Leticia Prata Grappi
Arquitetura na prática com a terra
Graduação no canteiro Faculdade de Arquitetura Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal da Bahia Faculdade de Arquitetura - FAUFBA Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo Leticia Prata Grappi (lpgrappi@gmail.com)
Orientadora Thais Rosa Co-orientadores Akemi Tahara Daniel Marostegan Banca examinadora Naia Alban Suarez João Maurício Santana Ramos Tomaz Amaral Lotufo Design gráfico Kin Guerra Consultoria gráfica Valéria Pergentino Enéas Guerra Foto da Capa Camila Bahia Foto da contracapa Kin Guerra Revisão do texto Andréia Araújo Tradução do resumo Monica Grappi
Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro
Salvador, dezembro de 2020
Agradecimentos Agradeço ao Universo, pela Vida e guiança; À toda minha família pelo amor e cuidado, especialmente meus pais, Marta Cristina Prata e Luis Bernardo Grappi, sou eternamente grata à vocês. À Tereza Ribeiro e aos meus irmãos Silvana, Monica e Luis Fernando Grappi pelo carinho; À todas as amigas e amigos que a vida me presenteou, agradeço por toda partilha e afeto; Aos meus orientadores, Akemi Tahara, Daniel Marostegan e Thaís Rosa por abrirem caminhos com propósito e verdade; Aos professores da banca, por aceitarem e colaborarem com este trabalho; À Universidade pública, especificamente à FAUFBA, por proporcionar ensino, pesquisa e extensão de qualidade; À toda família do Canto do Uirapuru, pelo voto de confiança e amor; Ao espaço do canteiro e seus construtores/as, aos parceiros de trabalho, principalmente Marcos Botelho, pela cumplicidade e paciência em colaborar com este e tantos outros trabalhos; Aos Mestres e educadores/as que tive a oportunidade de aprender, dentre eles César Costa, pela abertura de portas; À Valéria Pergentino e Enéas Guerra, por toda sabedoria e orientação dedicadas; Ao Kin Guerra, que o Vento Enlaçador nos uniu; sem você, este trabalho não teria chegado até aqui; À todos e todas que, de alguma maneira, colaboraram com este trabalho, muito obrigada!
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Altar do templo Canto do Uirapuru
Eu dedico este trabalho a todos os Mestres e Mestras que resistem carregando consigo os conhecimentos da terra e as tradições dos ancestrais. Viva a sabedoria da terra!
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palavras-chave
terra democratização arquitetura prática graduação canteiro experimental mutirão ancestral projeto processo coletivo sagrado 6 | Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro
Com este trabalho, busco contribuir para: – Discussões por uma arquitetura com terra que resulte em menos impacto ambiental e social; – Proposição de modelos de arquitetura integrados com o meio ambiente e com todos os seres que o habitam; – Elaboração de práticas que respeitem a terra e sua sacralidade; – A desconstrução de estigmas relativos às construções de terra; – Construção de espaços acadêmicos que valorizem os saberes populares e que, a partir do saber científico, contribuam com eles ao invés de descredibilizá-los; – Construção de um espaço acadêmico estimulante em relação às práticas construtivas com materiais e recursos naturais de modo a contribuir para a formação de profissionais que se envolvam nos canteiros e processos construtivos; – Estímulo ao espaço da graduação para a formação de profissionais técnicos e habilitados em construções de terra e outros materiais naturais; – Projetos que dialoguem com quem constrói e que não sejam instrumentos rigidamente verticalizados, podendo ser aprimorados sempre que necessário, através das trocas nos canteiros; – Uma arquitetura a serviço da população, não se restringindo a qualquer meio, que ela seja um instrumento democrático para formação de espaços saudáveis.
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Resumo Meu objetivo principal com este trabalho é apresentar a terra e outros recursos naturais enquanto valiosos materiais de construção de modo a contribuir para a disseminação do uso desses materiais no Brasil. No cenário social brasileiro, o uso de técnicas construtivas industrializadas predomina em virtude de diversos fatores de ordem histórica, política e econômica. Todavia, essas técnicas trouxeram desequilíbrio às formas de construir e problemas que vão desde a poluição à perda de tradições e estigmatização de determinados espaços, assim como contribuíram, arrisco dizer, para o déficit habitacional que é um dos maiores problemas do país. A partir da contribuição teórica de autores como Freire (2019), Ferro (2002), Minke (2015), Neves (2011) e da Rede Iberoamericana PROTERRA, bem como das atividades práticas e vivências desenvolvidas no contexto do canteiro experimental da FAUFBA e em um canteiro de obra fora da Universidade, este relato de experiência é uma reflexão sobre os limites e possibilidades da bioconstrução e ACT no Brasil, bem como a formação dos profissionais arquitetos.
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Resumen Mi principal objetivo con este trabajo es presentar la tierra y otros recursos naturales como valiosos materiales de construcción para contribuir a la difusión del uso de éstos en Brasil. En el escenario social brasileño, predomina el uso de técnicas de construcción industrializadas debido a varios factores históricos, políticos y económicos. Sin embargo, estas técnicas trajeron desequilibrio en las formas de construcción y problemas que van desde la contaminación hasta la pérdida de tradiciones y la estigmatización de ciertos espacios, además de contribuir - me atrevo a decir- al déficit habitacional que es uno de los mayores problemas del país. A partir del aporte teórico de autores como Freire (2019), Ferro (2002), Minke (2015), Neves (2011) y de la Red Iberoamericana PROTERRA; así como de las actividades prácticas y experiencias desarrolladas en el contexto del sitio experimental FAUFBA y en el sitio de construcción fuera de la Universidad, este relato de experiencia es una reflexión sobre los límites y posibilidades de la bioconstrucción y ACT en Brasil y la formación de arquitectos profesionales.
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A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimimos
no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante do dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver — pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra. Ailton Krenak
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Sumário 17
Trajetória
20
Sobre desenvolver um TFG
23
Introdução: desconstruindo estigmas
29
Graduação na FAUFBA: contexto e caminhos
35
A prática como pedagogia
41
A prática na FAUFBA
48
Disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas - ARQ 142
83
Comentários
87
Construir com a terra
97
Vantagens de construir com terra
93
Diário de uma obra de terra
161
Considerações finais
164
Notas
165
Terminologias
167
Referências Bibliográficas
170
Créditos das imagens
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Preâmbulo
Trajetória
A
s crises ambientais estimuladas pelos princípios capitalistas de consumo têm nos mostrado a urgência de transformar a maneira de habitar o planeta. A construção civil está entre as indústrias que mais poluem a Terra, e na busca por caminhos menos impactantes de produzir arquitetura, encontrei possibilidades dentro da Bioconstrução. O encontro não se deu no espaço universitário, mas fora dele, inicialmente em voluntariados e, depois, profissionalmente. Através da Permacultura e Bioconstrução, me aproximei das técnicas construtivas com terra e outros materiais naturais. Ao longo dessa trajetória, percebi a importância das atividades práticas para minha formação e para o aprofundamento no estudo desses materiais e, quando digo prática, me refiro ao fazer construtivo, a meter mão na massa, literalmente. Muitas das técnicas de bioconstrução fazem parte de tradições populares transmitidas de geração em geração. Porém, infelizmente, pela força da industrialização e imposição do capitalismo, muitos desses saberes vêm perdendo espaço no cenário construtivo do Brasil e do mundo. Para quem não tem a possibilidade de aprender com seus mais velhos, os cursos, vivências e voluntariados são caminhos para o aprendizado de práticas pautadas na terra. No entanto, esses meios ainda são restritos e não abrangem amplamente a parcela da população que trabalha na construção civil em virtude de diversos fatores. O primeiro fator, é o custo para participar das atividades, o que impossibilita o acesso de parte da população. No caso do voluntariado, a exigência de disponibilidade para trabalhar turnos integrais sem remuneração torna a alternativa inviável para a maioria dos/as brasileiros/as.
Na página anterior, parede de taipa sendo preenchida.
Os cursos, vivências e voluntariados não atingem amplamente os/as trabalhadores/as da construção civil. Geralmente quem procura essas experiências são estudantes, profissionais de diversas áreas que têm curiosidade, ou aqueles que querem construir a própria casa.
Parede de taipa entre paredes de hiperadobe e de tijolos ecológicos (BTC). São elas técnicas construtivas com terra.
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Hoje, infelizmente, há uma grande lacuna de mão de obra que tenha conhecimentos construtivos para trabalhar com terra e recursos naturais. Apesar de muitas dessas técnicas serem populares e já terem constituído a principal forma de construir no país, hoje encaramos uma realidade de estigmas e relutâncias no que diz respeito à terra como material de construção. Por conta dessa lacuna, fui percebendo que eu precisava me envolver no canteiro de obras, observar as etapas, os materiais utilizados, os fluxos, as demandas, as disponibilidades. E assim, me sentir segura para, mesmo num contexto de falta de mão de obra disponível, poder indicar estas técnicas e quem sabe, eventualmente, acompanhar os processos. Ainda assim, essa busca pessoal não supre uma demanda: o resgate dessas formas de construir precisa ser compartilhado, se não, algo que é originalmente popular - construir com os materiais naturais disponíveis - acaba se tornando nicho, “moda”, coisa de elite. Durante a trajetória, fui percebendo a riqueza que é se envolver com o processo construtivo e o quanto é prazeroso aprender fazendo. Sem encontrar muitas referências nesse sentido no contexto acadêmico, por algumas vezes pensei em deixar o curso. Com o tempo, fui entendendo que existem sim caminhos possíveis de seguir na faculdade de arquitetura: há grupos de pesquisa, projetos de extensão e seminários que buscam envolver a prática e todas as discussões que podemos promover com ela. Porém, essas iniciativas ainda fazem parte de um contexto optativo na graduação. Hoje eu acredito que a universidade pode ser uma ponte de difusão e pesquisa do conhecimento prático da construção com terra e outros materiais naturais. A partir da pesquisa, é possível criar métodos, desmistificar estigmas e ressignificar o que por muitos foi esquecido.
O envolvimento com as práticas construtivas foram fundamentais para minha formação em Arquitetura.
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Sobre desenvolver um TFG Diante do meu envolvimento com o tema, estava muito claro para mim que o meu trabalho final de graduação (TFG) abordaria construções de terra, eu só não sabia exatamente o quê. Desde o início, mesmo antes, quando eu apenas pensava sobre ele, não passava pela minha cabeça desenvolver um projeto que não seria materializado posteriormente. Com tantas demandas reais mundo afora, dedicar minha energia a algo que fosse imaginário sem atender à necessidade real de alguém ou de algum grupo não fazia sentido nenhum para mim. Além disso, a busca por um trabalho prático, em que eu pudesse participar da materialização, foi um dos meus objetivos iniciais, visto que eu sabia o quão rico em aprendizado o processo construtivo pode ser. Nos dois semestres iniciais, maturando o TFG, busquei encontrar alguma demanda projetualconstrutiva para trabalhar. Me aproximei de várias possíveis situações de trabalho, tendo a disciplina de Práticas em tecnologias construtivas ARQ142, ministrada pelo professor Daniel Marostegan como um suporte nesse processo. Vivenciei três semestres da disciplina como monitora, junto com outros estudantes, e me vi em vários momentos refletindo como ela poderia me ajudar no trabalho. Com a disciplina, atuamos na ocupação Manoel Faustino do MSTB em virtude das atividades previamente ali desenvolvidas pela Residência em Arquitetura (RAU+E). Junto com as moradoras e moradores, iniciamos a construção da cozinha comunitária das mulheres da ocupação e foi, inclusive, um possível objeto de trabalho a ser desenvolvido. Porém, diante dos fluxos, o desenvolvimento do TFG na ocupação não foi adiante. Outro possível objeto de trabalho que comecei a desenvolver foi um protótipo de abrigo emergencial. Com os deslizamentos de terra ocorridos na Gamboa1 no meio de 2019, e com a atuação no local da Residência (RAU+E), a possibilidade de disponibilizar, na faculdade, abrigos montáveis que pudessem socorrer às famílias em momentos como esse seria algo bastante valioso. Fiz estudos de conexões pantográficas2 que permitissem a criação de estruturas retráteis de fácil montagem e desmontagem. Para a estrutura, pensei no bambu por ser um material leve, e que receberia, por cima, uma lona. Esse foi o único momento que me afastei da terra enquanto materialidade do TFG. Ainda assim, o bambu vem da terra. Maquetes e estudos foram realizados, mas não fui adiante com essa proposta.
