as unha [rebitado; S. Vicente cum S. Simão me disse que a Pisadeira tem os óio [arregalado; S. Vicente cum S. Simão me disse que a Pisadeira tem o beiço [arrevirado; S. Vicente cum S. Simão me disse que a Pisadeira tem o dente [arreganhado. Essa personagem, bem falada, especialmente em São Paulo e em Minas Gerais, provavelmente chegou de Portugal, ainda que o pesadelo - de onde ela vem - seja um tema universal. Na maior parte das narrativas folclóricas, o pesadelo é ato do demônio ou de um espírito mau, que pode ser um gigante, um anão, uma mulher ou um homem horrível que senta sobre o peito da pessoa e vai sufocando-a, até que acorde sobressaltada. A figura da Pisadeira mais famosa por aqui é conhecida como Diabinho (ou Fradinho) da Mão Furada. Ela entra no nosso quarto no meio da noite pelo buraco da fechadura e põe-se em cima de nós, sufocando-nos. Só quando acordamos é que ela vai embora. Tem na cabeça uma carapuça vermelha. Sua mão é muito pesada. Ela pega quem dorme de barriga para cima, e a mão pesada sobre o peito da pessoa nem a deixa gritar. Nas tradições portuguesas, o Fradinho da Mão Furada lembra bastante o Saci-Pererê, pois ele usa um gorro vermelho, azeda o leite, ferve o mel, faz sumir coisas, mas também ajuda quem satisfaz - basta deixar migalhas de pão ensopadas em prato, durante a noite, em qualquer canto da casa - a encontrar tesouros nas residências. Os portugueses também descrevem a Pisadeira como uma velha que tem uma gargalhada comprida e estridente, mas nunca sorri. De queixo 26
Seres Fantásticos virado para cima e boca escancarada, exibindo dentes horríveis, esverdeados, ela tem olhos vermelhos sempre arregalados e um olhar maligno. Seus dedos são compridos, secos, com unhas sujas e amareladas. Tem cabelo desgrenhado, um nariz enorme, arqueado como o bico de um gavião, e as pernas curtas. Ela gosta de esperar em cima dos telhados a hora de entrar no quarto das pessoas pela chaminé ou pelas janelas. No Brasil, a Pisadeira ganhou algumas variações de inspiração indígena. Por exemplo, a dos povos de língua tupi-guarani, que a chamavam de Kerepi-ayua (que não é a Kerpimanha, a mãe do sonho), a velha que os visitava trazendo uma porção de agonias terríveis. Já para os sertanejos nordestinos, a Pisadeira é uma velha que arranha nosso rosto durante o sonho e com quem lutamos muito, pois ela possui uma força enorme. Acordamos exaustos e muito assustados. No estado de São Paulo, também é conhecida como uma negra gorda que pisa na barriga das pessoas que vão dormir de estômago cheio.
OUTROS NOMES: Diabinho (ou Fradinho) da Mão Furada REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Universal PERSONAGEM RELACIONADA: Saci-Pererê 28
HUMANOS
Humanos
AMAZONAS
Dizem que essas índias, mulheres fortes e guerreiras, deram nome ao rio, à floresta e ao maior estado brasileiro, o Amazonas. Quem primeiro nos conta sobre as Amazonas é o frei Gaspar de Carvajal, escrivão da esquadra espanhola vinda ao Brasil em 1542. Houve uma luta entre os espanhóis e os índios na foz do rio Nhamundá - localizada na fronteira entre o Pará Amazonas - e o frei conta que os europeus foram surpreendi dos por essas mulheres alvas, altas, encorpadas, com cabelos longos, trançados e enrolados na cabeça, que andavam nuas usando apenas um tapa-sexo e arco e flecha nas mãos, e luta vam ferozmente, capitaneando os índios homens: “Aqui dimos de golpe en la buena tierra y señorio de las Amazonas”, escreveu o frei em “Descobrimento do rio de Orellana”. Alguns também dizem que elas carregavam escudos feitos de casco das tartarugas gigantes. Nessa guerra, o general Francisco de Orellana conseguiu matar umas sete ou oito, o que não foi suficiente para ganhar a batalha. Intrigados com essas misteriosas mulheres que se pintavam de verde para se confundirem com a mata e que possuíam apenas um seio (o outro elas cortavam ou queimavam para melhor apoiar o arco e flecha), os espanhóis capturaram um índio que lhes contou a história delas. Ele disse que naquela região havia pelo menos uns setenta grupos de Amazonas, 31
