A Sirene - Ed. 85 (Maio/2023)

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PARA NÃO ESQUECER | Ano 8 - Edição nº 85- Maio de 2023 | Distribuição gratuita A SIRENE

EDITAL DE CONVOCAÇÃO

A Associação dos Atingidos pela Barragem de Fundão para a Comunicação, Arte e Cultura convoca todos(as) os(as) associados(as) para uma assembleia que ocorrerá no dia 5 de junho de 2023, às 18h, na sede da CABF, que fica na Rua Wenceslau Braz, 730, em Mariana. A ordem do dia é a eleição e posse da nova diretoria da associação e a alteração do estatuto.

18 de abril

A Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação recebeu representantes de pescadores atingidos e pescadoras atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. Durante a audiência, foram questionadas a demora e as dificuldades de pescadores e pescadoras para serem indenizados e indenizadas pela Renova. Além disso, a liberação de pesca de algumas espécies na Bacia do Rio Doce pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) também foi pauta na reunião, uma vez que não há comprovação de que tais espécies não estão contaminadas pelos rejeitos. Tanto a Renova quanto o Ministério Público foram convidados para a audiência, porém não compareceram.

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Mariana - MG
2 PARA NÃO ESQUECER Maio de 2023
A SIRENE
AUDIÊNCIA
PESCADORES E PESCADORAS BUSCAM REPARAÇÃO EM
NA CÂMARA
AGRADECIMENTO ESPECIAL

Opinião

Papo de Cumadres: Mães Atingidas

Concebida e Clemilda estão entristecidas com a chegada do dia das Mães, por verem tantas mães atingidas que, mesmo que a Renova as indenize com um milhão, não será completa a indenização.

– Clemilda minha fia, tô aqui a matutá, quantas mães perderam seus fius com rompimentu de barrage, e num conseque, nu dia das mãe, ter um tiquim de felicidade.

– Pois é cumade minha fia, e essa é uma das tamanha mardade que roba de nois a tranqüilidade, pois cada mãe sente a dor da perca ou da separação, pois as mãe que tão longe du fiu seja por morte ou por distanciação, todas elas carrega essa dor nu coração.

– Issu é mesmu cumadre, u rumpimentu da barrage consegue armentá ainda mais essa mardade. Pois ês separa as família, seja promovenu a distância ou aguçandu a ganância.

– Como assim? Num intendi a ganância.

– Pois põe sintidu na reparação eles pagam um numa casa, deixandu de fora u seu irmão, issu é pamode fazê separação, não reparação, e todas as mazelas são transformada em dor e danação, i nas mãe acaba tudo indu morar dentru du coração.

– Nois temu que fechá nossos olhus e, por meiu das oração, cunvelsá com Nossa Sinhora, que é a maior de todas as Mãe, e deixá tudu nas suas mão, sem isquecê nossa palte, que num é só oração, temu que continuá nossa luta por uma justa reparação.

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Foto: Sérgio Papagaio

Forma de pertencer

Por votação em assembleia no dia 16 de abril, mediada pela Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), moradores e moradoras da comunidade de Paracatu de Baixo, agora somente Paracatu, decidiram os nomes das ruas e do lugar de reassentamento. Maria Benigna, Alexandre Gonçalves Marcelino, Henrique Batista, Pedro Celestino e José Patrocínio foram as pessoas escolhidas para intitular as ruas 1, 2, 3, 4 e 5, respectivamente. O campo de futebol recebeu o nome de “Izolina das Dores”. A quadra esportiva foi batizada com o nome de “Esterlino”. O salão comunitário agora é “Salão Comunitário Laura Barbosa”. O posto avançado de saúde foi nomeado como “Ana Lúcia da Silva” e o posto de serviços, “José da Silva”. Por fim, a capela velório do cemitério foi designada “Capela das Rosas”, por sugestão de Dona Efigênia Bento, a moradora mais antiga de Paracatu.

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Efigênia, 97 anos, é a anciã da comunidade e participou ativamente da atividade e sugeriu o nome da Capela das Rosas, como forma de articular as diversas religiões e crenças da comunidade em um só templo Fotos: André Carvalho Por José Silva e Luzia Nazaré Mota Queiroz Com o apoio de Tatiane Análio

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“Eu acho importante nomear as ruas, com certeza. Foi muito bonita a nossa escolha com os nomes das pessoas, das pessoas atingidas. Foi bem escolhido. Todos os nomes que foram escolhidos têm meu total apoio, porque é a única maneira de a gente fazer uma homenagem a essas pessoas. E, com isso, a gente conforta, de certa forma, as famílias também. Então a gente tinha mais é que fazer isso mesmo, uma votação para decidir os nomes dos lugares que são nossos e que sempre vão ser.”

