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Infância roubada
from CDM 59
A pressão em amadurecer precocemente, assédio e abusos em menores de idade mostram como crescer em uma sociedade hipersexualizadora está longe de ser um processo seguro
Beatriz Tsutsumi Camila Acordi Maria Vitória Bruzamolin Sarah Guilhermo
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Aerotização precoce em volta das mulheres está enraizada na sociedade, inserida de maneira certamente implícita em crianças no modo de se vestir e de se comportar. Roupas com transparência e sapatos para crianças com salto são alguns exemplos deste padrão. Na maioria das vezes, a família, pais ou responsáveis pela criança não têm noção que muitos elementos presentes no cotidiano, em especial as vestimentas ou apresentação da criança, possuem itens de sensualização do corpo. A estudante Mariah Foggiatto, de 18 anos, concorda com a afirmação. “É doentio o fato de que algumas pessoas veem uma criança diferente do que ela é: uma criança”, comenta a jovem, protagonista de assédios que aterrorizam seu passado.
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Mariah tinha 15 anos quando um líder religioso, que costumava se comportar como uma pessoa carinhosa com ela, fez uso dessa proximidade para se aproveitar da adolescente. “Ele tinha 60 anos e se viu no direito de me apalpar, me tocar e insinuar coisas sexuais no meu ouvido”, conta ela. “Como alguém de confiança, que era como um pai para mim, podia fazer algo do tipo? Como alguém assiste uma criança crescer e se vê no direito de abusar dela?” O abusador a conhecia desde os 4 anos. Aos 16 anos, sofrendo com as inseguranças causadas pelo ocorrido, um amigo da família a apalpou na presença de outros familiares, que não fizeram nada a respeito. “Eu estava bêbada sob supervisão dos primos e um amigo da família, que tinha 50 anos. Era um ambiente que parecia seguro para beber, afinal, achei que estava com pessoas de confiança”, Mariah explica. Assim como no primeiro caso, o abusador agia com carinho, como se fosse apenas um amigo mais velho, mais sábio. Mas foi necessário um momento de distração dos primos para o homem usar a embriaguez da jovem para se aproveitar dela. “No momento que ele começou a colocar a mão debaixo da minha camiseta, de forma sorrateira, eu acordei num lapso de lucidez e empurrei ele, dizendo não.” Ela correu para o quarto onde estava a sua mãe, que não sabia da bebida, e em um choro silencioso, escondeu o acontecimento dela por dois anos, buscando conforto em amigas diante da possibilidade de uma reação indiferente da família. “Os familiares que souberam do acontecimento invalidam e fazem piada até hoje, como se não tivesse problema. Isso traz uma cicatriz enorme, te deixa arisca.”
A exposição de menores tem sido cada vez maior com o uso indevido das redes sociais, e consequentemente, o assédio. Fotos, vídeos de danças que em algumas vezes possuem teor sexu-
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al, que aos olhos dos jovens pode não ser nada demais, pode vir a ser um tiro no escuro, uma vez que muitos dos que assistem podem ser predadores sexuais ou ver malícia diante o conteúdo. “É necessário olhar para a infância como uma fase crucial, com a necessidade de ser compreendida, estudada, levando informação para a população, treinamento dos pais e acesso à educação”, afirma a psicóloga Mariana Cançado. Ela comenta a maneira sobre o assunto das mídias sociais ser algo novo e da importância de que durante a fase da infância, a criança realmente vivencie esta fase,
tal como realizar uma orientação para os pais, para que possam fazer uma prevenção com seus filhos. “São todos pontos de proteção para a criança compreender que é uma fase, que precisa ser própria”, reforça a psicóloga.
Quem também alerta sobre o perigo da exposição precoce em redes sociais é a coordenadora pedagógica do Marista Escola Social Ecológica, Suelen Cristine Fernandes. “Esses são criminosos muito pacientes, atuam aos poucos, criando vínculo com a vítima, fazendo ‘amizade’, se passando por pessoas da mesma idade, até ganharem confiança.” Além disso, Suelen ainda lembra que, normalmente, as vítimas nessa faixa etária costumam ser muito intensas e os abusadores, sabendo disso, se aproveitam. “Provas” de amor ou amizade costumam ser solicitadas pelos infratores, que, dessa forma, conseguem fazer com que a vítima cumpra desafios ou envie fotos íntimas de si. Para que situações como essa diminuam, é indicado que a criança desde cedo tenha espaço para conversar sobre o assunto sem julgamentos e punições, mas, sim, com orientações. “Na maioria das vezes, esses temas são tabus dentro das famílias, e somando isso ao fato de não haver supervisão, a criança está sujeita a essas práticas, que podem trazer consequências muito sérias”, completa a coordenadora.
E não é especulação dizer que toda mulher possui uma conhecida que já foi assediada, principalmente quando se é mais nova. Para a estudante Andressa*, de 21 anos, o anúncio da primeira menstruação foi a despedida de sua infância. A necessidade de usar sutiã foi imposta pela mãe, que logo trouxe um modelo com bojo, mesmo sem a menina ter peitos. Com sua baixa estatura e com o sutiã de bojo, frases como “Nossa, olha aquela anãzinha, ela é bem peituda” eram comuns para Andressa, que as ouvia com apenas 8 anos.
Andressa considera que as portas do mundo adulto se abriram muito cedo para ela. A curiosidade sobre o sexo surgiu após sofrer abusos por um integrante da família - afinal, o que tinha acontecido com seu próprio corpo? “Eu comecei a pesquisar na internet quando ficava sozinha em casa, pesquisava por órgãos genitais e como os bebês vinham para o mundo”, conta ela.