Humanos contabilizando 12 mil mulheres e crianças. Suas aldeias eram feitas de pedra e interligadas aos povoados por portas, onde havia sempre uma Amazona virgem cobrando pedágio de quem quisesse passar. Eram mulheres sem marido e, quando queriam engravidar, capturavam índios e faziam filhos com eles. Dizem, ainda, que elas esperavam os filhos no lago do Espelho da Lua (iaci-uaruá). Se nascessem homens, elas matavam e entregavam os corpos aos pais; se fossem mulheres, elas presenteavam o índio-pai com um talismã da sorte, uma pedra verde de diversos formatos chamada de Muiraquit, e pegavam a menina para criar, ensinando a ela as artes marciais. Esses Muiraquitãs, eram, na verdade, peixes transformados em pedras verdes com o sangue que as virgens Amazonas derrubavam no rio depois do ato amoroso. A simbologia do peixe é muito adequada para elas, uma vez que o peixe fértil pode ser fecundado várias vezes. E para quem quiser crer, apesar de a pedra verde aparecer em vários amuletos encontrados na América Central, nunca se conseguiu achar uma jazida sequer da origem desse mineral. Esse índio contou que a rainha delas se chamava Conhori e possuía muito ouro, prata, louças etc., e que na cidade principal havia cinco casas com local para adorar o Sol. E foi assim que os espanhóis, confundindo essas índias com as Amazonas da mitologia grega, batizaram aquele rio em que as encontraram, antes chamado de Mar Dulce, de rio de Las Amazonas, que depois virou rio Amazonas, nome que permanece até hoje. Não à toa, amazonas, em grego, significa “sem mamas”. Essas personagens são tão fortes que acabaram sendo incorporadas à literatura, como, por exemplo, no romance Macunaíma, de Mário de Andrade, em que há um capítulo inteiro dedicado a elas, o “Carta pras icamiabas” (outro nome das Amazonas).
OUTROS NOMES: Coniupuiaras, Icamiabas REGIÃO DO PAÍS: Norte (AM) ORIGEM: Europeia, indígena PERSONAGEM RELACIONADA: Jurupari 32
Humanos
PRINCESA ENCANTADA Por entre as águas e areias de uma das mais belas praias do Brasil, há uma gruta sob um farol que ilumina a escuridão das noites de Jericoacoara, no Ceará. Dentro dessa gruta mora uma princesa. A nobre foi transformada numa serpente que só tem a cabeça e os pés de mulher. Sozinha naquela gruta, ela espera que alguém se sacrifique por ela e doe um pouco de seu sangue para passar sobre seu corpo de cobra. Quando isso ocorrer, o réptil nojento se transformará na bela princesa. A Princesa Encantada brasileira é parente das Mouras da Península Ibérica, que nas noites de São João e de Natal voltam à forma humana, e cantam e dançam. E, quando o dia chega, retornam a suas peles de cobra, que ficaram num canto à espera, garantindo que continuem a viver sua maldição. Até que o sangue humano doado por alguém às resgate de seu triste destino... Talvez a versão masculina da Princesa Encantada possa ser o Cobra-Norato, que, como ela, também deixa sua pele para se transformar em homem quando cai a noite.
REGIÃO DO PAÍS: Nordeste (CE) ORIGEM: Brasileira, europeia PERSONAGEM RELACIONADA: Cobra-Norato 34
Humanos
ALAMOA Na ilha de Fernando de Noronha, em Pernambuco, nas noites de sextafeira, na Pedra do Pico, um lugar tão alto que fica a mais de mil pés de altura, há uma pedra em que se abre uma fenda. E dela aparece uma luz. Um facho tão forte e multicolorido que atrai as mariposas e também os viajantes. Estes, curiosos que são, assim que percebem aquela passagem na pedra, logo vão olhar de onde vem aquela luz ofuscante. E lá encontram Alamoa. Uma mulher branca, loira, nua e linda que vem recebê-los nessa caverna com ares de palácio. Mas... o pobre viajante não tarda a ver quem é a Alamoa de verdade: uma bela mulher que se transforma num tenebroso esqueleto! No lugar de seus olhos, dois buracos fundos e escuros, e a pele branca dá lugar a um feixe de ossos. Então, num minuto, a fenda da pedra se fecha e o andarilho fica ali, preso. Para sempre! As pessoas que costumavam contar essa história eram os detentos de Fernando de Noronha, que viam das janelas do antigo presídio a bela e alva mulher sair de sua gruta e flutuar, dançando sobre as areias da praia, emitindo luzes que seduziam os viajantes. Mas há quem diga que a Alamoa é apenas uma mulher alemã muito bonita (seria uma “alemoa”). Diz-se que ela apareceu a um pescador em Fernando de Noronha amarrada em seu anzol. Quando ele a fisgou e viu que era uma mulher, saiu correndo de medo, enquanto ela lhe amaldiçoava, pois andava atrás de um homem corajoso que mergulhasse naquelas águas em busca de um tesouro que ela guardava...
