o jardim de
LILITH anna blancas
Bruna moraes
1º Edição
Uniso/2018
lauren olivieiro
(ESPAÇO DESTINADO À FICHA CATALOGRÁFICA)
1º Edição - Dezembro de 2018 Autoras: Anna Luiza Blancas Bruna Caroline de Moraes Lauren Oliviero Sorocaba, dezembro de 2018. “O Jardim de Lilith” Obra produzida para aprovação no Curso de Jornalismo da Universidade de Sorocaba (Uniso). Orientação: Profª Mª. Evenize Batista; MTB 30.311 Créditos: Projeto gráfico: Autoras Diagramação: Lauren Olivieiro Revisão Ortográfica: Autoras Ilustrações: Kaline Uguetto Fotos: Autoras; fotos que não são de autoria própria estão devidamente creditadas. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Pamda Praça 9 de julho, 21 Centro, Sorocaba - SP, 8010-020 Telefone: (15) 418-1611 E-mail: guilherme@pamda.com.br
agradecimentos Aos nossos país, Fátima, Calu, Márcia, José Marcos, Frank e Sérgio, que sempre estiveram ao nosso lado durante essa jornada de quatro anos. Nós os amamos. Nosso muito obrigada à ilustradora e amiga Kaline Uguetto, por ter participado ativamente desse projeto, pela atenção, carinho e cuidado. Seremos eternamente gratas. E, por fim, agradecemos a nossa amiga e orientadora Evenize, que foi o sol e a chuva desse jardim, nos regou com cuidado e paciência. Graças a você, esse projeto lindo pôde sair do papel e, enfim, florescer. Nós te amamos muito.
"Nós percebemos a importância de nossa voz quando somos silenciados". - Malala Yousafzai
apresentação, 12 ainda no éden, 16 a hortênsia azul, 26 a tulipa e a adaga, 34 cattleya à deriva, 42 o despertar de lótus, 54 as sombras de begônia, 62 o cosmo do amor, 68 a flor de hiroshima, 80 a rosa e o lírio, 94 o último sorriso de sakura, 100 epílogo, 106
apresentação
D
Lilith, no hebraico תי ִלי ִּל. O sufixo תיrepresenta a forma feminina. E, ליל, significa, literalmente, noite ou noturno. Sendo assim, Lilith é conhecida como ‘noturna’¹
esde o início dos tempos buscamos entender a origem da vida como um todo. Uma das versões, a guiada pela religião, diz que surgimos como resultado de uma Criação Divina. Os escritos sagrados afirmam que Deus criou o mundo em seis dias e, no sétimo, descansou. Na história que está presente nos lares cristãos do mundo todo, é que Deus fez o homem - Adão - e depois de sentir que o seu protagonista sentia-se solitário, resolveu criar para ele uma companheira e, assim, surgiu Eva. Porém, algumas divergências de escritos, como os babilônicos, por exemplo, mostram que na verdade não foi bem assim que aconteceu. Antes da criação de Eva, que despertou para a vida a partir da costela do seu companheiro em um ato de “eterna inferioridade”, existiu Lilith, a primeira mulher de Adão, cuja a consciência coletiva apagou da história. No artigo “O Mito de Lilith”, de Almeida Araújo Gomes e Vanessa de Almeida, é dito que “Lilith teria sido criada tão bonita e interessante que logo arranjou problemas com o primeiro homem. Ainda segundo a narrativa mítica, Eva foi criada para substituir Lilith. Eva seria o oposto de Lilith, que por sua vez, reúne traços marcantes de obediência, boa imagem, companheira, submissa ao sacerdote, ao pdf>
¹ Trecho do artigo “Lilith: Mitos e Verdades” por Felipe Moura: <https://judeu.org/pdfs/lilith.
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Pai e à Lei e por fim, também fonte de pecado e desobediência”.² Mesmo não sendo discutida no meio cristão, Lilith apareceu em algumas versões da Bíblia apenas uma vez. Em Isaías 34:14-15, lê-se: “Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas, os sátiros chamarão os seus companheiros. Ali descansará Lilith, e achará um pouso para si. Ali a serpente fará o seu ninho, porá os seus ovos, chocá-los-á e recolherá à sua sombra a sua ninhada. [...]”. Porém, Felipe Moura afirma em seu artigo que, com todas as modificações feitas ao longo dos anos e com diversas traduções que a Bíblia sofreu, a palavra Lilith foi substituída por “criatura noturna”, seguindo a etimologia da palavra. Além de aparecer em Isaías, referências da sua existência são feitas no livro de Gênesis, apenas surgindo especulações em um versículo que aparece antes de Eva ser criada. Segundo essas teorias, Adão e Lilith ocupavam o mesmo corpo, mas foram subdividindo-se com o tempo. No livro Lilith - A Lua Negra³ , Roberto Sicuteri salienta que em Gênesis 1:27 é dito: “’Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea o criou’. É a passagem mais densa de mistério, pois introduz o conceito da androginia no indivíduo segundo o supremo princípio da harmonia total do Uno que é feito de Dois; mas é também conceito que consente em perpetuar na terra — mediante a multiplicação da espécie na união do macho com a fêmea — a imagem de Deus, pois o homem lhe é semelhante. Adão trazia em si, fundidos, o princípio masculino e o princípio feminino e tais princípios só depois foram separados sucessivamente. Já está implícita a resposta: Adão teve duas naturezas femininas, duas companheiras”. Com isso, Lilith não foi criada por Adão, como Eva, mas com Adão, dando a ela a mesma autonomia que ele, porém não era assim que Adão e Deus enxergavam. Em alguns escritos, Lilith é apontada como uma mulher rebelde, que se recusava veementemente a servir ² Trecho do artigo “O Mito de Lilith” por Antonio Maspoli de Araújo Gomes e Vanessa Ponstinnicoff de Almeida: <http://antoniomaspoli.com.br/o-mito-de-lilith-um-modelo-do-feminino-para-sociedade-contemporanea/> ³ Lilith - A Lua Negra, por Roberto Sicuteri: <http://recantobrianna.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Lilith_A_Lua_Negra.pdf>
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seu companheiro que, aos olhos dela, era igual a ela. Adão afirmava que ela devia servi-lo, por ser uma mulher. Mas Lilith continuava recusando-se, por alegar equidade. Deus, impaciente, resolveu intervir, tentando convencê-la do mesmo. Mas a mulher, a primeira da espécie humana, continuava recusando-se. Não devia favor nenhum ao homem, então, por que ela devia servi-lo? Deus zangou-se com Lilith; ela também. Desta forma, decidiu por deixar o Éden e partir em uma jornada solitária para o Mar Vermelho. Nessa caminhada, de acordo com a mitologia cristã, a mulher foi seguida por demônios, que a fizeram companhia e encorajaram seus delírios de liberdade. Chegando ao seu destino, ela envolveu-se sexualmente com eles e tornou-se mãe de outros demônios. Deus, preocupado com sua criatura que, em um momento de raiva, havia deixado o habitat que Ele lhes havia criado, reconsiderou e foi atrás dela. Quando a encontrou, embebida na luxúria e envolvida carnalmente com aquele ambiente impuro, ela recusou-se a voltar, caso as condições continuassem as mesmas. Deus foi inflexível, Lilith não recuou. A mulher, que tinha experimentado viver como acreditava merecer, não suportava a ideia de voltar para a submissão imposta por seu Criador e por um homem, que, aos seus olhos, não tinha nada que o fizesse superior a ela. Deus desistiu de convencê-la e declarou-a uma mulher demônio, como os seus, que ficavam fora do Paraíso. Investiu suas forças na criação de uma nova fêmea para sua criação perfeita, para Adão. Desta maneira, criou Eva. Eva, diferente de Lilith, sentia-se em dívida eterna com Adão. Ele doara-lhe uma costela, motivo para uma grande devoção. Eva era a mulher esperada, suprindo as expectativas, tanto de seu Criador, quanto de seu esposo. Aceitava de bom grado as imposições e não contestava. Embora Eva fosse submissa a Adão, diferente de Lilith, que procurava ser considerada igual perante a figura masculina, no livro de Gênesis 3:6 a 18, sabemos qual fim Eva teve: desobedeceu uma ordem divina, fazendo também com que Adão a desobedecesse sem saber. Pecou quando comeu o fruto da árvore proibida, fazendo com que seus olhos fossem abertos para o bem e para o mal, e ao fim,
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gerou a expulsão do casal do Jardim de Éden. Eva teve como castigo a multiplicação das dores do parto, trazendo isso para todas as outras mulheres que viessem depois de si, sendo assim, a primeira pecadora declarada nas escrituras sagradas. Segundo a Bíblia cristã, a serpente, o animal mais sagaz entre todos os outros que habitavam aquele jardim, fez a cabeça de Eva, a manipulou para que pecasse e desobedecesse. Segundo a crença islâmica, a passagem do livro Patai 81:455f, acusa Lilith de ser a serpente que levou Eva a tal ato, fazendo com que, quem crê na existência de Lilith, adote essa versão. Lilith não aceitou a subordinação, então, em um ato de sororidade4, não deixou com que Eva fizeste o mesmo. Sicuteri salienta que “A serpente-demônio, ou o próprio demoníaco que existe em Lilith, impele a mulher a “fazer algo” que o homem não permite: em Lilith há o pedido da inversão das posições sexuais equivalentes aos papéis, enquanto em Eva há o ato de transgressão da árvore, em obediência à serpente. A serpente, no mito de Lilith, pode ser equivalente à manifestação do instintivo codificado pela pergunta: “Por que devo sempre deitar-me embaixo de ti? Também eu fui feita de pó e por isso sou tua igual”. Adão, ao contrário, afasta de si a ameaça”. Dessa forma, “O Jardim de Lilith” traz histórias de mulheres, que assim como Lilith, não aceitam mais ser subordinadas a situações de constrangimento e de quaisquer natureza de violência, seja ela sexual, psicológica ou física. E que assim como Eva, quando comeu do fruto proibido, abriram os olhos para o que era o bem e o mal. Hoje, elas lutam contra as marcas deixadas, e continuam buscando superar, aprender e refletir sobre o que passaram, não se deixando calar por suas cicatrizes, contando suas vivências, para que assim, a luta pela igualdade não se cale.
¹ Relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs. União de mulheres com o mesmo fim, geralmente de cariz feminista. “sororidade”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, <https://dicionario.priberam.org/ sororidade>
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ainda no ĂŠden
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m 1983 um tiro de espingarda disparado pelo marido a deixou paraplégica. Em depoimentos, a flor conta que no início a relação não era violenta e que o casal era muito unido. Quando as agressões começaram, ela tentou resolver os conflitos através do diálogo, mas vendo que não surtia efeito, sugeriu a separação. Ela conta que não tinha a quem recorrer, “a lei não me ajudava, não existia delegacia da mulher” e assim, temeu morrer diversas vezes. A primeira vez, quando tomou um tiro de espingarda, que resultou em sua paraplegia. Através de uma entrevista concedida a revista Claudia “Especial Mulheres”, ed. 678 de março de 2018, com título de capa “Feminismo Não é Mimimi”, a flor afirma que o marido omitiu a verdade no depoimento. “Ele mentiu à polícia. Declarou que ladrões haviam invadido a casa e disparado a arma”. Posteriormente, ele empurrou sua cadeira de rodas elétrica para debaixo do chuveiro, na tentativa de eletrocutá-la. “Saí de casa enquanto ele viajava e fui morar com meus pais. Durante a investigação pela invasão à minha casa, a polícia notou a inconsistência do depoimento dele e o prendeu, mas logo saiu”, relembra. Após oito anos, o primeiro julgamento finalmente aconteceu e enquanto assistia, a flor pensava no que diriam sobre si caso não estivesse viva, “nessa hora, sempre denigrem a honra da vítima”. Condenado, ele conseguiu a anulação do julgamento. Seis anos se passaram até que um segundo julgamento ocorresse, mas o agressor recorreu da sentença e foi absolvido. Sua prisão só aconteceu 19 anos e seis meses após o crime, isso porque ONGs em apoio à flor, mobilizaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Além de acatar a denúncia por violência doméstica, a instituição condenou o Brasil pela falta de justiça às mulheres na mesma situação”. Em seguida, ela conta que tamanha foi a mobilização, que levou a elaboração da lei que “coíbe o crime, prevê mecanismos de educação do agressor e prevenção”. Além de originar à criação de uma lei que leva o seu nome, hoje
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a protagonista deste relato realiza palestras e cursos de prevenção à violência doméstica. Essa flor é Maria da Penha, e sua história foi um marco para o início da legislação que hoje defende a mulher brasileira contra o crime de gênero. De acordo com a delegada Fernanda Ueda, antes do surgimento da Lei Maria da Penha, era difícil ter noção dos números reais de violência contra a mulher e por não existir uma legislação que a defendia, as agressões não entravam na estatística de violência de gênero. “Ela não entrava no cômputo, a gente ficava sem parâmetro. Quando teve o surgimento da lei Maria da Penha, agora sim, eu tenho uma mudança do antes e do depois, mas como eu não tenho o antes, fica difícil fazer um levantamento”, afirma a delegada, acrescentando que nota-se um aumento paulatino de registros desde 2006, quando a lei foi sancionada. A lei nº 11.340 Maria da Penha, surgiu com o intuito de criar mecanismos para prevenir a violência doméstica contra a mulher. Na lei, é descrito que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”. Assegurando também a garantia do exercício dos direitos humanos das mulheres. Fernanda Ueda também conta quais são os amparos legais para as mulheres que entram na estatística da lei nos dias de hoje e como, depois de uma agressão, a vítima deve agir para garantir seus direitos. “Primeira coisa que ela tem que fazer é se submeter ao exame corpo de delito, depois de registrar a ocorrência e fazer o boletim. A mulher vai receber um papel que é a requisição de exame e vai ser orientada nas protetivas, que é o instante onde, preferencialmente, ela já vai com testemunhas”, explica. “A segunda medida, caso agredida, é o comparecimento ao IML (Instituto Médico Legal) para comprovar essas lesões”, acrescentando que caso a vítima não consiga comparecer ao IML, o recomendado é filmar ou tirar uma foto das lesões para o crime ser materializado. “Ela tem que robustecer e fortalecer a legislação para podermos dar proteção para ela, se não a
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gente não consegue fazer nada”. E para proteger essa vítima que denunciou seus agressores, hoje é disponibilizado para elas, a opção de acionar a medida protetiva. “Ela tem várias possibilidades. Eu posso, por exemplo, afastar o agressor da casa, impedir a aproximação dele a tantos metros da pessoa e impedir o contato por telefone com a vítima e com testemunha e familiares dessas pessoas”, explica a delegada. Com o intuito de auxiliar e acolher mulheres vítimas de violência foi criado há 20 anos na cidade Sorocaba - SP, o CIM - Mulher (Centro de Integração da Mulher). “Foi um ano como esse (2018) e como o final do ano passado, que ocorreram muitas mortes, e uma das razões de criar a casa abrigo foi essa. As mulheres faziam o boletim de ocorrência e voltavam para casa por não ter para onde ir, chegava lá, o marido rasgava o boletim de ocorrência, a agredia mais ainda e quando, no pior dos casos, a assassinava”, explica Cátia Camargo, coordenadora da casa-abrigo. Segundo ela, os casos mais comuns de agressões que chegam até o Centro, são violências sexuais, físicas e psicológicas, que ainda são temas comuns no Brasil. Segundo dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), de janeiro a julho de 2018, foram registrados 27 feminicídios e 547 tentativas. Já sobre violência de gênero, chegaram 79.661 denúncias, sendo elas 37.396 físicas e 26.527 psicológicas. De acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no anuário de 2018, foram registrados 60.018 estupros em 2017, sendo 8,4% de aumento em relação a 2016. Sobre a violência sexual, a psicóloga da casa-abrigo, Isabella Gutierres de Araújo diz que o abuso pode se manifestar de diversas maneiras, quando por exemplo, o parceiro se recusa a usar preservativo. “Ele se recusa a usar e diz: ‘Camisinha é ruim, vamos fazer sem mesmo’ e dá um jeitinho de forçar ela a fazer coisas que não se sente confortável de fazer”, explica. “E também tem o próprio estupro, às vezes a mulher fala: ‘ele é meu marido mesmo’, mas não, você não tem obrigação”, acrescenta sobre o estupro marital, que é o ato de constranger alguém a ter conjunção carnal em espaço de convívio permanente, sendo um parente ou não. A delegada Fernanda Ueda