“A colocação dos nomes foi importante porque, há muito tempo, a gente entendeu que Paracatu ficou muito comprida. Antes, na Paracatu de origem, eram ruas e vias e, lá em cima [reassentamento], a gente entende que virou quase um bairro. A distância é muita, então justificava ter mais passagens, não as tradicionais que foram feitas no projeto.

Essas ruas todas que foram visualizadas foram conquistas, algumas por necessidade e outras por conquista. Foi importante que partisse de nós dar o nome para as ruas, em vez disso vir imposto de algum lugar e a gente ter que aceitar. E aí, como em nossa comunidade tem bastante joias, a gente achou, como forma de homenagem, nomear as ruas com as pessoas que realmente lutaram, que tiveram muito a ver com o bem público ou com a rua em que moravam. E agora a gente fez essa assembleia, fez o processo de aclamação de contagem de votos que foram fotografados para ter certeza que não teve fraude e depois foi a votação principal para decidir onde vai ser o cruzeiro da comunidade e o nome que Paracatu vai ter a partir dessa data de hoje.

Foram três nomes de indicação, Paracatu venceu com 19 votos. Eu, pessoalmente, acho que vai haver um conflito de informações quando se falar e se referenciar somente a palavra Paracatu. Eu entendo que os outros nomes denominavam uma coisa que foi reconstruída, que foi feita de uma forma que a gente não quer perder. Mas como foi por votação, o pessoal ficou muito feliz e aplaudiu bastante, né? Então a gente fez uma coisa bem transparente, entendemos que cumprimos o nosso trabalho, principalmente como comissão, como as pessoas que realmente vão morar. Foi para o desejo próprio delas, então a gente acredita que está todo mundo feliz com as nomeações.”

Luzia Nazaré Mota Queiroz, moradora de Paracatu

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Romeu coordenou os trabalhos de votação e as explicações, rua a rua, para os nomes propostos A cada nome proposto, as famílias presentes se manifestavam Fotos: André Carvalho Maria Geralda e outros moradores destacaram que a comunidade sente falta de conhecer e atuar nas obras da igreja Luzia explicou os critérios usados para homenagear cada morador(a) que deu nome às novas ruas

Falsas esperanças a uma comunidade

Mais um momento de decepção. Na fase em que, enfim, algumas pessoas atingidas de Paracatu de Baixo começaram a ver suas casas em finalização, perceberam que vários aspectos das obras não fazem o menor sentido, como casas para pessoas mais velhas com vários lances de escadas; lotes sem um mínimo de segurança e, até mesmo, sem muros; cômodos com estruturas que não comportam quase nada do que as moradoras e os moradores possuem. Um completo descaso que, mais uma vez, a Renova entrega no processo de reparação, enquanto se recusa a considerar as mudanças sugeridas.

“Eu pedi grade, em momento nenhum, o arquiteto explicou a diferença e que seria assim. Aí, quando chego aqui, me deparo com isso, não é a grade que pensei que era. Mas já que é o projeto, não tem como voltar atrás: foi a resposta que eu já tive da Renova. Do lado de lá, por uma segurança, eu pedi muro, lá é estrada pública, qualquer um passa lá. Mas não pode, dizem que eu pedi tela, então colocaram uma tela tão grande que qualquer um passa. Aqui não era estrada pública, não. Hoje é, vai passar quem quer, ainda vem e faz um murinho de tela desse, até um menino que quiser cai lá dentro, e diz que não pode consertar, porque não está no projeto?! Já que fez desse jeito, por que não fez mais? Por que não levantou mais? Diz que tá no projeto, e tem que respeitar o projeto. Pra gente, tem que respeitar o projeto, mas, se a Renova quiser vim e mudar alguma coisa, ela pode. Essa aí já é a altura final. Já que tem que ser igual eu pedi no papel, eu pedi portão de correr, eletrônico, e hoje ele está ali colocado errado, ali passa um cachorro, uma galinha, tudo