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Em outubro de 2019 entrei em contato com a proposta do Espaço Educativo de Permacultura Águas do Ipitanga (EEPAI), idealizado por duas educadoras. A proposta do EEPAI é de um espaço de permacultura em um bairro popular de Salvador, Cajazeiras. A preservação do Rio Ipitanga é o foco principal do Espaço Educativo, que tem como base a pedagogia freireana3 para a prática educativa comunitária. Foram meses de amadurecimento, diálogos, visitas à terrenos e escolas, leituras de textos e construção do imaginário espacial do EEPAI... A proposta do EEPAI envolve muito do que eu buscava trabalhar: permacultura e bioconstrução em um contexto periférico urbano e de cunho educativo, atendendo a um grupo popular que se enquadra no perfil de assessoria técnica com base na lei nº 11.888.4. A despeito de meu interesse em trabalhar com o EEPAI, veio a pandemia e tudo mudou. Os trabalhos com o EEPAI tiveram que ser pausados pois, para o desenvolvimento do projeto que eu havia formulado, o envolvimento físico com a comunidade era fundamental. Eis que me vi numa situação em que eu precisava dar um novo rumo ao trabalho a fim de que eu pudesse desenvolvê-lo e, finalmente, me graduar. A essa altura do campeonato, e entregue às constantes reflexões sobre algo que pudesse vir a se tornar meu trabalho, numa conversa pós-almoço, meus sogros me sugeriram fazer um trabalho relatando as experiências que eu já tive na bioconstrução. Num contexto de quarentena, sem poder sair de casa, eu percebi que esse realmente seria o melhor caminho: apesar de não ser exatamente o que eu buscava desde o início, o trabalho poderia estimular discussões interessantes no espaço acadêmico. A FAUFBA ainda é uma escola que, predominantemente, tem no projetodesenho o objeto final esperado no TFG. Porém, por valorizar o processo e não o desenho como suposto objeto final, compartilho aqui minhas experiências e reflexões.
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Introdução
Desconstruindo estigmas
C
erta ocasião, fui chamada por uma empresa de gestão socioambiental para propor algo relativo às construções com terra em dois povoados próximos, no semiárido baiano. Algumas casas desses povoados eram de adobe e taipa5, como são muitas casas no interior nordestino. Em um desses povoados, tive a oportunidade de conhecer dona Marlene, que tinha sua moradia feita de adobes. Perguntei a ela sobre sua casa e ela me respondeu, com descontentamento, que seu pai a havia construído 35 anos antes, mas que algum dia ainda teria o orgulho de vê-la com bloco e cimento.
Dona Marlene, em sua casa de adobe, abrindo o saco de ráfia para me mostrar a produção de feijão no povoado. Da terra se tira o alimento e se constrói moradia.
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Exemplos como o de Dona Marlene ainda são, infelizmente, bastante frequentes. Muitas pessoas habitam casas de terra em situação precária. Parte da sociedade deslegitima estas construções pela sua precariedade mas sem levar em conta que o problema está na precariedade, e não no material. O potencial da terra enquanto material de construção pode ser comprovado de muitas maneiras, porém, esse potencial não tem sido bem aproveitado quando olhamos a pequena porcentagem de construções feitas com este material atualmente (CARNEIRO, 2018). Os interesses políticos e econômicos no grande montante de capital que gira em torno da venda dessas tecnologias industrializadas é um dos principais entraves que encontramos na difusão das técnicas construtivas em terra pois colaboram para o imaginário de que boa construção é aquela que utiliza materiais industrializados (PORTELLA apud CARNEIRO, 2018). Outro entrave seria a lacuna de mão de obra capacitada para construir com terra e a pouca aproximação dos arquitetos em trabalhar com o material (CARNEIRO, 2018, p. 3 ). E é assim, mesmo quando temos uma realidade em que a indústria da construção civil é responsável por um alto índice de impacto ambiental: Segundo Barreto (2005), a construção civil é uma indústria que produz grandes impactos ambientais, desde a extração das matérias-primas necessárias à produção de materiais, passando pela execução dos serviços nos canteiros de obra até a destinação final dada aos resíduos gerados, ocasionando grandes alterações na paisagem urbana, acompanhadas de áreas degradadas (BARRETO apud ROTH e GARCIAS, 2009, p. 115).
E para piorar, a associação das casas de terra à miséria e doenças está ainda bastante presente no imaginário popular. Num contexto de escassez e direitos não garantidos, casas de terra se constituem como a única forma de materializar um abrigo. Segundo Vieira (2018), mais da metade das habitações precárias no Brasil são feitas de taipa. Essa, porém, não deve ser a única realidade a ser tomada no que diz respeito a essas técnicas construtivas com terra, reconhecidamente perenes (SILVA, 2000) e saudáveis. A associação é também fruto de uma construção histórica colonizadora a qual, segundo Vieira (2018), legitima as técnicas europeias como habitus primário e a taipa enquanto habitus precário. Segundo a autora, o uso do conhecimento científico atingiu diretamente a taipa de mão, a tratando enquanto técnica ultrapassada diante das novas tecnologias construtivas trazidas pelos europeus e possuidores do habitus primário, sendo essa realidade legitimada pelo saber acadêmico, que chega ao final do século XIX no Brasil de forma expansiva e disseminada.
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A partir disso, é possível perceber como o conhecimento científico pode ser utilizado pelos grandes interesses econômicos e ser conduzido por uma perspectiva bastante enviesada e influenciada pelos moldes europeus de colonização. Em certa maneira, perspectivas que visam precarizar essas técnicas continuam sendo perpetuadas por programas de melhoria habitacional do Governo (VIEIRA, 2018). Hoje em dia, um dos principais argumentos para a deslegitimação da taipa é a associação dessa técnica à propagação da doença de Chagas, cujo vetor de transmissão é um inseto, o barbeiro. Apesar de termos, infelizmente, muitos casos de infecção da doença em um contexto construtivo com a técnica, isso só acontece pelas frestas da estrutura da construção (SILVA, 2000). Essas frestas podem existir com casas de bloco e cimento, não estando restritas ao ambiente da taipa. O problema se encontra na precariedade da realização dessas taipas e na falta de acabamento nas paredes, e não na técnica em si. A necessidade de melhoria das casas de taipa em situação precária é definitivamente necessária: o que as autoras argumentam em seus trabalhos é que essa melhoria pode ser feita a partir da própria massa de pau-a-pique, não necessitando, necessariamente, derrubar e construir uma casa nova de bloco e cimento. Acontece que, dessa forma, ao se construir uma falsa verdade segundo a qual o problema está na construção de terra, se retira a autonomia das pessoas de escolher as formas de solução dos problemas de suas próprias casas. As Universidades brasileiras, enquanto espaços acadêmicos e científicos, possuem um papel de extrema importância na luta pela desmistificação desses saberes populares reconhecidamente bons e que um dia o próprio saber acadêmico já deslegitimou. Esses espaços acadêmicos, além de possibilitarem pesquisas que contribuem para a desmistificação do tema, possibilitam a formação de profissionais atentos a essa temática e capazes de trabalhar com esses materiais. Havendo demanda de projetos com terra e outros materiais naturais, é possível que haja um fortalecimento da mão de obra capacitada para isso, o que tornaria mais acessível construir dessa maneira, inclusive nos contextos urbanos. Contudo, é muito importante estarmos atentas e atentos para que a produção acadêmica sobre a utilização de terra e recursos naturais na construção possa dialogar com os saberes e Mestres populares, de modo que não ocorra uma elitização de informações, mas sim a sua democratização, o que resultará em avanços para todos.
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Saliento que, neste trabalho, não há a intenção de romper com as técnicas construtivas industrializadas. É evidente que elas trazem aspectos positivos, afinal de contas, nada é totalmente ruim ou totalmente bom. O importante é buscar o ponto de equilíbrio, sem excessos de um lado ou escassez do outro. Existe, na realidade, um incentivo à redução do uso de produtos industrializados para que, quem sabe um dia, com o fomento da pesquisa, possamos construir em grande escala com produtos não nocivos a qualquer forma de vida. Aceitar o padrão construtivo que está posto é
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perpetuar inúmeros erros. Questionar o padrão construtivo não consiste necessariamente em encontrar respostas, mas em buscar caminhos. Ao longo deste trabalho, é possível perceber que são muitos os conceitos precisam ser continuamente revisitados e, para começar, falarei do espaço acadêmico onde convivi desde o ano de 2013.
Vista lateral da casa de Dona Marlene.
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Capítulo 1
Graduação na FAUFBA : contexto e caminhos 6
M
esmo a Escola de Arquitetura sendo um espaço de referência para muitos estudos, ainda está submetida a uma formação de graduação extremamente mercadológica, modernista e urbana. Essa formação, por muitas vezes, exclui as infinitas outras formas de Ser e habitar a Terra. Infelizmente, essa é a realidade de muitas faculdades de arquitetura do país e do mundo. As construções indígenas, quilombolas, ciganas, populares, tradicionais e tantas outras maneiras de habitar ainda têm pouco espaço nas disciplinas que compõem o currículo obrigatório do curso, assim como o estímulo de projetos que estejam integrados com a natureza e seus ciclos ou discussões contemporâneas pautadas na Permacultura e Bioconstrução.
Atividade da Disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas na FAUFBA.
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O campo de pesquisa e formação de profissionais em construção com terra ainda é tímido, assim como para a utilização de outros recursos naturais como bambu, fibra e outros materiais naturais. Existem, porém, muitos grupos de pesquisa na FAUFBA que desenvolvem trabalhos de extrema importância, abrangendo inclusive diferentes formas de habitar e se envolver com os materiais. Dentre esses, destaco o ARQPOP, Etnicidades, Lugar Comum, Laboratório Urbano, Tectônica, dentre outros. Os diferentes grupos, inclusive, são responsáveis por organizar eventos com as mais distintas temáticas, sendo muitos deles referência no Brasil. No entanto, se analisada a relação desses grupos com o currículo da graduação, é possível perceber que fazem parte da fatia minoritária das disciplinas optativas ou das atividades extracurriculares. A graduação em arquitetura possui uma carga horária total de 4672 horas, que as disciplinas optativas correspondem a apenas 2,2%. Na maioria das vezes, as optativas são disponibilizadas com poucas vagas, poucos horários e oscilam a cada semestre. Sobre as disciplinas que englobam práticas construtivas, as que existem também fazem parte da pequena porcentagem das disciplinas optativas. São poucas e não existe regularidade na oferta, variando a cada semestre. Com o foco das atividades práticas construtivas, foi ofertada, nos últimos semestres, a disciplina “Práticas em tecnologias inovadoras”, com o professor Sérgio Ekerman; “Tópicos de Arquitetura e Urbanismo”, com o grupo da Tectônica, e “Práticas em tecnologias construtivas”. Voltarei a falar das duas últimas disciplinas com mais detalhes ao longo do trabalho. Nas disciplinas de História, 5,8% das disciplinas do curso, eventualmente se fala sobre o uso da terra, pedra, cal e etc como materiais usados em construções antigas, sem abordar a perspectiva contemporânea do uso desses materiais. Há muitas disciplinas de exatas e engenharia, que correspondem a 18,2% das disciplinas do curso, onde são abordados os sistemas construtivos que envolvem, em sua maioria, estruturas de concreto armado e as técnicas construtivas industrializadas que atendem ao mercado da construção civil. Apenas uma dessas disciplinas aborda estruturas em madeira. Nessas disciplinas, pouco se aborda sobre os impactos gerados pela construção civil e como muitos dos seus materiais são tóxicos à saúde. As disciplinas de ateliê (I ao V) correspondem à maior fatia da carga horária total do curso, de 41,5%. São consideradas as principais disciplinas pois nelas aprendemos e desenvolvemos projetos, porém, há muita ênfase no desenho e pouco olhamos para o processo construtivo, muito menos nos envolvemos com a prática do canteiro. O incentivo à escolha dos materiais naturais é quase inexistente nessas disciplinas, acontecendo somente em raros contextos em que a professora ou professor possui aproximação com o tema. 30 | Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro
Carga horária dos componentes curriculares da FAUFBA (diurno) As disciplinas obrigatórias estão indicadas em tons de azul.