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explica que a pena pode ser maior nesses casos, “hoje ele é considerado crime da mesma maneira que praticado por qualquer autor, com a diferença que vai ter aumento de pena por ser uma relação marital”. Isabella explica que violência física são os machucados que deixam marcas externas. “Um hematoma, um olho roxo e o ‘empurrãozinho’”, relata a psicóloga. Em casos mais extremos, que resultam na morte da vítima, o crime leva como nome, feminicídio. “Feminicídio é um homicídio com características especiais”, aponta a delegada Ueda. Ela explica que essas características se dão ao fato da vítima ser assassinada dentro de uma relação afetiva ou por seu gênero. Também existem casos em que ela é morta por estar defendendo a igualdade de gênero. Há também a violência psicológica, que segundo Isabella, é a que dá início a todas as outras violências, “fica até mais fácil de continuar a agressão, pois a vítima já está frágil. Ele já preparou o terreno”. Explicando sobre como esta pode se manifestar, a psicóloga diz que “o companheiro anula a mulher o tempo todo, ela não pode ter uma identidade própria, não pode ser ela mesma, aos poucos, não vai poder fazer o curso que ela tanto queria, não pode passar maquiagem, nem usar aquela determinada roupa”, conta. “Você vê que não agrediu fisicamente, mas emocionalmente, é uma ferida muito grande”. Muitos não entendem o motivo da mulher não conseguir se livrar de um relacionamento abusivo, mas a psicóloga explica que isso dá-se ao fato de que na maioria das vezes o companheiro surge como uma figura ideal. “Ele aparece como um príncipe encantado no começo. Ele não vem como um malvado e vilão, ele é maravilhoso, coloca um tapete vermelho para ela e tudo, mas aos poucos, ele vai minando, vai anulando ela e diz que faz isso por amor, então fica tudo muito confuso na cabeça da vitima”. Fernanda Ueda conta que as violências psicológicas se enquadram em alguns aspectos da jurisdição, como por exemplo, os crimes contra a honra, “que são a calúnia, difamação e injúria. Se são xingamentos e humilhações verbais, vão se enquadrar nesse crime, são de penas pequenas, mas eles existem. Eu tenho também o crime
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de ameaça; ameaçar alguém de mal injusto e grave, também possibilita prisão dentro da lei Maria da Penha”, explica a delegada. “Temos também o crime de constrangimento ilegal. Ele não quer deixá-la estudar, ele não quer deixá-la trabalhar, é um crime de constrangimento”, acrescenta. Segundo dados divulgados pela Delegacia da Mulher ao portal G1, a cidade de Sorocaba-SP registra cerca 100 casos de violência contra a mulher por mês no ano de 2018. Sobre medidas protetivas, de janeiro a setembro foram concedidas 423, sendo quase o mesmo número que o período de 2017 inteiro, que foram 436 medidas de proteção. Apesar do número, Fernanda Ueda afirma que a cidade é muito completa quando diz respeito à proteção dessas mulheres agredidas. “Hoje, aqui em Sorocaba, nós temos o Botão de Pânico e, além disso, nós temos a Patrulha do Bem. Esse programa, durante duas semanas, passa todos os dias na casa, tanto da mulher, quanto do agressor. Bate na casa da pessoa e pergunta: ‘Aconteceu alguma coisa? Tem alguma modificação? Ele apareceu aqui? Ele descompriu?’. Durante 15 dias isso é ininterrupto”, explica. O Botão do Pânico infelizmente não está presente em todas as cidades do Brasil, mas ela conta que funciona de uma maneira muito rápida. Quando a denúncia é feita e o pedido de medida protetiva é aceito, a mulher instala um aplicativo em seu celular, “é só ela apertar e automaticamente uma viatura da guarda e da Polícia Militar se desloca para lá”. Quando questionada sobre como evitar novos crimes contra a mulher, a delegada diz que é por meio da informação. “Primeiramente, através de esclarecimento, então quanto mais você divulga, quanto mais você explica os mecanismos legais de proteção, mais você incentiva, nem que seja de forma particular esse tipo de ação”, conta. Em uma pesquisa feita com 57 mulheres para a realização deste livro, sobre o atendimento que as mulheres recebem do Estado depois de sofrer algum tipo de agressão, concluiu-se que 16 delas sofreram violência sexual, 27 psicológica e 14 física, porém, apenas 13 delas denunciaram, totalizando 22,8%. Quando questionado o motivo de não terem feito a denúncia, 22,5% afirmaram não terem
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acionado a polícia por medo, 4,5% por falta de apoio, 20,5% por não acreditar que surtiria efeito e 36,4% por não terem reconhecido ser vítimas de um crime. Questionadas sobre o que melhorariam na legislação para a proteção ser efetiva, muitas apontaram a falta de solidariedade com a vítima e a dúvida da palavra da mulher. Mesmo com toda a legislação a favor dessas vítimas e todos os mecanismos criados para a sua proteção, ouvimos de muitas, histórias em que a justiça não foi feita, tendo um sentimento coletivo de impunidade para seus agressores.
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violência psicológica
a hortĂŞnsia azul
Bruna Moraes “Decidi que precisava me perdoar e seguir em frente, até porque não tinha como voltar ao passado.”
A
comodada na cama, enquanto se diverte com sua cachorra, Hortênsia se destaca pelo azul turquesa dos cabelos, pelo colorido de suas roupas e também pela voz, doce e serena. Ela inicia o relato dizendo que após terminar seus estudos, mudou-se para os Estados Unidos, onde trabalhou como babá. No portão de embarque, Hortênsia conta que deixou para trás a família, os amigos e algumas histórias de seu passado. Ela permaneceu nos EUA até o final de junho de 2018 e trouxe na bagagem novas histórias, saudades e lembranças. O que antecede essa viagem, no entanto, são histórias tristes que a transformaram na mulher forte que se declara ser. Com vinte e dois anos, Hortênsia nos leva para o início de sua adolescência, uma época conturbada e dolorida para a moça. “Desde pequena, sempre fui uma pessoa muito ansiosa. Aos 13, fui diagnosticada com depressão e alguns anos depois com transtorno de personalidade Borderline5 . Já fiz diversos tratamentos com terapia e remédios, mas isso é algo que necessita de cuidado constante e é algo que eu vou ter que lidar pelo resto da vida, já que não tem cura”. No final de 2014, sendo o seu último ano do ensino médio, a jovem se lembra, com pesar, de ter perdido um de seus melhores amigos para o suicídio. Como consequência, se viu cada vez mais isolada em casa. Isso, no entanto, a aproximou da família, que foi e ainda é, um pilar muito importante para ela. Após um tempo reclusa em casa, Hortênsia voltou a sair e socializar com alguns amigos no começo de 2015. Isso porque, na época, ela havia conhecido F. “Eu já conhecia de vista, mas nunca havia falado com ele, porém nós nos seguíamos nas redes sociais. Uma vez, começamos a conversar por lá e, em um sábado, saímos para um bar, onde ficamos pela primeira vez e não paramos de conversar desde então”, conta. 5 A Síndrome de Borderline é um transtorno de personalidade caracterizado por mudanças súbitas de humor, além de demonstrar medo de ser abandonado por pessoas próximas. Os portadores também apresentam comportamentos impulsivos, como gastar dinheiro descontroladamente ou comer compulsivamente. Fonte: < https://www.tuasaude.com/sindrome-de-borderline/>
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Ela se recorda que mesmo antes de se envolverem, sempre se sentiu muito grata pela forma carinhosa e atenciosa que ele a tratava, “ele estava sempre disposto a fazer o que fosse necessário para me ver bem e feliz”. Hortênsia afirma que isso significou muito, já que desde que os dois começaram a sair, ela passou a conhecer novas pessoas e, consequentemente, a fazer novos amigos, “voltei a viver de fato”, enfatiza. Mas a harmonia do casal não durou muito tempo, eles ainda mantinha um relacionamento aberto na época em que foram convidados para um churrasco na casa de uma amiga em comum. Durante a festa, Hortênsia acabou ficando com algumas meninas. “Eu sou bissexual e isso nunca foi segredo para ninguém. Acontece que quando ele ficou sabendo, começou a brigar comigo e a discussão durou horas. Nisso, lembro que eu voltei para casa, pois já estava amanhecendo e ele deveria ir trabalhar”, explica. No entanto, naquele dia F. decidiu faltar do trabalho e por isso, seu pai o expulsou de casa, fazendo com que ele fosse até Hortênsia culpá-la pelo ocorrido. “Ele veio dizendo que por minha culpa, por conta do que eu tinha feito na noite anterior, ele ficaria sem emprego e sem casa, então tudo que tinha na vida era eu e que não podia me perder”. Com isso, eles concordaram em manter um relacionamento fechado. Hortênsia supunha na época que esse tipo de atitude era justificável, por acreditar que ele se importava com ela. “Eu acabei não percebendo e achava que ele agia assim por gostar muito de mim”, admite. Alguns meses depois, F. comentou com ela que faria uma tatuagem. “Eu só achei legal, nem perguntei o desenho que ia fazer, mas quando o vi, ele me mostrou que tinha tatuado os meus óculos no braço. Não sei exatamente qual era a reação que ele achou que eu teria, mas tenho certeza que foi bem diferente do que ele havia imaginado. Eu falei que ele tinha sido muito idiota de ter feito aquilo, e que na nossa primeira briga, iria querer arrancar aquilo do braço”, recorda, ainda inconformada com a situação. Ela salienta que, em todas as discussões decorrentes às da tatuagem, F. costumava olhar diretamente para o seu braço tatuado, com o intuito de usar o desenho para reforçar que as coisas que ela fazia por ele, pouco se comparavam
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com as que ele já havia feito por ela, numa tentativa de diminuí-la. “Ao mesmo tempo em que eu me revoltava porque tinha consciência que era ridícula aquela situação, eu me sentia muito sufocada. Como se eu tivesse a obrigação de satisfazer tudo que ele queria”. Em decorrência das chantagens emocionais vindas por parte do rapaz, a moça se afastou de pessoas que considerava importantes. “Eu acabei me afastando dos meus amigos e, infelizmente, até da minha família, coisa que fiz sem perceber, mas que quando olho para trás, vejo o quão evidente foi o fato de que eu comecei a me afastar e brigar com eles; quando permiti que ele tivesse mais espaço em minha vida”, reflete. “Ele ia me ver no meu horário de almoço no trabalho, no fim do expediente, nos finais de semana e enfim, todos os momentos em que eu estivesse livre, ele estava lá”, conta, lembrando-se de como se sentia sufocada por essas atitudes. Hortênsia ainda não sabia que estava presa a um relacionamento abusivo, mas sentia o peso em seus ombros e o aperto em seu peito por ter que lidar com as constantes crises de ciúme e chantagens emocionais vindas de F. A flor diz que as crises de ciúmes eram causadas por diversos motivos, como quando voltavam juntos de algum evento social entre amigos. “Lembro que na maioria das vezes, quando estávamos indo embora de algum ‘rolê’, ele reclamava que algum amigo ou amiga dele tinha flertado comigo, mesmo que não tivesse, e que não poderia confiar em nenhum dos amigos porque todos eles ‘furariam o olho’ dele se tivessem a chance”. Ela ainda conta que se estivesse conversando com alguém sem a presença dele, ele a culpava logo em seguida. “Ele fechava a cara para mim, se isolava num canto e depois brigava comigo por eu não ter dado atenção para ele”. Ela afirma que a situação piorou ainda mais quando ele passou a sentir ciumes de sua melhor amiga da época “se ela me mandava mensagem e ele via, ele vomitava, dizia que iria desmaiar ou passar mal.” A obsessão chegou a tal ponto que F. sentia ciúme até do pai de Hortênsia. “Ele meio que sempre tentava se provar para mim no sentido de ser melhor que o meu pai, sabe? O meu pai, apesar dos defeitos dele, sempre foi a pessoa mais importante para mim, e o F. meio que competia com ele”, desabafa.
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Depois de um tempo de namoro, Hortênsia se afundou em uma nova crise, que diminuiu consideravelmente as saídas de casa, o seu ânimo e a a libido, “tudo que eu tive da parte dele foram reclamações sobre o quanto eu estava sendo chata por querer ficar em casa ao invés de sair, o quanto era horrível namorar com alguém que não queria transar e que eu não o acompanhava em mais nada”. A garota só foi reconhecer o relacionamento abusivo após um ano de namoro. Exausta, Hortênsia decidiu colocar um ponto final na relação. A reação de F. foi a de desmaio. “Ele não só desmaiou, como também fez muitas chantagens emocionais e ameaçou se matar diversas vezes, mesmo sabendo que eu estava numa crise péssima e que suicídio é um assunto que me afeta muito e, justamente por isso, eu não conseguia cortar relações completamente com ele”. Com o fim do relacionamento, Hortênsia passou a evitar os lugares que ele frequentava e também o deletou de suas redes sociais. “Ele continuou atrás de mim por um bom tempo e quando comecei a ficar com outra pessoa, ele ameaçou agredi-la”, Depois de alguns meses, a moça embarcou para os Estados Unidos, o que facilitou bastante para ela, mas ainda não estava isenta das perseguições de F. “Ele ainda postava fotos nossas nas redes sociais e mesmo três anos após o término, quando ele via meu atual namorado, ele o provocava e encarava”. Mesmo seguindo em frente e tendo buscado novas experiências, Hortênsia salienta que F. deixou muitas sequelas psicológicas e, por conta disso, teve muita dificuldade em voltar a se relacionar novamente. “No começo, mesmo ficando com alguém de forma fixa, eu não aceitava um relacionamento de fato”, declara. Refletindo sobre toda a sua história, a flor admite se sentir mal consigo por ter permitido que tudo chegasse onde chegou. “Depois de muita conversa com a minha psicóloga, eu decidi que precisava me perdoar por isso e seguir em frente, até porque não tinha como voltar ao passado e mudar o que houve”. Quando perguntada sobre o que deseja a F., ela prontamente afirma: “Tento não desejar nada de mal para ninguém, mas o pensamento de que tudo que vai, volta, me conforta. Porque sei que ele vai acabar pagando por isso de alguma forma”, suspira, por fim.
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a tulipa e a adaga
Anna Blancas “A Tulipa representa a delicadeza e a adaga a força.”