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Por Maria Geralda Oliveira da Silva, Anderson Jesus de Paula, Luzia Nazaré Mota Queiroz e Maria Imaculada da Silva Com o apoio de Maria Eduarda Alves Valgas e André Carvalho por baixo dele. Tô com essa briga aí.” Maria Geralda Oliveira da Silva, moradora de Paracatu de Baixo Vista parcial do terreno e da casa (ao fundo) de Dona Maria Imaculada em Paracatu origem; ainda existem três poços para a criação de peixes, que é possível graças à água bruta Fotos: André Carvalho Maria Geralda sente-se insegura diante da tela baixa e de pouca resistência que cerca sua casa; é possível acessar o terreno pela área pública com que faz divisa

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“Um problema disso, que a gente tem debatido muito, é a questão de segurança, não é nem a questão de estar no projeto, porque, quando foi feito o projeto, há quase uns cinco anos atrás, sei lá quanto tempo tem o projeto, o conceito que as pessoas tinham ainda era o da comunidade de origem e, na comunidade de origem, até uma cerquinha de arame era o suficiente para a segurança nossa. Agora a realidade hoje aqui é outra, o contexto é outro, e muita gente só está percebendo a vulnerabilidade depois de agora, porque isso aqui é chamativo, é propaganda no Brasil inteiro, das casas divulgando. Então estamos vulneráveis. O mundo antes não sabia das nossas casas, tanto pessoas boas quanto pessoas ruins. Quando ela [a pessoa] pede para fazer a adequação, não é nem mudança de projeto, é por questão de segurança, num lugar distante, isolado, que tem saída para qualquer lugar. Está faltando essa questão da segurança, não é capricho, não é luxo, é segurança.”

“Os quartos são desse tamanho, não cabe nada, terreno todo irregular. Você sabe o terreno que eu tenho lá, olha o terreno que eles me deram aqui. Como que eu vou colocar um cachorro ali, o galinheiro lá em cima, a água vai cair onde? Na porta da cozinha. A minha revolta é muito grande.

Na minha casa, em Paracatu, eu tenho uma cozinha com fogão de lenha com serpentina já tem anos, eu criei 13 filhos lá, o tamanho do banheiro que eu tenho lá…

E, aqui, nem terra pra plantar eu vou ter, eu tenho seis cachorros em Paracatu e uma cachorra em Mariana que não pode ficar perto dos outros, onde eu vou pôr ela aqui? Isso me entristece. Quando a lama passou, eu tinha lá em Paracatu uma casinha com 80 frangos que eu criava lá. Hoje eu tenho o quê? Nada. Eu fui a última pessoa a sair de Paracatu, foram lá e me convenceram a sair, pra ir pra Mariana, e foi a pior coisa que eu fiz na minha vida, sair da minha casinha pra, hoje, receber isso aqui. Eu não pensava que eles iam fazer comigo o que estão fazendo, não.

Lá no meu terreno, eu tenho de tudo, fruta, galinha, três poços de peixe, nascente de água e aqui, pelo jeito, nem água vou ter.”

Maria Imaculada da Silva, moradora de Paracatu de Baixo “Tá muito perigoso aqui. Essa parte podiam colocar aqueles brinquedos rústicos para as crianças, mas falaram que não pode, que aqui vai ser APP [Área de Proteção Permanente], deve ser então que vai ficar essa parte só para bandido esconder, cheio de mato. Aqui tinha que ter algo de lazer, um campinho de futebol, algo rústico para não estragar, pedimos uma trilha aqui, para caminhada. Tinha aquela lagoa, já acabaram com ela, virou escoamento de não sei o que lá, aí estamos esperando uma devolutiva. Só queríamos uma área de lazer.”

Luzia Nazaré Mota Queiroz, moradora de Paracatu de Baixo

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Anderson Jesus de Paula, morador de Paracatu de Baixo Agora, no seu futuro quarto, mal cabe uma cama de casal e um guarda-roupas médio No seu antigo quarto, com duas camas de casal, uma de solteiro e um armário grande, Imaculada se orgulha em dizer que dorme com os netos espalhados pelas camas No reassentamento, além dos três lances de escada que separam a garagem do piso da casa, o galinheiro fica acima do nível da casa e o canil, num andar superior O galinheiro, em Paracatu origem, fica no mesmo nível da casa, o que facilita o trato diário das galinhas

