DEREK JARMAN: CINEMA É LIBERDADE

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Glitterbug Carolina Alfradique Leite

Ao longo da década de 1970, Derek Jarman teria a companhia constante de uma câmera de 8 mm com a qual filmava tudo o que podia, seu cotidiano, seus amigos, o estúdio em que trabalhava, produzindo um material que, mais tarde, daria origem ao filme Glitterbug (1994) e que funcionaria como uma espécie de experimentação individual antes de sua entrada no universo do cinema de longa metragem. Glitterbug inclui, desse modo, dois momentos distintos de produção, separados por um significativo hiato temporal: o primeiro marcado pela prática de constituição de registros fílmicos do presente, seguido pela organização do material fílmico prévio e da composição de um texto reflexivo sobre aquilo que se viveu a partir daquilo que se registrou. Se em parte o filme se configura como uma autobiografia do diretor, essa escrita de si se dá, aí, de forma bastante particular. Pois se há, nesse caso, a retomada de um passado vivido e de sua exposição via registros feitos desse passado, em Glitterbug, são as imagens que precipitam o sujeito autobiográfico num ato mnemônico e, ao mesmo tempo, são essas mesmas imagens que servirão como escrita de si, como meio de expor aquilo que se viveu. Isso se dá por meio delas e pelos comentários que elas suscitam quando o cineasta as revê quase 20 anos depois que as concebeu. Entre a voz grafada e a imagem se abre não só um abismo temporal, mas, sobretudo, de sentido – essas imagens que se apresentam como registros de um passado vivido por Jarman não condizem inteiramente com as lembranças do diretor. O sujeito autobiográfico se caracteriza, nesse filme, não por uma identidade fixa à qual corresponderia certo número de ações ou escolhas, mas por uma dobra da imagem, como um sujeito móvel que não cessa de se diferenciar ao tentar pensar sobre si. Esse pensar sobre si, esse escrever-se, não deve ser compreendido, porém, como um movimento de autoconhecimento, quer dizer, como forma de se aprender um discurso sobre si mesmo que expressaria essa subjetividade. Ao contrário, a escrita autobiográfica me parece ser, no caso do filme do Jarman, um exercício de construção de si que se sustenta pela correspondência entre pensamento e ato, experiência e reflexão, sujeito e vida. O filme de Jarman me parece ser atravessado por uma inquietação próxima a que ocuparia Michel Foucault nos estudos que fez das práticas de si na Antiguidade clássica e romana. Tomar a subjetividade não como um objeto

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