Justiça com A - Junho 2021

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JUNHO 2021

44º Edição

Fotografia de Inês Oliveira

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Indíce JUNHO 2021

04 ....... Junho, Mês da Consciência das Doenças Mentais - I | Maria Helena Carvalho Alves

06 ....... Flores na Abissínia | Carla Coelho

08 ....... Assédio Pandémico |

Fernanda de Almeida Pinheiro

10 ....... Boca de Cena !

Fernando Corrêa dos Santos

16 ....... A Foto de Clarissa | Pedro Cabeça

18 ....... Crítica Literária | António Ganhão

20 ....... Cantinho do João ! João Correia

22 ....... Ré em causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

26 ....... E o mar logo ali | Ana Gomes

28 ....... Pano para mangas | Margarida Vargues

30 ....... Pausa para Café |

Quando se começa a olhar para trás

32 ....... Você corta a Etiqueta? | Margarida de Mello Moser

34 ....... Desconstrução | Licínia Quitério

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Y A L P

Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

JUSTIÇA COM A RESISTE

Resistem todos os que ainda acreditam que vale a pena dizer.

Vida e nos fazem mais fortes e mais sabedores. E Resistem!

No meio de toda a desinformação que circula ainda conseguimos ler um livro, recordar viagens, sonhar paragens e fazer as nossas análises ou descrever as sensações que nos ficam de momentos agradáveis.

Resistem todos os que têm arte e ainda a partilham como o Fotógrafo Português mais carismático que conheço e que teve a bondade de nos disponibilizar uma entrevista que lhe foi feita

Ainda conseguimos lutar por direitos e apregoar injustiças. Contar pormenores que são experiências de quem está a crescer e vai ser o Futuro Amanhã.

Coragem de partilharem, enriquecerem a JustiçA com A e nunca desitirem.

Alentar o trabalho e vir aqui distribuir momentos lúdicos. Alguns dos que fazem a JustiçA com A, ainda conseguem escrever poesia, e outros conseguem lêla e até comentar o novo livro (de quem resiste!), de quem muito nos orgulha faça parte deste enorme leque de gente com alma. E temos os que têm a coragem de partilhar aquilo a que os outros chamam fraquezas, mas são consequências ou sobressaltos da

Coragem a de quem pagina a JustiçA com A num entrelaçar de textos com imagens e formas. Continuamos a caminhar com máscara ou sem ela e, mesmo com notícias catastróficas, com a força de quem sabe que não se pode adiar a Vida, nem congelá-la ou reservá-la para depois. Porque , enquanto houver estrada para andar A Gente vai Continuar como nos diz o Jorge Palma e confirma o seu piano.

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JUNHO,

MÊS DA CONSCIÊNCI DAS DOENÇAS MENT “aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”

MARIA HELENA CARVALHO ALVES

Como não sou técnica de saúde, vou, claramente, falar como paciente. Sim, sofro de Perturbação Depressiva e quando me propus escrever este texto tive como propósito ajudar outras pessoas com o mesmo problema de saúde e também alertar a sociedade em geral para o facto de estar a desvalorizar uma doença que vem aumentando e de que sofrem cada vez mais jovens e idosos. São os extremos que se tocam, os hospitais psiquiátricos estão esgotados com o número de internados destas duas faixas etárias. Depressão não é um estado que escolhemos para chamar a atenção nem tão pouco preguiça ou desocupação. A esta doença podem ser associados sintomas como crises de pânico e/ou ansiedade, agorafobia, consumos excessivos de químicos ou álcool e incapacidade total. Muitas vezes tem como consequência o suicídio e a automutilação. Acontece que, na depressão, há um desequilíbrio químico no cérebro, que afeta áreas relacionadas com o humor, energia, prazer, sono, apetite,

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libido, memória, entre outros. E por mais que a pessoa queira reagir, não é assim tão fácil. Quem sofre deste distúrbio tem mais hipóteses de desenvolver várias doenças e transtornos mais graves, como diabetes, doenças cardíacas, vícios e comportamento suicida. O suicídio deveria ser considerado como uma questão de saúde pública. Há um sintoma muito sorrateiro que nem toda a gente deteta: a perda de interesse por atividades, aquilo a quem os técnicos de saúde designam por “impossible task” ou “tarefa impossível”, em português. A tarefa impossível quase nunca é realmente difícil. É alguma coisa que já fizemos centenas de vezes e por essa razão, para quem está de fora é difícil ter empatia com isso. Como consigo estar aqui hoje? Tenho conseguido pedir ajuda e pensar em todos os que me amam e precisam de mim. Mas já vivi todas as fases, já tentei suicidar-me várias vezes,


IA TAIS - I tornei-me alcoólica e dependente de medicamentos para dormir, magoei as pessoas que me rodeiam e me amam, fui agressiva e grosseira. Sou uma sobrevivente, mas o meu caminho ainda não terminou e esta doença vai acompanhar-me o resto da vida. Já tive fases de passar semanas em pijama, quase sem tomar banho e a vaguear entre o sofá e a cama. Não adianta dizerem-nos que temos de reagir que devemos fazer isto ou aquilo, simplesmente não conseguimos. É como se estivessemos possuídos por um espírito e não conseguimos ter o leme da nossa vontade. Atravessamos o passeio quando notamos que vamos cruzarnos com alguém que nos conhece, somos capazes de ir à mercearia em pijama e termos consciência da triste figura e não nos importamos. Nada interessa, nada importa,

só queremos dormir ou estar inconscientes para não sentir a dor, aquela dor que nos corrói mas não mata, infelizmente. Podemos sorrir ou até rir, mas os olhos mantêm a tristeza profunda que grassa na nossa alma. Eu tenho pedido ajuda, mas sei que é tudo tênue e passageiro, as recaídas são tantas e tenho a certeza que só eu me poderei curar com a minha vontade e a ajuda médica adequada. Vivo na esperança de encontrar a paz de espírito para viver aceitando calmamente que só tenho que me manter sóbria, cuidar dos meus e esperar o reencontro...... Deixo este testemunho para que quem está doente não se sinta só, não tenha vergonha e peça ajuda

P.S. Em breve falarei sobre os bastidores dos hospitais psiquiátricos. (continua)

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ULPIANO E O CHOCOLATE FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

Voltar. A um lugar, a um tempo, a uma pessoa. A uma música. A um verso ou a um livro inteiro. Sucedeu-me este último por estes dias. Reli O Fio da Navalha, de Somerset Maugham. Tenho uma relação longa com este escritor inglês. Iniciou-se nas aulas de liceu e vem-me acompanhando desde então, sem brigas, nem interregnos. O Fio da Navalha é um romance de iniciação, despretensioso e aparentemente simples. O narrador dá-nos a conhecer um conjunto de personagens que poderíamos dizer serem comuns ou banais, se é que tal pode verdadeiramente dizer-se de alguém- Do que duvido. Mas, o que caracteriza as indicadas personagens é que nenhuma se destacará particularmente no curso da História. Nenhuma é citada em jornais e nenhuma aparecerá em livros de História. O que não as impede, a todas e a cada uma delas, de procurar viver o melhor possível e encontrar o seu próprio sentido da vida. Apenas uma, Larry, se dedica conscientemente a esse objectivo. Quer encontrar respostas para as grandes perguntas que ocuparam desde sempre a Humanidade. Não para nos dar a resposta, mas para encontrar a resposta para si, que o satisfaça. O desiderato parece-me ao mesmo tempo, grandioso e modesto. Talvez por isso Larry seja para mim uma personagem complexa, em relação à qual tenho sentimentos oscilantes. Na adolescência era o meu herói, claramente

superior a todas as demais personagens do livro. Depois, com a passagem dos anos, passei por uma fase de pragmatismo existencial, que fazia com que o visse como uma espécie de inútil, desbaratando a sua vida sem se perceber muito bem porquê. Não sei se os anos me amaciaram ou se fui perdendo qualidades. Mas hoje atribuo ao Larry exactamente o mesmo valor que às outras personagens. A que procura as alegrias e glórias mundanas, a que busca a riqueza, a que se realiza na auto-destruição e por fim, na morte. Cada um seguindo o seu caminho. Quando terminei mais uma releitura deste livro pensei no que seria o mesmo se tivesse sido escrito no nosso tempo, em que cada passo é documentado nas redes sociais. De algum modo, o nosso percurso é uma espécie de linha de montagem. Somos uma minoria, é certo. Mas, às vezes, quando olhamos para o lado parece que todos fizeram o mesmo que nós e nós devemos seguir o caminho trilhado pelos outros, lado a lado e sem nos questionarmos. Nada mais enganador. Por mais ampla que seja a nossa mundividência só uma mente treinada consegue a todo o momento perceber que o mundo em que nos movemos é uma imensa minoria, uns happy few que se preocupam com filtros e em passar uma imagem sem mácula das nossas vidas para pessoas que há anos não vemos ou que nem sequer conhecemos. O grosso da humanidade está ocupado