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mbora ele tenha me feito muito mal, sinto por ele gratidão”. Com essa frase, Tulipa encerra seu relato, declarando o que sente por B., seu primeiro e único namorado. Com um rosto jovial, boca e olhos pequenos, a moça de 23 anos, grávida de seu primeiro filho, tem entre os seios uma flor e uma adaga tatuadas, que para ela, representam a dualidade. A flor, uma Tulipa, representa a delicadeza externa que os seus conhecidos insistem em destacar, já a adaga, espelha a sua personalidade interna, que segundo a própria, nada tem a ver com a aparência. Tulipa é, por tanto, uma mulher muito forte, intensa e nada frágil. Antes de começar a contar sua história, a moça faz silêncio e começa a dizer que há algo que precisa contextualizar. “Eu sempre ‘gostei de gostar’, sempre fui a pessoa que acreditava que eu encontraria o amor da minha vida depois que nossos livros caíssem e nossas mãos se tocassem”, esclarece. O ano era 2012. Tulipa estava no terceiro ano do ensino médio e, por ser uma pessoa romântica, sempre sentiu a necessidade de estar em um relacionamento. “Eu o conhecia da escola, mas ele estava namorando. Enquanto isso, eu saia com um menino que gostava muito de mim, mas eu não sentia aquele amor. Além disso, eu achava que quando se namora, precisa estar sempre com a pessoa”, afirma, sorrindo. Na escola, Tulipa era rodeada de amigos e, nas palavras dela, era como se estivessem em um “musical da Disney”. Na época, ela tinha 16 anos e B., 15. A moça, que é de Piedade - SP, conta que tinha uma rotina bem conturbada na época, com o ensino médio e o técnico, em Sorocaba - SP. E, embora fosse popular na escola, pela rotina, não conseguia sair a noite. “Somente depois que o técnico acabou é que comecei a sair mais com meus amigos. Até então, eu só via o B. na escola, mas depois começamos a nos ver com mais frequência”, relembra. E então o namoro de B. acabou e, involuntariamente, Tulipa comemorou, mesmo sem nunca ter cogitado a ideia de sentir algo por
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ele. Ela estava ficando com um garoto, mas sentia que a relação não teria futuro. E então, uma amiga disse uma frase que Tulipa nunca esqueceu. “Lembro que eu estava em dúvidas se ficava com o menino, ou se eu ia atrás do B. e uma amiga me disse a seguinte frase: ‘Você quer ser feliz e aproveitar essa felicidade intensamente ou você quer estabilidade?’”. Isso fez com que ela pensasse muito sobre o rumo que as coisas estavam tomando. A flor é a filha caçula de quatro irmãos, que sempre brilharam por seus feitos. Para ela, poder fazer as coisas com suas próprias mãos, sair da mesmice e deixar sua marca no mundo era essencial. Naquele momento, com apenas 16 anos, ela sentiu que agarrar-se ao cômodo não era o que ela queria. Repensando sobre a história, Tulipa diz que talvez, o que a tenha feito hesitar sobre a decisão fosse o próprio ego; o sentimento de saber que alguém a amava como aquele garoto amava. “Ele sentia que eu estava estranha e decidimos juntos que tinha que acabar”, revela. A moça começou a sair com B.. Eles tinham uma rotina matinal de correr juntos e, a partir dessa aproximação, uma conexão instantânea aconteceu, então surgiu o pedido de namoro. “Pode parecer ridículo, mas cinco dias depois ele me pediu em namoro e eu aceitei”, afirma, rindo. “Eu senti a necessidade de contar para a minha família sobre ele. Meu pai não aceitou, porque disse que era para eu me dedicar aos vestibulares, mas eu insisti que iria me dedicar a tudo igualmente”. E então começaram os problemas. B. se recusava a ficar longe de Tulipa e se mostrava extremamente dependente. “Meu pai me deixou namorar, mas colocou alguns limites. Não ficávamos juntos o tempo todo. Ele chorava de soluçar. Lembro que ele com a mãe e o irmão se mudaram para Sorocaba e, no carro, ele chorava muito. Não era para outro estado que ele estava indo, apenas para a cidade vizinha”, reflete. “Sempre foi muito dramático nosso relacionamento, no começo era muito mais dele para mim; uma dependência assustadora que eu realmente não sabia lidar. Eu falava: ‘calma, vai dar tudo certo. Vamos lidar com isso’, e ele: ‘A gente vai casar e vai fugir’. Eu sempre retrucava dizendo que só tinha 17 anos e nem sabia se queria casar. ‘Eu gosto muito de você, mas a gente não precisa casar ainda’”, rela-
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ta, lembrando-se de como ficava assustada nesses momentos. Tulipa relembra que a situação se agravou com a mudança do rapaz para Sorocaba, o que dificultou os encontros, que eram frequentes, uma vez que ela não trabalhava e dependia dos pais para as passagens. Seus pais nunca permitiram que ela passasse a noite na casa dele, o que o deixava furioso. Ela conta que aquele momento foi muito complicado, porque sua família, que sempre foi muito unida, cobrava sua presença e B. também. “Eu precisava estar nos dois lugares. Tinha que estar com a minha família e também tinha que estar com ele, que fazia uma cena”. A situação só se acalmou quando a moça conseguiu um emprego em Sorocaba, em 2014, o que permitia vê-lo todos os dias. “Eu entrava 12h, mas chegava na cidade umas 8h. Com isso, víamos filmes, séries, a gente almoçava e depois eu ia trabalhar. Muitas vezes cheguei atrasada por isso, inclusive”, comenta. Ela diz que com a mudança de cidade, o rapaz arrumou novos amigos, dos quais ela não gostava. Para Tulipa, todos eram mal intencionados e, em sua cabeça, durante os passeios noturnos com eles, B. a traia. Pela primeira vez, ela sentiu-se no papel da pessoa dependente. “Ele saía, bebia e fumava muito. Eu ficava pensando se as outras meninas não estavam dando em cima dele. Eles eram muito crianças! Eu tinha uma maturidade maior, afinal era mais velha que ele. Eu me sentia muito insegura com isso”, conta. Sobre insegurança, a flor revela que esse era um ponto crucial na relação que nutriam. Para ela, sentir-se desejada, principalmente na fase da vida em que estavam, a adolescência, era fundamental. “Era algo muito sexual também, afinal eu descobri o meu corpo com ele. O B. fazia com que eu me sentisse a mulher mais linda do mundo. Eu era linda porque ele dizia; ele me desejava. É vergonhoso dizer, mas parece que, somente com ele, eu me sentia gostosa”, afirma, apoiando o rosto sobre as mãos. O ciúme entre os dois era o principal motivo das brigas. Ela não gostava dos amigos dele e, depois que ela começou a cursar Moda em Sorocaba, B. começou uma intensa perseguição com um colega de classe que ela tinha. “Foi em 2014 que a gente terminou pela primeira vez. O nosso ano foi ruim desde o começo. Eu o convidei
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para passar o ano novo com a minha família e nós passamos a virada discutindo e chorando, isso tudo porque eu ri da piada do namorado de uma prima e ele começou a questionar. Eu precisei ficar me justificando”, relata, com um ar de indignação. Tulipa afirma que, durante todas as discussões, sempre ela é que acabava pedindo desculpas. No começo, ela não reparava que fazia isso e até ficava aliviada quando as coisas começavam a voltar ao normal. Porém, depois que começou a ter convívio com outras pessoas e entender mais sobre relacionamentos, entendeu que não era normal a relação que vivia, começou a se negar a desculpar-se por coisas que não havia feito. “Terminamos assim pela primeira vez, porque falei que queria terminar e que eu não iria me desculpar”. A flor conta que, conforme o tempo ia passando, ela parecia caminhar para a vida adulta, pois estava na faculdade, havia conseguido outro emprego e tinha planos para o futuro. Em contrapartida, B. continuava com as mesmas atitudes do menino que ela namorava há dois anos. “Ele continuava saindo com aqueles amigos que eu não gostava e, não posso afirmar com certeza, mas acho que ele chegou a me trair”, conta. Entre idas e vindas, o casal teve 6 términos, quase todos pelo mesmo motivo, que hoje, para Tulipa, são banais. “Eu não consigo mais entender como eu aceitei tudo aquilo”, desabafa. A flor explica que em 2015, ela mudou-se de vez para Sorocaba. Toda sua vida estava aqui, faculdade, trabalho e não viu mais motivo para permanecer tão longe. Com isso, as proibições de seu pai já não seriam mais um problema. “Eu passava quatro dias na casa dele e o resto na minha casa. Eu morava com meus irmãos, então não era uma opção ele ir para a casa, mas eu vivia lá”. Nesse momento, Tulipa se lembra da pessoa que era naquele período e, com pesar, explica como ter outro alguém no centro de seu universo é prejudicial. “Cheguei em um momento em que eu só me sentia bem com a aprovação dele. Se ele me olhasse com admiração, eu ia me sentir uma pessoa admirável. Tudo girava em torno dele. Minhas emoções dependiam do que ele achava”, reflete. “Eu gostava muito de estar com ele. Nada me satisfazia mais do que acordar e ter ele ali, do meu lado. Isso preenchia um
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vazio que eu mesma desconhecia”. Por mais que ela o amasse, como afirma, sentia que algo não ia bem, que B. não amadurecia e que ela fazia concessões demais. Com o passar do tempo, o casal prevaleceu com o desejo de levar a relação a um outro nível, porém, a família da flor jamais aceitaria, primeiramente pela idade que o casal tinha e também pelos comportamentos de B. Isso, para o rapaz, sempre foi um problema, já que no início do namoro, ele sugeria fugir e casar o tempo todo. Mas, conforme as divergências de opinião foram surgindo e Tulipa ganhando voz dentro da relação, ele começou a rejeitar a ideia. “Eu estava em Sorocaba, a gente tinha emprego e poderíamos morar juntos. Mas, para agradar meu pai, precisaríamos casar oficialmente. Ele começou a recuar, dando milhões de desculpas”, afirma. Na reta final do relacionamento, as brigas eram constantes e a situação ficou insustentável. “Já não tinha mais condições de continuar. Mas, por incrível que pareça, quem terminou comigo foi ele, por eu não fazer suas vontades. Eu fazia coisas para agradar e coisas que eu não queria. A gente terminou porque eu me recusava a transar quando eu estava brava ou sem vontade, por exemplo. Coisa que eu não fazia antes”, desabafa, orgulhosa. Depois que tudo acabou, Tulipa demorou muito tempo para aceitar que tinha vivido uma relação que não era saudável. “Minhas amigas, depois que o relacionamento acabou, me falavam ‘realmente, é complicado sair de um relacionamento abusivo’ e eu desconversava, porque não queria me fazer de vítima. Para mim, falar que estava em um relacionamento abusivo era o mesmo que falar ‘tadinha, ele me fez sofrer’. Eu não queria mais me colocar como donzela indefesa, porque eu nunca gostei disso. Não quero ser, não vou me denominar assim”, conta, ajeitando-se na cadeira. Apenas esse ano, após um encontro de jovens na ONG que participa, Tulipa entendeu a real situação que viveu. “Eu contei a história em voz alta e, pela primeira vez, vi o quanto tudo aquilo me fez mal”. Embora aliviada, a mulher afirma que ainda sente doer a ferida do relacionamento, principalmente por ter sido no meio da adolescência, onde os alicerces de vida social e caráter começam a ser de-
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finidos. Em um desabafo, ela explica que não guarda mágoas ou rancores de B.. Tempos depois do término, ele sofreu um trágico acidente e ela foi visitá-lo, principalmente pela relação que desenvolveu com a mãe do rapaz. Não sentia o amor de antes, mas também não sentia ódio. “Esse relacionamento me deixou marcas profundas. Eu me tornei mulher ao lado dele e, depois que tudo acabou, consegui ver que havia muita coisa ruim e imatura no nosso relacionamento, ao mesmo tempo que existia muita coisa que me faz falta. Esse é o motivo por ele ter sido meu único namorado. Eu não consigo me entregar em um novo relacionamento. Depois que terminamos, eu procurava outras pessoas para suprir o vazio que ficou, mas não queria lidar com o sofrimento que essa pessoa poderia me trazer. Ele foi a base onde eu me construí”, finaliza, com os olhos marejados.
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cattleya Ă deriva
Anna Blancas “Se uma amiga que se importa com você disser: ‘não case, não fique, não namore’, escute.”
