Blue: a necrospectiva do cinema autoral do século XX. Marcelo Augusto
Blue, derradeira produção ficcional de Derek Jarman em 1993, desvela-se como conflituado encontro de visagens do ideário romântico e de seu gêmeo arruinado, o Decadentismo. Outrora, o mundo tinha o caráter representativo ditado pela ferida e singularidade do artista; neste filme contemporâneo, o dissolving view moderno crema a imagem do mundo e transforma a camada azul fixa na tela – homenagem ao pintor utopista de Nice, Yves Klein – em expiação do olhar. Não só a fruição visual viverá um espaço de redentora provação, mas o próprio circuito diferencial de considerações subjetivas e de identidade sexual, presente na produção do realizador. Como Martin Heidegger intui em seu longo ensaio, “A origem da obra de arte”, a salvaguarda da obra só poderá ser organizada pela própria obra. Neste filme, a proteção e a leitura cabível da plateia encontram-se ancoradas em uma longa e dolorosa escuta: a gaguejante voz da morte enterrando-se na experiência do sujeito estético. Esta particular escuta abraça o conflito bailado entre desvelamento e ocultação – marcante no sumo de vozes e ruídos de Blue. No regime quase operístico de paisagens sonoras do filme, a própria voz de Jarman, lembrando a agonia maneirista de alguns dos sonetos de Shakespeare, conclui: “ ...somos como sombras, em um dia de sol, ...ninguém se lembrará de nosso trabalho, de nosso nome...” . Ao término desse amargo tema de efemeridade criativa, possivelmente um dos mais corrosivos enunciados sobre a noção idealizada do trabalho estético do cinema atual, a presença física da morte começa a se constituir no horizonte da audição do espectador. A película finda-se em um agudo movimento acústico, que insiste em permanecer sensorialmente em nossa recepção após o seu final. Ocorre-nos, neste momento, a lembrança de um relato sobre Gilles Deleuze, em que este motivava uma estudante a pesquisar gritos femininos de morte em óperas do moderno Alban Berg1. O interesse da pesquisa recairia sobre a condição do sujeito aceitar ou não o próprio fenecimento. Blue, inexoravelmente, em suas baladas narrativas, coloca-se como grito contrário à morte. Todavia, o último depoimento presente no filme cria um dissonante movimento de ficção na aceitação desolada do circuito mortal. Em realidade, a forma do filme assemelha-se à vingança urdida, originalmente em 1913, no universo da pintura, pela plástica pura de Malevich. O artista russo libertava a arte do peso de morte do objeto. O iconoclasmo e abstração em Blue poderiam 1. ROLNIK, Suely. Deleuze, esquizoanalista. In ROLNIK, Suely; PAL, Peter. Cadernos de subjetividade, p. 82. Rio de Janeiro: PUC, [s.d.].
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