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a fazer algo ligeiramente mais importante: sobreviver. Não falo sequer dos migrantes que diariamente tentam encontrar não uma vida melhor, mas apenas um local onde possam viver. Dormir sossegados, trabalhar, criar os filhos. Por este dias, terminei a leitura de Cidades do Sol de Paulo Moura. O autor português viajou para o Oriente, passando por cidades como Bangalore, Manila, Hong King ou Seul, em busca de utopias e da nova classe média. O que encontrou foi uma multidão para quem o nosso pouco é imenso, gente ansiosa por progressão económica (que a afastará, as mais das vezes, apenas de forma marginal da pobreza) e com pouca consciência politica, sobre os seus direitos e ainda menos quanto aos dos outros. Nas minhas viagens pela Ásia já tinha encontrado estas multidões, a viveram longe dos centros das cidades que chamam os turistas, trabalhando em pequenos restaurantes, fábricas, vendas de recordações e grandes hotéis. Lembro-me em particular de um hotel no interior da Índia, junto das construções de Khajuraho, cujo corredor que dava acesso ao quarto em que fiquei, tinha uma enorme janela para o exterior. À minha chegada, por ser de noite, não se via se não uma ou outra luz. Mas quando desci para o pequenoalmoço, enquanto esperava pelo elevador pude observar a vista que o arquitecto (inconsciente ou provocador) reservava para os hóspedes daquele estabelecimento de cinco estrelas: um enorme bairro de lata, composto de barracas e lama, onde se distinguiam aqui e ali crianças meias nuas a brincar sem vigilância, rodeadas de cães sarnentos e galinhas. Desci para o restaurante onde um jovem impecavelmente fardado me perguntou com um grande sorriso e um excelente inglês “Good morning madam, did you sleep well? Coffee or tea for you?” Talvez água com gás, respondi. E não estava a ser irónica. A visão da miséria não combina com sarcasmo.

pirâmides egípcias aos grande palácios dos czares russos. O que realmente incomoda é perceber que séculos depois o nosso conforto continua a ser construído com base na exploração de tantos e tantas que são feitos da mesma carne e dos mesmos ossos que nós. Pelas suas veias corre sangue idêntico ao nosso e a única diferença é, realmente, que a nós nos saiu o grande prémio da lotaria existencial. A eles, nem a aproximação. Por estes dias, leio que o Supremo Tribunal de Justiça norte-americano recusou a acção de seis jovens provenientes do Mali contra multinacionais alimentares. Os jovens afirmaram terem sido feitos escravos em plantações de café e que pretendiam serem indemnizados pelas empresas que, no seu entender, beneficiam do trabalho escravo. Desconheço os argumentos jurídicos. Mas do ponto de vista ético a discussão não é nova. Das plantações de chocolate às roupas feitas em lugares sem nome do sudeste asiático, das bolas de futebol às grande explorações agro-pecuárias que desconhecem o conceito de ser senciente já reconhecido pela ciência, nada é segredo para nós. O que fica por perceber é o que cada um fará com o conhecimento que tem. Por mim, tento seguir há anos há anos a máxima de Ulpiano sobre o que deve ser uma vida justa - honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. Não deixa de ser engraçado encarar a vida no século XXI à luz das teses de um homem que viveu entre os séculos II e III, em pleno império romano. Certo é, caríssimos, que quando li a notícia sobre estes jovens do Mali, senti aquele conforto interior, de quem, ao menos por uns momentos, se sente do lado dos bons.

PENA É QUE ULPIANO NÃO TENHA INSTAGRAM.

A imagem que vi não é uma realidade isolada. É antes tão comum que parece que já nos habitámos a ela. Lembro-me da comoção que causou o livro de José Saramago Memorial do Convento, entre outros motivos, pela forma como relatava o modo como foram arregimentados os trabalhadores que construíram o Mosteiro de Mafra. Não foi caso único, claro. Creio que nenhuma das grandes construções de que a humanidade se orgulha teve por base a ideia de salários justos, desde as

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FERNANDA DE ALMEIDA PINHEIRO

Assédio Pandémico

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m tempo de pandemia é importante refletir sobre uma das mais graves (e mais tristes), que ainda assolam a patriarcal sociedade portuguesa. Invariavelmente, quando são suscitadas questões de assédio sexual perpetrado contras as mulheres, recebemos sempre o mesmo conjunto de comentários clichê, por parte de muitos homens, mas também por parte de ainda demasiadas mulheres. São comentários, que nos “explicam”, basicamente, que hoje em dia “tudo é assédio”, que “muitas delas se metem a jeito”, que “também homens são assediados”, que “muitas mulheres mentem”, que “as vitimas acusam, mas depois não nomeiam o seu agressor” e por aí fora. Pese embora reconheça que este tipo de desvalorização da conduta se prende, essencialmente, com questões educacionais (especialmente no que tange as mulheres), esta representação da realidade (que é falsa), tem de ser vigorosamente combatida. Estou convencida que, salvo raras e honrosas exceções (que apenas confirmam a regra), todas as mulheres já foram, em algum momento nas suas vidas, durante a

infância, adolescência, juventude, quando adultas e até em idades mais avançadas, confrontadas, com situações de assédio sexual. Convicta desta factualidade, coloquei a questão, de forma direta, num grupo da rede social Facebook, exclusivo de advogados, com mais de 6.600 membros, dos quais a maioria até exerce em prática individual, não dependendo, por isso, de hierarquias (que são campo fértil para o assédio laboral). Ainda assim (e como era de esperar), passadas pouco mais de 3 horas e logo após os clichés habituais, a resposta das advogadas do grupo em causa foi arrasadora. Com exceção de uma única advogada que não tinha conseguido identificar, até àquele momento da sua vida, nenhuma situação concreta - todas as demais (e foram cerca de meia centena as que responderam à questão), afirmaram perentoriamente já ter passado por situações várias de assédio (algumas delas por mais que uma vez), na rua, em ambiente de trabalho, nas escolas, nas universidades, por parte de colegas advogados, clientes, magistrados, patronos e outros.

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“NEGAR ESTA REALIDADE É NEGAR O ÓBVIO, E O ÓBVIO NÃO SE EXPLICA, É ÓBVIO!.”

Segundo a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), Assédio Sexual “é todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.” Estes comportamentos são impostos, ano após ano, à generalidade das mulheres neste país, nos espaços públicos, nos seus locais de trabalho e até nos seus ambientes familiares. Negar esta realidade é negar o óbvio, e o óbvio não se explica, é óbvio!

acreditamos que o problema não é assim tão grave e que “muitas mentem”. Sim, vivemos no século XXI e as mulheres ainda têm receio de sair sozinhas, especialmente se for à noite! Sim, muitas as mulheres, se caminham sozinhas na rua, ainda têm o impulso de trocar de passeio quando se cruzam na rua com um grupo de homens (e é garantido que todas unanimemente o fazem se ocorrer à noite)! Sim, as mulheres têm o justo receio do Assédio, porque ainda somos uma sociedade que assediante, que é muito mais complacente com quem assedia, do que com quem é assediado.