REGIÃO DO PAÍS: Nordeste (PE) ORIGEM: Europeia 36
Humanos
Marido da mãe-d’água Ele não tem nome, mas sua lenda é conhecida em muitos lugares do Brasil, pois a figura da Mãe-d’Água - ou lara - é bastante popular. O Marido da Mãe-d’Água era um pescador corajoso, porém muito pobre, que tentava, diariamente, encher o cesto de peixes. Cansado de suas dificuldades, certa vez ficou até tarde tentando pescar nem que fosse um só peixinho! De repente, começou a ouvir uma voz cantando lindamente e andou na direção daquele som para ver o que era. Foi quando viu, sentada na ponta de uma pedra, uma moça tão bela que mais parecia um anjo: cabelos longos e loiros, olhos azuis e pele alva. Achou que era uma alma penada, mas tomou fôlego perguntou à mulher quem era ela. A figura disse que era Mãe-d’Água e que estava ali para pedir ajuda a alguém, porque as pessoas sempre se aproximavam dela para lhe pedir algo e nunca para ajudá-la. Perguntou ao moço se ele tinha coragem de fazer o que ela lhe pedisse, ao que ele, sem titubear, respondeu que sim. A bela moça pediu a ele que pescasse naquele local, onde ela estava. Deveria vir sempre entre a meia-noite e o raiar do dia, todas as noites, até a lua quarto minguante. Assim ele fez. E passou a pegar tanto peixe que ficou bem de vida. Mas nunca esqueceu a Mãe-d’Água e teve vontade de revê-la. Em outra vez, ouviu de novo aquele canto e foi direto reencontrar a Mãe-d’Água, a quem agradeceu as fartas pescarias. A moça foi direto ao assunto: será que ele se casaria com ela? Claro! O pescador nem pensou muito. A Mãe-d’Agua, então, pediu ao pescador que viesse buscá-la na próxima lua, de quinta para sexta-feira, e lhe trouxesse roupas de cor branca, azul ou verde, sem nenhum alfinete, agulha ou coisa alguma que fosse de ferro. E pediu ao pescador que nunca, mas nunca mesmo, a renegasse ou zombasse dela ou de qualquer habitante do mar. O pescador aceitou as condições da Mãe-d’Água e eles se casaram. Foram felizes por três anos, ela era uma excelente dona de casa e o moço ficava cada dia mais próspero. Só que a moça começou a sentir saudades da vida no mar ao cair da tarde, ficava constantemente na janela, a suspirar. O rapaz ficava irritado com tanto suspiro e choradeira e começou a sair, procurando diversão em outro lugar. A moça, coitada, não reclamava de nada, mas não conseguia se esquecer de onde vinha... 38
Humanos Certa vez, ao chegar da rua e vê-la naquele estado, o pescador bradou alto que estava arrependido de ter casado com alguém do mar e que a renegava para sempre! Pronto! Como num passe de mágica a Mãe-d’Água ficou branca como um fantasma. Levantou as duas mãos e foi levada por uma onda gigantesca de água, que avançou ferozmente sobre tudo o que estava à frente. Apavorado, o rapaz saiu correndo sem nem olhar pra trás, à procura de um monte para subir. De cima avistou o lugar onde antes era a sua casa transformado numa grande lagoa. E ouviu alguém cantando uma música triste, como quem se despede da vida. E desde então ninguém nunca mais viu o pescador nem a Mãe-d’Água naquelas paragens. Essa história também aparece na Europa, e a identificação da Mãe-d’Água como loira de cabelos longos nos faz crer que, de fato, esse relato chegou a nós de navio. Algumas dessas versões, que também se fixaram aqui, trazem um final diferente: a Mãe-d’Água foi ficando triste de estar longe do mar e, quando discute com o marido, sai pela porta cantando: Zão, zão, zão, zão, Calunga, Olha o munguelendô, Calunga, Minha gente toda Calunga, Vamo-nos embora, Calunga Para a minha casa, Calunga, De debaixo d’água, Calunga, Eu bem te dizia, Calunga, Que não arrenegasses, Calunga De gente de debaixo d’água, Calunga.