Nessas disciplinas, é bastante comum termos exercícios onde nos é indicado algum edifício de algum star architect para análise. Não tive, em nenhum momento, uma atividade que se voltasse para a arquitetura indígena, por exemplo, como fonte de estudo nas disciplinas de atelier. A partir dessa aproximação, é possível perceber, no contexto de disciplinas obrigatórias da FAUFBA, bem como no ensino de arquitetura no Brasil de um modo geral, uma intensa valorização da arquitetura com materiais e técnicas industrializadas, com padrões importados do “primeiro mundo” e que atendem principalmente ao mercado e que nem sempre se encaixam com a nossa realidade local. Essa arquitetura, considerada como erudita e eurocêntrica, produzida pelas “estrelas” da arquitetura pós-moderna, nos impede de olhar para nossa própria formação cultural e popular (WEIMER, 2008). Essa intensa valorização da arquitetura erudita, bem como os resquícios de uma arquitetura modernista, pós-modernista ou qualquer outra caixinha que utilizemos para denominar, reverencia uma monumentalidade dos edifícios que muitas vezes está dissociada de um contexto local, e por contexto local me refiro a pessoas, cultura, modos de fazer e pensar distintos. Esse modo de fazer arquitetura colabora com rupturas de quem projeta e de quem constrói, para além das rupturas culturais. O elogio acrítico dos Star Architects – “Arquitetos-estrela” – como gênios isolados que produzem
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genialidades e os trabalhadores enquanto força braçal exclusivamente, colabora com a ideia equivocada de que a arquitetura é feita isoladamente por um único profissional arquiteto (DURAN, 2017). Enquanto insiste-se na angústia de esperar pela oportunidade de construir uma obra prima, as moradias nas periferias das cidades brasileiras estão sendo construídas informalmente, com quase nenhuma ajuda de profissionais, ou por meio de programas habitacionais focados na produção de moradias em larga escala sem a preocupação com a qualidade arquitetônica da edificação e a indispensável estruturação com o espaço público. (LOTUFO, 2014, p. 17)
A partir disso, é promovida a formação de profissionais alheios às questões sociais e ambientais, que não se envolvem nos canteiros e pouco conhecem dos processos construtivos. Esse alheamento contribui para uma cisão de projeto e construção, entre os profissionais que desenham e os profissionais que constroem quando, na verdade, essa cisão não deveria existir. O espaço construtivo pode ser um espaço rico em trocas e aprendizados, como nos ensina Sérgio Ferro, um dos primeiros críticos de arquitetura a escrever sobre as relações de trabalho no canteiro de obras. Um exemplo que me marcou muito, e que acredito que possa ilustrar um pouco a ideia que desejo transmitir neste trabalho, ocorreu nos meus anos iniciais de graduação. Com uma visão certamente menos amadurecida do que a de agora, tivemos que realizar, no Atelier, um projeto de um Pavilhão em um terreno localizado no centro histórico de Salvador. Esse terreno fica ao lado da praça Castro Alves, entre a rua do Sodré e a ladeira da Montanha, onde hoje funciona um estacionamento. Com a turma, fizemos uma breve visita ao local, mas nos envolvemos pouco com o território e com a população. No nosso projeto, Mari e eu, amiga e dupla de trabalho, exploramos bem a forma, resultando em algo plasticamente interessante. Hoje percebo que se tivesse sido construído, nosso projeto teria resultado um ambiente bastante quente, pois indicamos estrutura e vedação metálica, pouco condizente com a paisagem local que é uma das mais visitadas na cidade. Não refletimos sobre como seria sua execução, se havia a disponibilidade do material na cidade, como seria disposto o saneamento, como o espaço construído impactaria a dinâmica da população local, bem como outras discussões fundamentais para o desenvolvimento de um projeto. O trabalho foi bem recebido e tiramos nota 10. Anos depois, tive a experiência de participar do minicurso “Ofícios e Saberes tradicionais dos Mestres Artífices da Ladeira da Conceição”, que fica parale-
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Oficinas nos Arcos ocupados historicamente pelos Mestres Artífices da Ladeira da Conceição. Foto do Google Street View. Acessada em outubro de 2020.
lamente embaixo da Ladeira da Montanha. A atividade foi organizada pelo grupo de Pesquisa Lugar Comum, Ideas Assessoria Popular e coordenado pela professora Gabriela Leandro Pereira e André Luiz de A. Oliveira. A atividade promoveu uma oficina ministrada pelos Mestres, e os estudantes e professores da faculdade puderam aprender um pouco sobre os seus ofícios, principalmente os de marmorista, ferreiro e mecânico. No livreto “Mestres artífices da ladeira da conceição da praia” produzido pelo grupo supramencionado, há a seguinte passagem: Regidas por saberes que subvertem a lógica e o tempo das relações produtivistas, as oficinas são guardiãs de uma relação com o labor que quase não existe mais. Comprometimento, preciosismo, conhecimento da materialidade e suas propriedades, tudo isso vai contra qualquer processo de alienação da força produtiva. Nas oficinas estão verdadeiras relíquias em máquinas e ferramentas que datam do início do século passado e estão, em sua maioria, ainda em uso, contrariando qualquer lógica de descarte e substituição gratuita na qual respalda-se a contemporaneidade. São também as oficinas potentes espaços de criação e invenção de utensílios inexistentes no mercado, cuja fabricação torna o trabalho executado ainda mais primoroso. Embora quase anônimos, as peças produzidas por esses mestres são únicas, autorais e carregadas de toda ordem de sentido, simbolismo, domínio, técnica e criação. No entanto, apesar dessa inegável relevância, em 2014 os Artífices foram alvo de tentativa de expulsão que
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visava deslocá-los dos arcos, transformando seu local de trabalho em “residências artísticas” destinadas à artistas e pesquisadores da indústria cultural, o que denota um total desrespeito à história, aos sujeitos e à vida do povo negro. (OLIVEIRA; PEREIRA 2017, p. 8 e 9)
Esses Mestres, cada um com sua especialidade, representam gerações que trabalham na Ladeira e resistem contra a especulação imobiliária da região, que há muito tempo ameaça retirá-los de lá através de projetos espetaculosos que servem a um turismo excludente para o qual, ironicamente, nosso Pavilhão poderia colaborar caso tivesse sido construído. Eu acho interessante como um mesmo perímetro urbano pode promover experiências distintas: tudo depende do estímulo à criticidade das pessoas envolvidas, bem como da guiança dos professores. Sem dúvida, a atividade do ateliê trouxe muitos aprendizados, porém é preciso ir além da forma do espaço, mesmo estando nos anos iniciais da formação. Os projetos de arquitetura precisam dialogar com a cidade e a população. O envolvimento com os Mestres locais poderia ter gerado discussões importantes com a turma durante o ateliê, temas como especulação imobiliária, marginalização de saberes, violências e racismos urbanos, dentre tantas outras pautas fundamentais para uma formação crítica. A partir desse envolvimento, poderíamos ter aprendido sobre a história, os ofícios, e projetar um pavilhão que envolvesse as técnicas desses artistas locais, promovendo reflexões sobre um fazer arquitetônico mais inclusivo e democrático. A partir de uma mesma instituição de ensino podemos ter distintas experiências. No exemplo que eu trouxe, a experiência do Ateliê compõe o currículo obrigatório, já a experiência do minicurso fez parte de uma atividade optativa extracurricular. O envolvimento com o local bem como entender como se dará o processo construtivo é muito importante para o desenvolvimento crítico de um projeto. E esses são pré-requisitos para quem pretende construir com terra e materiais naturais. Abordarei esse tema com mais profundidade no tópico Diário de uma obra de terra.
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A prática como pedagogia “Porque nós só entendemos realmente quando o conhecimento é construído como ponte, passo a passo. Conhecer é construir pontes entre o sonho, estrela distante, e o lugar onde me encontro.” Rubem Alves (2018)
A minha trajetória com a arquitetura e construção de terra se deu no contexto da Bioconstrução e, desde o início, com o envolvimento da prática construtiva e assim vem se desenrolando nesses breves anos no qual venho mergulhando no assunto. A partir desse meu envolvimento, pude compreender a importância do tema para minha formação e compreensão da arquitetura. No tópico “Diário de uma obra de terra” compartilho minha primeira experiência mais profunda nesse sentido. Temos trabalhos de autores que se aprofundam no tema da importância do fazer prático em arquitetura, desde a graduação até a vida profissional, e aqui citarei alguns. O acesso à produção desses autores foi de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho e, claro, o próprio vínculo com meus orientadores, entusiastas da prática de fazer arquitetura com as próprias mãos. Porém, no desenvolver do TFG, antes deste trabalho tomar a presente forma, eu me aproximei do tema a partir de um contexto diferente… Como mencionei no tópico “Sobre desenvolver um TFG”, eu estava envolvida no projeto do Espaço Educativo de Permacultura Águas do Ipitanga (EEPAI). Nesse processo, conheci o Movimento para uma Educação Viva e Consciente, no qual as crianças são incentivadas a serem protagonistas da própria aprendizagem, e o adulto se torna um observador atento e não o protagonista do processo. Como resultado desse vínculo, também me aproximei da obra do grande Mestre da educação brasileira (e também do mundo), que é Paulo Freire. Essas duas linhas de pensamento norteiam o trabalho de educação crítica e comunitária do EEPAI. Durante esse processo, visitei com as educadoras algumas escolas e me chamou a atenção a existência de espaços que estimulavam as crianças a “fazer”: sala de costura, de artesanato, de marcenaria, de artes, etc. A prática, estimulada pela busca autônoma de seus próprios interesses individuais de cada criança e jovem, geralmente é um caminho potente para o processo de aprendizado. Para as educadoras do EEPAI, era muito importante que o projeto do espaço educativo estimulasse a curiosidade que, segundo Paulo Freire, é um ingrediente que deve ser respeitado no processo ensinar-aprender:
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A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma também. O bom clima pedagógico democrático é o em que o educando vai aprendendo, à custa de sua prática mesma, que sua curiosidade, como sua liberdade, deve estar sujeita a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-la aos demais. (FREIRE, 2019, p. 82)
E essa curiosidade pode ser estimulada a partir da ação. Segundo a educadora e entusiasta do Movimento para uma Educação Viva e Consciente, Ivana Jáuregui , para a efetivação do aprendizado é muito importante que haja movimento, ação, brincadeira, tudo junto. Apesar de se existir a noção de que para aprender é necessário estar “parado pensando” e que a vida está separada, na realidade, os processos estão completamente interligados, aprendemos nos desenvolvendo, em ação e em movimento. (JÁUREGUI, 2020) A educadora se referia ao processo de alfabetização das crianças, mas acredito que essa ideia pode se aplicar a qualquer processo de aprendizado e para qualquer idade. Aprender fazendo é muito mais eficaz, pois nos coloca no lugar de agentes principais do nosso aprendizado. Acho interessante que, mesmo em faixas etárias diferentes, seja na formação das crianças, seja na formação de adultos, a busca por envolver o “fazer” na educação é presente. Num contexto formal de aprendizado, se normalizou o “depósito” de informações por parte dos docentes na mente dos estudantes, que supostamente absorvem esses conhecimentos, o que Paulo Freire chama de educação bancária. Quando acontece dessa maneira, é transferência de informações sem garantia de recebimento delas pelos “receptores”, e isso pode acontecer do ensino infantil à graduação. “Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2019, p.47) O espaço construtivo permite essa produção de saberes aos quais Freire (2019) se referiu. Quando estão dentro da Universidade, alguns autores os chamam de Canteiros Experimentais. Neles, os estudantes são coautores do próprio aprendizado, tendo a guiança dos professores. Os estudantes também ensinam aos professores bem como aos demais estudantes. Os técnicos e funcionários da faculdade, quando participam, também são professores e estudantes ao mesmo tempo. A cada nova experiência, todos aprendem. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 2019, p. 25)
Eu achei muito interessante como os temas da prática na educação, pau36 | Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro
tadas pelo trabalho de Paulo Freire, surgiram em diferentes contextos para mim. No primeiro momento, a partir do desenvolvimento do projeto do EEPAI e no segundo momento, ao desenvolver este trabalho especificamente. Nos mostrando o quanto o assunto da prática é importante para a formação do ser humano, independente de sua idade. Sérgio Ferro (2006), quando perguntado se eles [grupo Arquitetura Nova] “usavam Paulo Freire no canteiro” ele responde que “O Rodrigo [Lefèvre] usava muito. O Rodrigo gostava muito do Paulo Freire.” Alguns autores já relacionaram os ensinamentos de Paulo Freire a uma prática de ensino na Arquitetura. Na dissertação “A experimentação prática construtiva na formação do Arquiteto” temos: Outra temática que é insistentemente tratada por Paulo Freire, é a necessidade de se ensinar a forma de evoluir do pensamento ingênuo para o pensamento crítico, ou como o próprio autor define, para o pensamento epistemológico. Para o pedagogo, é muito mais importante o exercício do livre pensar ao invés do simples treinamento do estudante. Admitindo que esta visão de abrangência geral na formação também se aplica ao arquiteto e urbanista, o que se verifica é a falta e a necessidade de espaços que criem a curiosidade do aluno desconfiar, questionar, criticar. (MINTO, 2009, p. 99)
Léo Bahia, professora Akemi Tahara e estudante durante prática no canteiro com a disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas. Professora e estudantes aprendem juntos.