Não, esta realidade não é virtual! Não, estes comportamentos não são do século passado (ainda que pareçam)! Não, não são as mulheres confabulam estas situações, porque querem (pu pretendem) ganhar uma qualquer vantagem! Não, não é porque existem situações dúbias (ou até falsas), que isso diminui a enorme dimensão deste problema. Esta desconstrução social tem de ser feita. Levamos já mais de 21 anos sobre o inicio do século XXI e é extremamente perturbador que continuemos, enquanto sociedade, a crucificar as vitimas, a desvalorizar as suas histórias, a ignorar o que sentem, porque

Parece, à primeira vista, que este assunto já tem tutela penal por via do artº 170º do Código Penal que refere que “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Sucede que o tipo de crime em causa, segundo a jurisprudência, exige precisamente que “a prática de acto exibicionista que cause perturbação”, quando a vitima menor, porém, (segundo a mesma jurisprudência), se a vitima for maior de idade “exigirse-á a comprovação de factos

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complementares, dos quais resulte que o acto exibicionista representou, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de acto sexual que ofendesse a sua liberdade sexual”, como é, por exemplo o caso de alguém que “tira o seu pénis do resguardo das calças que traz vestidas e, enquanto se masturba, o exibe a pessoa do género feminino.”. Escusado será dizer, que a prova deste tipo de conduta é extremamente difícil, começando, desde logo, pela identificação do agressor, que muitas vezes têm estas condutas em locais mais recolhidos, sem testemunhas, o que leva a que a maioria dos casos de assédio fiquem fora desta tutela penal, tal como sucede com os casos de assédio mais comuns, que é mais velado (ainda que persistente), menos exibicionista, digamos assim, mas que não deixa de provocar muitos estragos junto das suas vitimas, que se prolongam no tempo de forma bastante acentuada. Não sei se não será necessário encontrar um tipo penal próprio para combater com a veemência esta realidade tão massiva e indevidamente normalizada, mas podemos, de uma vez por todas, ter essa discussão de forma séria, porque só ela irá permitir a luz da consciência nos vão permitir combater, com eficácia, esta realidade: há que reconhecer o que é, para poder encontrar soluções para isto e evoluir, porque, afinal, se sabemos mais, podemos sempre fazer melhor!


FERNANDO CORRÊA DOS SANTOS O “nosso” repórter fotográfico Português com História que pertence à nossa História decano dos repórteres fotográficos portugueses. De quando em vez deixa que a JustiçA com A publique uma das suas maravilhosas fotografias que fazem parte do seu precioso livro de registos fotográficos que já pertencem ao património Português e o descrevem com a minúcia do olhar de Fernando Corrêa dos Santos. Mais uma vez, pela mão do Fotógrafo, chegou-nos a uma entrevista que não foi feita pela JustiçA com A - mas por Paula Santos Ferreira - e que publicamos com autorização da mesma. Desta vez deixamos o registo de vozes e esperamos que nos acompanhem neste percurso delicioso feito de passado presente e futuro.

COVID 19: “NUNCA PENSEI VIVER O QUE A MINHA MÃE PASSOU NA GRIPE ESPANHOLA” por PAULA SANTOS FERREIRA/ 02.03.2021 A pandemia de 1918 levou cinco irmãos jovens à mãe do lisboeta Corrêa dos Santos. Os relatos de Carmen desses dois fatídicos anos marcaram-no para sempre. Hoje, aos 86 anos, diz estar a viver um pesadelo semelhante. A pandemia de 1918 levou cinco irmãos jovens à mãe do lisboeta Corrêa dos Santos. Os relatos de Carmen desses dois fatídicos anos marcaram-no para sempre. Hoje, aos 86 anos, diz estar a viver um pesadelo semelhante. A Primeira Guerra Mundial estava a chegar ao fim, mas as feridas ainda estavam bem vivas naquela Lisboa nos finais da segunda década do século

XX, uma cidade pobre, afetada por epidemias e em convulsão política. A espanhola Candelária Madroñal e a sua prole de oito filhos jovens (seis das raparigas estão na foto de abertura) viviam na Rua Nova do Almada, em pleno Chiado, Lisboa, conseguindo escapar à grande pobreza, naquele ano agitado de 1918, que ficou na história como o início da mais mortífera pandemia mundial, até chegar a covid-19. Candelária era modista de alta-costura, tinha clientes famosas e ricas que não dispensavam a suas mãos dotadas para criar os últimos figurinos da moda, conta ao Contacto o neto Fernando Corrêa dos Santos, de 86 anos, e que ainda mora na mesma casa para onde a sua família mudou quando ele tinha quatro anos, na Rua Garrett, próximo dos Armazéns do Chiado. O seu avô materno, marido de Candelária viajava muito, até para o estrangeiro, “e certa vez

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“De cada vez que o meu avô ia a casa a minha avó ficava grávida, contava ela”

1- MÃE (EM PRIMEIRO PLANO) E AVÓ DE CORRÊA DOS SANTOS COLEÇÃO PARTICULAR CORRÊA DOS SANTOS

trouxe de Paris tecidos plissados e botões forrados para os modelos da minha avó, que não existiam ainda em Lisboa. Foi um sucesso. Na verdade, Candelária vivia a maior parte do tempo sozinha com os filhos estando quase sempre o marido ausente em viagens. “De cada vez que o meu avô ia a casa a minha avó ficava grávida, contava ela”, diz a rir Fernando Corrêa dos Santos (na foto), decano dos repórteres fotográficos portugueses. A família Madroñal levava uma vida

estável na agitada metrópole ferida pela guerra, mas tentando erguer-se.

A EPIDEMIA QUE ZOMBA DA MEDICINA Numa primeira onda a “pneumónica”, como ficou conhecida a “gripe espanhola”, terá chegado em maio de 1918, atravessando as fronteiras trazida pelos trabalhadores sazonais portugueses regressados de Espanha. As peregrinações e as

2-FOTOGRAFIA DE CORRÊA DOS SANTOS

viagens entre Lisboa, Porto e Madrid ajudaram em muito à disseminação desta grave doença respiratória aguda por todo o país, com as autoridades sanitárias a desdramatizar a situação e a agir tarde demais, como conta o médico Álvaro Sequeira, num artigo sobre a “gripe espanhola”, que ganhou esse nome, embora a sua origem não tenha sido em Espanha mas nos soldados que regressaram da Primeira Guerra Mundial, publicado na revista Medicina Interna, em 2001. Em setembro de 1918 iniciava-se a segunda vaga da epidemia e desta vez, muito mais impiedosa contagiando o país e afetando principalmente Lisboa e Porto. Em Portugal, a pneumónica de 1918/19 provocou 120 mil mortos, segundo um estudo

epidemiológico sobre esta pandemia, liderado por Baltazar Nunes, por ocasião do centenário da “gripe espanhola”. Pelo mundo terá ceifado entre 50 milhões a 100 milhões de vidas. “A epidemia que zomba da medicina”, escrevia o jornal a

Capital a 25 de setembro de 1918 dando conta da forte presença da doença em Lisboa e citado no mesmo artigo de Álvaro Sequeira. De repente, aquela que era tida como mais um surto de gripe tornara-se extremamente perigosa, contagiosa e

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mortal e só em outubro as autoridades decidiram agir, apesar dos avisos anteriores dos médicos de que esta não era uma epidemia vulgar.


profissão:

Fotóg r a fo

FERNANDO CORRÊA DOS SANTOS LISBOA, UM CEMITÉRIO A CÉU AZUL Em outubro de 1918 Lisboa vive um cenário dantesco transformando-se a capital num enorme cemitério, onde os corpos se depositavam à porta das casas, enrolados em lençóis brancos, à espera da chegada das carretas que os recolhiam. Corpos sobretudo de gente jovem a quem a “pneumónica” levou cedo demais. Numa só semana faleceram 400 pessoas e num só dia

ainda mais pobres, e viviam de senhas de racionamento, introduzidas em setembro de 1918, por causa da guerra, e acotovelando-se em filas à porta das mercearias. Mas o comércio foi fechando por todo o lado, devido às mortes dos funcionários infetados, sem condições de serem substituídos.

houve 250 funerais, refere o historiador Fernando Rosas, num programa da RTP sobre a “gripe espanhola”, em 2015. “Na Baixa de Lisboa, a situação era muito grave contava a minha mãe, falando que em 1918, tinha ela 19 anos, só se viam passar carretas puxadas por cavalos, cheias de corpos, funerais a toda a hora e os sinos sempre a tocar a anunciar outra morte. E toda a gente em pânico, temendo ser contagiada”, recorda Corrêa dos Santos que nasceu

A MORTE BATEU À PORTA DOS MADROÑAL Mãe e irmã de Corrêa dos Santos Coleção particular de Corrêa dos Santos A família Madroñal não escapou ao vírus e em meses Candelária perdeu quatro dos oito filhos.