S
entada confortavelmente em sua cama, a vaidosa Cattleya afirma que hoje, vive um relacionamento pleno e saudável, mas quem acompanha seu histórico amoroso, sabe o quanto ela já sofreu para chegar onde está. Lembrando-se da infância, quando a violência começou, Cattleya conta que nunca foi uma criança “fácil de lidar”, e assume que desenvolveu um sentimento de revolta por não ter uma figura paterna presente em sua vida. “Não fui criada com o meu pai, minha mãe foi amante dele por 15 anos e, nesse meio tempo, ela me teve. Então, eu era muito revoltada por não tê-lo presente. Acabei crescendo rebelde e isso fez com que eu casasse muito cedo”, recorda. Por serem menores de idade, ela e A. precisaram que os pais assinassem um termo de autorização para que o casamento acontecesse. A flor conta que apesar de A. tê-la agredido inúmeras vezes, ele não foi o seu primeiro abusador. Revoltada, ela afirma que aos cinco anos de idade sua mãe trabalhava muito e por isso, tinha o costume de deixá-la com a vizinha. Porém, em um determinado dia, a mulher que cuidava de Cattleya precisou sair para resolver alguns problemas pessoais, e acabou deixando-a sozinha com o marido. “Eu lembro claramente, ele me pegou do sofá, era um sofá azul”, afirma. “Ele me colocou na cama, abaixou a minha calcinha e esfregou o pênis em mim”, revela, angustiada. Cattleya lembra que apesar do pai não ter sido presente em sua vida, ele a visitava a cada 15 dias. Durante uma noite, dias após o ocorrido, ela avistou seu pai deitado na cama com a mãe, “eles não estavam fazendo nada, mas eu falei assim: ‘Pai, o S. tentou fazer comigo, isso que você está fazendo com a mamãe’, eu lembro exatamente as palavras”, conta, imersa nas lembranças daquele dia. “Ele levantou correndo, tentou pegar o revólver que guardava no armário de casa, mas a minha mãe não deixou e isso me revoltou”, com isso, a mulher salienta que nunca teve um relacionamento saudável com a mãe. De volta à adolescência, Cattleya afirma ter perdido a virgindade ainda muito nova, e que na época em que se casou com A., ela já
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estava grávida de seu primeiro filho. “Eu perdi a virgindade cedo e quando aconteceu, minha mãe brigou muito comigo, ela dizia: ‘Homem nenhum vai querer você agora’”, lembra. Cattleya conta que, além de A. ter abusado psicologicamente dela durante o tempo em que ficaram juntos, ele também a agrediu fisicamente durante os seus cinco meses de gestação. “Ele me segurou pela garganta e eu caí no chão, quase perdi o bebê. Eu fui parar no hospital e depois disso minha mãe se mudou para perto de mim”, relata. “Ele amanhecia na rua e teve um filho fora do casamento”. Ela acrescenta ainda que, depois desse episódio, terminaram e reataram o relacionamento mais sete vezes, até terminarem de vez. Dois anos após ter se divorciado de A., Cattleya se envolveu com N., o seu terceiro abusador e pai de sua segunda filha, Dália. Ela revela que em pouco tempo de relacionamento, acabou engravidando, “eu pensei em abortar, cheguei a comprar os comprimidos, mas Deus falou comigo para eu não fazer isso, então devolvi o remédio”, admite. “Tive a Dália e morei com o cara, e ele foi o pior. Ele me arrastava na rua pelos cabelos. Ao mesmo tempo em que eu estava grávida, ele engravidou mais outras três mulheres”, desabafa, lembrando que não manteve o relacionamento por muito tempo. A mulher assume que passava pouco tempo solteira, engatando um relacionamento atrás do outro, e dessa forma começou a namorar outro rapaz. “Nós namoramos por quatro anos”, conta. Segundo Cattleya, ele era muito bom e ela o amava, “sabe aquele homem bom que faz de tudo por você? Ele era assim”. Porém, a fase lua de mel entre o casal não durou muito tempo. De acordo com a moça, ele abusou de Dália. “Ele fez ela tocar no órgão genital dele”, desabafa com o semblante triste. Após o fim desse relacionamento, Cattleya permaneceu solteira durante cinco anos e segundo com ela, passou esse tempo envolvida nos ministérios da igreja e servindo a Deus. Foi somente em 2010 que conheceu J., pai de seu filho mais novo. Ambos prezavam muito pelos costumes cristãos e o que começou como amizade, resultou em um casamento. “Ele tem seis filhas, cinco com a ex-esposa e uma com a irmã dela e eu não me atentei a isso, o medo de ficar sozinha era tanto! Já que eu vinha de outros di-
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vórcios. Quando apareceu alguém da igreja, eu achei que era o meu príncipe encantado”, desabafa. Hoje, Cattleya assume que o relacionamento nunca deveria ter evoluído e admite que todos à sua volta aconselhavam para que ela não se casasse com J. “Eu queria que não tivesse acontecido e que eu não passasse por nada disso. Eu queria ter escutado as pessoas”, salienta. Ela afirma que o casamento quase não ocorreu porque J. alegava estar em dúvida. Cattleya conta que chamou seu pastor e um diácono para convencê-lo a se casar e, por fim, J. acabou cedendo tendo em visto que toda a cerimônia já estava paga. “Eu não sabia que estava grávida, mas se ele insistisse em não casar, eu teria evitado tudo isso”, desabafa, dizendo que durante o tempo em que ficaram juntos, sempre acreditou que Deus poderia mudá-lo. Grávida, ela afirma que no início da relação tudo ocorria bem e que Magnólia e Anis, as duas filhas de J., também se mudaram para a sua residência. No dia do parto do bebê, tudo aconteceu como o planejado, mas na quarentena, Cattleya teve complicações causadas pelo estresse em casa. Ela diz que, a partir do nascimento do filho do casal, o clima da casa começou a mudar. Devido às constantes discussões, todos viviam sob estresse, e com isso, J. voltou a beber e a frequentar prostíbulos. “Ele frequentava um monte de casa de prostituição que tinha aqui, eu não sei se ele me traiu, isso eu não posso falar com certeza, mas algumas amigas minhas disseram que viram ele andando com mulher na garupa da moto, mas ele só tinha filha mulher, então não posso afirmar”, admite. As enteadas de Cattleya não gostavam de como o pai tratava sua nova esposa. “Elas falavam: ‘Não é justo o que o meu pai fez com a minha mãe e agora ele está fazendo com você’, e eu respondia: ‘Não, ele vai mudar, vamos ter paciência e permanecer orando’”, desabafa lembrando que o relacionamento dos dois começou porque J. a fez crer que o antigo casamento dele havia acabado por traição. “Eu acreditei que a ex esposa o havia traído, mas ela foi embora por causa da violência que sofreu durante 20 anos”. A partir deste momento, J. passou a demonstrar o seu lado abusi-
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vo cada vez mais. “Ele não comprava nada para a casa, alegava não achar justo que ele chegasse do trabalho e não tivesse outras opções de comida para ele. Mas, com quatro crianças, como sobraria? Não tinha como”, conta indignada, acrescentando que chegou a faltar até arroz e feijão em sua casa. Para resolver essa situação, depois de 18 meses do nascimento do filho mais novo, Cattleya decidiu ir atrás de um emprego, mas, para a sua surpresa, J. não a deixou trabalhar em lugares frequentados por homens, então começou a trabalhar como merendeira em uma creche. “Eu tenho profissão, sou formada em radiologia, sou vendedora, que é menos pesado que trabalhar com cozinha ou como empregada doméstica, mas fui, pois ele não me deixava voltar a trabalhar onde eu trabalhava antes”, conta. Ela permaneceu naquele emprego por cerca de dois anos, mas todo o salário que recebia, ia direto para as mãos de J., que não usava para pagar as despesas da casa, mas sim em bares e prostíbulos. Ela conta que durante muitas vezes, a água e a luz foram cortadas e a prestação da casa estava sempre atrasada. Em determinada ocasião, J. emprestou dinheiro de sua mãe para construir um quarto no quintal da casa, já que as crianças dormiam na sala. Cattleya não questionou, pois sua casa sempre foi pequena e para ela seria vantajoso um espaço maior para as crianças, mas ela explica que esse quarto nunca foi feito. “Em vez de comprar o material com o dinheiro, ele comprou uma moto quase zerada”, relata. “Lembro que ele só me ligou e perguntou: ‘Que cor você acha mais bonita para moto?’, e eu respondi: ‘Eu gosto de dourado’, eu não sabia que ele iria comprar”, acrescenta, com indignação. Dado isso, Cattleya o confrontou questionando o porquê dele não ter agido conforme o combinado, e ele afirmou que como a residência não o pertencia, não faria nada ali. A mulher conta que a partir desse momento, J. passou a insultá-la constantemente. Um dia, quando o homem chegou de madrugada em casa, Cattleya esclareceu que estava insatisfeita com aquela situação, “e ele falou: ‘Eu não quero mesmo estar com você, eu casei com você por dó, por pena, você para mim é um lixo. Antes eu tivesse casado com uma prostituta, do que você’”, conta com dificuldade, acrescentando que após a discussão, ela já não conseguia mais dormir ao lado dele.
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Porém, o ápice para Cattleya foi quando seu filho mais novo ficou doente e o casal precisou passar horas no pronto-atendimento. Quando voltaram pra casa, J. avisou que sairia para comprar o almoço. Na casa, não havia nada mais do que arroz, e Cattleya não havia dinheiro para alimentar as crianças, já que J. pegava todo o seu salário. A flor relembra que várias horas se passaram, e o homem não voltava com a comida. Cattleya havia telefonado diversas vezes para J. com o intuito de saber do seu paradeiro. Irritado, o homem continuava a mandando esperar, não informando quando voltaria. Angustiada pela situação, a mulher resolveu juntar as economias de J., as quais ele mantinha engavetadas com um cadeado. “Ele colocava o cadeado em todas as gavetas, mas havia uma que eu conseguia abrir um pouco e pegar umas moedas. Eu comprei pão e ovo, então comemos junto com o arroz”, relata. A mulher então, esperou impaciente pela chegada do marido em casa, que só retornou horas mais tarde. “Ele chegou com um botijão de gás em mãos, dizendo que jogaria em mim. Ele não atacou, mas saiu com um punhal de prata e disse que iria me matar naquele dia, por eu ter telefonado para ele o dia inteiro”, relembra com pesar. Cattleya não sabe explicar como, já que tudo aconteceu muito rápido, mas quando J. tentou golpeá-la no estômago com o punhal, tudo o que ele conseguiu, foi rasgar um pedaço de sua roupa. “O nosso filho viu tudo, ele não fala mais sobre isso hoje, mas antigamente, quando falavam sobre o pai dele, ele dizia: ‘O meu pai tentou matar a minha mãe com faca’”, lamenta. Ela reforça que não teve tempo de pensar em telefonar para a polícia e, quando se deu conta, J. já havia entrado em seu carro e ido embora. O homem, no entanto, retornou para casa por volta das três horas da manhã, Cattleya alega que ele deitou ao seu lado na cama e que, naquele momento, sentiu muito medo do que poderia acontecer. “Eu só pensei ‘Deus, você já me guardou tantas vezes, se for o dia de partir, partirei’”, desabafa. Após o ocorrido, amigas próximas tentaram convencê-la a se separar, “elas disseram: ‘Esse cara não gosta de você, ele não te respeita’, mas eu não queria, eu acreditava que Deus ia fazer ele mudar”, admite. Cattleya afirma que mantinha a sua fé intacta, porque não
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queria enfrentar mais um divórcio. Porém, cansada da situação, a mulher decidiu ter uma conversa honesta com J. “Eu disse: ‘Eu não quero mais, desse jeito não, eu quero me separar de você’, eu sugeri e ele disse: ‘Tudo bem, daqui a pouco eu volto para pegar as minhas coisas’”. Depois dessa conversa, J. realmente foi embora, levando consigo alguns pertences da casa, alegando serem seus. Suas filhas do outro casamento também foram embora com o pai. Após o término, Cattleya precisou se esconder de J. inúmeras vezes, visto que ele ainda a ameaçava de morte. “Eu fiquei uns dias na casa do pastor e também de uma moça que participava de um ministério feminino da igreja; eu nem conhecia ela, mas fui dormir lá uns dias. Eu tive que sumir de perto dele, porque ele queria me matar a todo custo, ele ia atrás de mim”, desabafa. A mulher admite que, mesmo com o fim do relacionamento, ela passou sete meses usando a aliança em seu dedo, “eu não queria me divorciar de novo, mais uma vez, com mais um filho no braço e de novo sozinha”, salienta. Depois de um tempo, Cattleya e J. marcaram uma reunião com o pastor da igreja que frequentavam a fim de resolverem a situação. Ao ouvir novamente de J. que ele só havia se casado com ela por dó, seu líder religioso aconselhou que ela se divorciasse de fato. “Ele bateu na mesa e disse: ‘Eu vou deixar meu título pastoral aqui na mesa. Não fique mais com ele, ele não quer saber de você’, e eu respondi, olhando para o J.: ‘Se eu tirar essa aliança, eu nunca mais volto com você’”, lembra. Como resposta, J. ordenou que ela retirasse, acrescentando que, para ele, ela não prestava. “Então eu tirei a aliança e fui embora para casa”, relata. Durante o tempo do divórcio, Cattleya conta que conheceu o seu atual marido, com o qual vive um relacionamento feliz. “Quando estava no processo de divórcio, eu já tinha conhecido o meu atual marido onde trabalhava. Nós começamos a conversar, mas ainda não namorávamos, só fomos namorar quatro meses depois que eu havia tirado a aliança do dedo”, conta. “Quando saiu o divórcio, um mês depois, nos casamos”, acrescenta. Cattleya admite, por fim, com a voz embargada pelo choro, que o seu relacionamento com J., foi o que mais a machucou.
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Como mensagem final, ela ressalta a importância de ouvir as pessoas à sua volta e repensar suas ações. “Principalmente se uma te mãe falar: ‘Não fique com ele, não case’, então não case, pois vai dar errado, não adianta”, aconselha. “O pastor que fez o meu casamento com J., tremia no púlpito, ele não sentia paz, ficou perturbado o dia todo. Naquele dia caiu um pé d’água que atrasou tudo, mal acabou o casamento e já foram apagando as luzes e expulsando os convidados, eles não queriam aquele casamento”, lembra de todos os sinais que recebeu, mas ignorou, pelo medo de ficar solteira.
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violĂŞncia sexual
o despertar de lรณtus
Anna Blancas â&#x20AC;&#x153;O cheiro dele ficou na minha mente.â&#x20AC;?
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m uma mesa afastada da cafeteria, Lótus engata uma conversa leve e acolhedora. A jovem de 20 anos chama a atenção pelo seu carisma, sorriso e longos cabelos negros. Emotiva, suas palavras são ditas com muito cuidado. Mesmo quem a conhece, não imagina que traços de sua personalidade tenham aparecido após um trauma que sofreu em 2015. Era um sábado de abril, o dia estava ensolarado e Lótus desfrutou disso para fazer compras no centro da cidade, e então, ir até a casa de seu namorado na época. “Eu estava com um shorts por estar um calor de 30 graus e ninguém merece ficar de calça”, explica sobre sua vestimenta, que é sempre questionada a vítimas de abuso sexual. “Eu fui para o terminal para pegar um ônibus e ir para a casa do meu ex-namorado, precisava andar cerca de um quarteirão para chegar até o condomínio dele, e essa rua, de um lado é o condomínio e o outro é um matagal”, conta. Lótus fez o seu caminho habitual, desceu do ônibus, passou por um posto de gasolina, por uma padaria, e por fim, virou a esquina que dava acesso à rua de seu destino final. Essa esquina, no entanto, era escondida e pouco movimentada, ainda mais em um sábado a tarde. Quando chegou naquele ponto, Lótus relata que se deparou com um homem apoiado em uma moto. Ele vestia uma jaqueta de couro preta e mexia tranquilamente em seu celular. Lótus também estava entretida com o seu aparelho, mas, quando passou pelo homem, foi surpreendida quando ele a abordou, forçando a garota a lhe dar o celular. Ela entregou, sem questionar, com medo de reagir. Tentou seguir caminhando, mas foi impedida de continuar, visto que o assaltante precisava de sua senha para desbloquear o aparelho. Ela tentou enganá-lo, dizendo que não se lembrava da senha por conta do nervosismo. Durante todo esse conflito, Lótus se sentia angustiada e esperava que algum conhecido a avistasse. “Eu achava que nesse meio tempo, a minha ex-sogra ia passar, mas ela não passava, pois já estava em casa. Então isso fez com que eu ficasse mais
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tempo lá com ele enquanto me fazia perguntas e outras coisas comigo”, relata, lembrando que toda a ação demorou mais de uma hora. Lótus conta que ele começou a importuná-la com perguntas pessoais e de cunho sexual. “Ele fazia perguntas do tipo, qual era o tamanho do órgão genital do meu namorado, qual posições eu fazia, se eu era virgem, inclusive, disse que não era mais, mesmo sendo, com medo dele se excitar e querer tirar a minha virgindade, eu tive que pensar nisso na hora. Ele perguntava sobre posições e eu não sabia falar sobre isso e também não queria”, conta, desconfortável com a lembrança. A moça se abraça, revivendo o medo que passou naquela tarde. “Ele sempre falava que estava armado, a arma geralmente fica na cintura, mas ele dizia que estava dentro da jaqueta. Só que eu tinha 16 ou 17 anos, não sabia que arma costuma ficar na cintura. Ele podia estar blefando, mas também poderia não estar; ou até ter uma faca. Se eu saísse correndo ou qualquer outra coisa, ele poderia me alcançar até a entrada do condomínio. Ele tinha uma moto”, explica angustiada. Além da arma, ele também dizia ter todas as informações dela em seu celular. “Ele perguntou sobre a minha família, ele falava: “Olha, eu tenho todas as suas informações nesse celular, tenho o número da sua mãe, do seu pai, do seu irmão. Então se você fizer alguma coisa, você sabe que tenho o contato de todo mundo”. Apesar do desconforto, o que Lótus sofreu naquela tarde não ficou apenas no verbal. Depois que o homem finalizou a série de perguntas, forçou um beijo. “Ele me beijou umas duas vezes, dizia que se eu não beijasse, ele não ia me liberar, e sempre envolvia tudo aquilo do matagal, que se ele fizesse algo comigo, ninguém iria ver. Que ele poderia me estuprar, me levar embora ou qualquer outra coisa. E ele falou: ‘Agora eu quero te beijar, mas é um beijo, não um selinho’”, conta, entre lágrimas. Com bastante dificuldade, a jovem adiciona, em tom mais baixo que o habitual, que “ele também tocou em mim, ele tocou nos meus órgãos genitais. Ele fez isso”, diz com a voz trêmula, “ele tocou em mim”. Não suficiente, o assaltante ainda se masturbou em sua frente,
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forçando Lótus a assistir. “Ele encostou na moto dele, de costas para a rua e começou a se tocar e me obrigava a olhar para ele enquanto fazia esses atos obscenos”. Com tudo isso, a garota, ainda virgem, teve mais dificuldade em ter relações com seu namorado. “Mesmo namorando por dois anos, eu nunca senti vontade de ter relações com o meu ex, nunca foi algo que para mim importasse. Mas também, tem toda aquela coisa dele estar sempre cobrando, então esse assalto aumentou essa minha falta de vontade de fazer qualquer coisa com ele, não queria fazer absolutamente nada”, desabafa. “Era questão de atravessar a rua e andar 10 passos, e a gente já estava no matagal”, salienta, lembrando do tempo que passou com o homem, ela conta que sentia muito medo de que ele a levasse para o matagal e em seguida a estuprasse. “Eu seria capaz de tudo para ele me liberar. Para poder ir embora viva, sem ser estuprada. Só dele não colocar o órgão genital dele em mim, eu era capaz de fazer qualquer coisa, só queria ir embora”, assume, perturbada pela lembrança. Após o homem forçar o último beijo e a tocá-la, Lótus foi surpreendida pela figura de seu sogro voltando do trabalho. “O meu ex-sogro buzinou para mim e o cara perguntou ‘você conhece aquele homem que passou de carro?’, eu falei ‘não, não conheço’. Então ele me liberou, eu não sei se foi por ele ter medo da pessoa ou se ele realmente estava satisfeito com tudo que ele já tinha feito comigo”. Após ser liberada, a garota correu sem olhar para trás, e, enquanto corria, lembra de ouvir o homem subindo em sua moto e partindo dali. Lótus entrou no carro de seu sogro e conta que não conseguia parar de tremer, tremia tanto ao ponto de ouvir o barulho das duas pernas balançando. “O cheiro dele ficou na minha mente”, admite “Eu comecei a tremer e a gritar, dava para o condomínio inteiro me escutar gritando de desespero porque eu queria sair daquele lugar. Lembro que eu cheguei lá na casa do meu ex namorado e eu tremia tanto que não conseguia ficar em pé. Eu simplesmente tive que ser carregada para fora do carro”, desabafa, dizendo que não sentia firmeza em suas pernas. “Meu namorado teve que me carregar e ninguém estava entendendo nada do que estava acontecendo”. A garota ressalta o quão horrível se sentiu após o acontecimento. “Eu
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senti muito nojo de mim, eu só não queria ter aquele corpo, eu não queria estar em mim”. Ela admite que naquele dia, não conseguiu contar o real motivo de seu estado. A jovem escondeu o que o homem fez com ela, apenas informando que havia sido assaltada. “Quando eu cheguei na casa do meu ex, ele pegou o carro e foi atrás do cara, aí a mãe dele ficou preocupada e eu também”, lembra. Mesmo sem saber do motivo completo, a família do rapaz foi muito compreensíva com Lótus, mas ela estava tão traumatizada que não conseguia realizar ações simples. “Eu lembro que não conseguia tirar a roupa para tomar banho depois do assalto, eu não conseguia, eu só chorava” desabafa tristemente. “Eu parecia uma criança, eu só sentia que precisava muito ir embora daquele lugar”. Ela ainda relembra que após esse acontecimento, sempre que precisava passar naquele local, isso a fazia reviver o trauma. O que mais entristeceu a garota na época foi não ter tido o apoio de sua família para denunciar quando teve coragem de se abrir. “Eles não me apoiaram em denunciar, porque ficaram com muito medo, mas acho que ficaram com vergonha também, talvez, eu não sei, mas eles não me apoiaram”, diz com pesar. A moça acrescenta que não sentia que eles se importavam com o trauma que ela havia passado. “Eles não conversaram sobre isso comigo e nunca me perguntaram, nem meu ex-namorado, porque ninguém se importa, ninguém se importa. É muito banalizado e as pessoas já se acostumaram com isso”, diz aos prantos, deixando claro que isso é o que mais dói. “Inclusive, meu irmão perguntou a roupa que eu estava usando e se eu estava com o celular na mão. E aí vemos como as pessoas nos desapontam”, acrescenta com um suspiro. Após esse assalto, a garota conta que passou por momentos intensos causados pelo estresse. “Eu perdi muito cabelo por estresse e nervosismo, e eu estudava em um lugar muito difícil, então foi um tempo extremamente pesado. Eu tive que tomar remédio para parar de cair o cabelo e só depois de um ano eu comecei a fazer terapia, demorou muito”, admite. A terapia ajudou bastante, mas por muito tempo, Lótus teve receio de ficar perto de homens, temendo que o abuso acontecesse novamente.