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O envolvimento com o canteiro, além de proporcionar um aprendizado efetivo, pois permite que a prática dialogue com a teoria, estimulando assim a curiosidade e intuição, proporciona também o espaço de questionamento e todo tipo de crítica. Nesse sentido, o canteiro experimental se torna também um espaço possível de debate a respeito das relações sociais alienantes existentes nos canteiros de obra de um modo geral, que geralmente oferecem péssimas condições de trabalho, debate bastante trazido por Sérgio Ferro em suas referências. Segundo o autor: (...) o canteiro de obras é um dos lugares privilegiados da exploração, da violência. Os operários até hoje têm os menores salários, as maiores jornadas de trabalho, as piores doenças do mundo do trabalho (a silicose, que vem do cimento, por exemplo), a maior quantidade de acidentes. Isto continua e é válido praticamente no mundo inteiro até hoje. (FERRO, 2002)
Os Canteiros Experimentais nas escolas de arquitetura são temas abordados por alguns autores. Na dissertação “Um novo ensino para outra prática Rural Studio e Canteiro Experimental: Contribuições para o ensino de arquitetura no Brasil” temos: As transformações que o Canteiro Experimental trouxe ao ensino de arquitetura e o desenvolvimento gerado nos estudantes entre o pensar e o fazer têm sido amplamente relatados ao longo dos anos. Ronconi (2002) ressalta que não se trata de um espaço para aprender técnicas de construção e sim um ambiente de formação que, por meio da prática construtiva, permite ao aluno enfrentar problemáticas de diversas disciplinas. Sendo assim, acredita-se que com essa metodologia de ensino prático o aluno tem a oportunidade de uma educação mais integral. (LOTUFO, 2014, p. 62)
Quando o assunto é formação de profissionais aptos a trabalhar com materiais naturais, a prática e aproximação com o material é fundamental. O espaço do Canteiro Experimental é um espaço possível para esta formação. Diferente do ferro e do cimento, que são materiais padronizados pela indústria, a terra, por exemplo, varia de acordo com o lugar que for colhida, exigindo conhecimento por parte de quem irá construir de como utilizá-la para a construção. Segundo Daniel Marostegan e Carneiro, no seu artigo intitulado “A abordagem prática na disseminação de técnicas e saberes da construção com terra”: Especificamente no ensino tecnológico para a ACT7 nas escolas de arquitetura e urbanismo percebe-se que os ganhos de aprendizagem da abordagem prática parecem alcançar ainda mais importância, isso se dá em função daquela caracterização apresentada anteriormente nesse texto, na qual se percebe uma 38 | Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro
quantidade pouco significativa de construções com terra e de conhecimentos técnicos disseminados nos meios da construção. Nessas condições, os arquitetos que pretendem construir com terra necessitam minimamente conhecer e experimentar o material e as técnicas, de forma que possam se apropriar desses saberes e técnicas para adotá-los em suas obras, visto que dificilmente encontrarão no mercado oportunidades de interagir com esses saberes, como muitas vezes ocorre no uso dos materiais industrializados mais disseminados. (CARNEIRO, 2018, p. 6)
Como diz Gernot Minke (2015, p. 11), “Nenhum livro de teoria pode substituir a experiência prática que envolve a construção com terra”. Minke é arquiteto, e foi professor e pesquisador durante décadas na Universidade de Kassel, na Alemanha, sendo considerado uma grande referência científica no assunto das construções de terra e outros materiais naturais. Desenvolveu pesquisas no Laboratório de Construções Experimentais, fundado por ele, bem como projetou e construiu diversos tipos de construções com estes materiais ao redor do mundo. Em um de seus livros, o “Manual de construção com terra”, bastante usado como referência para este trabalho, ele transmite seus estudos teóricos e exemplifica com fotos a aplicação prática de seus estudos nas construções. Nesse sentido, as Universidades ainda têm muito o que construir. Segundo a engenheira civil e pesquisadora Célia Neves, ex-coordenadora da Rede Iberoamericana Proterra: Na sua grande maioria, os centros educativos e universidades não contemplam a arquitetura e construção contemporânea de terra como uma disciplina regular, o que impede a generalização da formação neste tema, a qual permitiria a postura correta dos profissionais atuando em seus postos de trabalho, quando necessitassem emitir uma avaliação, aprovar um projeto ou até mesmo projetar e construir com terra. (NEVES, 2011, p. 10)
O espaço do Canteiro dentro da universidade é um espaço potente em aprendizado. Ele pode servir como um laboratório, ofertar disciplinas, atividades de extensão, grupos de pesquisa, propor novas tecnologias, desenvolver protótipos de habitação de interesse social, bem como ter suas atividades relacionadas às dos ateliês de projeto, promovendo discussões entre o fazer e o projetar a partir de aprendizados in loco. Para além da infinidade de experiências que ele pode proporcionar, o canteiro se torna ainda mais necessário se desejamos que as Universidades sejam capazes de formar profissionais aptos a projetar e construir com terra e outros materiais naturais. Eu acredito que a implementação de Canteiros Experimentais nas escolas de arquitetura podem ser caminhos potentes de transformação. Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro | 39
Atividades de marcenaria do grupo Tectônica.
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A prática na FAUFBA Muitos professores já realizaram atividades práticas em nossa escola, mesmo não sendo esse o cenário preponderante do currículo obrigatório das disciplinas. A partir deste tópico, compartilharei as principais experiências construtivas práticas em que pude participar nesse contexto. Ação cultural Saramandartes no bairro de Saramandaia, Salvador, organizada pelo grupo de Pesquisa Lugar Comum, da FAUFBA. A oficina aconteceu em outubro de 2019 e contou com pintura de tinta de terra e graffiti com crianças e moradores locais. A oficina de graffiti foi ministrada pelos artistas grafiteiros Quel Silveira, Ananda Santana (srt.as) e Thito Lama. A parte de tinta de terra foi ministrada por Monique Reis, Thomás Oliveira, Leiliane Santos, Marcos Botelho, Fernanda Marques e eu. Em fevereiro de 2020, tivemos a Oficina de construção com alvenaria de pedra, na vila de Igatu, promovida pelo Canteiro Modelo de Conservação - Ações de salvaguarda e conservação do patrimônio cultural de Igatu.
Oficina de tinta de terra e graffiti no bairro de Saramandaia, em Salvador.
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Na página ao lado, as crianças foram as principais participantes das oficinas! Na imagem ao lado, resultado do muro pintado nas oficinas de tinta de terra e graffiti no bairro de Saramandaia, em Salvador. Na imagem ao lado, registro da oportunidade de estudantes e professores da Universidade aprenderem e dialogarem com os Mestres, durante oficina de construção com alvenaria de pedra na Vila de Igatu.
Este projeto é fruto da parceria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Faculdade de arquitetura da UFBA. Para a materialização da oficina, contamos com o apoio da prefeitura de Andaraí. Estudantes da faculdade puderam aprender e trocar com os Mestres locais que constroem com pedra. Durante os semestres 2018.2, 2019.1 e 2019.2 colaborei como monitora, junto com outros estudantes, na disciplina Práticas em tecnologias construtivas - ARQ 142. Nos tópicos seguintes, trago relatos das atividades ocorridas em cada um desses semestres na disciplina que contou, em muitos aspectos, com o apoio da professora Akemi Tahara e do grupo Tectônica.
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Tectônica O grupo Tectônica nasceu em janeiro de 2015, fruto de uma atividade de extensão realizada na FAUFBA. Segundo Akemi, coordenadora do grupo, tudo começou quando ela precisou dar destino a pedaços de madeira que sobraram de uma obra. Surgiu então a ideia de montar um grupo na faculdade que estudasse e trabalhasse com madeira. Mas onde? Inicialmente, seria no laboratório do Instituto Politécnico da UFBA, até que Naia Alban, a então diretora da FAUFBA, sugeriu à professora a utilização do depósito que fica embaixo na faculdade, onde o antigo maquinário de marcenaria da faculdade se encontrava. Com convite aberto a toda comunidade FAUFBA, foram feitos mutirões de limpeza, lavagens e pintura no espaço até que a nova marcenaria da faculdade voltou a ser reaberta regularmente com as atividades do grupo que nascia a partir da união de professores, estudantes e funcionários da faculdade. No site do grupo temos: O grupo TECTÔNICA tem como objetivo aliar a teoria e a prática sobre a madeira e as técnicas a ela associadas, colocando a “mão na massa”. Procura, assim, a integração do conhecimento acadêmico com a prática, as parcerias privadas e públicas, para fomento e disseminação do saber, aprimoramento e criação de novas ideias e tecnologias. Hoje a marcenaria atende às atividades do grupo, mas também de todas as disciplinas interessadas. Qualquer estudante que deseje participar das atividades do grupo é bem-vinda/o. As reuniões costumam ser semanais e as demandas surgem de acordo com as necessidades pessoais ou coletivas. Desde então, o grupo vem promovendo seminários, oficinas, exposições e, em alguns semestres, as atividades do grupo são ofertadas como disciplina optativa de “Tópicos em Arquitetura e Urbanismo”, que também conta com o professor Edson Fernandes como docente e já contou com o professor Maurício Felzemburgh. Inicialmente, a marcenaria só podia ser aberta com a presença da professora, visto que algumas ferramentas exigem um certo cuidado no manuseio e utilização. Com o tempo, alguns estudantes foram se capacitando e se tornando responsáveis para substituir a professora. Para que a marcenaria pudesse funcionar bem, era muito importante a presença de um profissional marceneiro. Com o apoio da administração da Faufba, foi aberto um concurso público para contratação do profissional, sendo uma grande conquista para a Escola de Arquitetura. Em 2018, a faculdade contratou Cléber Marinho como marceneiro, que passou a integrar a equipe de trabalho. Com isso, o espaço passou a ficar aberto todos os dias. Em 2019, a equipe aumentou e passou a contar com o marceneiro Paolo Perfumo.
Na página ao lado, estudantes e construtores locais da Vila de Igatu têm a oportunidade de construir juntos muro de pedra.
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Acima, atividade do seminário no bambuzal do aeroporto de Salvador. Na foto abaixo, Cléber Marinho, marceneiro responsável, orienta estudantes em atividade na marcenaria. Entre os estudantes, à esquerda, Cleiton Marques e Marcos Luhning, integrantes do grupo Tectônica.