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Humanos ... e com ela vão todas as coisas que o casal tinha comprado junto, além dos filhos e dos animais, e o homem ficou pobre novamente. Mas a história da Mãe-d’Água não acaba nunca... Há quem diga que ela ainda mora no fundo das águas e gosta de arrastar os meninos que vão lá tomar banho sem a permissão dos pais.
REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Universal PERSONAGEM RELACIONADA: lara 40
Humanos
Vira Roupas É o pesadelo das lavadeiras! Por onde passa, vira pelo avesso as roupas que estão secando ao sol, arranca os botões das camisas, enche de areia os bolsos das calças, risca as roupas brancas com um rabisco preto e vice-versa. Algumas lavadeiras dizem que é um “coisa ruim”, outras o “não sei que diga”, mas é certo tratar-se de um duende malfazejo, um ser malévolo. Há quem diga que ele é um homem alto, magro e muito ligeiro, que exige sempre a roupa bem lavada. Mas certo mesmo é que esse ser deixa as lavadeiras de cabelo em pé!
REGIÃO DO PAÍS: Nordeste (PB, RN) ORIGEM: Brasileira 42
Humanos
UALRI Há uma história que diz que Ualri era um velho índio, malvado e muito vingativo, odiado por todos. Foi iniciado na magia pelo próprio Jurupari, mas ele o traiu e revelou o segredo dos instrumentos musicais sagrados aos outros índios. Como castigo, foi queimado vivo e das suas cinzas nasceram insetos e cobras venenosas. Há uma outra lenda que diz que Ualri foi um dos homens enviados por Jurupari para espalhar as leis entre os homens. Ele foi parar em uma aldeia. Por causa de uma travessura de alguns jovens índios dessa aldeia, Ualri os engoliu, o que deixou o pajé e os outros índios muito furiosos com ele. Por isso, resolveram matá-lo queimando-o vivo. De suas cinzas nasceu uma palmeira passiua, que cresceu até tocar o céu e um povo novo, os Uancten-mascan, gente invisível que veio para tirar a paz de todos os índios. Ualri também aparece identificado como um tamanduá velhinho e desdentado, com uma língua viscosa e meio nojenta. Dizem que das cinzas de seu corpo queimado saem as “mayuas”, espíritos agourentos que podem prejudicar os adolescentes, daí a necessidade de se realizarem alguns rituais de prevenção com os jovens nessa fase. De sua unha - que era sua única forma de defesa -, dizem que Jurupari fez um amuleto poderoso, com o qual presenteou seu amigo Carida, que podia levá-lo para qualquer lugar onde quisesse ir.
REGIÃO DO PAÍS: Norte ORIGEM: Indígena PERSONAGEM RELACIONADA: Jurupari 44
Humanos
CABEÇA ERRANTE Essa personagem do folclore nacional tem três histórias bem diferentes. Na região Norte, as pessoas contam que a Cabeça Errante era a cabeça de um homem que foi cortada e colocada dentro de um saco. Só que a cabeça parecia ter vida própria: mal a colocavam no saco, ela caía. Colocavam de novo e novamente ela se jogava no chão. A história foi ficando complicada, pois os homens tentavam se safar da Cabeça Errante e nada: por onde eles iam, ela os seguia. Tentaram se esconder em cima de uma árvore e a Cabeça ficou lá embaixo, esperando por eles. Esconderam-se dentro de casa, fecharam as portas, e Cabeça Errante mandou que abrissem. Mas ninguém abriu nenhuma portinha, por puro medo, é claro. A Cabeça Errante, então, pensou no que ia se transformar: não podia ser em água porque os homens a beberiam. Nem em terra, porque eles pisariam nela. E muito menos em boi, porque a matariam para comer sua carne. Foi aí que teve uma ideia: “Vou ser Lua!”. E pronto, mandou que os homens jogassem dois carretéis de linha pela janela da casa estavam escondidos. Eles atenderam ao pedido e Cabeça Errante atirou os dois carretéis em direção ao céu e São Pedro (que é o santo que manda em tudo lá em cima) que jogasse para baixo uma varinha para com ela ir enrolando, linha e subir ao céu, devagarinho. Assim, chegou ao céu e lá acabou virando Lua. Os homens, cá embaixo, que acompanharam a aventura da Cabeça Errante mal acreditaram que viram, ficando com mais medo ainda desse ser esquisito. Mas em Pernambuco a história da Cabeça Errante é outra. Conta-se que havia um menino que passava todos os dias pela mesma estrada, para lá e pra cá. Toda vez ele dava de cara com uma caveira que ali ficava e lhe dava uma chibatada. Batia sem dó! Certo dia a caveira, indignada com a maldade do pequeno, foi, só com a sua cabeça, se queixar à mãe do menino dizendo, com sua voz muito fanhosa, algo assim:x Minha senhora Veja seu filho; Se ele vai, se ele vem. Pau no nariz;
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Humanos Se ele passa pra lá, Pau no nariz; Se ele passa pra cá, Pau no nariz. Diante da ameaça da tal Cabeça, a mãe logo cuidou para que seu filho nunca mais mexesse com a caveira, dona da Cabeça Errante. Afinal de contas, a mãe queria que seu filho voltasse para casa com o nariz inteiro, e não quebrado por um pau atirado por uma cabeça enfurecida! Entre os índios Tupari e Tarupá, conta-se uma outra história sobre a Cabeça Errante: havia uma mulher que enquanto o marido dormia, ia comendo sua cabeça. Um vizinhos viram o que estava ocorrendo ali e colocaram fogo no corpo do homem; a cabeça sentiu dor e foi rolando até a fogueira, enquanto o corpo ficou inteiro, mas todo queimado... e virou um Bacurau, aquele pássaro que, quando canta, alguém morre. Essa lenda tem a ver com a da Cumacanga, que também trata do nascimento da Lua.