Uma obra sem fiscal, um jornalismo sem registros

“Do alto de um mirante, Seu Zezinho enxerga um futuro a definir. No reassentamento não consegue imaginar o lugar onde, por tantos anos, viveu uma vida tranquila, ordenhando suas vacas e plantando no quintal. Enquanto casas coloridas são erguidas, há uma espera que já dura mais de sete anos. De tijolo por tijolo, havia construído uma vida no território de origem. “Muitas das casas que foram embora no Bento vieram da minha mão. A escola e o ginásio que permaneceram de pé, eu que ajudei a construir”, conta. “Deixa o Zezinho dividir as crianças no recreio, ele já sabe”, dizia Dona Iná, a diretora da pré-escola onde estudou. Sem medo de falar o que pensa e com espírito altruísta, aprendeu a ser um bom líder. As habilidades o fizeram presidente da Associação Comunitária de Bento Rodrigues, como ele diz, e se tornou fiscal do reassentamento. Agora o trabalho é dobrado, não pode mais pôr a mão na massa como gostaria, mas o trabalho exaustivo é garantir que os direitos de toda a comunidade sejam assegurados.

Seu Zezinho costumava visitar o reassentamento semanalmente, antes de ser impedido de fazer isso. Entrava, fotografava, verificava as calhas. Percebia cada trinca na parede e registrava. Sabe que a telha de sua casa na rua Raimundo Muniz, no território de origem, era colonial e seu portão não era de alumínio, como a Renova queria lhe oferecer. Orientava cada morador, durante as visitas: “A casa quem vai morar é você, não é a Renova; se não concorda com o andamento da obra, pede para refazer.” É exigente como deve ser um fiscal, nenhum detalhe passa despercebido. E, quando chega ao canteiro de obras, cumprimentos vêm de todos os lados. “Passa lá na minha caminhonete que eu tenho um queijo para você”, diz para os funcionários que lhe desejam “boa tarde”.

Zezinho denuncia que há nove meses está impedido de entrar no reassentamento. “Nós tinha o direito de visitar a obra duas vezes ao mês, isso não acontece.” Esse direito é estabelecido pelo Termo de Ajustamento de Conduta assinado pela Renova e, como muitos outros, não é respeitado. Quando chega na entrada do distrito onde será sua casa, é barrado no credenciamento. Pode entrar somente aos domingos, nas celebrações religiosas tradicionais para a comunidade de Bento Rodrigues. “A Renova deve ter medo de mim pra me proibir de fiscalizar, devem achar que, se eu continuar indo, vou só atrasar a obra, aí me barram.”

Zezinho está cansado da negligência que sente por parte da Renova. “Pra eles, se ficarem construindo por 80 anos, é bom. Pra gente, não. Estamos esperando voltar antes que morra todo mundo.” Ele conta que tudo que precisa ser resolvido só é feito quando convém à organização. “Se eles não apanhassem água no Gualaxo para fazer obra, nem a estrada até o Bento origem tinha.

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Maio de 2023

No caminho que leva até ao reassentamento, um caminhão com a frase “tudo no tempo de Deus” no parachoque leva materiais para a obra. Para entrar no “Novo Bento”, como a Renova chama, preciso informar meu nome completo e documentos. O que seria uma visita a um distrito em construção se torna uma burocracia por questões de segurança, me dizem. A rua Raimundo Muniz está logo à frente. A casa onde seu Zezinho espera morar em breve está quase pronta, diz a Renova. Ali eu vejo uma casa bege de portão marrom; ele vê uma reparação que ainda não chegou. Muitos funcionários trabalham sem parar, o barulho da obra é constante. Preciso desviar de buracos nas calçadas, me pego pensando o que o fiscal do reassentamento diria dessas falhas em uma rua ainda sem habitantes. As casas são bonitas e seguem o modelo escolhido pelas famílias, em um projeto inovador de participação popular proposto pela organização, me dizem. A fala institucional é de que todas as moradoras e todos os moradores visitam as casas com regularidade e podem apontar para os defeitos. Questiono se a população vai poder plantar como sempre fez. A resposta é que sim, mas os terrenos íngremes, com pouco espaço no quintal e a falta de água bruta preocupam Seu Zezinho. Minha ida ao reassentamento é uma visita guiada. “O ‘Novo Bento’ terá a primeira estação de tratamento de água e esgoto de Mariana” e