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Quando questionada sobre o que sente, Lótus demonstra solidariedade com todas as mulheres que, infelizmente, estão sujeitas a passar por situações como essa todos os dias. “Eu sinto que eu sempre vou evitar que isso aconteça com uma mulher, se estiver ao meu alcance”, desabafa, deixando claro que a ocasião a despertou para um sentimento de proteção com as pessoas à sua volta. “Só quero que as mulheres cheguem bem em casa”, finaliza.
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as sombras de begĂ´nia
Bruna Moraes “Ele tirou o meu poder.”
B
egônia é uma mulher de poucas palavras, mas também muito expressiva. Com as mãos inquietas sobre o colo, ela inicia o seu relato. Visivelmente tensa, a moça conta que tudo começou com um brilho de notificação em seu celular. A notificação se tratava de um torpedo SMS enviado por B., que propunha um convite a ela, “ele me chamou para sair e eu acabei matando aula para o encontrar em uma praça”. lembra, com a voz trêmula. A mulher segue dizendo que não se recorda de como ou quando conheceu o jovem, uma vez que eles nunca foram amigos, apenas conhecidos. Tudo o que ela sabia, era que ele havia acabado de terminar o seu relacionamento. Quando se encontraram, conversaram por um tempo, até que o garoto interrompesse o diálogo para propor a Begônia que o acompanhasse até a sua residência, “ele me chamou para ir na casa dele para me apresentar as ilustrações que ele fazia. Quando eu entrei lá, ele começou a flertar comigo aos poucos”, conta. Com a fala anasalada, a moça relembra que a princípio tudo ia bem e que ela estava entretida com os desenhos de B., mas isso durou pouco. “Tudo ficou muito silencioso e eu senti um frio estranhona barriga”. O silêncio foi cortado por um beijo roubado que a princípio foi bem-vindo pela flor, porém B. queria mais. “Ele queria transar comigo, mas eu disse não. Então ele ficou em cima de mim na cama e disse que era para eu ficar quieta para que ninguém da casa dele ouvisse.” Relembra, enquanto penteia nervosamente o cabelo com os dedos. Em seguida, Begônia conta que ele arrancou com força toda a sua roupa e a penetrou de forma bruta e dolorosa. Ela permaneceu imóvel, desconfortável e extremamente perturbada com a situação, “ele era muito pesado”, relembra. Ela segue o relato alegando não ter gritado ou pedido para que ele parasse, pois se sentia vulnerável e assustada demais com o que estava acontecendo. Begônia não tinha consciência na época de que a situação se tratava de um estupro, mas sentia em seu interior que aquilo era errado e recorda de ter pensado durante o ato “por que ele faria isso?”.
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Quando B. finalizou, não permitiu que Begônia saísse de sua casa tão cedo. “Por algum motivo, ele não me deixou ir embora. Foi muito desconfortável porque depois de tudo que aconteceu, ficou um silencio muito grande entre a gente e enquanto ele fumava na cama dele, eu encarava a minha imagem num espelho que tinha no chão. Foi só depois do meu pai ter me ligado a noite que ele me deixou ir” Na volta para casa, Begônia caminhou sentindo um enorme peso sobre si, ela conta que fazia parte do trajeto passar em frente a escola onde estudava. Ela lembra de ter avistado vários estudantes e entre eles, sua melhor amiga.“Eu a vi dentro do carro com o pai e fiquei com vontade de correr para abraça-la e contar tudo para ela. Eu só conseguia pensar que eu deveria ter ido a escola e que a aula tinha sido maravilhosa”, desabafa. Ela segue o relato dizendo que a volta para casa foi difícil, mas que o dia seguinte foi ainda pior, “passei o dia inteiro me sentindo mal”. Ela conta que ficou sem hematomas, mas admite ter sentido muita dor. Angustiada, a moça relembra que depois do abuso que sofreu, teve muita dificuldade em se relacionar com outros homens. “Eu não queria ficar sozinha com nenhum, tanto que quando eu conheci o meu atual marido, a gente só se encontrava em locais publicos porque eu não conseguia imaginar como seria ficar em um quarto ou em qualquer outro lugar fechado com ele, demorou muito para que confiasse nele”. Quando perguntada se ainda consegue manter relações sexuais de forma natural, ela prontamente nega com a cabeça “Meu marido é carinhoso e eu gosto disso, se passar desse ponto, eu vou me sentir muito desconfortável”, admite. Durante quase três anos ela não contou a ninguém o que havia acontecido naquela noite, foi somente após um suspiro de coragem que ela conseguiu confidenciar o ocorrido para sua melhor amiga. Esse caso nunca chegou às autoridades, Begônia explica que demorou muito tempo para entender o que havia acontecido. Refletindo sobre suas angústias, Begônia afirma que essas lembranças a entristecem muito e que tudo “parece um machucado que nunca vai sarar”. Ela conta que, em situações corriqueiras, como
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quando está limpando a sua casa, alguns flashes sobre o estupro persistem em preencher sua mente. “Eu começo a pensar nisso e eu vou me emergindo, aí eu começo a sentir como se eu fosse um lixo, ele tirou o meu poder. Eu achei que isso nunca fosse acontecer comigo.”, declara em tom de revolta. Elevando o tom de voz, a moça, visivelmente inconformada, salienta que o estupro pode vir de qualquer um. “Não foi nada do tipo: ‘A pessoa pegou você no meio da rua e arrastou você para o mato’, não, porque ele chegou em mim dizendo: ‘Vamos ali em casa para eu te mostrar uns desenhos’, então eu nunca iria imaginar que algo assim fosse acontecer”. A flor admite que sua paz foi tirada por saber que essa situação é irreversível, “não tem solução, não dá para voltar atrás”, lamenta. Por fim, Begônia declara, “eu não sei se eu fui a única pessoa, não sei se existiram outras, mas eu espero que ele nunca mais machuque ningúem”.
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o cosmo do amor
Bruna Moraes “Quem abusa de uma criança não é um monstro, mas é um pai, um tio, um padrasto.”
V
ioleta é uma mulher elegante, sempre atenciosa, observadora e preocupada com às pessoas à sua volta. Imponente, a flor de 49 anos se entrega de corpo e alma à sua família, composta por seu esposo e suas três filhas, Azaleia a mais velha, Camélia a do meio e Gardênia, a caçula. Para Violeta, a família é o que há de mais importante na vida. Sua carreira, que ascendeu desde cedo, foi interrompida após o nascimento de sua primogênita. “Se a gente tem que ser alguma coisa nessa vida, eu já fui. Eu já fui famosa, cantora, empresária. Mas, uma coisa que eu nunca quero deixar de ser, é membro atuante de uma família”, afirma. Ela estreou nos holofotes durante a década de 70, onde foi bebê Johnson & Johnson. Anos mais tarde, fez parte de dois grupos musicais que se tornaram muito populares no Brasil nos anos 1980. Deixando a carreira musical, a mulher realiza-se como empresária, para então tornar-se administradora de sua própria casa noturna paulista, que chegou a receber pessoas célebres, como Madonna. Embora tivesse atingido o ápice de sua vida profissional, Violeta só ficou satisfeita quando concretizou sua maior realização pessoal, conceber uma família. Embora a mulher tenha conquistado tudo que a maioria das pessoas almejam, como fama e uma rápida ascensão profissional, Violeta nunca esteve confortável com tudo aquilo. Para ela, o estrelato não foi saudável. De acordo com a flor, família sempre foi algo muito importante, isto porque, sua primeira decepção teve início dentro de casa, com a própria mãe. Sentada em uma sala arejada, invadida pelo canto de seu pequeno passáro vermelho, ela se reconecta com as memórias mais dolorosas que tem. Antes de começar o relato, Violeta repete, emocionada, uma citação que, sempre que tem a oportunidade, diz a suas filhas, para que nunca achem que abusadores são seres extremamente singulares e fantasiosos. “Quem abusa de uma criança não é um monstro, mas sim um pai, um tio, um padrasto. O que devíamos ensinar para a criança é
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que monstros são fantasiosos, são ‘bicho papão’. Eu demorei para assimilar que os meus abusadores não eram monstros, mas gente comum. São profissionais, pessoas importantes na sociedade, gente que tem família. Abusadores não são monstros, não devemos dizer isso para uma criança. Porque não têm nada de fantasia. A realidade tem cheiro, tem calor. Um monstro, se a criança grita pela mãe, desaparece”, explica. Violeta lembra que, quando tinha entre 4 e 5 anos, sofreu um pequeno acidente doméstico que a fez perder os dentes da frente. Desesperada pela situação, sua mãe levou-a até um cirurgião dentista. Minutos depois que já estavam no consultório, a mãe deixou a sala para ir ao banheiro. Ela não sabia, mas ali começava uma das lembranças mais traumáticas de sua vida. “Quando ela foi ao banheiro, ele subiu em cima de mim e eu provavelmente achava que era parte do tratamento”, relembra. Violeta, que não entendia o que estava acontecendo, esperou que a mãe voltasse para a sala, em choque, sem saber como agir. Como era muito pequena, Violeta lembra-se apenas de flashes desse primeiro abuso, como a roupa que usava no dia do acontecimento. “Ela voltou e ele ainda estava em cima de mim. Minha mãe não falou nada, eu estava com uma sainha de crochê amarela. Ela abaixou a minha sainha, pegou a minha mão e me levou embora”, pontua, aos prantos. A mulher explica que, após o episódio, involuntariamente, não confiou mais em sua mãe da mesma maneira. “Ela não falou nada para mim, eu não sabia o que estava acontecendo”. A flor, que se orgulha muito de ser uma mãe presente e declaradamente superprotetora, afirma que muito dessa característica se deve a esse episódio que, como conta, foi a primeira vez que se sentiu sozinha e desprotegida. Mesmo estando ali, sua mãe não a defendeu, nem a alertou caso, futuramente, outra pessoa tentasse lhe fazer algo. “Para uma criança, o primeiro porto seguro é a mãe. É ela que vai te livrar dos perigos, que vai te apoiar. Eu não tive isso. E, para minha reinvenção, eu queria ser essa mãe, a mãe que protege, a mãe que apoia. Sempre ensinei que o corpo de minhas filhas é delas, não do tio, do pai ou de
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um terceiro que quer tocá-lo, mas delas”, declara. Pouco tempo após o primeiro abuso, Violeta mudou-se com a família para uma pequena vila, onde a vizinhança toda era muito próxima. As crianças brincavam juntas e, pelas manhãs, as famílias se reuniam para tomar café. Ela lembra que adorava a rotina do lugar, afirmando que se sentia acolhida, mas isso não durou muito tempo. Durante a entrevista, Violeta fica em silêncio e o único som ouvido é o de seu pássaro, recluso em uma pequena gaiola, presa na varanda da casa. O detalhe não passa despercebido, pois fazer gaiolas era a profissão de seu segundo abusador, que morava em uma casa amarela, na vila que Violeta tanto amava. Ele era casado com a Sra. V., uma vizinha “muito querida e carinhosa”. Porém, ir para a casa da Sra. V., significava ver o marido dela, o Sr. F.. Violeta imersa em suas lágrimas relembra que na casa dessa vizinha, enquanto todos tomavam café, ele a convidava para “ver as novas gaiolas”. Ficando sozinho com ela, ele a fazia tocar em seu órgão genital e estimulá-lo até a ejaculação. A menina na época, com cerca de cinco anos, recusava-se a acompanhá-lo, porém, sua mãe, em nome das boas maneiras, a obrigava, afirmando ser falta de educação recusar o convite. “Todas as vezes que o café da manhã era na casa Sra.V., eu já sentia um frio na minha espinha”, relembra, com a voz trêmula. Após uma pausa, Violeta interrompe a viagem no tempo para salientar que quando uma criança fala não, sua oposição deve ser respeitada. “Eu não queria ir, porque eu sabia o que era ir ver as gaiolas do Sr.F., era ele colocar o pênis para fora e fazer eu tocar, até ele ter o prazer dele”. Os abusos eram frequentes e duraram até que Violeta e sua família se mudassem de bairro. “Se a gente tomasse café três vezes na semana na casa da Sra.V, as três vezes ele me chamava para ver as gaiolas”, desabafa. Durante o relato, Violeta encolhe-se na cadeira, como se sentisse a impotência e a vulnerabilidade da menina que, com menos de uma década, já havia sido abusada, negligenciada e ultrajada muitas vezes. Aos prantos, a mulher olhava para suas mãos em seu colo, revivendo o sentimento da menina violada.