REGIÃO DO PAÍS: Nordeste (PE) e Norte (AC) ORIGEM: Europeia, hindu e indígena PERSONAGEM RELACIONADA: Bacurau, Cumacanga 48
BICHOS
BICHOS
Arranca-língua
Dizem que o Arranca-Língua é um macaco que mede quase quatro metros de altura. Ele ataca os rebanhos de gado e arranca apenas a língua dos animais, deixando o resto do corpo intocado. Na primeira metade do século XX, toda a imprensa de Goiás, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro noticiou os feitos desse bicho, com depoimentos de muitos fazendeiros que afirmavam ter visto suas pegadas enormes, algumas com mais de sessenta centímetros de comprimento. É assim que um mito vira um fato. Foi o que aconteceu com esse monstro enorme - parecido com o King Kong - o Arranca-Língua, que é parente de outro ser do folclore, o Bicho-Homem. Um jornal da época dedicou um soneto ao Arranca-Língua: King Kong Feroz, cruel, terrível, monstruoso, De grande força e porte agigantado, O sertão de Goiás, misterioso, Habita o King Kong tão falado.
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BICHOS História ou lenda, o fato é curioso E parece bastante exagerado: É que vagueia a procurar o gado, Arrancando-lhe a língua, furioso. E por todo lugar por onde passa Assola o gado pela pastaria, Pelo prazer de línguas arrancar. Ah, se tal monstro por aqui passasse, Quantas línguas compridas tiraria! E quanta gente sem poder falar!
Na época em que o monstruoso animal foi visto, disseram também que ele era “um homem amacacado”, como um gorila, com braços compridos, mãos grandes e rosto chato, que estaria na região de Goiás para “punir os ladrões de gado”. O ser peludo teria sido antes um ladrão de gado nos Estados Unidos e sua condenação tinha sido se transformar no monstrengo. Tempos depois, porém, descobriram que o que estava matando o gado era uma doença chamada febre aftosa, que destruía o tecido da língua dos bois. Por isso ela caía, como se tivesse sido arrancada. Quem viu, quem não viu... Pelo sim e pelo não, a gente da região do rio Araguaia não se arrisca a passar pelos locais onde dizem que o Arranca-Língua ainda vive.
OUTROS NOMES: Come-Língua, King Kong REGIÃO DO PAÍS: Centro-Oeste (GO) ORIGEM: Brasileira PERSONAGEM RELACIONADA: Bicho-Homem 52
BICHOS
Maria Caninana Impossível falar de Maria Caninana sem citar seu irmão, a famosa personagem da mitologia brasileira Cobra-Norato. Conta-se que a mãe deles era uma índia que engravidou de um Boto (há quem diga que foi de uma Sucuriju ou Boiuna versões coexistem na cultura popular) e deu à luz nasceram cobras, uma macho e a outra fêmea. Ao que eram cobras, a mãe resolveu aconselhar-se como tribo para saber se deveria matá-los. O pajé disse que poderia fazer isso, senão morreria também. Então, ela resolveu jogá-los no rio Tocantins. Ao contrário de seu irmão, que era bom e salvou muitas vidas, Maria Caninana era má e violenta. Alagava embarcações, matava os náufragos, feria os peixes pequenos e atacava os mariscadores que pescavam tranquilamente na margem dos rios. Um dia ela soube que, no porto da cidade de Óbidos, no Pará, havia uma serpente encantada, que dormia embaixo do altar da igreja de Sant’Ana. A cauda da serpente era tão grande que ficava no fundo do rio. Se mexessem com ela, a serpente acordaria e a igreja cairia. A danada da Maria Caninana foi lá e mordeu o rabo da cobra, que, felizmente, só se mexeu, e não acordou. Apenas o fato de ter tremido bastou para que nascesse uma fenda imensa desde o mercado até a frente da igreja, e está lá até hoje. Farto das maldades da irmã, Cobra-Norato matou-a e então ficou nadando sozinho nos rios e igarapés.