O grupo organizou o “Seminários-Oficinas-Exposição: Cadeia Produtiva do Bambu - realidade e potenciais” em setembro de 2019. Contou com a presença de grandes mestres do bambu no Brasil: Lúcio Ventania, Antônio L. Beraldo, Normando Perazzo, Wolfgang Reiber, João Nunes, Jefferson Cruz e Bruno Sales. Foi um importante evento para nossa faculdade, onde pudemos nos aproximar da temática a partir de mesas de conversa e atividades práticas.
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Atividades do grupo Tectônica na FAUFBA.
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ARQ-142 | Disciplina Práticas em
Tecnologias Construtivas
A disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas é ministrada pelo professor Daniel Marostegan, e começa como Tópicos Especiais. Depois de dois semestres com 34 horas, a disciplina continua como Tópicos, mas passa a ser ofertada com 68 horas. Em seguida, recebe o nome que ela hoje carrega com uma ementa de 2004 escrita pela professora Luciana Calixto, pois era uma disciplina desenvolvida por ela alguns anos antes. No Sistema acadêmico encontramos a ementa: ARQ-142: Estudos sobre as tecnologias construtivas do concreto, da madeira e metálicas, enfocando particularmente os seguintes aspectos: possibilidades e linguagem do material, especificidades da tecnologia, recomendações para projeto, recomendações para execução, especificação de materiais, detalhes construtivos. Disciplina de cunho teórico e prático, com ênfase em seu caráter experimental, com o desenvolvimento de protótipos. Promoção de experimentações práticas em canteiro e discussão dos diversos aspectos relacionados à escolha e aplicação das tecnologias construtivas. Pretende-se que estes conhecimentos subsidiem diretamente as atividades projetuais desenvolvidas nos ateliês. Palestras e visitas técnicas a obras, canteiros de obras, fabricantes de materiais e fornecedores de materiais de construção.
A disciplina é oferecida como optativa, sendo ofertadas, em média, 15 vagas por semestre para noturno e diurno, objetivando conectar mais os cursos. As 68 horas semestrais da disciplina representam aproximadamente 0,69% da carga horária total de formação em arquitetura da FAUFBA. É uma carga horária baixa, e o horário pouco flexível, se considerarmos a importância da atividade prática. O caráter optativo e o número ainda pequeno de vagas diante da quantidade de estudantes que a escola recebe e forma anualmente são também fatores dignos de nota. Ainda assim, a oferta da disciplina é relevante num cenário que carece desse tipo de atividade. A disciplina teve como objetivo enriquecer as experiências práticas na formação das arquitetas e arquitetos dentro da FAUFBA, tendo como horizonte a aproximação destes e o canteiro de obras e, consequentemente, com quem constrói contribuindo, assim, para a formação de um Canteiro Experimental na escola, o qual apelidamos de Canteiro Multi_rão, que terá seu processo de desenvolvimento melhor descrito nos parágrafos seguintes.
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Uma das discussões estimuladas na disciplina é sobre a produção da Arquitetura e como ela se dá de maneira coletiva. Apesar de ser uma disciplina prática, existem os momentos de discussão teórica, geralmente nos primeiros encontros. Iniciamos os semestres com o texto “Entre o projeto e a execução: o papel do arquiteto na diminuição [ou aumento] da violência no canteiro de obras” de Sabrina Duran. O texto ilustra posicionamentos que buscamos discutir na disciplina: O arquiteto como artista inspirado e o desenho arquitetônico como expressão exclusiva da sua genialidade são duas abstrações que têm efeito prático na construção civil. Ao apresentarem a arquitetura como campo de trabalho individual, e não coletivo, essas duas abstrações criam uma cisão no canteiro de obras: de um lado e acima, está quem pensa, quem imagina o desenho, o projeto; do outro lado e abaixo, aqueles que o executam, os que fazem o trabalho braçal, descerebrado. O reforço dessas abstrações vai desde a fragmentação e a precarização contemporânea do trabalho no canteiro aos currículos das faculdades de arquitetura, que nem sempre abordam o trabalho coletivo na construção civil, passando pelo elogio acrítico dos starchitects – “arquitetos-estrela” reconhecidos mundialmente por seus projetos autorais grandiosos, independentemente do grau de sofrimento físico que a materialização de tais projetos tenha causado aos operários no canteiro. (DURAN, 2017, p. 49)
Durante os três semestres em que participei na disciplina, pude perceber o caráter orgânico que se dava na sua organização: a cada semestre a disciplina era aprimorada de acordo com as reflexões do semestre anterior. É uma característica interessante, principalmente se considerarmos que nós estamos em constante transformação da mesma forma que as relações entre as pessoas. Uma disciplina é fruto do encontro e do relacionamento entre pessoas, e moldá-la continuamente é uma forma de manter a estrutura acadêmica menos engessada do que ela já é. Outra característica interessante da disciplina é que a maioria das estudantes que a escolhiam eram mulheres e concluintes, ou perto de concluir. Era quase consenso, no início dos semestres, no momento da apresentação, quando perguntadxs o porquê de escolherem aquela disciplina, dizerem algo como: “não tive quase ou nenhuma experiência prática na minha graduação e gostaria de me aproximar disso”. Falas como essa evidenciam que a presença das mulheres no canteiro é expressiva e a falta de experiência prática é sentida pelos estudantes.
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No semestre 2018.2, as aulas da disciplina aconteciam no mesmo momento das aulas da disciplina da Tectônica. Por vezes as turmas se juntaram para realizar atividades em conjunto, evidenciando que as disciplinas dialogam entre si e que uma pode agregar conhecimentos à outra. O espaço dedicado às práticas da disciplina, ainda que provisório, costumava ser embaixo do anexo da Faculdade de Arquitetura. Para nós era confortável, pois o local é próximo à Marcenaria da escola, onde guardávamos nossas ferramentas e tínhamos o suporte de Cléber Marinho, marceneiro que detém muitos saberes e práticas que foram fundamentais para o desenvolvimento da disciplina. A partir do semestre 2019.1, tivemos que migrar de espaço. Com as obras de infraestrutura que aconteceram no local, fomos transferidos para outro espaço, também improvisado, ao lado do Módulo Iansã, prédio do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU). Com o anexo em funcionamento, lá abrigará as atividades que hoje acontecem no PPGAU. Assim, o PPGAU ficará livre para abrigar o futuro espaço dedicado à pesquisa e ensino de construção e onde, futuramente, cogita-se instalar oficialmente o Canteiro Experimental. Ou seja, o espaço do canteiro ainda não está consolidado, mas suas atividades já acontecem há um tempo considerável. Nos tópicos seguintes, refletirei sobre as atividades realizadas em cada um dos semestres em que participei da disciplina. Cléber Marinho na marcenaria da FAUFBA confeccionado ferramenta em madeira.
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2018.2 Começamos este semestre, bem como nos três seguintes, com a leitura do texto “Entre o projeto e a execução: o papel do arquiteto na diminuição [ou aumento] da violência no canteiro de obra” de Sabrina Duran. Neste semestre, tivemos 3 eixos temáticos: terra, bambu e ladrilhos hidráulicos. Maria das Graças Rodrigues da Silva, Jonas Lyrio Ximenes, Amanda Oliveira e eu atuamos como tirocinante e monitores, respectivamente. Na última unidade da disciplina, as estudantes se dividiram em 4 grupos, cada um incumbido de projetar e executar uma proposta construtiva que melhorasse nosso espaço de trabalho.
Bambu No semestre 2018.2, com esta maravilhosa planta, realizamos uma atividade de colheita e tratamento de varas colhidas na própria Universidade, da espécie Bambusa vulgaris. No campus da UFBA existem muitas touceiras que precisam de um manejo apropriado. O objetivo da atividade foi estimular a discussão sobre o uso do bambu na construção civil e suas inúmeras vantagens. Falamos sobre a importância do manejo e as formas de tratamento das varas a partir da experiência prática da colheita e tratamento. Contamos com a orientação da professora Akemi Tahara nessas atividades, em virtude de seu estudo e prática com o tema, e a de Jonas Ximenes, monitor da disciplina que já desenvolvia uma prática com o material. Tivemos a participação dos estudantes da Tectônica nestas práticas.
Atividade com montagem de parabolóide a partir de peças amarradas de bambu cana-da-índia.
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Colheita das peças de bambu (Bambusa vulgaris) no campus da UFBA por estudantes, funcionários e professores. Na foto abaixo, Jonas Ximenes compartilhando com a turma conhecimentos sobre o bambu.
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Desenho autoral de croqui referente ao tratamento dos bambus.
Tratamento vertical de bambu no momento em que é colocada a solução líquida dentro do bambu perfurado.
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Após alguns dias, o líquido é coletado de volta com o auxílio de uma roldana.
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O tratamento das varas de bambu foi feito através de solução líquida de ácido bórico e bórax trincal (borato de sódio) a 8%. Os nós do bambu são perfurados, menos o último, permitindo que o próprio bambu seja um “recipiente” para receber a solução líquida.
Desenho autoral referente ao tratamento dos bambus, em que o líquido é coletado de volta. Conforme observado nas fotografias da página ao lado.
As varas ficam de pé com o líquido dentro durante o tratamento de 7 a 15 dias: nós o mantivemos por 10 dias. Com auxílio de uma roldana, conseguimos virar as varas de bambu de maneira que coletamos o líquido sem haver perda, podendo reaproveitá-lo para futuros tratamentos. Nesse semestre também tivemos atividade de montagem de parabolóide com peças de bambu cana-da-índia amarradas.
Atividade com montagem de parabolóide a partir de peças amarradas de bambu cana-da-índia.
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Terra
Na página ao lado, desenho autoral referente a construção do banco de terra ensacada construído durante a disciplina. Etapas construtivas do banco com terra ensacada construído durante a disciplina, ao final sendo rebocado.
No semestre 2018.2, no eixo de práticas com a terra, tivemos a experiência de construir um banco de terra ensacada com sacos de laranja (raschel) e de farinha de trigo (ráfia), demonstrando a possibilidade de construção com materiais que usualmente são descartados. A terra foi colocada dentro dos sacos que foram compactados posteriormente. Pequenas peças de bambu foram colocadas verticalmente, objetivando travar as fiadas. O banco recebeu reboco de terra. Visando promover a prática construtiva com terra além muros da Universidade, tivemos uma atividade de construção em hiperadobe na ocupação Manoel Faustino, fruto do vínculo da Residência (RAU+E) na comunidade. A construção viria a abrigar a cozinha comunitária das mulheres da ocupação.
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Os moradores não conheciam a técnica do hiperadobe e foi muito rica a troca. Infelizmente, a construção não foi finalizada por inúmeras razões. Tiramos a terra do próprio local para construir. Em um contexto de ocupação onde as casas estão em situação bastante precária, é importante pensar nas
Construindo com terra a cozinha comunitária da ocupação Manoel Faustino, na periferia de Salvador.
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possibilidades que a construção com terra e o suporte técnico da Universidade podem criar. Aqui a comunidade aprende com a Universidade e principalmente, a Universidade aprende com a comunidade. Tivemos também a experiência de construir uma estrutura inspirada na taipa japonesa para dar suporte a uma atividade complementar da disciplina Técnicas Construtivas II, ministrada pelo professor Jardel Pereira Goncalves. A disciplina é, de um modo geral, teórica, mas traz essa atividade prática para enriquecer o aprendizado.
Montagem do entrelaçado de bambu em moldura de madeira para materialização da taipa.
Aplicação da massa no entrelaçado de bambu inspirado na taipa japonesa.
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Ladrilho Hidráulico Sob orientação da tirocinante Maria das Graças, tivemos a prática da elaboração de ladrilhos hidráulicos, tema de sua dissertação de Mestrado. Os ladrilhos produzidos foram usados em atividades da disciplina do semestre 2019.2.
Na primeira foto, Graça e o ladrilho hidráulico produzido em conjunto pela turma.
Ao lado, produção das luminárias com bambu.
Na foto acima, registro da aula onde é apresentada a técnica dos ladrilhos hidráulicos para a turma.