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Anos mais tarde, a flor retornou ao seu antigo bairro com a mãe para rever seus antigos vizinhos. Entre uma visita e outra, um dos moradores da época lhe deu a notícia de que o Sr.F havia falecido. Em um ato espontâneo, Violeta soltou um suspiro de alívio. Chocado, ele perguntou o motivo. Encorajada pela idade e maturidade, a moça começou a relatar os abusos para o homem, que ouviu toda a história em silêncio e incrédulo. A mãe de Violeta, que estava na sala, começou a contestar o porquê de nunca ter dito nada. Consternada, Violeta desabafou “o que que eu ia falar? A primeira vez que você me viu ser abusada, simplesmente abaixou meu vestido, sacudiu, deu a mão para mim e me levou embora. Por que que eu ia falar alguma coisa para você? ”, retrucou, embebida pela indignação e revolta, guardadas há muito tempo. Conversando com outras pessoas, ela descobriu mais tarde que o Sr.F. não abusava somente dela, mas de muitas outras crianças e nenhuma jamais se manifestou a respeito. Violeta acredita que isso se deva a crença de que abusadores são bandidos, quando, na verdade, são cidadãos politizados, com família, profissão; não monstros. “Depois da minha primeira experiência, eu achava que ia ser sempre daquele jeito “sacode a saia e vamos embora, porque você nasceu para ser usada para isso”. Em decorrência desses traumas, Violeta cresceu com medo dos homens, com medo de sexo, com medo de se relacionar com pessoas que a fizessem mal. Sorrindo, ela lembra que só deu seu primeiro beijo aos dezesseis anos. “Foi só um selinho e, depois, dei um tapa no rosto dele, por achar aquilo um grande desrespeito”. Ela afirma que teve o privilégio de ser uma jovem popular e querida na fase escolar, mas sempre evitava estar com meninos e, aos 21 anos, ainda era virgem. Foi com essa idade que começou a namorar pela primeira vez, J., que era quase vinte anos mais velho, a princípio ele dizia respeitar a escolha da mulher de casar virgem, mas, depois de algum tempo, começou a cobrar dizendo que homens “precisavam disso” e, caso ele não tivesse com ela, teria que “procurar na rua”. “Ele me pressionava falando que ele era um homem maduro e que ele já tinha a
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vida sexual; não como a minha, já que eu era virgem ainda. Ele me pressionava muito”. A flor explica que não contou a ninguém sobre os abusos passados que sofrera, nem para J., porque não sentia confortável em falar sobre o assunto. Para ela, as pessoas não iam entender. “A sociedade tratava como patologia e geralmente a culpada era a mulher. ‘Ah, porque você estava de sainha’, ‘Porque você é muito dada’”, acrescenta. Com muita pressão, Violeta decidiu viajar com J. e um grupo de amigos para praia em um final de semana. Durante o tempo em que estiveram juntos, ele continuava forçando-a. “Mas você tem que entender que eu sou um homem feito e que se eu não fizer com você eu vou te trair, eu vou procurar outra na rua”, ele dizia. Violeta afirma que tinha um corpo bem desenvolvido e que ele, em alguns momentos, duvidava que ela era realmente virgem. Depois de muitas tentativas de convencê-la a ter relações, durante a viagem, J. a estuprou e, desse estupro, Violeta engravidou de sua primeira filha, Azaleia. Na época em que tudo aconteceu, a flor não tinha consciência de que tinha sido violentada. Os outros abusos eram muito claros para ela, principalmente por ser uma criança, mas o estupro, ela só foi entender mais tarde, depois que sua segunda filha a explicou. “Eu só fui aprender com a minha filha, quando ela começou a estudar e me disse que o que aconteceu comigo foi um estupro, porque eu não tinha consentido, eu não queria, eu não estava preparada”. Grávida, Violeta terminou seu relacionamento com J. e deixou sua carreira artística de lado, começando um negócio próprio em São Paulo, uma casa noturna. J. não sumiu de sua vida por completo, já que tornou-se seu sócio no novo empreendimento. Embora houvesse uma pressão muito grande para que ela abortasse, Violeta decidiu levar a gravidez até o final. “Eu descobri a gravidez bem no começo, depois que sofri um pequeno acidente de carro e o médico me disse ‘você está bem e seu bebê também’. Naquele momento só conseguia pensar ‘o que vai ser de mim? ’”, relembra. O homem se propôs a assumir a criança, porém Violeta encarou a gravidez como “produção independente”. “Eu nunca contei para nin-
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guém o que realmente aconteceu. Para as pessoas, era uma produção independente, que era muito discutida na época”, conta. A menina nasceu saudável e Violeta readequou sua vida em prol de sua filha. Cinco anos mais tarde, a mulher, que sempre sonhou em ter uma família, sentia necessidade de ter outro filho. Sendo assim, criou coragem e, como nunca tinha tido relações sexuais com outro homem, procurou por J. novamente. “Eu queria que a minha filha tivesse um irmão e como eu não era uma pessoa promíscua, sem namorado nem nada, além do sexo não ser nada fácil para mim, eu o procurei e disse que tinha feito todos os exames, estava com a saúde em dia. ‘Eu não quero ter um filho aqui e outro ali, eu queria saber se você pode me ajudar, porque vai ser no mesmo esquema, nunca vou te cobrar nada’”, pontua. J. aceitou e Violeta engravidou de sua segunda filha, Camélia, que segundo ela, se fosse indígena, a menina chamaria “Desejada”, porque ela realmente queria trazê-la ao mundo. Com duas filhas, Violeta não estava buscando mais um grande amor, mas, desta vez, o destino sorriu e a mulher, que sempre havia sido abusada por homens, encontrou seu atual marido, F. “Eu ainda amamentava a Camélia e tínhamos uma turma de amigos e sempre estávamos juntos. E, graças a eles, conheci meu marido, que tinha acabado de voltar do Canadá ”, diz, sorrindo. Ela conta que ele tentou aproximar-se dela, mas ela estava tão concentrada com seu negócio e com suas duas filhas que demorou um tempo para perceber suas investidas. “Ele sabia dos meus sonhos de ter família, cachorro, casa para limpar, e ele foi me seduzindo aos poucos”, brinca. Ela lembra que ele se declarou de uma maneira muito diferente, dizendo que não queria mais a amizade dela. “‘Eu não quero mais ser seu amigo’, ele me disse. Eu respondi para que ele me perdoasse, caso eu tivesse feito algo de errado. Então ele me respondeu: ‘Eu quero casar com você’. Na hora, falei que a gente tinha que namorar e noivar antes. E foi isso que fizemos, tudo em oito meses. Foi tudo como devia ser, com daminha de honra e vestido de noiva; meu sonho de família finalmente aconteceu”, conclui. Nessa nova etapa, a mulher conta que superou muitos traumas e
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que F. foi e é o melhor homem que poderia ter surgido em sua vida. Graças a harmonia do casal, eles tiveram mais uma filha, Gardênia, hoje com 15 anos. Felizes com a nova etapa, eles resolveram ajudar outras pessoas, pois Violeta sabe o quão importante é sentir-se acolhida por alguém. “Não era fácil ter intimidade comigo, então a gente foi estudar um pouco e, com isso, começamos a ajudar muitas mulheres em seus casamentos que não davam certo. Fomos trabalhar com casais e estudamos com um médico e uma sexóloga de Curitiba. Eu achava que estava ajudando aquelas mulheres, mas, na verdade, eu estava me curando”. Violeta realizou esse trabalho até o começo de 2018, mas precisou interrompê-lo por problemas de saúde. Por fim, quando questionada sobre o que deseja para todos os homens que lhe fizeram mal, Violeta concentra-se nas flores no centro da mesa e, segurando as lágrimas, diz que a vida se encarrega disso. “A vida é uma semeadura. Será que eles viram o que semearam? Que todos os dentistas, Srs. F. e todos os J. vivam as semeaduras que quiseram para si. Nada menos que isso”, finaliza, levantando-se da mesa para abraçar às suas filhas.
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violência física
a flor de hiroshima
Bruna Moraes “Apesar de estar segurando um cacto, a pessoa mais forte não é o cacto, sou eu.”
S
eus olhos são expressivos e delineados. A boca, pintada de vermelho, contrasta com a pele clara e os cabelos negros. Margarida é delicada, como a Branca de Neve tatuada em seu braço direito. Os desenhos marcados em sua pele, aliás, são uma das coisas favoritas da moça, que atua para alguns amigos como modelo de tatuagens. Dentre as figuras espalhadas pelo corpo, a menina abraçada a um cacto é a que carrega mais significado para ela, isso porque o desenho representa a si mesma perante o seu atual relacionamento com S. Ela explica, com a feição triste, que sempre foi muito paciente com o seu parceiro. Ele, por outro lado, “sempre foi uma pessoa muito difícil de lidar”. Margarida conta que apesar dessa tatuagem representar resistência, o desenho já a abalou muito no passado, sendo um dos principais motivos de suas crises de choro. “Apesar de tudo, eu gosto muito dela, porque quando eu a olho, eu vejo que a menina está dentro do vaso, então ela criou raízes, significa que eu sou muito forte, apesar de estar segurando um cacto, a pessoa mais forte não é o cacto, sou eu”, explica. Sob uma luz fraca em um café movimentado no centro de São Paulo, a mulher de 29 anos esclarece que apesar de S. ser o seu caso mais recente de abuso, não é o primeiro e que tudo começou com o abandono de seu pai. “A minha relação com o meu pai sempre foi muito difícil, eu sempre fui muito apegada a ele desde criança, mas isso é o que a minha mãe diz, porque eu não lembro muito. A relação deles sempre foi muito conturbada. Ele trancava a gente em casa, porque a achava muito bonita. Eu tinha uns quatro ou cinco anos quando minha mãe tentou fugir e, depois disso, ele resolveu abandonar a gente. Meu pai foi a primeira pessoa que me abandonou e nunca voltou atrás, nunca foi me visitar nem nada”, conta, com a voz trêmula. Depois desse dia, ela passou a se perguntar se o motivo do abandono era ela. “Eu cresci com essa falta e ele teve outra família, outra filha e dessa filha ele cuidou, de mim não”, relembra, angustiada. Ela afirma que na época, chegou a quebrar a porta de vidro de sua
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casa, ao bater nela com força, desejando a volta do pai. “É a única lembrança que eu tenho, porque eu queria tanto que ele voltasse que eu bati e bati até quebrá-la”. Margarida salienta que sofre com essa ausência até hoje, “eu nunca admiti para todo mundo que eu tinha problema com isso, mas para mim, o problema estava lá. Eu me sentia culpada por ele ter me deixado”. Nos tempos de escola, a mulher comenta nunca ter tido nenhum namorado porque segundo os padrões, não era bonita o bastante. Ela se lembra, no entanto, de sentir um enorme desejo de suprir a falta deixada pelo pai, “eu vivia com esse negócio de que eu precisava ser aceita por homem”. Logo após finalizar seus estudos, “finalmente” conseguiu o seu primeiro namorado e, por ser o seu primeiro relacionamento sério, ficou maravilhada com a forma superprotetora que M. a tratava. “Ele era muito protetor e eu achava isso muito bonito. Quando a gente não tem a presença de um pai, a gente leva isso para a vida inteira e acha que precisa ser protegida. Mas a proteção que o M. tinha comigo na verdade, era doentia”, desabafa. Assim que o casal completou dois meses de namoro, M. deu a Margarida uma aliança de noivado, “eu aceitei”, confessa, enquanto ri. A moça alega que, a partir desse ponto da relação, os abusos ficaram mais nítidos para ela. “Na época eu era virgem e na minha cabeça, eu queria casar assim, então eu não dava nenhum tipo de liberdade para ele. Porém, ele forçava muito e me chantageava com: ‘ah, eu te dei uma blusa e agora você não vai fazer isso por mim?’”. Ela afirma que, apesar das chantagens, nunca permitiu que ele consumasse a relação, mas diz que sempre foi muito ingênua durante o tempo em que ficaram juntos. “Eu nunca tinha ido ao cinema, ele me levou pela primeira vez e desde então eu achava que estava em dívida com ele e que se eu não fizesse o que ele queria, ele iria embora também”. A gota d’água para Margarida foi no velório de seu primo, com quem era muito apegada. “A gente foi para o velório e eu beijei o meu primo morto e daí o M. começou a fazer um escândalo, dizendo que não beijaria alguém que tinha beijado um morto, isso na frente da minha família. Ele saiu correndo, fazendo um barraco e eu tive
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que ir atrás dele. Eu não sei explicar, mas foi o pior dia da minha vida, porque eu tive que me desculpar por um erro dele”, relembra, inquieta. A moça ainda conta que enfrentou uma de suas piores crises de depressão nesse período, chegando a ficar com falhas em seu cabelo, devido a doença. Em consequência do ciúme excessivo do rapaz, Margarida foi manipulada a se afastar de sua família e também do emprego que tinha na época.“Ele começou a me cercar, a colocar coisas na minha cabeça, a falar que a minha família não era boa para mim e que a minha patroa não queria o meu bem”, relata. Suspirando, ela confessa que não sabia o que era um relacionamento abusivo, mas sentia que “tinha alguma coisa errada”, principalmente porque os seus colegas de trabalho a alertavam sobre isso. Mas, após uma série de acontecimentos traumáticos, a moça diz que finalmente conseguiu dar um fim a relação. Ele, no entanto, não soube lidar com a decisão da moça, chegando a ameaçá-la de morte com uma arma de fogo, em sua casa. “Ele foi com uma arma na porta da minha casa dizendo: ‘se você não ficar comigo, eu vou te matar’, então eu disse: ‘eu não vou voltar com você’ e ele retrucou: ‘então eu vou me matar na sua frente’. Eu comecei a gritar, meu padrasto apareceu e a gente foi para a delegacia, eu tive medida protetiva, mas ele me persegue até hoje”, desabafa. Visivelmente tensa, Margarida conta que o rapaz não foi preso pois segundo a delegacia “se não tem flagrante, não pode prender”, porém M. continuou a persegui-la. “No início, quando eu comecei a trabalhar novamente, ele ficava do outro lado da rua me olhando e a delegacia era na mesma rua, então eu ia lá, denunciava, mas a polícia parecia não ligar”. Depois de conseguir a medida protetiva ela ressalta que voltou para a delegacia mais quatro vezes. “Era sempre a mesma coisa: ‘mas ele te ameaçou?’, ‘te apontou uma arma?’, ‘alguém viu?’, fora que você fica quatro horas esperando só para responder perguntas rasas e então você diz não para todas e eles dizem: ‘então não tem o que fazer’”. Dez anos se passaram desde o término do namoro e Margarida ainda recebe mensagens dele, “ele nunca desistiu e já tentou todo tipo de aproximação, ele é a pessoa que eu mais tenho medo na vida.”