“estamos mobilizando uma central da polícia e uma Unidade Básica de Saúde para os moradores” são afirmações que ouço. Enquanto o “tour” acontece, sou avisada que não posso fotografar tudo e que irão me levar aos locais onde conseguirei fazer as melhores imagens. Encontro Seu Zezinho em um sábado e ele me informa que está proibido de entrar no reassentamento. Me leva até ao mirante para que eu possa ver, fotografar e aprender o caminho para quando quiser voltar. Enquanto o rádio toca boas modas de viola, relembra a calmaria da vida rural e diz: “torço para que a

Renova vá embora logo e a Samarco assuma a obra. Quem causou o mal que deve reparar”. “O senhor vê Bento quando olha daqui?”, pergunto quando chegamos. Ele olha para o horizonte tentando vislumbrar o “Bento paraíso” que guarda com tanto carinho na memória. (Livia Salles)

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Fotos: Lívia Salles

SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UBS BENTO RODRIGUES E PARACATU DE BAIXO

A equipe de Saúde da Família (ESF) da Unidade Básica de Saúde (UBS) Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e demais comunidades atingidas vem informar sobre o processo de transição do nosso local de atuação, que ocorrerá nos próximos meses. A nossa ESF foi criada em dezembro de 2015, um mês após o crime do rompimento da barragem de Fundão, de Samarco, Vale e BHP, com o intuito de cuidar das pessoas que perderam suas UBS de referência. Desde então, atendemos todas essas famílias que residem na sede e também em distritos de Mariana. Mais de sete anos após o rompimento, a estrutura física da UBS de Bento Rodrigues está completa e a Unidade de Apoio (UA) de Paracatu está quase finalizada.

Nesse processo, temos debatido em equipe e com a gestão da Saúde como e quando deveríamos ir para as novas UBS. Criamos um grupo de trabalho na Secretaria de Saúde

e percebemos que o processo deve ser gradual. Iniciaremos o atendimento na UBS do reassentamento de Bento assim que cinco famílias se mudarem para lá. Planejamos ir à UBS uma vez a cada 15 dias e aumentaremos a frequência com a mudança de mais famílias e com a experiência do dia a dia na nova UBS. Enquanto isso, continuaremos atendendo quem ainda não se mudou para os reassentamentos na unidade atual, localizada na Rua Wenceslau Braz, 451. Sabemos que um número considerável de famílias optou por não ir para os reassentamentos. Essas pessoas serão acolhidas pelas ESF das UBS dos bairros e distritos onde escolheram residir. Essa mudança na referência do cuidado ocorrerá nos meses de abril e maio, e tem como data limite o dia 31 de maio. Com isso, a ESF de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo irá atender somente as pessoas que se mudaram ou que ainda irão se mudar para os reassentamentos.

Quando todas as famílias já tiverem se mudado para os reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, não iremos mais atender na unidade da sede de Mariana. O desligamento da nossa ESF da atual UBS da sede de Mariana não tem data estabelecida, pois não existe uma previsão de quando todas as famílias se mudarão para os reassentamentos. Reafirmamos nosso compromisso com o cuidado da saúde das pessoas atingidas. Caso tenham dúvidas sobre esse processo de transição, procurem seus representantes da Comissão de Atingidos, a UBS ou a Secretaria de Saúde. Equipe de Saúde da Família da UBS Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e demais comunidades atingidas.

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(Da esquerda para direita) Elenice, Cátia, Janaína, Edilene, Lidiane, André, Alice e João atuam na UBS de Bento Rodrigues, hoje situada na rua Venceslau Braz, n. 451. Além deles, Adriana, Ailton e Helisson também fazem parte da equipe. Foto: André Carvalho Caras leitoras e caros leitores,

Testemunhas do crime socioambiental

Os templos religiosos das localidades atingidas pela barragem de Fundão guardam as marcas do maior crime socioambiental do país, mas também fazem lembrar a história do que havia antes no território. As capelas de Santo Antônio, em Paracatu de Baixo, e de Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues, permaneceram erguidas em meio à destruição. No entanto, com a passagem da lama, as comunidades perderam a autonomia na tomada de decisão em relação ao uso e à preservação desses lugares. Ao longo dos anos, durante as visitas técnicas de monitoramento, a Cáritas tem identificado que o estado de degradação desses bens patrimoniais avança rapidamente devido à ausência de obras de restauro.