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14 anos depois da pneumónica. A situação era muito grave contava a minha mãe, falando que em 1918, tinha ela 19 anos, só se viam passar carretas puxadas por cavalos, cheias de corpos. Naqueles fatídicos anos de 1918/19 a “gripe espanhola” instalou o caos e o pânico entre os portugueses, confirmam historiadores. Tudo isto, ao mesmo tempo, que as gentes ficavam

“Foram momentos muito trágicos. Ainda estava a minha avó a enterrar uma filha e já o médico a preparava para o mesmo desfecho que teria o outro filho doente. E foi assim, das quatro vezes. Só o meu tio Félix viria a morrer mais tarde de tuberculose, também derivada da ‘pneumónica’”, conta Fernando Corrêa dos Santos que ainda hoje mantém na memória os relatos feitos pela sua mãe (na foto em


cima). Ainda estava a minha avó a enterrar uma filha e já o médico a preparava para o mesmo desfecho que teria o outro filho doente. E foi assim, das quatro vezes. Carmen, de 19 anos, assistia às mortes sucessivas dos seus cinco irmãos, Balina, Inês, Maria, Candelária e Félix, ainda todos jovens como ela. “O médico disse à minha avó para

este lisboeta. Na foto de abertura do artigo das irmãs todas no side car Carmen é que está ao centro atrás, e a Alice do lado esquerdo, atrás ao colo. “Foram as duas únicas sobreviventes da ‘gripe espanhola’ de todas as irmãs na foto”, aponta o fotojornalista.

levar os filhos doentes para fora da cidade, para apanharem melhores ares e tentarem resistir à doença. E ela assim fez. Alugou uma casa em Benfica, que na altura era campo, e quando cada filha e o filho caiam doentes mudavam-se para lá, à vez. Naquela altura, demorava-se muito tempo do Chiado até Benfica onde os ares eram mais saudáveis e havia muito menos contactos sociais”, relembra

este repórter fotográfico reproduzindo os relatos feitos por sua mãe.

A M NASCIDO DA

espanhola’ e tempos depois começou a namorar com a minha mãe. Eu acho que a minha avó nunca conseguiu ver isso com bons olhos”, considera.

O R PANDEMIA

“A minha mãe conseguiu safar-se. Ela dizia-me que era de uma natureza muito agradecida e por isso não foi contagiada”, salienta Fernando Corrêa dos Santos a rir. Foi a dor da perda de uma das irmãs que aproximou a jovem Carmen do futuro marido. “O meu pai namorava uma das minhas tias que faleceu com a ‘gripe

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Só que os ares do campo não foram suficientes. “Dos oito irmãos sobreviveram três, a minha mãe, a sua irmã Alice e o irmão Eugénio. A minha avó não ficou doente, mas viu os seus filhos morrer, e sofreu até ao fim dos seus dias. A minha família ficou marcada pela pandemia”, diz

“Quando o meu pai ia lá a casa estar com a minha mãe nem à despedida podiam estar sozinhos, com a minha avó e as minhas tias a segui-los até à porta da rua”. O meu pai namorava uma das minhas tias que faleceu com a ‘gripe


espanhola’ e tempos depois começou a namorar com a minha mãe. Carmen viria a tornar-se modista de alta costura como a sua mãe, tendo as duas sempre trabalhado lado a lado, sendo responsáveis pelos elegantes vestidos das senhoras da burguesia que se passeavam pela Baixa, iam à ópera ao São Carlos e tomavam chá na pastelaria Brasileira ou na Benard, como conta orgulhoso o filho. “Uma das clientes da minha avó era mulher do homem que assassinou o Rei Dom Carlos I no Terreiro do Paço, em 1908, o Manuel Buíça”. No dia do Regicídio, “a minha avó contava que de repente gerouse um alvoroço com homens a subir a Rua Nova do Almada, onde vivia a gritarem “Mataram o Rei. Mataram o Rei”, acrescenta Corrêa dos Santos.

IGUAL “TRAGÉDIA” 100 ANOS DEPOIS

Histórias da ‘pneumónica’ de 1918/19 que Corrêa dos Santos sempre recordou, sobretudo com as primas, e que nunca pensou que “um século depois as poderia viver”. “Nunca pensei viver o que a minha mãe passou na ‘gripe espanhola’”, confessa. “A tragédia é igual. Agora claro que não há carretas a transportar os mortos pela cidade, nem vejo os funerais diários da covid-19, mas olho para os números de infetados e mortes diárias e sinto a mesma angústia e medo que a minha mãe sentiu”, salienta este lisboeta que tem “cumprido à risca o confinamento e as restrições”. Sinto a mesma angústia e medo que a minha mãe sentiu. “Também eu temo ser infetado. Nunca imaginei chegar ao fim da vida preso em casa. Tenho 86 anos e mesmo que viva até aos 100, já não me restam muitos anos. Agora ainda estou bem e sou uma pessoa independente e queria pode aproveitar isso e andar livremente e com as minhas antigas rotinas”, diz o decano dos repórteres

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fotográficos que começou a trabalhar aos 18 anos, no Mundo Ilustrado e só deixou a atividade há três anos. Contudo, continua a fotografar e “tristemente agora só da janela da minha casa e para uma rua deserta neste centro da Baixa, como nunca pensei ver”.

VOLTAR A VER A BAIXA LUSA Por sua vontade, Corrêa dos Santos continuava a passar o dia entre reportagens ou eventos sociais como nos últimos anos, recebendo em todo o lado “o carinho e amizade dos atores, de todas as idades, personalidades públicas e dos outros jornalistas”. Até do Palácio de Buckingham recebeu elogios e um pedido muito especial, de uma fotografia que Corrêa dos Santos captou aquando da visita da primeira visita como monarca a Portugal, em 1957. “Num dos dias, fui fotografar a


“A minha mãe conseguiu safar-se. Ela dizia-me que era de uma natureza muito agradecida e por isso não foi contagiada”

FERNANDO CORRÊA DOS SANTOS

chegada da rainha ao Cais das Colunas e corri atrás do coche onde seguia a monarca, até ao Parque Eduardo VII. Fotografei-a a acenar à multidão da janela do coche. Qual não é o meu espanto quando tempos depois recebo um telegrama do palácio de Buckingham a dar-me os parabéns pelo meu trabalho e a encomendar-me aquela fotografia para ser oferecida à Rainha Isabel”, conta este fotojornalista com muito orgulho. “Claro que enviei a fotografia que é capa do meu livro ‘Da Década de 50 aos Nossos Dias’ (foto à esq.) , e o telegrama está impresso lá dentro”, conta este repórter. O livro que publicado em 2015 reúne 100 fotografias de personalidades da autoria de Corrêa dos Santos com os comentários dos próprios fotografados. Este fotógrafo conta a brincar que “há dias em que até me escondo debaixo da cama para o bicho não me apanhar” e só deseja que “a pandemia termine” para voltar a sair e fotografar a sua Baixa “cheia de gente e a fervilhar”.