Após as atividades dos eixos temáticos, a turma foi dividida em grupos, e cada um se incumbiu de escolher uma demanda de infraestrutura do espaço de trabalho, projetar e construir um artefato/instalação que desse conta de melhorar tal demanda. Com a falta de instalação e iluminação, um dos grupos utilizou peças do bambu tratado
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por nós para construir luminárias a serem instaladas no local de trabalho e fizeram, inclusive, a instalação elétrica. Outro grupo construiu lixeiras com pedaços de pallets que estavam disponíveis. O terceiro grupo construiu um balanço com cordas e pedaços de taco disponíveis no local e o quarto grupo propôs fazer uma torneira e espaço para lavar as mãos. Finalizamos o semestre 2018.2 com pizza no forno construído no semestre anterior da disciplina.
Luminárias com bambu, desenvolvidas durante a disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas, prontas e instaladas. Corte dos pallets para produção de lixeiras.
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Na foto acima, construção do forno de pizza durante a disciplina de Práticas no semestre 2018.1.
A disciplina como um todo ocorreu bem e teve adesão por parte dos estudantes. As atividades em conjunto com a professora Akemi Tahara foram bastante enriquecedoras.
Na segunda foto, o forno em atividade produzindo pizza no semestre 2018.2!
Ao analisar o semestre da disciplina, percebemos que o tempo de concepção e projeto do objeto a ser desenvolvido por cada grupo foi muito curto, influenciando na execução, que poderia ser mais eficiente. Ao final, com a proposta de divisão dos grupos, sentimos que a potência da turma foi dissipada, e entendemos que esse seria um ponto de transformação no semestre seguinte. Ao final do semestre, conseguimos uma carreta de terra oriunda da própria UFBA, fruto de movimentações do terreno para a construção de um novo prédio da Universidade. Essa terra seria nossa matéria-prima para eventuais atividades nos semestres seguintes.
Caminhão trazendo para a FAUFBA terra oriunda de movimentação em obra no campus da UFBA.
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2019.1 Iniciamos o semestre com a discussão sobre nosso novo espaço de trabalho. Como mencionei anteriormente, fomos transferidos para o espaço conectado ao PPGAU, que não possuía infraestrutura alguma para acontecer as práticas da disciplina. Começamos o semestre com o sentimento de “arrumar a casa”. Nosso primeiro movimento foi de limpeza e organização, inclusive das nossas ferramentas de trabalho, que antes ficavam na marcenaria e agora precisavam de um novo local. Confeccionamos um mural de madeira e deixamos na sala do PPGAU. Como não tínhamos nenhuma área coberta e o período de chuvas estava por vir, nos dedicamos a planejar e construir uma cobertura. Uma outra
Produção de painel para ferramentas, feito pelos estudantes, durante atividade da disciplina.
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demanda era a construção de baias para guardarmos areia, brita e o arenoso próximos ao nosso novo espaço de trabalho. Enquanto no semestre anterior tivemos grupos propondo e executando diferentes objetos, nesse semestre buscamos seguir um caminho coletivo de projetar e construir, o que, para mim, foi o ponto alto do semestre. O ato de projetar fazendo e em coletivo foi bastante enriquecedor. Primeiro, fizemos o levantamento de todos os materiais disponíveis, depois traçamos breves linhas no papel (e uma maquete improvisada com bloco e graveto) do que seria a estrutura e partimos para a execução, que foi onde aconteceu a maior parte do projeto. Para a construção da cobertura, tivemos que lidar com a escassez de materiais para desenvolver a abundância na criatividade. Lidamos com os materiais disponíveis e um praticamente inexistente orçamento
Maquete improvisada com um bloco quebrado e gravetos para estudo in loco. Estudo prático e em grupo de maneiras estruturalmente eficientes para a construção da cobertura.
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Nas fotos ao lado, Instalação de pilar de bambu (Bambusa vulgaris) e em seguida, preparo de argamassa.
Com um funil improvisado, inserimos a argamassa por dentro do buraco feito no pilar de bambu, para que a junção do pilar com a fundação fosse firmada.
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Croqui da autora. (2020)
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Construção coletiva das vigas-vagão, entre professores, funcionário e estudantes. No qual dupla de bambu canada-índia são amarradas junto com peça de bambu Bambusa vulgaris.
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A estrutura do PPGAU, projetada por Lelé, recebendo esperas amarradas de bambu, onde iríamos apoiar as vigas-vagão.
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Léo durante a instalação da viga-vagão.
Professora Akemi conferindo a tensão.
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destinado à disciplina. Utilizamos os bambus tratados por nós no semestre anterior, que serviram de estrutura, além de brita, cimento, areia e ferro já disponíveis no canteiro para a fundação. Usamos bambus cana-da-índia para travar os pilares e peças de madeira para suportar as telhas. Como o vão era grande para a dimensão das peças, fizemos vigas-vagão para vencer a distância do vão. Para cobrir, usamos telhas metálicas reaproveitadas que estavam abandonadas no estacionamento. As conexões foram feitas com cordas e arames. As soluções construtivas foram sendo desenvolvidas ao longo da construção, de acordo com as necessidades estruturais e com a disponibilidade de materiais. Algumas soluções foram previstas e outras foram desenvolvidas posteriormente às observações da estrutura reagindo com o peso das cargas. De fato, o ensino da arquitetura - e mais particularmente o ensino das estruturas - que somente se fixa na teoria, tornase um trabalho etéreo, metafísico. Estes conceitos quando acompanhados de modelos e de experimentações práticas possibilitam ao aluno a capacidade de enxergar ou de perceber os fenômenos. Todos os exercícios vividos praticamente e com o uso de modelos trazem ao aluno a possibilidade de realmente “sentir” as forças. Esta percepção “liga” o aparato sinestésico do estudante que passa a viver as realidades físicas do espaço agindo sobre as estruturas no fértil ambiente da vida real, do tempo real. (MINTO, 2009, p. 102)
Na página ao lado, terças improvisadas sendo instaladas. Durante a instalação, a turma analisa a reação das peças, o que fletiu ou não, ou que tá firme, o que precisa de travamento, etc. Foi nesse momento que percebemos que as vigasvagão precisavam de um certo travamento entre elas, que o fizemos com arame e peças de bambu. Na foto abaixo, momento de instalação das telhas metálicas reaproveitadas. A união faz a força!
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Talvez o resultado não tenha sido a cobertura mais linda do mundo, mas posso garantir que para sua materialização foi necessário muito esforço coletivo e é aí que mora sua beleza. Para ser sincera, desfrutamos pouco da cobertura no restante do semestre, e a chuva pouco apareceu. No fim das contas, fizemos a estrutura pela riqueza do aprender fazendo. Seu objetivo não foi seu fim, mas seu processo. Nesse semestre, além da realização da cobertura, construímos baias para deixarmos os materiais como areia, arenoso e brita. Em relação às práticas construtivas com terra, tivemos nesse semestre a prática inspirada na taipa japonesa aproveitando a moldura de madeira usada no semestre anterior.
Cobertura finalizada e sendo utilizada!
Quanto à estrutura da disciplina, a análise que fizemos do semestre foi positiva em virtude da alteração da estrutura de “grupos separados que projetam e constroem objetos separados” como nos semestres anteriores. Pensar junto e construir junto a cobertura, com certeza, foi um saldo positivo.
Na página seguinte croqui autoral.
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Acima, Cléber, João e Kellvy aplicando a massa no entrelaçado de bambu da taipa inspirada na japonesa. Na terceira foto, Marina, Elisa, Marta e Maria Luísa construindo as baias. Até minha mãe, Marta, colaborou com a mão na massa! Na quarta foto, Akemi e Maria Luiza peneirando a terra para a massa da taipa. Estas atividades aconteceram no semestre 2019.1.
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2019.2 Nesse semestre, a mudança proposta na organização da disciplina se deu na organização e distribuição da carga horária. Em vez das horas serem distribuídas semanalmente ao longo do semestre com uma aula por semana, elas foram concentradas no formato de mutirão. Foi nesse semestre que abraçamos e lançamos o nome do canteiro como “Canteiro Multi_rão”, um canteiro múltiplo que é construído a partir das práticas coletivas dos mutirões. Fizemos inclusive um Instagram, o @canteiromulti_rao visando o compartilhamento e registro de experiências. Tivemos aulas iniciais de apresentação, leitura de texto e apresentação do projeto a ser construído no mutirão. Organizamos a atividade em dois mutirões que aconteceram da sexta até o domingo, durante duas semanas seguidas. O primeiro mutirão aconteceu nos dias 11, 12 e 13 de outubro de 2019 e o segundo nos dias 18, 19 e 20. Nesse semestre, divulgamos nas redes sociais e convidamos a todas e todos os interessados em participar do mutirão, o que permitiu que pessoas não matriculadas na disciplina também participassem. O objeto construído foi uma área de convívio na parte externa. Com a retomada das obras do anexo da FAUFBA, o antigo forno a lenha foi derrubado e decidimos construir um próximo ao nosso novo espaço de trabalho. As técnicas construtivas nesse semestre foram com materiais majoritariamente industrializados (tijolinho cerâmico argamassado com massa de cimento). Tocamos na terra apenas para a materialização do forno de pizza, que contou com argamassa de terra e açúcar. Léo Bahia colaborou como monitor da disciplina, e nós desenvolvemos o projeto antes do mutirão acontecer, pois para conseguir realizar a disciplina de maneira concentrada no formato mutirão, tudo precisaria ser muito bem pensado e planejado com todos os materiais previamente organizados. No formato mutirão, a maior parte das atividades transcorreu durante o final de semana, período em que os funcionários da UFBA não estão presentes no campus: o pequeno esquecimento de uma ferramenta, por exemplo, poderia comprometer uma etapa inteira de trabalho. O projeto do espaço é composto por uma pia que direciona a água cinza a um círculo de bananeira8; um forno de pizza e uma estrutura de bancada de trabalho. Para a elaboração do projeto, fizemos um levantamento dos materiais disponíveis e assim o desenvolvemos pensando na estrutura com tijolinhos maciços por haver quantidade disponível para nosso uso.
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VISTA
Desenhos esquemáticos, elaborados pela autora e Léo Bahia, da bancada de trabalho e do forno de pizza.
1º mutirão PLANTA
No primeiro mutirão, construímos as bases dos 3 objetos: o forno, a pia e a bancada de trabalho. Construímos a bancada de suporte do forno à lenha com a tecnologia da argamassa armada dias antes do primeiro mutirão. Foram duas peças de 1,20x0,50m resultando em uma bancada de 1,20x1,00m. Improvisamos uma banheira de bloco com uma lona dentro para servir de tanque de cura para a peça.
Elaboração de bancada em argamassa armada.
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Na primeira foto, os materiais e ferramentas a serem usadas durante o mutirão. Nas demais fotos, o processo construtivo da bancada de trabalho e da base para o forno. Em grupo, alteramos a diagramação dos tijolos da bancada.
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Estudantes e professores, durante a atividade da disciplina, levantando a base para pia e o forno de pizza.
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Finalização do primeiro mutirão da disciplina.
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2º Mutirão No segundo mutirão, assentamos as bancadas, construímos a cúpula do forno de pizza e fizemos a instalação hidrossanitária da pia utilizando a opção do círculo de bananeira.
Na primeira foto, Graça trabalhando no piso da pia. Na segunda e terceira foto, aplicação dos ladrilhos hidráulicos, elaborados no semestre 2018.2, na bancada construída no semestre 2019.2. Na quarta e quinta foto, etapas construtivas do círculo de bananeira, para tratamento hidro sanitário de águas cinzas da pia.
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Cúpula do forno de pizza sendo construída coletivamente durante o mutirão da disciplina.
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Na foto ao lado, estreia do forno com sessão de pizza! Abaixo, registro do forno e da bancada de trabalho finalizados. Na página ao lado, turma reunida após a finalização do segundo mutirão, última atividade da disciplina no semestre 2019.2.