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Depois do término com M., ela conta que sentiu muita dificuldade em conseguir engatar um novo relacionamento, “passei muito tempo sozinha porque eu fiquei com trauma, não tem como não ficar”, foi somente aos vinte e dois anos que se sentiu pronta. Ela iniciou um relacionamento com K., que nas palavras de Margarida, chegou a ser tão tóxico quanto o anterior. “Começou com uma amizade e a gente nunca pensou em namorar nem nada, só que essa amizade foi crescendo e crescendo, então a gente começou a namorar”, declara, lembrando-se de que o primeiro ano do relacionamento foi um dos melhores anos de sua vida amorosa. “Tudo o que eu queria ele me dava, não material, mas sim carinho e atenção”, ela conta que a princípio ambos eram um casal digno de causar inveja, “mas aos poucos eu comecei a sentir o peso”, declara. Os abusos de K. se manifestaram logo após Margarida afirmar que não se sentia à vontade para ter relações sexuais, “eu era virgem e não conseguia de jeito nenhum, até que um dia eu consegui, só que não foi bom, nunca foi bom e então eu comecei a criar um bloqueio nisso e passei a fazer por obrigação, sempre doía muito”. Em decorrência disso, Margarida acabou ficando muito doente, uma vez que K. havia machucado o seu útero. Devido a isso, a moça afirma que precisou realizar uma cauterização para tratar os machucados internos. “Como eu posso dizer, eu era abusada, mas eu consentia, porque eu não queria perder o meu namorado, então eu deixava, só que isso me causou doenças gravíssimas, chegou um momento que eu nem conseguia urinar”. Durante um ano e meio Margarida não podia ter relações sexuais devido aos ferimentos, mas de acordo com ela “ele ainda forçava a barra várias vezes e quando eu dizia não, ele me trancava no banheiro. Eu já fiquei um dia inteiro trancada, não só uma vez, nem duas, mas várias”. Nessas situações, ele retirava o celular dela, alegando que o objeto era um presente dele e que, enquanto estivesse trancada, não deveria conversar com ninguém, “eu tinha várias crises e ele não me tirava de lá, ele só me tirava quando queria, e dizia: ‘Ah, tá mais calma agora? então pode sair’, por incrível que pareça, eu não fazia nada, absolutamente nada”. Esses abusos se tornaram cada vez mais recorrentes na vida da mu-
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lher, caso ela negasse ter relações sexuais com K., terminava o dia presa no banheiro por tempo indeterminado. Se “aceitasse”, era machucada pelo companheiro. No terceiro e último ano de relacionamento, K. pediu Margarida em casamento, “eu carentíssima, aceitei. Pensei que casando ele fosse melhorar”. Tempo depois do pedido, ela relembra de uma das noites mais humilhantes de sua vida - que aconteceu durante uma viagem em família para a cidade de Guararema - São Paulo. Margarida resolveu passar o final de semana no sítio de sua tia, acompanhada dela, de suas primas, amigos dos parentes e seu noivo. Chegando ao destino, a tia de Margarida pediu aos jovens que se comportassem. K., porém, pareceu não entender bem o recado, “ele levou cigarro e narguilé, começou a beber e fumar muito”, lembra. Nervosa, a moça declara que pediu a ele que parasse e K. concordou em se comportar, mas não por muito tempo. “Eu estava sentada na rede com as minhas primas e ele começou a falar que tinha me traido, muito alto, para todo mundo escutar. Eu fiquei com vergonha e disse: ‘não faz isso’, ele gritava: ‘Eu transei com a fulana, você conhece fulana?’ falou com a minha prima: ‘Então, transei com ela’. Eu fiquei chocada, porque eu não sabia”. A moça afirma que desconfiava de uma possível traição, mas nunca pode comprovar, já que K. a proibia de usar redes sociais e aplicativos de bate-papo. Depois dos xingamentos, Margarida conta que chamou K. em um canto afastado dos demais para pedir que ele que parasse de insultá-la, pois a situação era muito vergonhosa. Ela segue dizendo que todos na chácara se sentiram desconfortáveis e logo concordaram em ir dormir. K. concordou e assim, foram para os seus quartos. No meio da noite Margarida resolveu sair para tomar um ar em cima de um barranco que dava vista para um lago. “Eu estava olhando e pensando, de repente ele chegou em mim e disse: ‘Você quer me dar sermão, mas você é a maior vagabunda’. Sabe quando você só fica perplexa?” Em seguida, K. segurou Margarida pelo pescoço e a jogou com força sobre uma mesa de bilhar próxima a eles e em seguida, a desferiu uma sequência de socos no rosto, “eu não gritei porque fiquei
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com vergonha, tinha muita gente que eu não conhecia direito para pedir ajuda, então ele começou a me bater e apertar o meu pescoço. Ele me levou para a beira do barranco e falou: ‘Eu vou te jogar daqui porque você é uma vagabunda, você não presta’. Então a minha prima apareceu e ele soltou o meu pescoço”, relembra. Quando sua prima a questionou sobre o que estava acontecendo, Margarida, com o rosto avermelhado, respondeu que estava tudo bem. “É uma situação que você não pode falar, me dizem: ‘Ah, você deveria ter falado’ mas você não consegue dizer nada, eu só fiquei repetindo: ‘Está tudo bem, a gente só estava conversando’, só que ninguém acreditou naquilo e quando eu entrei, comecei a chorar e a minha prima falou: ‘Ele bateu em você, não é? Porque todo mundo escutou’, e eu confirmei, então ela me chamou para dormir com ela”. Mesmo assim, K. invadiu o quarto chamando por ela, alegando que deveria dormir com ele, por ser “sua mulher”. Margarida relata que seus familiares o trancaram para fora, para que ele deixasse de causar transtorno. “Ele começou a bater nas portas, empurrou a minha prima que estava grávida e disse que ia embora” Em seguida, ele pediu o celular e a aliança de volta para Margarida, mas a moça se recusou a entregar o aparelho. K. tentou agredi-la novamente, mas foi impedido pela tia da moça que havia despertado em meio a confusão, a tia então pediu para que ele fosse embora do local. No dia seguinte, o pai de K. apareceu na chácara para conversar com Margarida, “o pai dele era policial e foi até lá falar que K. só estava bêbado, que não era pra eu denunciar. Ele conversou comigo por horas e por fim, eu falei que não iria fazer nada. E ficou por isso mesmo”. Com vergonha de tudo que aconteceu, a moça decidiu dar um fim a relação, mesmo com K. insistindo para reatar com ela. “Eu não cedi porque nessa mesma época, conheci o S., meu atual namorado, então eu só falei que não iria mais sair com ele. K. me pediu perdão e depois disso nunca mais me procurou, só que ele conta para as pessoas que eu nunca apanhei, que isso era invenção da minha cabeça e que eu inventei toda a história. Para piorar tudo, as minhas primas
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que me viram toda machucada, hoje acreditam nele”, desabafa. Quando questionada sobre como se sentiu após o término, ela reflete “eu acho que se ele não tivesse me batido eu teria me casado com ele, apesar de todos os abusos”, conta. Para Margarida, a falta de informações sobre o que é um relacionamento abusivo a fez crer que tudo estava normal. “Precisou ele me agredir pra eu perceber que, se eu casasse com ele, ele iria surtar e me matar”, conclui. De volta ao presente, Margarida se emociona e após soltar um longo suspiro, conta que a sua relação com S., é de longe a que mais a feriu psicologicamente. “Eu consigo falar para vocês detalhes de como eu apanhei, mas eu não consigo contar detalhes da minha relação com o S., tem muita coisa que eu não consigo contar, porque não sai, eu acho que foi a relação que mais doeu porque ele foi quem eu mais amei”, desabafa. Ela conta que o conheceu pouco tempo depois de terminar com K.“Eu nunca vou esquecer, ele me mandou um e-mail no dia 17 de setembro”, na mensagem ele pedia o número de telefone da moça em meio a elogios sobre a sua beleza. Ela lembra que se sentiu muito lisonjeada, “eu acabei passando meu número e a gente começou a conversar todos os dias”. Porém, os pequenos problemas não demoraram a surgir, “começamos a sair todo o final de semana, mas não namorávamos, ele não queria o rótulo de namorados porque ele ficava com outras pessoas também, mas eu achava que não”, explica. Margarida reforça que durante seis meses, ele sempre a incentivou a fazer coisas que os seus ex-namorados não permitiam que ela fizesse, “ele me incentivava a ser livre, a fazer coisas sozinha, me incentivou a entrar na faculdade e nossa, para mim ele era um príncipe. ‘Como assim ele não quer me prender, como assim ele quer que eu seja livre e independente?’ Eu pensava: ‘Esse é o homem certo para mim’”, relembra. Depois de alguns meses juntos, ele comentou que faria um intercâmbio de dois anos para a Irlanda e questionou se ela desejaria manter a relação, mesmo com a distância os separando. Apaixonada, Margarida prontamente respondeu que sim. Com a ida de S. para o outro país, a moça afirma que permaneceu
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fiel a ele durante todo o tempo em que ficaram afastados, mas que ele aparentava não fazer o mesmo. “No começo, ele me falava onde estava e o que estava fazendo, mas então ele começou a sumir e eu perguntava: ‘Você tá saindo com alguém?’ e ele negava.” Devido às suspeitas de Margarida, S. a bloqueou em todas as suas redes sociais e também a humilhou repetidas vezes, “eu sofri muito psicologicamente, vocês não sabem o que é a manipulação de um homem na sua cabeça, eu não sei explicar, mas nesse relacionamento, eu sofri muito. Eu chorava todos os dias. Ele fazia eu me sentir a pior pessoa do mundo, eu não tinha mais autoestima, eu implorava para ele vir falar comigo, ligava várias vezes e ele desligava na minha cara, ele me bloqueava e depois desbloqueava e, no dia seguinte, vinha com: ‘E aí? Está mais calma?’ ele me fazia de gato e sapato”, admite com os olhos marejados. Ela recorda que quando ele estava prestes a retornar para o Brasil, ambos voltaram a conversar regularmente e durante a reaproximação, S. a pediu em namoro. Chorando, Margarida diz que aceitou, “eu esperei isso a vida inteira”, confessa. Abalada, a moça enfatiza que todos os seus amigos foram contra a sua decisão, “todo mundo à minha volta via o que ele estava fazendo comigo, só eu que não. Eu dizia: ‘é porque eu amo muito ele, então vou aguentar’”. Porém, quando S. retornou, ela não foi recebida da maneira que esperava, “ele ainda era estranho comigo, mas mesmo assim eu disse para mim mesma: ‘Não, se ele me pediu em namoro, eu vou continuar’, porém S. me desmerecia e me humilhava muito”. Com a voz anasalada, ela se lembra de quando encontrou uma carta em cima da mesa na casa de S. “Eu abri e era a carta romantica de uma menina que ele tinha conhecido na Irlanda, então eu questionei se eles namoravam e ele disse: ‘não, eu nunca fiz nada, é só uma carta’ e negou, negou e negou”. Em seguida, Margarida procurou pela menina da carta no Instagram, a fim de esclarecer os fatos. “Eu sabia quem era ela desde o começo, então mandei uma mensagem dizendo: ‘Eu não sou sua inimiga, eu preciso que você me ajude’, então eu contei o que eu tinha achado e ela me contou a história inteira.” Durante a conversa, foi esclarecido que S. namorava as duas ao mesmo tempo, porém, nenhuma sabia da outra até então. “S. dizia
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para ela que eu era uma ex com sérios problemas de depressão e que só ficava comigo por dó, pois caso não ficasse, eu iria me matar. Mentira, porque eu nunca disse essas coisas”, afirma. Margarida conta que, em meio à confissão, a menina esclareceu que havia terminado com S. porque havia sido traída também. A flor estava no trabalho quando descobriu toda a verdade e decidiu telefonar para ele, dizendo que havia conversado com a garota da carta. “Ele não falou uma palavra e eu fiquei em choque, então eu disse: ‘Você não vai falar nada?’ sabe quando tudo o que você imagina desmorona? Eu fiquei dois anos esperando alguém, para essa pessoa chegar no Brasil e me quebrar inteira. Ele falava que iria se casar com a menina, ela me mandou prints, ele era muito carinhoso com ela e comigo não. Não tem explicação”, admite. Depois dessa discussão, Margarida resolveu terminar o namoro e em meio a isso acabou adoecendo porque na época havia parado de tomar seus antidepressivos, “só que você não pode simplesmente parar, é muito perigoso. Eu fiquei perturbada e doente mesmo, de ter que parar no hospital, e quem foi lá? Ele. Todas as crises que eu tive, ele foi me ajudar, todas às vezes”. Depois do ocorrido, Margaria recebeu inúmeras mensagens de S. com lamentações e promessas de mudança. Logo, eles se reaproximaram e, por fim, reataram, “o nosso relacionamento de hoje não é mais como antes, porque eu já não sou mais tão entregue a ele, mas o S. ainda mexe comigo, então eu posso dizer que eu ainda nao consegui terminar esse ciclo, ele ainda é a minha ferida super aberta”. A moça admite que, de todos os seus relacionamentos, a relação com S. é a que mais a afeta. Ela explica que S. nunca a agrediu e tão pouco a forçou fazer algo que não queria, mas o poder que ele tem sobre ela a fere muito. “Ele tem a capacidade de me enganar como nenhum dos outros conseguiu, ele sabe ser muito doce”. Atualmente, Margarida se declara totalmente descrente sobre relações plenamente saudáveis. “Se eu ficasse solteira agora, eu não iria conseguir me relacionar com mais ninguém. Eu tenho quase trinta anos, mas eu sei que eu não teria tempo, nem psicológico para me relacionar com outra pessoa, eu não tenho mais aquela disposição de
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começar ‘vou paquerar, vou sair’, não tenho mais paciência”. Quando questionada sobre o porquê de ainda estar com S., ela esclarece: “é prático para mim estar com ele, eu gosto dele, ele é bonito, ele é engraçado, inteligente, ele me dá presentes, ele é gentil”, responde, ríspida. Refletindo sobre relacionamentos de modo geral, Margarida afirma que não existem contos de fadas, como a história que tem tatuada no braço. “Não existe nenhum, se alguém te falar que existe, é mentira, você precisa ser esperta, pode amar, mas precisa ser esperta”, afirma. Quando perguntada sobre o que deseja aos homens que sempre a feriram, com os olhos marejados, Margarida não se abstém ao dizer, “meu pai se suicidou, eu só tenho a desejar coisas boas, espero que o plano que ele esteja seja muito bom, porque ele foi muito triste nesta vida”. Já sobre o seu primeiro namorado, a moça alega querer distância, “não consigo desejar coisas boas, porque eu tenho medo dele, sinceramente”. Ao seu agressor físico e segundo namorado, Margarida deseja o melhor, “ele é uma pessoa muito mesquinha que não pensa em crescer na vida, ele precisa muito de ajuda, ele apanhava muito quando era criança, a mãe dele era alcoólatra, então ele tem traumas que eu acho que ele deveria ter cuidado antes de se envolver com outras pessoas que também têm traumas, como eu”. Por fim, ela deseja a S., seu último e atual relacionamento, o melhor, “eu não quero que aconteça nada de ruim com ele, eu não quero que ele se dê mal, mas não quero ele melhor do que eu, porque quando é o caso, ele pisa em mim. É muito difícil falar sobre o S., eu não consigo dizer muito sobre dele. Lidar com traição e mentira e ainda continuar com a pessoa é um exercício muito grande que eu não desejo a ninguém”, declara.