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PEDRO CABEÇA

A FOTO DE CLARISSA (Um conto banal, de dias banais, a propósito de um desafio)

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H

oje, acordei com uma certa nostalgia, aquela sensação estranha que se entranha. Impaciente, sem o que fazer, corri as estantes da biblioteca, à procura de um livro ao acaso. Sem saber bem porquê parei a minha mão no mais famoso livro de Jonathn Swift, que fez as delicias do meu final de infância. Abri o livro, e caiu ao chão uma fotografia, apanhei-a e sorri. Era aquela foto da Clarissa, que eu tinha tirado, quando a levei ao ballet, entre a pressa do trabalho e a desorganização do tempo, naqueles tempos em que tudo era confuso por ausência de uma mãe.

carro, onde tinha a minha velhinha maquina fotografica, e fixei o momento que ora me faz sorrir. Sem saber porquê, porque aqueles tempos , eram tempos que não me faziam sorrir, ainda tinha comigo a mágoa de quem é preterido por uma aventura de vida, nunca entendi a mãe da Clarissa, como será ela agora?.

Mantenho o sorriso idiota. A Clarissa cresceu, tenho saudades da Clarissa, desde que foi para Londres, só estamos juntos uma vez por ano. Está igual, irreverentemente igual. Mas já não acredita que a mãe fez uma viagem de barco naufragando na ilha de Estava completamente lilliput . Na altura foi o que me veio desalinhada, coitada, ajudei-a a à memória, justificando assim o vestir à pressa, ainda em casa, foi facto da mãe da clarissa ter partido, quase sem aviso. assim no carro. Quando chegou as primas donas A verdade é que a nossa vida, ainda ensaiavam. a minha e a da mãe da Clarissa, Para ela o balett era um sacrifício, tinha se iniciado muito cedo, que acabou duas semanas depois éramos ,extremamente pequenos, quando me convenceu que o ballet e estávamos constantemente em não era para ela. Este momento guerra por futilidades, tal como os da foto revelava já esse desígnio. habitantes de lilliput. Mas eu queria cumprir o papel Enfim não fora acaso a minha de pai e mãe, o que fazia ainda desajeitadamente. A mãe da nostalgia e a escolha do livro, nem o Clarissa saíra de casa há cerca de facto de ai ter deixado a fotografia, dois meses, para nunca mais voltar. naqueles tempos, também relia Para nunca mais voltar. Curioso as viagens de Guliver, talvez com recordo perfeitamente estes dias, e esperança, de rever a mãe da o dia desta foto, mas não recordo a Clarissa. Tal como as Primas donas que serviram de cenário nesta foto face da mãe da Clarissa. que tirei à clarissa, também eu A Clarissa estava bem disposta, vivia, naquela época, em pontas. e completamente descontraída, mascava uma pastilha não autorizada, e provocadora, nem ela nem eu estávamos concentrados na pastilha que eu não autorizava. Olhei para aquela imagem, corri ao

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“Mantenho o sorriso idiota. A Clarissa cresceu, tenho saudades da Clarissa, desde que foi para Londres, só estamos juntos uma vez por ano.”


ANTÓNIO GANHÃO Critica Literária

Enredos & outros mares

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Enredos & Outros Mares, José Luís Outono, Edições Esgotadas, 2021 O olhar do poeta debruça-se sobre o seu tempo numa

apesar da paciência que escasseia e do combustível

narrativa atenta ao “horribilis” que atravessa a nossa

que se finda, e grita por oceanos puros em que ainda

sociedade, fruto de causas naturais ou imposta pela mão

seja possível naufragar. O humor, sem se desprender

do homem em “casamento humano de infidelidades”.

do sério, invoca “programas oftalmológicos para cegos

Numa denúncia que recorre ao humor e espanto; pois

acreditarem”. São as páginas velhas reservadas ao

na linguagem poética o amanhã espera-se sempre

poeta que as preenche de “enredos continuados” .

melhor; o leitor é convidado a ser cúmplice, a completar todas as elipses e a mergulhar na imensidão das

O mar, sempre presente, é uma tela imensa à qual a

palavras. A espreitar o desaguar pandémico, silencioso

inspiração do poeta não resiste. Nele soçobra sem se

e assimétrico, capítulo de uma noite incompleta, a

dar conta, nele se ergue e nele reconhece a capacidade

marcar o calendário dos dias que nos separam do

de rejeitar o que não lhe pertence. Ou talvez seja a voz

viver restaurado. Outros desconfinamentos, sociais

do poeta que o salva.

e ambientais, surgem na narrativa, onde “cidadania” rima com “taxa imposta”, “magia” com “bolso atrevido”

Na poesia de José Luís Outono podemos encontrar uma

e “acto de poluir” com “liberdade individual”. Um apelo

dissonância ocasional, uma rima que se quebra no fim,

implícito ao fim das cercas assépticas que não curam e

uma picardia, mas sempre a mesma voz que não perde

ao fim do rasurar do “caderno planeta”.

o foco, companheira fiel de todas as jornadas. Como nos diz o poeta: “A arte é uma ondulação constante”. A vida também, o recuo é apenas aparente.

Deixa-te de histórias diz o lado oposto, gritando que liberdade é um grito sem limites, sempre que amanhece!

“leio-me insatisfeito e argumento-me até quando?”

Num tempo em que a Natureza parece cansada da humanidade, a poesia em tom de posfácio não esquece o sonho, esse recanto de um amanhã possível, sabendo que todas as luas e seus mistérios, não substituem o sol. Impossível não encontrar palavras a sulcar páginas desafiadoras, num destemido e permanente golpe no concreto impossível. Narrativa de quem se reconhece insatisfeito e manifesta o desejo de finalizar caminhadas,

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CANTINHO DO JOÃO João Correia

O MEU PORTO TEM GAIVOTAS 20


Pelo menos no bairro onde estou e as quais (de acordo com alguém que me é muito próximo) nascem, crescem e morrem sem nunca ver o mar pois a cidade proporciona-lhes tudo o que precisam para viver. Estas fazem-se ouvir no bairro onde estou e o qual, se fosse em Lisboa, seria apelidado de genuíno (palavra que substituiu a expressão “típico” própria dos anos 90 … não deve haver nada pior do que pertencer à classe operária e aturar com estes adjectivos mas enfim … os “gunas” que habitam no dito bairro devem-se estar nas tintas para a forma com que lhes apelidam o bairro onde vivem). O meu Porto tem uma padaria junto ao local onde estou, onde compro o pão e sou obrigado a corrigir os nomes que dou ao mesmo pelas senhoras que o vendem e onde, também, faço fila com velhotas de roupão que tratam os padeiros por “meu amor” e as senhoras do balcão por “minha querida”. O meu Porto tem “ilhas”. Pelo menos, no bairro onde estou conheço duas onde, de quando em quando, espreito para dentro do portão que as fecha do mundo exterior para satisfazer a minha curiosidade. Francamente, gostava de as ver por dentro mas não gosto de incomodar os seus moradores (manias minhas) estando certo que se o tentasse fazer arriscava-me seriamente a ouvir, e com toda a razão, uma série de elogios “genuínos” ou “típicos”.

Uma Editora deliciosa, e um hotel na Rua de Santa Catarina com um átrio de entrada que poderia servir de cenário de um filme de época (parece que servem um “brunch” fixe, um dia destes vou convidar as velhotas da padaria para o dito, juntamente com os “gunas” do meu bairro … só para ver o que dá … uma mistura entre o “Apocalipse Now” e o “Hiroshima meu amor” … deve ser interessante). O meu Porto também tem um teatro onde vou uma vez por ano. Dentro de uma escola sita numa “Rua da escola normal”. Procurem no mapa e existe mesmo (ainda gostava de conhecer uma “Rua da escola anormal” … talvez um dia …) onde vejo alguém que me é muito especial, todos os anos, a fazer uma vénia no final da peça para agradecer a todos os que lá foram ver os rapazes e raparigas (é assim que eu apelido todos os que têm menos de 38 anos de idade) e que, de ano para ano eu vejo a tornarem-se excelentes actores. Representam todas as peças com sotaque do Porto mas, que eu saiba, não há nada que proíba o Rei Lear de falar com pronúncia das Antas. Quem não goste que vá reclamar junto das velhotas da padaria de que falei há pouco, estou certo que as mesmas vãolhes dizer algumas coisas interessantes e muito merecidas também. Enfim, tem o Teatro Helena Sá Costa onde se respira. Para quem ache importante o acto de “respirar” e o qual recomendo.

O meu Porto também tem Serralves, a Casa da Música e Soares dos Reis.