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Comentários A experiência prática é um ponto de crucial importância para a formação dos arquitetos e arquitetas. Saber fazer auxilia o processo de projetar e a nossa escola carece desse espaço onde aconteçam atividades práticas regularmente, e essa lacuna é sentida pelos estudantes: a maioria deles busca a disciplina ARQ-142 por essa razão. Os ateliês de projeto podem se envolver e estimular o projeto a partir da prática. Para o aprofundamento das técnicas construtivas com terra e materiais naturais, a prática se faz essencial, e a implementação de um Canteiro pode vir a auxiliar essa formação na Escola de Arquitetura. As atividades que realizamos com esses materiais foram muito importantes, mas ainda pouco aprofundadas, não sendo suficientes para formar profissionais no assunto. O espaço formal dedicado ao Canteiro ainda não existe na FAUFBA. Termos um espaço apropriado onde possamos aprofundar as pesquisas, desenvolver protótipos, guardar ferramentas, realizar testes, é fundamental para consolidar a disciplina na faculdade. Por ser um espaço que demanda compra de materiais e ferramentas, é muito importante que haja uma destinação de verba semestral para o seu desenvolvimento. A partir de uma melhor estruturação, mais disciplinas de práticas poderão ser ofertadas, com mais vagas, maior disponibilidade de horários, possibilitando que mais estudantes participem e mais professores se envolvam. O espaço do canteiro pode promover interação com muitas disciplinas e cursos. A interação com a comunidade externa a partir de atividades de extensão poderia ser melhor aplicada e fortalecida nesse contexto.
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“É verdade que em muitos lugares o Éden está enterrado e esquecido, mas o jardim pode ser restaurado. Onde quer que haja terra sem uso, mal utilizada ou exausta, o Éden ainda está ali embaixo.
A vida brotando na parede, de hiperadobe, em construção.
“Só que nós não íamos querer escavar a terra para lhe devolver a vida, nem tentar recriar o Éden a grandes pazadas. Não, não. Não importa o tamanho do jardim- seja ele de um côvado por um, tenha ele campos tão imensos que não se veja o fim-quando se está plantando direto; deve-se afagar a terra, sem parar, remexendo pequenos punhados dela. Ser delicado. Ser econômico. Não tirar enormes pazadas para terminar o trabalho mais rápido. Como na hora de derramar o leite sobre a farinha, não se joga todo o leite de uma vez. Não, com delicadeza derrama-se um pouquinho, mexese um pouquinho, derrama-se um pouco mais, mexe-se um pouco mais, e é assim que se deve tratar a terra, com consideração, com presença de espírito.” Clarissa Pinkola Estés (2015)
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Capítulo 2
Construir com a terra
N
este capítulo do trabalho compartilharei algumas percepções que envolvem Construir com a terra a partir do “Diário de uma obra de terra”, minha primeira experiência profunda em um canteiro de obras. Antes, trarei alguns aspectos sobre construir com esse material tão valioso que é a terra... A terra é muito mais do que qualquer descrição, muito mais do que apenas um material de construção: a terra é vida. É um dos materiais mais abundantes neste planeta Terra: da terra nascemos e, quando morrermos, para ela retornaremos. A terra tem o poder de fazer nascer. Da semente que brota à folha que morre, todos têm espaço no seio da Mãe. Da dissertação de Denis Alex Barboza De Matos intitulada “A casa do “velho”: o significado da matéria no candomblé” , desenvolvida em nossa faculdade9, destaco as seguintes passagens: Em diversas culturas a terra é considerada como a “Grande Mãe”, que contém em seu ventre os subsídios mantenedores da vida, servindo também como abrigo. Além de nutrir o corpo, ela também o protege, seja das intempéries, dos animais selvagens ou do ataque de outros homens. (...) O ser feminino, matéria representante da “Grande Mãe”, é o principal detentor do poder de concepção, ente mutável, dotado de princípio dinâmico e capaz de conceber gestação e metamorfose. O corpo da fêmea está sempre em processo de transformação, vertendo sangue, contendo existência em seu
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ventre-abrigo, receptáculo da vida, parindo, amamentando e expondo para este mundo o profundo enigma da vida e da morte. O ato de concepção, na fêmea, o procriar, gerar, parir, não é mais que uma imitação da “Mãe Terra”, que realiza a gestação em grande escala. Cabaça, ovo, útero, todos são símbolos representantes deste poder numa escala menor, que enfatizam o preceito da existência. (DE MATOS, 2017, p. 32 e 34)
E por ela ser vida, para construir com ela é necessário muito mais do que cálculos. Os cálculos nos ajudam muito, mas são um meio e não o fim. A terra nos pede envolvimento, nos pede tato mais apurado, ouvidos atentos, visão treinada. Podemos sentir no tato se ela é argilosa ou arenosa, trazendo para perto ouvimos se os grãos de areia se atritam entre si, olhando atentamente vemos se há fissuras ou não. O corpo e o espírito também aprendem, não é só o intelecto. Testamos. Adicionamos aquele outro ingrediente. Voltamos atrás. Intuímos. Uma casa de terra é quase como uma escultura. As mãos se tornam ferramentas muitas vezes, dando forma e sendo fôrma. Esse envolvimento com a materialidade é incrível e com certeza não cabe em palavras, mas pode ser estimulado. E não é com uma aula teórica de slide que é possível compartilhar essa experiência sensorial: é com a prática que vamos entrando em contato com esse infinito de possibilidades que é se envolver com a terra. O professor que mostra a coisa ao discípulo e sorri enquanto aponta, Que diz: “Preste atenção! Ouça como essa música é bonita!”, Que toca mansamente com as mãos, Que lê um poema para seus alunos e se sente possuído, Está ligando o seu rosto, como memória poética, à coisa. E assim ele é o alquimista que opera a transubstanciação dos sentidos. E o mundo se enche de alegrias ausentes. (ALVES, 2018, p. 50)
Ao mesmo tempo que a terra permite esse envolvimento empírico, ela também possibilita uma aproximação teórica e, a partir dessa aproximação, conseguimos caracterizá-la e aprimorar cada vez mais as formas de sua utilização. Assim, é possível otimizar as experiências construtivas, criar métodos a serem replicados e difundir cada vez mais as técnicas. A partir do aprofundamento teórico, podemos, na prática, avaliar como a terra obtida localmente se comporta. Ou seja, não basta o conhecimento teórico, o envolvimento prático se faz sempre necessário, pois cada porção de terra obtida localmente é diferente da outra.
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Eu percebo que o espaço do canteiro e das práticas construtivas permitem esses aprendizados. Quando aliados, o aprendizado prático, o teórico e a pesquisa, potencializam as experiências educacionais, um complementando o outro. Na Academia, valorizamos muito a pesquisa associada ao intelecto, e temos pouco espaço para o saber prático que envolve o corpo. Essa ruptura do corpo e mente não existe, uma parte depende da outra. É só olharmos para nossa estrutura física. Somos inteiros, não somos pela metade. É por isso que compartilho minhas experiências práticas neste trabalho acadêmico: meu intuito é valorizar o envolvimento corporal que o saber prático proporciona sem perder de vista os aspectos técnicos para que possamos, cada vez mais, nos apropriar dos métodos construtivos em terra.
Vantagens de construir com terra Nos países industrializados, a exploração descuidada de recursos e capital, combinados com a produção intensiva de energia, não é apenas um desperdício, acaba por poluir o ambiente e aumenta o desemprego. Nestes países, a terra está voltando a ser usada como material de construção. Cada vez mais as pessoas que constroem suas casas procuram edificações eficientes econômica e energeticamente, dando maior valor à saúde e à temperatura interior equilibrada. Estão começando a perceber que a terra, como material de construção natural, é superior aos materiais de construção industriais como o concreto, tijolo e cal-arenito. Gernot Minke (2015)
A terra sempre foi um dos principais materiais de construção dos mais diversos povos ancestrais em praticamente todos os continentes. E não à toa, quando bem utilizada, ela é realmente um excelente material de construção. Durável e boa para a saúde, seguindo princípios básicos de proteção, construções de terra podem durar muito tempo, às vezes até milênios. O melhor de tudo: a terra não é tóxica para a saúde humana, muito pelo contrário: as construções de terra são excelentes reguladoras térmicas e acústicas. O barro, por ser denso, absorve o calor ajudando a equilibrar o clima interior de um ambiente, tornando os espaços mais agradáveis termicamente. Ajuda a regular também a umidade dos ambientes, colaborando para a não proliferação de bactérias e ácaros. Isso acontece porque o barro é capaz de absorver e desabsorver a umidade mais rápido e numa maior extensão do que qualquer outro material de con-
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strução, o que lhe permite equilibrar o índice de umidade em seu interior (MINKE, 2015). Vale ressaltar que a umidade interfere diretamente na saúde dos ambientes e de seus usuários e usuárias. A umidade mínima de um ambiente é de 40% e máxima de 70%. Um ambiente muito seco pode promover mucosas secas, diminuindo a resistência aos resfriados e às doenças relacionadas, inclusive problemas de pulmão. Já um ambiente muito úmido é considerado desagradável provavelmente devido à redução e ingestão de oxigênio pelo sangue em condições de quente-úmido. Em condições de ar úmido e frio, as dores reumáticas aumentam. A formação de fungos aumenta significativamente em salas fechadas, quando a umidade sobe acima de 70% ou 80%. Os esporos de fungos em grandes quantidades podem causar vários tipos de dor e alergias (MINKE, 2015). A terra nos permite construir espaços saudáveis. Outro aspecto interessante é o baixo impacto ambiental ao se utilizar a terra para construir, uma vez que ela requer apenas 1% da energia necessária para a produção, transporte de tijolos cozidos ou concreto armado (MINKE, 2015) Além disso, a construção de paredes de terra não gera resíduos: toda massa que eventualmente cai na aplicação de um reboco, por exemplo, pode ser reaproveitada, diferente de uma argamassa de cimento que seca rapidamente e se torna resíduo. Se derrubamos uma parede de terra crua, temos poucos prejuízos: ela se reintegra ao solo, não gerando entulho. Em uma palavra, se a terra amassada é ecologicamente limpa, é porque o tempo pode destruí-la completamente e pode-se tornar a usá-la tantas vezes como se deseja. Não deixar resíduos nem rastros indeléveis talvez será uma nova ambição da arquitetura. (BARDOU apud WEIMER, 2005, p. 115) Como [a terra] pode ser reaproveitada depois de seu uso, obteve a pecha de ser pouco durável. E, no entanto, aldeias erguidas dois mil anos antes da pirâmide de Quéops ainda estão em bom estado de conservação na Núbia. Os arautos da industrialização desde longa data vêm procurando desqualificá-la como material de construção e, exatamente o contrário, os graves problemas ecológicos criados pela industrialização é que estão ressuscitando as velhas técnicas de antanho - as quais têm se mostrado como as mais viáveis em um mundo ecologicamente equilibrado. (WEIMER, 2005, p. 250)
Historicamente, técnicas como o adobe e a taipa foram usadas por diferentes povos na formação da humanidade e ainda hoje são bastante
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utilizadas. Existem ainda as técnicas ancestrais como a taipa de pilão que, a partir de grandes maquinários, resultam em construções totalmente inovadoras, como é o caso desta construção de 2019 no centro da cidade de Lyon, na França, que abriga um centro multiuso. O projeto é de Clément Vergely Architectes, Diener & Diener Architekten, Michel Desvigne e a execução da Le Pisé. Para a materialização deste espaço, foram formadas peças pré-moldadas de terra compactada, colocadas uma por uma através de guindastes.
Na foto ao lado, construção em Lyon, na França, construída a partir da técnica da taipa de pilão através de métodos inovadores. Nas fotos abaixo, registros do processo construtivo onde peças pré-moldadas de terra compactada são colocadas, uma por uma, através de guindastes.
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Essa, para mim, é uma das belezas das construções de terra: daquela que exige complexos e tecnológicos maquinários para sua materialização à pequena casa que demanda poucos recursos, a terra pode ser usada nos diversos contextos construtivos. Ao comparar as técnicas de construção empregadas nos tempos antigos e as praticadas hoje, constata-se que elas evoluíram, passando por transformações e adaptações próprias do conhecimento adquirido através das investigações, das práticas e do meio socioeconômico e cultural onde elas são executadas. Assim, a força de trabalho do homem vai sendo substituída por equipamentos e ocorre a introdução de materiais regionais e de materiais sintéticos. (NEVES, 2011, p.10)
Por isso, eu acredito que o retorno às técnicas construtivas com terra não é, de forma nenhuma, um retrocesso, mas sim um resgate de um material amplamente usado e que pode, aliado a novas técnicas e pesquisas, ter cada vez mais aprimoradas suas formas de uso na construção civil.