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a rosa e o lĂrio
Anna Blancas “Amar é uma coisa muito boa e fácil e o que tínhamos era complicado e pesado.”
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a nuca, Rosa leva os dizeres “seja luz”. Os longos cabelos alaranjados brilham sob o sol, destacando seus grandes olhos castanhos, que parecem sorrir quando ela se envergonha ou ri. Embora muito desinibida e eloquente, a moça de 21 anos, logo muda de expressão, quando começa a falar sobre o relacionamento conturbado que viveu com Lírio. Era outubro de 2017 quando Rosa conseguiu um emprego em uma rede de fast food. Com seu jeito espontâneo e expansivo, logo fez amizades com os outros funcionários da loja e também, com Lírio, que a atraiu pela personalidade. “O que me chamou a atenção não foi a aparência, mas a maneira como me tratava; ela me levava chocolates e uma vez, me levou flores”, conta, sorrindo. Lírios (Amaryllis) – Todos os lírios são tóxicos em maior ou menor medida. Podem causar falência renal em gatos, até mesmo quando pequenas porções são ingeridas. As toxinas dos lírios estão presentes inclusive no pólen destas flores, e por isso, é preciso ter cuidado quando as levamos para dentro de casa6. A relação das duas foi evoluindo rapidamente mas, desde o começo, Lírio afirmou que não queria algo sério. Com isso, Rosa não nutriu muitas expectativas. “Ela sempre deixava claro que não queria nada sério. Eu tinha isso na cabeça e ficava em paz”, completa. Porém, apesar de não ter o ‘status’ de namoro, Lírio impunha que Rosa não deveria ficar com mais ninguém. Rosa, que é declaradamente lésbica, ouvia sua companheira reclamar sobre a amizade que ela tinha com seus colegas homens no trabalho. Lírio soltava palavrões e insinuava que existia algo a mais entre eles. Durante as discussões, a mulher alegava ser insegura, e por isso a “protegia tanto”. 6 Fonte:<https://www.brasil247.com/pt/saude247/saude247/270300/Belas-e-perigosas-Cuidado-com-as-flores-venenosas-elas-podem-matar.htm>
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Enquanto fala da relação, a moça lembra de um episódio em que estava conversando com outra mulher em uma rede social, Lírio começou a contestar: “O que é isso? Quem é essa? Por que você está conversando com ela? E a gente?”. Rosa tinha muito claro que sua ‘ficante’ tinha outros casos, mas esse direito era negado quando se tratava dela. A flor explica que as crises de ciúme de Lírio logo partiram para o físico. Neste momento, durante a entrevista, Rosa tirou a blusa que cobria seu pescoço e colo e, próximo ao seu ombro esquerdo, havia um pequeno roxo. “Essa marca é de uma mordida dela; isso não some e já faz muito tempo”, enfatiza. “Ela me olhava torto, me puxava de canto quando alguém vinha me cumprimentar; ela me pegava pelo braço e chegou até a me chutar”, completa. Para Lírio, a agressão parecia trivial. Rosa lembra que muitas vezes disse à companheira que não estava feliz com aquele comportamento. Durante as críticas, Lírio parecia arrependida, fazia-se de vítima e, em um curto espaço de tempo, parava. Mas logo voltavam as ‘pequenas’ agressões, que, segundo Rosa, eram corriqueiras e constantes. Como consequência das atitudes de Lírio, a moça passou a usar roupas que cobriam seus braços por inteiro, para que os roxos não ficassem visíveis. “Eu tinha, quase sempre, um roxo na frente dos braços e quatro atrás; eram as marcas dos dedos dela”. Rosa relembra de uma discussão em que Lírio começou a socar suas pernas por baixo da mesa, descontroladamente. “Eu sou muito próxima da minha irmã mais nova e sempre trocamos de roupa no quarto, sem vergonha uma da outra. Lembro que depois disso, eu fiquei quase um mês me escondendo dela, com medo que ela visse os roxos nas minhas pernas”, lembra. Rosa afirma que passou boa parte dos oito meses de relacionamento sob coação. A moça dizia que a amava, mas que Rosa não era sua prioridade. Sobre o sentimento que sentia por Lírio, Rosa reconhece “eu não a amava, sei disso. Amar é uma coisa muito boa e fácil e o que tínhamos era complicado e pesado”. Para Rosa, o ápice das agressões foi quando Lírio a feriu com uma faca de plástico no refeitório da empresa em que trabalhavam. Indicando o lugar onde havia a cicatriz, ela explica o que aconteceu.
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“Estávamos discutindo e ela simplesmente me cortou com a faca. No momento da agressão, um amigo meu estava junto e ficou parado, olhando para a minha cara, me perguntando se eu não faria nada. Fiquei muito desesperada; ela começou a se fazer de vítima, dizendo que não era a intenção”, pontua, tensa. Em alguns momentos, a flor achava que não poderia se livrar da mulher. Ao mesmo tempo em que não queria estar naquela relação abusiva, sentia que precisava ficar. “Eu não sei porque voltava, parecia que tinha alguma coisa me empurrando. Chegou a um ponto que se ela falasse um ‘a’, tudo desmoronava. Parecia que havia uma sombra preta nas minhas costas que me seguia o resto do dia; era horrível”. Por manterem um relacionamento aberto, Lírio se envolvia frequentemente com outras mulheres e, em determinado momento, firmou um compromisso sério com uma delas. Rosa entendeu e aceitou bem essa condição, e devido às circunstâncias, decidiu se afastar de Lírio. No entanto, a sensação de alívio causado por esse afastamento foi temporário, já que ela continuava a importunar Rosa, numa tentativa de mantê-la sob controle. Certa vez, Rosa conheceu uma moça de Campinas-SP em um aplicativo de relacionamento. Entusiasmada com a mudança de ares, convidou-a para passar um final de semana com ela, em Sorocaba-SP, onde a moça queria conhecer uma casa noturna. “Eu levei ela para lá, nós ficamos juntas e eu a beijei, claro. Em um momento da noite, vi a Lírio, com uma garota que não era a namorada dela, me observando; eu fingi não ver e ignorei”. No final da noite, Rosa e sua acompanhante esperavam pela carona para casa, foi quando Lírio se sentou próximo às duas, junto com uma outra mulher, na intenção de ouvir a conversa que Rosa mantinha com a moça de Campinas. “Uma semana depois, eu fui almoçar e a Lírio estava no refeitório. Começou a perguntar da minha vida amorosa; eu só concordava com as acusações dela. No mesmo dia, ela foi até mim, em horário de trabalho, e disse ‘a gente vai conversar’”. A flor conta que começou a argumentar que não tinha nada para conversar, mas ela insistiu, partindo para a agressão. “Você vai sentar aqui e vai ouvir o que eu
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tenho para falar”, forçou, puxando-a pelo braço. Com insultos sobre a mulher que a acompanhava na balada, Lírio passou cerca de uma hora afirmando que Rosa pertencia a ela. “Eu não quero que você saia com ninguém. Não quero que você fique com ninguém”, repetia. Sobre a namorada de Lírio, Rosa sentia um misto de pena e culpa. “Eu me perguntava se ela agredia a T. da mesma forma que me agredia. Não sei o porquê, mas eu sabia me defender, mas a via [namorada] tão Indefesa, sabe? Pensava coisas como ‘será que ela a belisca também?’, ‘será que ela dá socos e chutes nela?’. Quando o namoro entre Lírio e T. acabou, Rosa decidiu conversar com T. e, depois de um tempo, acabaram se tornando amigas, unidas pelo momentos abusivos que passaram com Lírio. Questionada sobre se a história teve um fim, Rosa sorri e responde secamente: “Ela me contatou anteontem falando que me amava, que eu sou um monstro por abandoná-la. Quando penso que ela seguiu a vida dela, ela volta, sempre volta. Estou saindo com um novo alguém e, como temos amigos em comum, ela sempre fica sabendo”, desabafa. Hoje, a flor não se sente mais dependente de Lírio. Embora saiba que ela ainda está ali, hoje prefere dar prioridade a si mesma. “Desejo que ela siga sua vida, porque estou fazendo isso”, conclui.
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o Ăşltimo sorriso de sakura
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Arquivo pessoal
em memória
“Feminismo é necessário e machismo mata. Infelizmente eu e minha família sentimos isso na pele.”
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o dia 9 de abril de 2018, jornais do Brasil todo estampavam o rosto de Sakura, uma jovem de 22 anos que foi morta, vítima de uma asfixia mecânica, pelo namorado de 30 anos. A jovem deu entrada em um hospital em Nova Iguaçu de madrugada, mas não resistiu. Sakura, infelizmente hoje faz parte dos índices que apontam que o Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo. Crime que em 2015 recebeu o nome de Feminicídio. Mas, além de um número estatístico, Sakura era uma jovem com sonhos e uma família que fazia de tudo para que ela se tornasse médica. Por isso, a família mudou-se para o Japão para que pudesse financiar o sonho da moça. Bastante quieta e estudiosa, ela sempre foi uma pessoa muito próxima de L., seu irmão caçula. "Nós fazíamos coisas juntos, éramos muito unidos. Acho que como irmãos normais, talvez. Porém, quando ela começou a namorar, ela se afastou bastante de mim", conta o rapaz, de 19 anos. Ele diz que a princípio, nem ele e nem a família suspeitavam de algo estranho naquele relacionamento, apesar de verem as agressões psicológicas, nunca imaginaram que ele a agredia fisicamente. “A gente não tinha noção do que acontecia no relacionamento até a morte dela, sinceramente. Para mim, nem passava pela cabeça”, relata. Ele afirma que, com o passar do tempo, eles presenciaram momentos em que ele a ofendia verbalmente. “Como estudante de medicina, ele a inferiorizava e fazia constantes comparações entre eles. Ele também impunha as vontades dele para ela”, diz L.. Sakura conheceu A. no ensino médio técnico e o namoro durou seis anos. E, como explicou o irmão, os familiares não viam nada de anormal no relacionamento, mas todos, principalmente ele e a mãe de Sakura, sentiam que havia algo de errado. “A gente não gostava dele. Minha mãe conversava mais com ela, questionava sobre se ela realmente queria ficar no Brasil com ele; mas não tinha o que a fizesse mudar de ideia. Sabe quando a pessoa sabe que não está tudo bem e, mesmo assim, permanece naquilo?”. A família mudou-se para o Japão para financiar o estudos de
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Sakura, que resolveu morar com A..“ Era muito estranho, pois ela parecia pressionada por ele, mas ao mesmo tempo, parecia feliz com o relacionamento”, conta. Antes de decidir morar junto, o casal morava em cidades diferentes. Sakura em Sorocaba-SP e A. em Porto Feliz-SP. “Tudo tornava-se briga por culpa dele. Lembro-me de uma discussão que tiveram uma vez por horários. Eles se falavam muito por Skype e ele começou a não deixar ela sair para almoçar ou dormir. Eram coisas constantes, sabe?”, afirma. Para o irmão, um dos momentos mais marcante envolvendo os dois, foi quando ela começou a trabalhar e eles brigavam quase diariamente por atenção. “Ele coagia ela para ir até a casa dele. Ela pegava dois ônibus para isso, mas ele não podia”. Na noite do crime, A. afirmou para a Polícia Militar que espancou Sakura depois de uma discussão, porém, depois, tentou socorrê-la. Ele foi preso no Rio de Janeiro, no presídio de Benfica, cerca de 40 km de distância do local do crime. Ele conta que se lembra nitidamente da noite em que tudo aconteceu. Era manhã no Japão e ele estava fora de casa. Os pais estavam trabalhando e estariam fora até a tarde. Um tio ligou avisando que ela estava internada. “A gente não sabia que tinha sido ele. Por mais que a gente desconfiasse dele, desde que o vimos no Brasil, como a gente não sabia de nada que acontecia no relacionamento dela, nunca havia me passado pela cabeça que o motivo da internação dela fosse ele.”, conta. O tio não sabia direito o que tinha acontecido, mas afirmou que ela estampou as manchetes dos jornais de todo o País “Ninguém sabia direito o que tinha acontecido, nem mesmo meu tio, que só sabia que ela tinha sido internada em um hospital em Nova Iguaçu”, enfatiza. Desesperado, o menino voltou para a casa, sem conseguir almoçar, e começou a pesquisar. Para ele, o mais doloroso foram as críticas feitas à família. “Os sites começaram a mostrar como se a gente tivesse abandonado ela no Brasil, que não tinha ninguém para reconhecer o corpo, sem procurar entender o porquê estávamos aqui”, afirma, com a voz trêmula. Embora o tio ainda não soubesse, ela já estava morta. E, quando
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ele descobriu, retornou a ligação, afirmando que não conseguiria dar a notícia para a minha mãe. “‘Você precisa ser forte’, ele me disse. Eu os esperei chegar e disse que ela tinha sido assassinada. O sentimento de impotência nos corroía. Foi muito dramático e a pior noite da minha vida”. Questionado sobre Sakura, o irmão se emociona ao contar que, nos últimos meses em que estiveram juntos, antes da partida da família para o Japão, eles quase não conversavam. “Éramos como dois estranhos vivendo sob o mesmo teto. A amizade bonita que a gente tinha parecia ter morrido”, lamenta. Quando perguntado sobre os momentos que guarda com carinho da irmã, ele mostra uma foto onde está com Sakura, ainda crianças, sobre uma ponte de madeira. “Nesse dia, a gente estava no Maeda7 e eu comecei a chorar de medo porque não conseguia atravessar a ponte. Ela voltou, me pegou pela mão e disse que passaria comigo”, conta, com voz trêmula. “Eu não sou mais o mesmo. Tratamentos contra a depressão não a trarão de volta. Minha mãe, eu vejo sofrer todos os dias. Vi muita gente nos culpando, falando que a abandonamos e o pior, a culpando pela própria morte. No Brasil, as pessoas não entendem muito bem o conceito de feminismo ou até mesmo machismo. Feminismo é necessário e machismo mata. Infelizmente eu e minha família sentimos isso na pele”, finaliza.
7 De acordo com o site do parque, o Maeda é um complexo turístico localizado em Itu, que mescla atrações e cultura oriental.
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Você se identificou com algum dos relatos? Calma, você não está sozinha.
Atualmente existem inúmeras alternativas capazes de amenizar o seu sofrimento, saiba como denunciar: A denúncia de violência doméstica pode ser feita em qualquer delegacia, com o registro de um boletim de ocorrência, ou então pela Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), serviço da Secretaria de Políticas para as Mulheres. A denúncia é anônima e gratuita, disponível 24 horas, em todo o país. É comum que as prefeituras ofereçam centros de atendimento à mulher, que acolhem vítimas em situação de violência. As prefeituras também oferecem centros atendimento, que acolhem as mulheres em situação de violência. Nesses centros é oferecido apoio social, jurídico e psicológico sem a solicitação do boletim de ocorrência.
Segundo dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), de janeiro a julho de 2018, foram registrados 27 feminicídios e 547 tentativas no Brasil. No que diz respeito a violência de gênero, foram feitas aproximadamente 79.661 denúncias, sendo elas 37.396 físicas e 26.527 psicológicas. E, de acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no anuário de 2018, foram registrados 60.018 estupros em 2017, sendo 8,4% de aumento em relação a 2016. Olhando para esse cenário, surge o Jardim de Lilith, com a proposta de dar voz às mulheres que, em determinado momento, tiveram suas vidas corrompidas pelas violências que sofreram. A partir de relatos, buscamos conscientizar outras mulheres sobre essas agressões e mostrar que elas não estão sozinhas.