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ÍNDIOS E COWBOYS OU A VIDA EM CAVERNAS NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

“Nem ele próprio, sequer, reconhece a contradição que está patente entre as suas palavras e os seus actos;” Chefe aborígene samoano de Tiavéa da ilha de Upolu, Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Livro dos Conselhos

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira

Todos temos um pouco de índio, de

Agora já ninguém tira nada aos

Pocahontas, uns mais que outros, mas temos.

índios, já não lhes invadem as terras, nem

Eu sempre me identifiquei com eles. Mas há

constroem quintas nas terras deles. Isso era

os que só têm a coragem dos Cowboys.

só nos filmes que eu via em miúda.

Lembro-me dos filmes em que eles,

os índios, eram os selvagens indomáveis,

carniceiros, feiticeiros e de hábitos pouco

pensados a bem do planeta, das políticas do

“civilizados”.

oxigénio, do oceano e do avanço tecnológico.

Depois,

a

e

Até há uns senhores que se reúnem

começávamos a vê-los como o povo a quem

sazonalmente para discutir o ambiente e a

tiravam o que lhe pertencia e até sabiam

proteção do ambiente. Há sanções a quem

umas curas que os civilizados desconheciam,

polui os mares e os ares, produz plástico e

comunicavam

emite gases tóxicos.

por

política

nuvens

mudava

Hoje em dia, é só actos justos e

de

fumo

e

partilhavam, quando era altura, o cachimbo

Agora já ninguém tira nada aos índios

da Paz. Mas isto era quando eu tinha 6 ou 8

também já não há refugiados nem tráfico de

anos.

seres humanos.

Já não há filmes de índios e cowboys

e

Provavelmente a Amazónia é um

que cuspiam para o chão, não tomavam banho

local fictício onde não existe uma fauna

e batiam com o copo no balcão do bar depois

riquíssima que deveria ser intocável e uma

de beberem de uma vez só a aguardente para

flora que alimenta grande parte do planeta

gente de barba rija, num saloon qualquer, de

com oxigénio. Não existe lá ninguém, nem

uma cidade sempre aos tiros onde impunham

culturas, são histórias que inventaram como

as suas leis até ao xerife.

o acordo de Paris. Chinesices!

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA ÍNDIOS E COWBOYS OU A VIDA EM CAVERNAS NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Não há povos indígenas por lá e,

portanto, não há Direitos Fundamentais.

Também já não há trabalho escravo,

agora está por aí o europeu de futebol e

E não se passa nada, até porque

isso era no tempo dos esclavagistas, e

nós podemos sair em transportes públicos

ninguém já trafica os seus iguais para obter

esgotados mas só para trabalhar porque,

lucros.

para esse fim, a pandemia não nos infecta... é só para nos divertirmos que é perigoso e

Já leram o Papalagui? Os discursos

corremos o sério risco de sermos infectados.

do chefe de tribo de Tuiavii de Tiavéa na Polinésia, mares do Sul? Nunca leram?

tempo a conversar, mas podemos trazer

são

Aconselho vivamente. O Papalagui vocês,

nós,

os

tristes

inteligentes

Não convém parar na rua muito

cá dois clubes lá do lado do Brexit

para

que fazemos leis, julgamos semelhantes,

jogarem o final da taça das terras deles que

impomos regras sem sabermos as regras para

nós até aceitamos ordens e indicações às

as impor, escravizamos o nosso semelhante

nossas polícias. O Povo é sereno, indiferente,

sem tirar a gravata ou o salto alto, não temos

egocêntrico,

tempo e inventamos profissões.

ocupado consigo mesmo.

Também vomitamos decretos, e Leis,

ignorante

e

extremamente

A pandemia dá para todo este avanço

e portarias, e regulamentos e arrasamos uma

e muito mais, como por exemplo, avançar

Floresta milenar, amputamos o pulmão do

com o desbaste da floresta amazónica

planeta só porque sim.

enquanto o Covid ocupa as cabeças de todos. Parece que o projeto lei que está em

Mas “na passa nada”, porque até

estudo é da autoria de Homero, não o que

nem vivemos lá, não somos índios, somos

escreveu a Ilídia e a Odisseia, foi poeta (e

super civilizados, cheios de teletrabalho,

já duvidam alguns estudiosos que tenha

modernos, presos nas nossas casas com

realmente existido), mas o deputado que se

mais

lembrou de limitar os direitos dos indígenas

escondidos. Vivemos noutro continente que

exigido formalidades para lhes dar as terras

nunca poderá ser afetado pelas decisões que

que são deles e, vai permitir o “alinhamento”

se tomarem nos continentes vizinhos, apesar

da Amazónia, com papel passado e tudo.

os

rostos

escondidos,

cada

vez

de uma pandemia cuja propagação anunciam à velocidade da luz ter chegado a todos os

continentes.

desbaste, o lucro, a construção, os resorts....

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Depois de delimitadas as terras, é o


o enriquecimento sem causa....o fim de

reboque de uma qualquer nação que se

um ecossistema de equilíbrio do planeta

lembre de traçar o compasso.

onde vivemos.

A Amazónia não é lá longe.

Afinal voltou a época dos Índios

As alterações climáticas ou o que as

e Cowboys, mas não é filme, é realidade

provoca não nos une? O sofrimento

e, quando os fogos queimarem as

alheio que pode ser de repente nosso,

árvores, e os garimpeiros ( assim uma

não nos motiva? A disrupção tecnológica

espécie de toupeiras que encontram

não nos une? A Inteligência artificial

pedras

os

convive connosco e isso não nos serve

filões que julgam existir, aí vamos ter

de nada? Estamos a evoluir ou a regredir?

preciosas),

descobrirem

menos Oxigénio e mais estirpes de vírus acordadas, serão criadas novas vacinas,

mais

sistemas

com nacionalismos. Ou deixamos de

imunitários serão postos à prova e, como

pensar que não é connosco porque

numa época glaciar (que será antes

é lá longe, ou que não é connosco

a época da falta de ar), morreremos

porque não tem a nossa religião, a cor

rodeados

preciosas,

da nossa pele, não fala a nossa língua,

tecnologia, comodidade, fechados nas

ou pensamos que o que aconteceu

nossas cavernas.

em Whuan em 2019 inundou o Mundo,

medicamentos,

de

os

pedras

Não confundamos patriotismo

manietou-o em menos de 3 meses por

Faremos parte do brave new

world cujas consequências sobre a

medo ou desconhecimento e continua a conduzir as nossas vidas.

mentalidade humana são cada vez mais visíveis e ameaçadoras.

Todos os dias se extinguem

perante o brave new world e o fim de

espécies animais e vegetais, todos

século já passou, ainda falta muito para

os dias há profissões que se tornam

outro fim de século. Agora pode ser, ou

inúteis, tradições que perdem sentido,

não, o fim da nossa civilização e está na

sentimentos que deixam de existir.

nossa mão como um efeito borboleta.

Acreditem que os nacionalismos

não têm nem podem ter estratégias. Não

Nada

é

longe.

Estamos

Não é um filme... Até quando

vamos viver na nossa caverna?

há dúvida de que se não nos unirmos não teremos futuro ou iremos sempre a

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ÉA IDADE Dirão que é a idade em que o homem ainda se aflige, a morte baloiça diante dos olhos, já não romanceada e ilustre, mas material, hospitalar, com o seu séquito de marcações, recepcionistas, enfermeiros, doutores que não estão, dores que vão e vêm, que são e não são nada. Luísa Costa Gomes, “O Grande Azul”, do livro Afastar-se (treze contos sobre água), 2021, Dom Quixote

**

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Primeiro era idade que não lhe permitia fazer o que fazia a irmã mais velha. Depois, o género, que não lhe permitia cumprir os sonhos também perseguidos pelo irmão mais novo. Já esse irmão era juiz havia cinco anos quando Nádia passou a decidir os conflitos dos outros com o entusiasmo de quem ia mudar o mundo e com a certeza de que a sua sentença faria a diferença na vida de alguém – objetivo ambicioso, esse, de que nunca se desviou. Está para breve a primeira visita ao seu novo gabinete no Supremo Tribunal de Justiça, onde irá tomar posse mais de 180 anos depois dos primeiros que ali entraram. - É tarde - desabafa à colega que vem com a mesma finalidade de conhecer o espaço onde irá trabalhar. - É verdade, já não vamos encontrar muita gente a esta hora do dia, mas olha que assim temos mais tempo para nos apresentarmos ao espaço, só conhecemos o salão nobre – tentou sossegá-la. - Não, é tarde, percebes? É tarde para subir a escadaria, não tarda vou precisar de algum apoio. É tarde para solucionar os problemas novos de uma forma criativa quando só penso nas

E O MAR LOGO ALI Ana Gomes

dores que vêm e que ficam. É tarde, porque é grande a responsabilidade e já são muitas as limitações ….