A exposição na internet também esteve presente na adolescência da jovem. A timidez e a vergonha fizeram a menina utilizar um aplicativo de relacionamento como forma de contato com outras pessoas. Mesmo menor de idade, Andressa saía com diversos adultos em busca de amigos, mantendo relações com alguns deles. Foi em um desses encontros, com seus 17 anos, que ela perdeu a virgindade, com um homem de 28 anos. “Eu só contei pra ele que eu era menor de idade quando a gente saiu, aí ele perguntou se não iria dar problema e eu disse que não”, comenta ela.
Apesar de ser um assunto hoje discutido de forma mais aberta, as denúncias de abuso e violência infantil e adolescentes, ainda é um problema. Segundo João Carlos Pires, conselheiro e atual presidente do Conselho Tutelar de Curitiba, o número de denúncias não é exato. Um exemplo sendo a média do Conselho Tutelar do Cajuru, que foi por volta de 1600 denúncias no ano de 2019, mas Pires reforça sobre os diversos casos que não são denunciados. “Tem que ficar bem claro os números nunca vão ser reais. Há uma subnotificação. O número que a gente tem é só a ponta de um iceberg”, declara Pires. “Essa violência é muito forte, a ponto de a criança não conseguir relatar. Eu tenho poucos casos e muitos relatos de meninos que sofrem, ou sofreram com violência.”
Após a denúncia e avaliação da vítima, o Conselho Tutelar irá aplicar medidas protetivas, preparar e fiscalizar a família, para que a criança ou adolescente retorne ao seu lar. Pires comentou também sobre as instituições de acolhimento, lugares antes chamados de abrigos que acolhem as vítimas.
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Casos com violência extrema, ou que a família não pode cuidar, são mais complicados devido ao ambiente para a criança. Entretanto, o conselheiro reforçou que instituições de acolhimento são os últimos recursos, e mesmo as propostas dos institutos hoje em dia sendo completamente diferente de anos atrás, retirar a criança de sua família é também uma forma de violência. “Você está afastando a criança do lar, mas hoje os abrigos têm a finalidade e missão de proporcionar uma dinâmica de família dentro daquela casa”, diz.
O presidente do Conselho Tutelar também comentou sobre um novo programa para o acolhimento dos menores em situação de risco. O “Família Acolhedora” é uma organização na qual pessoas se cadastram no programa para futuramente receber crianças ou adolescentes que sofreram com algum tipo de violência. Semelhante ao sistema de apadrinhamento, os “acolhedores” ficarão com os jovens por um período temporário. Segundo a psicóloga Idáira Amoretti, não existe um padrão comportamental a ser “seguido” por jovens que sofrem ou sofreram abuso. No entanto, existem algumas mudanças de comportamento, que isoladas podem não significar nada, mas em conjunto, funcionam como um alerta para que a criança seja levada para uma avaliação profissional, um psicólogo. Entre essas mudanças, estão comportamentos mais agressivos, introspectivos, medo, recusa de alimentos que antes consumiam bem, ansiedade e até intensificação de higiene (tanto pessoal quanto do ambiente).
A partir do momento que a criança vai para um psicólogo e é identificado que ela realmente foi vítima de abuso, começa a missão de reestruturação, cicatrização e de livrá-la de qualquer sentimento ruim que não a pertence, como por exemplo, o de culpar a si mesma. Idáira enxerga o trabalho do psicólogo nesses casos como de primeira importância e afirma “a possibilidade de fazer resgate emocional de uma criança ou adolescente que sofreu uma violência tão grande e tão marcante na sua vida é algo de importância de primeiro grau, além de todo o trabalho com a família.”
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O processo em busca da cura emocional de quem sofre com esse tipo de abuso é longo e intenso, e crianças e jovens que não recebem o tratamento adequado, costumam sofrer com danos emocionais pelo resto de suas vidas. Por isso, é de suma importância que tal atendimento esteja incluído na saúde básica e disponível para todos brasileiros em qualquer região do país.
Segundo a pedagoga Suelen Fernandes, pesquisas mostram que cerca de 90% dos casos acontecem dentro de casa e a psicóloga Idáira explica o motivo. Geralmente esses casos ocorrem pelo fácil acesso que o abusador tem a criança. São pessoas do convívio da família como vizinhos, amigos próprios e até mesmo um familiar. Sendo assim, a vítima se sente intimidada pelo fato de ser alguém que todos gostam e incentivam o convívio, e não consegue verbalizar o que fizeram com ela, algo que não gostou.
*Nome fictífico criado para proteger o anonimato do entrevistado.
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Em uma pesquisa respondida por 93 pessoas, havia um espaço para falar sobre suas experiências de assédio e abuso enquanto menor de idade, caso se sentissem confortáveis. 28 pessoas decidiram contar, anonimamente, suas histórias. Leia a seguir alguns deles.
“Ele falava que se eu contasse para alguém, ele ia me machucar muito. Nunca contei pra ninguém.” Gênero feminino, tinha 5 anos
“Um amigo da família sempre tocava minhas partes íntimas quando não tinha ninguém por perto, eu tinha vergonha de contar.” Gênero feminino, tinha 10 anos
“Ele me perguntou se eu sabia o que era sexo, e respondi que não. Ele disse que era uma coisa legal, que ia fazer me sentir melhor e começou a passar a mão em mim. Eu não reagi, estava assustado. Ele acabou tirando minha virgindade.” Gênero masculino, tinha 10 anos
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“Ele descobriu que eu ia terminar nosso namoro e me estuprou no parquinho perto de casa. Tive um filho fruto do ocorrido.” Gênero feminino, não lembra a idade
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Cartilha com possíveis sinais de alerta manifestados por crianças e adolescentes que sofrem abusos.
portalcomunicare.com.br