REGIÃO DO PAÍS: Norte ORIGEM: Africana, europeia PERSONAGENS RELACIONADAS: Boto, Cobra-Norato, Minhocão, Sucuru 54
BICHOS
Motucu Os índios Manaó, do rio Negro, também tinham o seu Curupira. Para eles, o Motucu era um bicho que tinha os pés virados para trás e vivia nas florestas. Era um demônio que conhecia todos os atalhos dentro das matas e, por isso, sabia como incendiá-las, deixando atrás de si um rastro de destruição e de pedras. Entidade misteriosa, fazia com que os Manaó da região temessem encontrá-lo em qualquer andança!
REGIÃO DO PAÍS: Norte (AM) ORIGEM: Indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Curupira 56
BICHOS
BACURAU Está com dor de dente? Esfregue as penas da asa do Bacurau, nele e a dor some na hora. Quer se manter firme sobre o cavalo, sem que nenhum coice ou movimento lhe derrube? Coloque as penas do Bacurau entre a manta e a sela e siga em frente! Quem conhece os feitos do Bacurau recita esta quadrinha: Quero dar a despedida Como deu o Bacurau Uma perna no caminho Outra no galho de pau... O Bacurau (Nyctidromus albicollis) é capaz de muitas proezas. Há quem conte que essa ave de imensos olhos redondos passeia pelas estradas assim que anoitece caçando insetos e refletindo luzes em seus imensos olhos. O filósofo grego Aristóteles já contava que lá na Grécia antiga algumas corujas ordenhavam cabras. Seriam parentes do Bacurau? E os índios brasileiros dizem que o Bacurau chupa o sangue e come a carne de gente assassinada. Parece um bicho poderoso, pois as pessoas, quando têm certeza de que alguma coisa vai acontecer, costumam falar: “É dizendo e Bacurau escrevendo!”. Bacurau escreveu com sua pena... aconteceu!
OUTROS NOMES: Bacurau-Mede-Légua, Curiango REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Europeia PERSONAGENS RELACIONADAS: Cabeça Errante, Tibanaré 58
BICHOS
MINHOCÃO O Minhocão, como diz o nome, é uma minhoca enorme, uma serpente subterrânea que habita o rio São Francisco. Ele anda por baixo das águas (pois tem nadadeiras) e até mesmo do solo e vai destruindo cidades e desmoronando casas por onde passa. Fora isso, ainda cava grutas onde há barracas, naufraga barcos e aterroriza pescadores e viajantes, arrastando para o fundo do rio cavalos e burros que fazem a travessia. Ele nunca aparece na superfície dos rios e por isso sempre agarra os animais pela barriga. É descrito como um bicho imenso, muito feio, metade peixe, metade cobra, algumas vezes com pelos na cabeça ou língua de fogo. Quem o viu diz que ele lembra um surubim de tamanho descomunal, ou ainda que vira um pássaro bem grande, inteirinho branco e com o pescoço bem fino e comprido, como se fosse uma minhoca. Dizem que sua fúria advém da raiva por ter mais de trezentos anos de idade e ter ficado velho e roliço. E desse corpo nascem porcos-d’água, monstrengos com cabeça de porco e corpo de peixe. Há quem diga que o Minhocão existe também em Minas Gerais, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (na lagoa do Armazém).