À chegada, ainda antes de passar a grande porta de entrada, já todas as pessoas as cumprimentam, antecipando os sorrisos acolhedores que ambas receberão aquando da tomada de posse como Juízas do Supremo Tribunal de Justiça. O sol põe-se. As janelas novas, fechadas, não permitem que se perceba o som do exterior. As cortinas escuras, pesadas e opacas não deixam entrar a luz. Tudo é um convite à concentração. - Preciso de ouvir, preciso de ver, preciso de sons e de luz – pensa Nádia, desesperada. Num repente, puxa as cortinas, abre as janelas e sente a cidade …

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A FOLHA EM BRANCO

O

PANO PARA MANGAS

O exercício é simples: uma folha em branco, virgem, imaculada, acabada de sair da resma, a qual têm de amarrotar o mais possível, fazê-la num oito, torná-la irreconhecível. Levam as minhas palavras a sério, chegando a pisá-la. Observo num silêncio que acontece ao som de Hans zimmer. Depois, apenas têm de a desembrulhar, de a endireitar e de reverter o processo de forma a ficar com a folha que entreguei no início. O exercício começa a não parecer assim tão simples...Na tentativa de endireitar o papel há quem o rasgue, há quem desista, há quem o torne tão fino que se pode ver através dele.

Margarida Vargues

É impossível, pr’ssora!, A minha rasgou-se. Tem outra?, E agora, o que fazemos? Não há outra folha. Esta é única e vai ser o suporte do que vamos escrever hoje.

A indignação paira no ar, pois levo o ano inteiro a martelar na importância de um trabalho limpo e aprumado, que uma folha rasgada, arrancada do caderno, amarrotada ou suja é uma falta de respeito para com os professores e para com eles próprios que não têm brio naquilo que executam. Acredito

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que mesmo sem efeitos imediatos, algum dia, as minhas palavras hão-de ressoar nas suas, ainda pequenas, cabecinhas. Depois de passada a ferro, explico-lhes que aquela folha amarrotada é uma metáfora para o nosso coração magoado pelas palavras e pelos gestos dos outros. Magoaram a folha sem dó nem piedade, sem pensarem no que viria a seguir e o mesmo acontece quando despejamos a nossa amargura sobre o colega, o amigo, o irmão, o familiar, o desconhecido. Acontece aos outros. Acontece-nos a nós. E não pensamos no que estamos a provocar. Por muito que se converse, se perdoe, se seja perdoado, fica sempre uma marca. Marca atrás de marca o coração vai ficando com feridas que se podem, ou não, transformar em cicatrizes mais ou menos abertas. Há as que não têm cura. Oh pr’ssora, então este este exercício é sobre bullying? Não necessariamente, não é somente a violência continuada que deixa marcas. Por vezes basta uma palavra ou uma atitude num momento menos feliz para que fique algo permanente em nós. Explico-lhes que cabe a cada um evitar que o mal aconteça, sobretudo não fazendo aos outros o que não queremos que nos façam a nós. Aproveito o silêncio que se ouve para explicar o exercício: Quero que escrevam sobre o que sentem quando alguém vos magoa. Ficam alarmados, perante a hipótese de, no final, terem de partilhar os textos com a turma, como é hábito. É aqui que assumo o compromisso - cabe-lhes confiar, ou não - que cada um dos textos ficará somente entre mim e cada um deles. Depois das minhas palavras oiço uma espécie de suspiro colectivo que transborda uma sensação de alívio. Têm dificuldade em escrever sobre o papel amarrotado. Reclamam. Pr’ssora, não se percebe nada! Experimentam-me para ver se lhes dou uma folha nova. Não cedo. Quero que sintam o exercício e reflitam sobre o que sentem e sobre o que fazem sentir. Uns minutos bastam para que estejam todos curvados sobre a mesa e se oiça o riscar dos lápis ou das canetas.

nada sei das suas dores. São dores de crianças e adolescentes, mas não deixam de o ser. Têm o peso proporcional ao seu tamanho, porém merecem o mesmo respeito que os males dos adultos. Agora já está. Não posso voltar atrás. Assumi um compromisso, dei-lhes a minha palavra e vou cumprir. Perante o que dali vier, tomarei a decisão de ter, ou não, de quebrar o meu voto de silêncio. No fim dos quarenta e cinco minutos de aula, num registo quase religioso, dirigemse a mim, um a um, para me entregar os seus textos. Algumas folhas vêm tão dobradas que cabem numa mão fechada, talvez na tentativa de guardar algum precioso segredo. Fazemme repetir a promessa de que não partilharei o conteúdo do que lhes saiu da alma. E eu prometo. Há quem se abrace a mim a chorar. Há quem me agradeça pelo momento e por ter conseguido desabafar. Há quem olhe com desconfiança. Ninguém entrega folhas em branco, o que não deixa de ser curioso… Levo muito tempo até ler o que escreveram. Confesso que tenho algum receio, mas assim que começo, faço-o de uma vez só. Dou por mim em lágrimas. Visto-lhes a pele e sintolhes as mágoas. Aos olhos de um adulto podem parecer ridículas, aos olhos de uma criança não são assim tão leves. Em cada texto deixo um comentário pessoal e, cuidadosamente, colo-os em envelopes coloridos. Por fora, o nome de cada um e um mimo. Antes de os entregar coloco o My favourite things da Julie Andrews a sair da coluna e peço-lhes que oiçam com atenção. Terminamos a aula com uma lista das suas coisas favoritas escritas no quadro – as quais podem lembrar sempre que se sentirem tristes, com “os problemas são sempre maiores na nossa cabeça, do que na realidade”, com um abraço coletivo e a promessa de que todos seremos melhores para os outros todos os dias. Porque é que é tão difícil escutarmos os mais pequenos? Se os ouvíssemos, teríamos todos a ganhar e cresceríamos jovens e adultos mais conscientes.

No que é que te estás a meter? - penso. Afinal, o que sabes da vida destes miúdos para teres de carregar o que aí vem? Na realidade pouco ou

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FG.

Pausa para café Quando se começa a olhar para trás Terminada a grande epopeia da Instrução Primária, num percurso “limpo”, entra-se sem exame de admissão numa nova etapa, mais responsável, mais temerária, longe de casa, com ausência de transportes coletivos, mesmo que chova a “potes”. O primeiro embate é pesado, a imponência do grande edifício, todavia compensado pelo JardimEscola do outro lado da rua, e pelo magnífico Jardim da Estrela ao virar da esquina. Refeito do choque, o percurso foi “limpo”, sem chumbos e sem Quadro de Honra, com notas genericamente entre 0 13 e 0 16. Dividirei esse tempo em 2 períodos distintos, um até ao 5 2 ano e o outro até à conclusão dessa fase académica. Na primeira, as folgas, as faltas de professores, eram absorvidas no JARDIM CINEMA, um pouco abaixo a caminho do Largo do Rato. Aí deixávamos as nossas economias, no ping-pong, nos matraquilhos, no bilhar, com a garantia de um regresso em correria, porque já agora é só “mais esta partidinha Outro período aguardado com grande expectativa era o Carnaval, com os insubstituíveis assaltos, pretexto para umas mascaradas caseiras, cada um contribuía com aquilo que conseguia “reunir”, depois de convencer a Família. Tinham lugar normalmente em casa de raparigas,