Considerando que as capelas são locais de interações sociais, religiosas e de influência na organização espacial dos territórios atingidos, percebe-se que, antes do crime, elas estavam ligadas ao pertencimento, ao cotidiano e aos valores atribuídos àqueles locais por quem o frequentava. A manutenção básica dos espaços era feita pela própria comunidade; as contas eram pagas com o dízimo e as moradoras e os moradores se responsabilizavam por manter os encargos em dia. Após o rompimento da barragem, as edificações revestidas de lama ganharam outro sentido atribuído pela sociedade e pelos agentes de poder: o espaço como testemunha do desastre. Toda estrutura social e cultural foi impactada.

Apesar disso, o vínculo com as capelas resiste na atualidade por meio de fiéis que retornam frequentemente a esses espaços para celebrar as tradições. Pessoas atingidas cuidam das capelas, na medida do possível, mantendo a limpeza e colocando adornos, com folhagens e flores. A Cáritas acompanha a dedicação dessas pessoas em manter as capelas de pé, ao mesmo tempo que percebe a indignação com o descaso das instituições responsáveis pelos restauros.

Na condição de Assessoria Técnica Independente e ao lado da comunidade, representada, na maioria das vezes, por sua comissão, realiza inspeções e elabora relatórios para identificar os danos encontrados e trazer embasamento técnico para as questões percebidas e relatadas ao longo do tempo pela comunidade aos órgãos e às instituições na busca de que alguma medida seja tomada para a reparação e manutenção do bem protegido.

Hoje, no território, seguem os conflitos que envolvem valores e sentidos em relação aos espaços atingidos. Nesse cenário complexo, as capelas são disputadas por interesses distintos. O caso ultrapassa as temporalidades do passado e presente – e chama atenção para o futuro. A mineração avança, assim como o interesse pela exploração da área onde está o patrimônio cultural do território, principalmente em Bento Rodrigues. Por outro lado, as pessoas da comunidade lutam pela preservação dos bens culturais que necessitam de restauro e da manutenção dos seus territórios.

Cabe aqui lembrar que o Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC),

firmado em 2016, definiu, entre os 22 programas socioeconômicos a serem criados pela Fundação Renova, o de Preservação da Memória Histórica, Cultural e Artística. Por meio dele, é assegurado o restauro dos templos religiosos, para além de outros bens que fazem parte do patrimônio coletivo, tombados ou inventariados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). No entanto, o que se percebe no território é o descumprimento do que foi estabelecido judicialmente. A Cáritas trabalha para que esse processo seja respeitoso, com a inclusão da população atingida nas ações e na tomada de decisões e com o importante acompanhamento da atuação e responsabilização dos órgãos competentes.

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Por Ana Paula Ferreira, Maria Luísa Sousa e Quel Satto, Assessores técnico equipe Cáritas MG Capela de Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues Foto: Quel Satto

EDITORIAL

A missão de um jornal é servir ao público com quem conversa, a quem informa. Chegamos sempre muito perto de cumprir nossa missão quando a relação entre veículo e comunidade é de ida e volta: além de reportar, também somos procurados para prestar o serviço público de informar fatos importantes sobre e para as comunidades que nos leem.

Aqui, no Jornal A SIRENE, essa relação entre público e jornal é uma parceria fundamental para nossa existência, desde o início, e é fortalecida a cada edição. Para nós, o interesse público se constrói não apenas a partir daquilo que o Jornalismo acredita que as pessoas devem saber, mas também – e sobretudo – por aquilo que acontece às pessoas, as afeta. E, se as afeta, nos afeta também.

A edição de maio, como tantas outras, apresenta histórias que nascem dessa visão de interesse público como uma relação entre o Jornalismo e a comunidade à qual serve. Para nós, é o cumprimento do compromisso de estarmos sempre abertas e abertos a quem nos lê, que é também quem produz o jornalismo que fazemos.

É, também, a realização de nossa missão sabermos que as pessoas têm confiança em nosso jornalismo para que narremos suas histórias, publiquemos suas reivindicações, acolhamos seus afetos.

Por isso, reforçamos o convite para que cada uma e cada um que lê A SIRENE se torne também quem faz A SIRENE. Quanto mais gente participar desse pacto informativo, maior será nossa força para combater os desmandos e as injustiças da máquina minerária, mais plural será nosso jornalismo.

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