DEREK JARMAN: CINEMA É LIBERDADE

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O lugar do trono Francisco Camacho

O calor nova-iorquino já se fazia sentir, em junho de 1992, na rodagem do filme O rei no exílio, a partir do solo por mim coreografado e interpretado, um ano antes. Era o retrato de uma figura que resultava da justaposição de mim e de Dom Manuel II, último rei de Portugal, que ascendeu ao poder após o atentado que vitimou o seu pai e o seu irmão mais velho, em 1908. O reinado inesperado seria breve, exilando-se em Inglaterra em 1910, após a revolução que instauraria a república. Nos anos seguintes, a sua posição seria titubeante, oscilando entre a vontade do poder e o medo das consequências de se envolver nas campanhas de reinstauração da monarquia em Portugal. Nos encontros de revisão do roteiro e do plano de filmagens, o diretor de fotografia Paolo Bassi sugeriu que assistíssemos Edward II de Derek Jarman, apresentado no Festival de Veneza, em setembro de 1992. A proposta não era isenta de propósito, havia um fim específico em mente. Na cena em que Gaveston, o amado de Eduardo II, regressa à corte e os dois se encontram, Paolo Bassi interpela-nos: “Veem? Veem? O trono está ao centro no fundo!”. Segundo ele, estava onde deveria estar também o meu, e não perto da boca de cena, do lado direito e, ainda por cima em diagonal, sendo que, quando me sentava direito, o meu olhar se orientava para o exterior, não se cruzando com os espectadores. O realizador Bruno de Almeida não foi sensível à sugestão de mudança do trono. Ele queria fazer um filme, rodando em película mesmo e não em vídeo. No entanto, a sua visão pretendia respeitar as características de um espectáculo. O ponto de vista da câmera seria como o de um espectador na plateia, observando a ação no palco, separado deste pela quarta parede. Não convencido, as interpelações de Paolo Bassi repetiam-se em cada cena onde aparecia a cadeira real, salientado que Derek Jarman respeitava a espacialidade tradicional, mesmo quando dessacralizava o lugar por excelência do poder – como quando Gaveston estáoali de cócoras e exibe uma gestualidade grotesca ou quando a rainha Isabella e Mortimer ali se sentam lascivamente após destituírem Eduardo II. Também o meu rei se entregava a rituais de ordem privada quando estava no trono, consumindo compulsivamente café, uísque e cigarros. Mas as hesitações entre agir ou não agir eram vividas fora da cadeira. Uma das linhas de força da composição coreográfica era a tensão criada entre a aproximação ao trono e o afastamento deste. Repetidamente, o rei desequilibrava-se e caía por terra quando se afastava do seu canto dourado. Também em Jarman, a manipulação se exerce nos corredores anônimos e frios,

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