ou seja, sobrava-lhes o desarrumar/rearrumar a casa onde decorria o hipotético bailarico. Mas com 0 3 2 ciclo à vista, e no meu caso, por bom aproveitamento, tive direito a ter Passe de Elétrico, uma promoção caseira de alto prestígio, permitindo agora escapadelas, eram sobretudo para o Chiado, onde estava garantido um desfile permanente e gratuito de algo que a idade muito apreciava, se bem que o “voltar para trás”, para que o exame fosse completo, levasse a alguns “choques” e protestos dos atropelados. Sem ofensa para os católicos, o auge desses nossos programas turísticos era a Semana Santa, porque não havia rapariga que se prezasse que nesses dias não desfilasse no Chiado, obviamente por razões de fé (há fé de diversos tipos....), com as suas melhores roupagens, em preto evidentemente, e com quem era mais fácil trocar mensagens com contatos, em pequenos cartões, para ulterior aprofundamento dos temas, já que as Mães, Tias, Avós e Cia, estavam devotamente a rezar. Por vezes, já no 7 º ano (atual 11º ), fazíamos “raids” aos bailes dos universitários, porque constituíam o degrau seguinte da nossa promoção social. Estes eram os programas de todo o período escolar, mas falta dizer que nas férias “grandes” algo foi tendo uma evolução diferenciada no tempo, com caracter individualizado.

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Assim, eu até aos meus 15 anos, mantive a tradição das férias saloias, com a componente excitante para mim de acompanhar o meu Pai nos programas de caça. A excitação começava com a vistoria e lubrificação de arma, a que se seguia o carregamento dos cartuchos, dado haver pelo menos 2 tipos de chumbos, consoante o tipo de objetivo, perdiz, coelho ou codorniz. Eu acompanhava-o praticamente todos os dias, durante pelo menos 2 semanas. Abro aqui um parêntesis para contar como aprendi a conduzir automóveis. Meu Pai tinha adquirido um FORD V8, portanto com cilindros em V, 4 de cada lado obviamente. A matrícula era AD-11-38. O trajeto de Campo de Ourique para Montachique era em linhas gerais por Campolide, Campo Grande, Alameda das Linha de Torres, Lumiar, Odivelas, Loures em estrada asfaltada, e aqui, uma vez passado o Posto da PVT (Polícia de Viação e Transito), podíamos seguir ou pela estrada asfaltada ou por um desvio para uma estrada de terra batida, que nos conduzia até nossa casa, com uma extensão de aproximadamente 8 Km. Era a minha a nossa opção, porque era a minha “pista” de instrução. Com o meu cunhado ao lado, lá fui inicialmente com muito jeitinho, fazendo longas lê s e a serra era sempre a subir, até que me emancipei e fui a exame, tendo explicado na Escola de Condução que já sabia conduzir. Todavia, era obrigatório fazer pelo menos 8 lições numa Escola. Marcado o exame, eles começavam junto à Escola do Exército, no Paço da Rainha. Tripulação a bordo, iniciei a viagem na direção ao Largo D. Estefânia, mas rapidamente fui mandado estacionar para o teste de código, que era o meu ponto fraco, porque conhecia todos os sinais, mas descrevê-los por vezes era complicado. Feita a primeira pergunta, vejo o examinador saudar alguém, levantando a mão direita, a que seguiu um estrondo. O amigo que ele saudou, distraiu-se com isso, e estampou-se contra uma camioneta de carga.

estacionamento. Regressámos depois ao local onde o exame tinha sido iniciado, onde fui efusivamente cumprimentado pelo examinador. O Instrutor, que tinha ficado de boca aberta ao longo desta odisseia, fez questão de me conduzir a casa! Voltando às Férias, no tempo que me restava dessa estadia após Caça, que durava sensivelmente mais um mês, era ocupado com excursões em caravanas de burros, que os vizinhos nos emprestavam, normalmente 6. Os excursionistas eram também jovens citadinos, cujas famílias alugavam as casas aos locais, na totalidade ou em parte, dada a fama da região em ter “bons ares” e ser, portanto, muito benéfica para os adolescentes, e os trajetos eram improvisados desde que se levasse o “combustível” para os imperdíveis picnics. Por vezes a odisseia estendia-se à Feira da Malveira, semanal às 5? feiras. Tínhamos que sair cedo, e o trajeto era percorrido em cerca de 2 horas em cada sentido. À chegada os burros eram guardados numas “garagens” próprias, onde lhes davam água e alguma palha, a troco de uma taxa verdadeiramente simbólica Como minha Irmã tinha uma casa na Costa da Caparica, o resto das férias era lá passado, e como era hábito em mais ou menos todas as praias, acabei por integrar um grupo de jovens que tinham toldos ou barracas na mesma zona do da minha Irmã. O meu grupo era bem divertido, havia muita criatividade, desde excursões a pé na maré baixa à Fonte da Telha, ou ao Bico da Areia, que era a extremidade Norte da praia, já muito próxima do Farol do Bugio, algo que com as dragagens para compensar a areia arrastada pelas marés vivas, passou a ser um canal por onde até os barcos de pesca transitam, ao alugar um autocarro e irmos até ao Portinho da Arrábida. O meu Grupo manteve-se muito unido, e durante todo o período escolar, tivemos atividades lúdicas com muita regularidade. Mas como tudo o que é bom acaba, o liceu também me aguardava para mais umas jornadas de combate com os livros, as sebentas, os “Prof’s” e as notas

Depois de grande discussão, com o meu examinador a puxar dos galões de Técnico Superior da DGV (Direção Geral de Viação), tornava-se urgente levar o ferido ao H. de S. José, e nada mais indicado do que colocá-lo no carro de instrução, comigo a conduzir e a buzinar, onde o deixámos na respetiva URGÊNCIA.

E assim cheguei ao fim do 7 ºano, num “percurso limpo”.

Para concluir o exame, regressei ao local do acidente, só para referência, prosseguimos até às imediações do ex- Cinema IMPÉRIO, e numa rua muito estreita, fiz inversão de marcha e um

( continua)

Preparar de urgência o Processo de Admissão à Faculdade, e de Guia de Marcha para a Costa da Caparica, foram as minhas prioridades.

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Há dados … e há dados. Dado que o desconhecimento não é argumento, ou melhor, só é argumento para quem governa, quem dirige, quem manda, chegámos exactamente aqui: há dados … e há dados.

Enredados nesta teia de dados, num mundo onde não há maus rapazes, mas há dados viciados, não houve, não há e, certamente, não haverá culpados. Podemos ficar descansados!

Quem dera Lisboa Martim Moniz …

tivesse

PE NS AM TO EN LD A D TO O

um

Quem dera Portugal tivesse um Egas Moniz …

E dados de todos nós são lançados para a ventoinha … Os dadores, esses, são apenas seres pequeninos e rasteirinhos.

E assim chegámos a Hoje: portugueses e soldados tragicamente agarrados a dois pensamentos de Camões:

«……………………… Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.» (Canto III, Os Lusíadas)

« …Que nunca louvarei O Capitão que diga: “não cuidei”. (Canto VIII, Os Lusíadas)

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VOCÊ CORTA A ETIQUETA?

MARGARIDA DE MELLO MOSER.

O

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LICÍNIA QUITÉRIO

DESCONSTRUÇÃO DES-CONS-TRU-ÇÃO DOS DIAS SEM CANTEIRO, SEM CARTA, SEM CANTOR, SEM O ASSOBIADOR DE VENTOS, O ENCANTADOR DE MULHERES, O HOMEM DOS SETE INSTRUMENTOS. CONS-TRU-ÇÃO DOS DIAS DE NOVAS FÁBULAS, SALMOS, REQUIENS, BAILADOS EM OUTRAS ÁGUAS, ÉGUAS SEM FREIO TERRA ADENTRO, IMPRECAÇÕES DE LÂMINA, CHOROS DE VELHAS MÃES, VELHOS PAIS, VELHOS OS FILHOS DA TORMENTA. GAZA UMA FAIXA DE MORTE EM CONS-TRU-ÇÃO.

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