REGIÕES DO PAÍS: Centro-Oeste (GO). Sudeste (MG), Sul (RS, SC) ORIGEM: Europeia PERSONAGENS RELACIONADAS: Caboclo-d’Água, Cobra-Norato, Maria Caninana, Sucuriju 60
BICHOS
SUCURIJU Segundo Luís da Câmara Cascudo em Dicionário do folclore brasileiro (2000): “Esta cobra é uma verdadeira mina literária. Apesar de ser a maior da Amazônia, encontra-se mais nos livros do que nos igarapós. Tem feito piores estragos entre leitores que entre pescadores”. Ou seja, pela quantidade de registros, ninguém sabe com certeza como a Sucuriju se parece O problema começa com o tamanho: há quem diga que ela é do tamanho de um barco medieval, outros dizem que mede o mesmo tanto de um cavalo ou de uma canoa pequena. Há quem jure que ela tem olhos de fogo e que pode se transformar num barco, com velas e máquinas. Mas todos concordam que ela não é venenosa e torna-se perigosa porque aperta os ossos da presa de tal modo que acaba por quebrá-los, para depois engoli-la Sucuriju, do tupi-guarani suku’ri, quer dizer “o que morde ligeiro”. Daí ela ter alguns outros nomes como Socori, Sucuriú, Sucuriúba e por aí vai.
OUTROS NOMES: Socori, Sucuriú, Sucuriúba, Sucurujuba, Sucuruju REGIÕES DO PAÍS: Nordeste (BA, MA, SE), Norte (PA), Sul ORIGEM: Indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Cobra-Norato, lara, Maria Caninana, Minhocão 62
BICHOS
URUTAU Há muitas lendas sobre a ave Urutau (Nyctibius griseus). comum em toda a América do Sul. Conhecida ainda como Anda-a-Lua (em Minas Gerais), Chora-a-Lua (na Bahia) ou Pai da Noite (em Pernambuco), é uma ave de boca grande que inspirou histórias de mistério. Tem canto melancólico e agudo, como se fosse uma risada de dor, que angustia quem o ouve. Muitos a chamam de “ave fantasma”, talvez porque, numa corruptela do guarani, seu nome queria dizer exatamente isso: guyra (“ave”) e táu (“fantasma”). É muito difícil de avistar, pois tem hábitos noturnos e plumagem que pode ser confundida com um galho. Outra curiosidade é que o Urutau pode “enxergar de olhos fechados”, pois tem duas fendas em suas pálpebras. Dizem que o Urutau ou Mãe da Lua era uma mulher que amava festas. Um dia deixou o marido, Paulo, sozinho e foi se divertir. Ao voltar, encontrou-o morto. Cheia de culpa, deu um grito terrível, transformou-se na ave e pôs-se a falar: Paulo! Paulo!, soluçando, numa risada de dor. No Maranhão, a Mãe da Lua era uma moça feia, alta, esquelética, com os olhos vermelhos e o nariz comprido, que queria muito casar. Uma noite, encontrou um príncipe que aceitou casar-se em troca de ela se tornar sua guia. Porém, quando a Lua clareou a noite, o rapaz viu o rosto da moça. Assustado com sua feiura, foi embora para sempre. Lua o esperou por muito tempo, Mãe da Lua o esperou por muito tempo, até que uma feiticeira lhe ofereceu asas para ir em busca do noivo. Foi assim que ela virou uma ave sinistra. Vagou a noite inteira, nunca encontrou o noivo e ficou morando no oco de uma árvore. Sempre que a Lua surge, ela põe a cabeça para fora e, lembrando-se do noivo, grita, com voz histérica: “Foi!... Foi!... Foi! Seu canto melancólico inspirou grandes escritores brasileiros, como José de Alencar, em O Guarani (1857): “O urutáo no fundo da matta solta as suas notas graves e sonoras que reboando pelas longas crastas de verdura vão echoar ao longe como o toque lento e pausado do angelus”, e Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas (1956): “Todo o mundo dormindo. Só o chochôrro mateiro, que sai de debaixo dos silêncios, e um ô-Ô-ô de urutau, muito triste e muito alto”. Alguns povos de língua guarani contam que o Urutau é a índia 64
BICHOS Nheambiú, transformada em ave depois da morte do noivo, Quimbae. Para os Karajá, foi Imaeró quem se transformou em Mãe da Lua quando Taina-Can (a estrela - d’alva) preferiu sua irmã, Denaque, como esposa. Para os índios da região do rio Buopé, o Urutau nada mais é do que o tuxaua Duiruna, que virou ave ao ver a mulher Ueundá se transformar no peixe Pacutinga ou Pacu-Branco. Já os Tupinambá acreditavam que ela trazia notícia dos antepassados e nunca a matavam. Para outros povos indígenas, as penas dessas aves colaboravam para tornar as moças imunes às paixões perigosas, por isso a tradição era depenar a ave, secar as penas ao Sol e então deixar as moças sentadas sobre elas durante três dias seguidos. Nesse período, as mulheres mais velhas vinham conversar aconselhando-as a serem honestas. Ao final do período elas estavam “curadas”. Já para outros povos, bastava varrer o chão embaixo da rede das moças com as penas da ave para protegê-las das paixões.
