ULPIANO E O CHOCOLATE FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
Voltar. A um lugar, a um tempo, a uma pessoa. A uma música. A um verso ou a um livro inteiro. Sucedeu-me este último por estes dias. Reli O Fio da Navalha, de Somerset Maugham. Tenho uma relação longa com este escritor inglês. Iniciou-se nas aulas de liceu e vem-me acompanhando desde então, sem brigas, nem interregnos. O Fio da Navalha é um romance de iniciação, despretensioso e aparentemente simples. O narrador dá-nos a conhecer um conjunto de personagens que poderíamos dizer serem comuns ou banais, se é que tal pode verdadeiramente dizer-se de alguém- Do que duvido. Mas, o que caracteriza as indicadas personagens é que nenhuma se destacará particularmente no curso da História. Nenhuma é citada em jornais e nenhuma aparecerá em livros de História. O que não as impede, a todas e a cada uma delas, de procurar viver o melhor possível e encontrar o seu próprio sentido da vida. Apenas uma, Larry, se dedica conscientemente a esse objectivo. Quer encontrar respostas para as grandes perguntas que ocuparam desde sempre a Humanidade. Não para nos dar a resposta, mas para encontrar a resposta para si, que o satisfaça. O desiderato parece-me ao mesmo tempo, grandioso e modesto. Talvez por isso Larry seja para mim uma personagem complexa, em relação à qual tenho sentimentos oscilantes. Na adolescência era o meu herói, claramente
superior a todas as demais personagens do livro. Depois, com a passagem dos anos, passei por uma fase de pragmatismo existencial, que fazia com que o visse como uma espécie de inútil, desbaratando a sua vida sem se perceber muito bem porquê. Não sei se os anos me amaciaram ou se fui perdendo qualidades. Mas hoje atribuo ao Larry exactamente o mesmo valor que às outras personagens. A que procura as alegrias e glórias mundanas, a que busca a riqueza, a que se realiza na auto-destruição e por fim, na morte. Cada um seguindo o seu caminho. Quando terminei mais uma releitura deste livro pensei no que seria o mesmo se tivesse sido escrito no nosso tempo, em que cada passo é documentado nas redes sociais. De algum modo, o nosso percurso é uma espécie de linha de montagem. Somos uma minoria, é certo. Mas, às vezes, quando olhamos para o lado parece que todos fizeram o mesmo que nós e nós devemos seguir o caminho trilhado pelos outros, lado a lado e sem nos questionarmos. Nada mais enganador. Por mais ampla que seja a nossa mundividência só uma mente treinada consegue a todo o momento perceber que o mundo em que nos movemos é uma imensa minoria, uns happy few que se preocupam com filtros e em passar uma imagem sem mácula das nossas vidas para pessoas que há anos não vemos ou que nem sequer conhecemos. O grosso da humanidade está ocupado
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