OUTROS NOMES: Anda-a-Lua, Ave Fantasma, Chora-a-Lua, Mãe da Lua, Pai da Noite
REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Indígena 66
A a u t o ra
Januária Cristina Alves é jornalista, mestre em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com uma tese sobre jornalismo infantil. Especializou-se na escrita para crianças e jovens, tendo mais de quarenta obras publicadas entre ficção e informativos, dentre elas o guarda-chuva da professora, Traços traçados, Crônicas de papel: Razões para gostar de ler e A maldição da letra cursiva. Em 2014, recebeu o prêmio Jabuti na categoria Didáticos/Paradidáticos com a obra Para ler e ver com olhos livres. Em 2016 recebeu novamente o Jabuti pela coordenação editorial do livro Convivendo em grupo: Almanaque de sobrevivência em sociedade, da Coleção Informação e Diálogo. Em 1995, recebeu o Prêmio Abril de Jornalismo, na categoria Saúde. Também recebeu o Prêmio Wladimir Herzog de Direitos Humanos, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em 1990, pela criação do primeiro jornal infanto juvenil a ser vendido em bancas de jornal no Brasil - o Sport Gang. Trabalhou como roteirista do programa infantil da TV Cultura Bambalalão e durante treze anos foi consultora do Programa Folha Educação do jornal Folha de S.Paulo, destinado a orientar escolas para o uso do jornal em sala de aula. Também colaborou em outros periódicos, como Claudia, Marie Claire, Jornal da Tarde, o Estado de S. Paulo, Folha de 68
S.Paulo e Diário do Grande ABC. Januária atua como consultora para diversas empresas em programas focados em educação e cultura e em editoras como assessora editorial e editora associada. Realiza também palestras, cursos e oficinas para educadores, crianças e jovens sobre infoeducação e educação literária. A ligação de Januária com o folclore brasileiro tem raízes em sua origem - neta e filha de pernambucanos, exímios contadores de histórias - e desde sua infância coleciona esses causos fantásticos que povoam e alimentam o seu imaginário até hoje.
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B i b l i o g ra f i a
A pesquisa para a concepção deste livro demandou uma extensa consulta bibliográfica. Por uma questão de espaço, apresentamos aqui apenas as obras principais. LIVROS ALENCAR, José de. O Guarany - Romance brasileiro, Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diario, 1857. ALMEIDA, Renato. Manual de coleta folclórica. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1965. AMARAL, Amadeu. O dialecto caipira: Gramática, vocabulário. SãoPaulo: O Livro, 1920. Tradições populares. São Paulo: Hucitec, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. AMARAL, Firmino Teixeira. Princesa Magalona e seu amante Pierre. Juazeiro do Norte: Tipografia São Francisco de José Bernardo da Silva, 1957.
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AMERICANO DO BRASIL, I. G. Lendas e encantamentos do sertão. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1938. ANCHIETA, José de. “Ao padre geral, de S.Vicente, ao último de maio de 1560. Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente...”, in Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões do padre Joseph de Anchieta, S. J. (15541594). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1933, pp. 103-43. ANDRADE, Carlos Drummond de. “Aguas e mágoas do rio São Francisco”, in Discurso de primavera e algumas sombras. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013 ANGTHICHAY et al. O povo pataxó e sua história. Belo Horizonte: Ministério da Educação e do Desporto/ UNESCO/SEE-MG, 1997. APOCALYPSE, Mary (org.). Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo: Edigraf, s/d. (coleção Antologia Ilustrada do Folclore Brasileiro, série Estórias e Lendas, v. 6). ARAÚJO, Alceu Maynard & Vasco José TABORDA (orgs.). Estórias e lendas de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. São Paulo: Edigraf, s/d. (coleção Antologia Ilustrada do Folclore Brasileiro, série Estórias e Lendas, V. 4 e 5). ARAÚJO, Alceu Maynard. Documentário fol clórico paulista. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, Departamento de Cultura, Divisão do Arquivo Histórico, 1952. Folclore nacional - Festas, bailados, mitos e lendas. São Paulo: Martins Fontes, 2004 (coleção Raízes). AZEVEDO, Ricardo. Armazém do folclore. São Paulo: Ática, 2000. BAG, Mario. A loura do banheiro e mais 10 lendas urbanas. Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2013 BARROS, Leandro Gomes de. História da donzela Teodora. Juazeiro do Norte: Tipografia São Francisco de José Bernardo da Silva, s/d. História de Roberto do Diabo. Juazeiro do Norte: Biblioteca Nacional do Cordel, s/d.
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