Templo do Canto do Uirapuru recém inaugurado.
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Diário de uma obra de terra A partir daqui, compartilharei algumas reflexões do processo construtivo do Canto do Uirapuru, resultando numa espécie de “Diário de obra”, sob uma perspectiva técnica, afetiva e crítica do processo. Essa experiência foi o divisor de águas que me mostrou a importância do envolvimento no canteiro. Foi a partir dela que percebi o quanto pode ser rico e prazeroso o aprendizado durante uma construção para a formação em arquitetura, e foi depois dessa vivência que comecei a visualizar a importância desses espaços na Academia. Foram feitos muitos registros fotográficos durante a obra, permitindo que este trabalho, mesmo sendo desenvolvido tempos depois, pudesse ser recheado de exemplos visuais. Outras informações referentes aos traços das massas, por exemplo, não foram minunciosamente guardadas por nós. Mas, de qualquer maneira, meu objetivo ao compartilhar esta experiência é o seu registro, sem o caráter de “receita” ou fórmula de “como se tem que fazer”.
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Nesse sentido, por entender que este trabalho se insere num contexto acadêmico, no qual o projeto é, geralmente, o instrumento principal na formação das/os arquitetas/os e que o processo construtivo fica muitas vezes escanteado, acredito que o compartilhamento desta experiência pode enriquecer o canteiro enquanto sala de aula, e os profissionais que o compõem enquanto detentores de Saber. Além disso, por se tratar de uma obra que utiliza materiais pouco abordados na FAUFBA (terra, palha, esterco, baba de palma, etc), entendo que compartilhar este processo pode incentivar estudos sobre os usos desses recursos como materiais de construção contemporâneos. Durante a obra, participei de alguns momentos de forma imersiva, evidenciando que muitas escolhas projetuais se dão durante o processo construtivo dentro do canteiro a partir de diálogos com os profissionais envolvidos na obra. Essa experiência me mostra, mais uma vez, o quanto o canteiro de obras pode ser um espaço rico em trocas.
Canto do Uirapuru O Espaço Canto do Uirapuru é um templo de práticas xamânicas localizado em São Gonçalo dos Campos, Recôncavo baiano e cidade da região metropolitana de Feira de Santana, na Bahia. Janaína e sua mãe, Dona Chica, desejavam construir um espaço no quintal delas para que os rituais, que antes aconteciam na sala de casa, pudessem acontecer apropriadamente no espaço externo. Nesse contexto, em 2018, meu amigo Marcos Botelho, que é engenheiro civil e bioconstrutor, me chamou para fazer o projeto arquitetônico, cabendo a ele os projetos de engenharia, a gestão e a execução da obra, inclusive toda a análise e execução das técnicas em terra.
O projeto é processo Em termos de desenhos arquitetônicos, para o Canto do Uirapuru foi desenvolvido um projeto sem nenhum detalhamento, apenas planta, corte e fachadas. Foi meu primeiro projeto construído, e eu não sabia muito bem o que era importante ser detalhado para uma obra. A partir desses desenhos, Botelho desenvolveu os projetos complementares. Por causa dessa falta de amadurecimento da minha parte, eu pude vivenciar uma experiência muito marcante pra mim, que vinha de uma longa formação acadêmica focada em desenhos para uma situação completamente diferente. Nesse caso, ao invés de investir muito tempo produzindo desenhos, eu pude dedicar mais tempo me envolvendo na construção. Eu comecei a perceber que o projeto pode ser mais do que desenho, ele é também processo. E que o projeto não
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precisa acabar com a entrega dos desenhos aos clientes. Algumas decisões executivas foram surgindo conjuntamente ao longo do processo construtivo a partir dos diálogos com os demais profissionais e com a família. Dessa forma, o projeto deixa de ser um documento rigoroso que determina o quê e como fazer, da suposta autoria de um único profissional, para se tornar maleável e passível de interferências dos demais profissionais que compõem o canteiro, onde eles podem contribuir com suas experiências, o que evidencia a natureza coletiva da arquitetura: é um fruto coletivo desde o projeto até a materialização. A partir dessa vivência com o Canto do Uirapuru, comecei a me envolver ativamente na disciplina ARQ-142 e com ela a aproximação das discussões políticas e sociais ao redor do projeto e canteiro. Sérgio Ferro (2002, p.4) fala que o projeto, como está posto no mercado da construção civil, é um instrumento de dominação do operariado, o qual dita as regras do canteiro e de como cada detalhe deve ser construído tornando o trabalho daqueles que executam, de certa maneira, alienante, porque dessa forma se retira a possibilidade desses profissionais imprimirem suas próprias escolhas estéticas e técnicas. Segundo o autor, antigamente, os projetos de arquitetura nasciam nos canteiros de obra, muitas vezes sem arquiteto, mas através dos construtores que dominavam totalmente seus ofícios. Hoje, o contexto no canteiro é de cisão entre arquitetos e os profissionais da construção civil, geralmente pedreiros e ajudantes. Canteiro esse que, muitas vezes, o arquiteto nem visita. Em entrevista, Sérgio Ferro fala sobre a dificuldade de promover um canteiro realmente participativo: Mas eu acho que é utopia pensar em experiências de liberdade participativa no meio da não-liberdade, no meio da sociedade em que a gente vive. Entretanto, eu acho que hoje em dia, em certos bolsões de liberdade que começam a se criar – junto ao Movimento Sem Terra, o Movimento Sem Teto ou da auto-gestão participativa, etc. – muito mais do que no meu tempo, é possível avançar nessa experiência. Aí há realmente um chão menos destruído, menos corrompido do que era o nosso chão, no nosso tempo. (FERRO, 2006, p. 2)
No canteiro, um instrumento de comunicação entre arquiteto e obra é o desenho. Muitos dos profissionais de obra não possuem nem mesmo aproximação com a leitura de desenhos técnicos de arquitetura e engenharia. Plantas, cortes, detalhes e desenhos técnicos não são amplamente lidos por pedreiros, aumentando ainda mais a cisão e tornando ainda mais alienante a relação desses profissionais com o trabalho.
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Passamos anos na graduação tendo uma formação intensa de desenhos técnicos e quando saímos do espaço universitário, nos deparamos com um cenário onde os profissionais da construção civil muitas vezes não têm aproximação com essa linguagem dos desenhos. Tal fato nos mostra o quanto estamos, na Academia, descolados da realidade construtiva, assim como a falta de formação dos profissionais da construção civil colabora para a precarização de suas condições de trabalho.
Sobre o espaço Compartilho neste tópico o desenho do Canto do Uirapuru. Porém, como foi dito, muitas alterações foram feitas durante a obra. Muitas dessas alterações, inclusive, os desenhos das plantas e cortes são incapazes de mostrar. Mesmo assim, busquei diferenciar com cores o antes e o depois. Em laranja está o que havia sido desenvolvido previamente, mas foi alterado. Em azul, as adições que foram acontecendo ao longo da obra. Em preto, o que se manteve. Em relação ao uso, o projeto contempla o espaço dos rituais xamânicos, que chamamos de templo, e um sanitário externo, ambos no fundo da casa preexistente. O templo possui estrutura com formato hexagonal indicada pelas proprietárias: o formato faz referência à Oxóssi, Caçador das Matas, de uma flecha só. O espaço hexagonal também faz referência ao Santo Daime. Para o espaço dos rituais, as proprietárias desejavam que fosse possível atender 20 a 25 pessoas deitadas ou 35 a 45 pessoas sentadas. A partir dessa informação, estabelecemos uma área capaz de abrigar confortavelmente os rituais. O diâmetro total é de 9m, resultando em 47,7 m² de área útil e aproximadamente 52,50 m² de área total sem contar com beiral. Visando conectar o espaço interno com o verde das matas do lado de fora, as paredes não são totalmente fechadas. Assim, o Vento tem livre passagem. Na cobertura, há uma abertura hexagonal fruto do encontro das vigas recíprocas, com cerca de 60cm de diâmetro. Essa abertura fica exatamente no centro da cobertura. O ar quente, que tende a subir, tem a saída facilitada dessa maneira. No piso, foi indicado um círculo de contato com a Terra, exatamente embaixo da abertura na cobertura, estabelecendo conexão entre céu e terra. Esse círculo possui um diâmetro de 1m. Antes seria maior, para poder garantir que a Água da chuva que entrasse pela abertura da cobertura fosse absorvida pela parte permeável de terra. Porém, Botelho trouxe uma solução interessante: instalar pentes de piaçava na abertura da cobertura, para que a água da chuva que entrasse na diagonal, pudesse escorrer pelos cabelos da piaçava e ser direcionada ao centro. Dessa forma, reduzimos o tamanho do círculo do piso.
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Jana contou que, durante os rituais, esse espaço circular no chão se tornou uma espécie de altar. Esse objetivo não estava previsto nos desenhos, mostrando que o uso também é capaz de alterar o projeto. Quem se apropria do espaço é também coautor. Esse tipo de interferência evidencia que um projeto de arquitetura nunca vai poder abarcar a totalidade de possibilidades e experiências que um espaço pode promover. Segundo Jana: “O Fogo está representado no sim, na vontade e fé de comungar desta verdade que o templo Canto do Uirapuru carrega. ” Ela me contou que quando chove durante os rituais, a água da chuva que entra pela abertura da cobertura também faz parte do processo. Os quatro elementos que nos regem e que nos compõem estão presentes em tudo e todos. Eles interferem no espaço, eles são o espaço. Os elementos são autores. As janelas dos banheiros fazem referência aos símbolos dos quatro elementos: Terra, Fogo, Água e Ar. Durante os rituais, é muito importante o livre acesso ao banheiro. Ao mesmo tempo, elas não desejavam que fosse tão próximo a ponto de permitir que o bater de portas, descargas, torneiras, e toda a movimentação relacionada ao banheiro fossem ouvidas. Por isso, pensamos que o banheiro pudesse ser externo ao espaço. Foi proposto dois sanitários e uma pia, resultando em uma área total de 8,76m², sem contar com beiral. O saneamento ecológico do banheiro é feito através de biodigestor10. Para projeto de construção com terra, dois aspectos são muito importantes: elevação do solo e beirais generosos. A elevação do solo protege as paredes de terra da umidade de capilaridade ascendente. No Canto do Uirapuru, tivemos uma elevação de aproximadamente 25 cm. Os beirais protegem das chuvas, quanto maior o beiral, maior a garantia de proteção da parede toda, inclusive, das chuvas fortes que vêm na diagonal. Os beirais indicados no projeto foram de um metro de extensão que, segundo alguns profissionais da área, é o ideal para uma boa proteção de uma parede de um pavimento. Na execução da obra, pela disponibilidade das peças, o beiral ficou com aproximadamente 85 cm.
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planta e corte do templo
Planta Baixa do Templo Planta Baixa
1 3,50
3,50
1 1
A
A princípio havíamos previsto uma mão francesa para suportar a carga do telhado, que seria PRODUCED de telha BY cerâmica. Diante do peso e do desconforto que a mão francesa geraria ao uso do espaço, optamos por uma A telha mais leve. Outras mãos francesas foram adicionadas, nesse caso, suportando as demais vigas.
A
A
3,50
A
AN AUTODESK STUDENT VERSION
N
5m
Cor
ESK STUDENT VERSION N AUTODESK STUDENT VERSION
PRODUCED BY AN AUTODESK STUDENT VERSION
antes
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projeto construído
a do Templo 0,8 5
3,35
PRODUCED Planta Baixa do Templo BY AN AUTODESK STUDENT VERSION
5
0,8
A
3,35
A
N
A
No canteiro, percebemos que seria interessante aumentar a angulação das paredes para enfatizar o formato de estrela. O beiral precisou ser diminuído por causa da disponibilidade das peças das vigas. Desenhos da autora (2020)
A
5m
N
5m
5m Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro | 99
C
PRODUCED BY AN AUTO
antes
planta e corte do banheiro
N N 1
1
1
N 5m 100 | Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro
5m
projeto construído
0,8
0,8
0,8
1
N 5m Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro | 101
A vivência no canteiro de obras Aqui não há intenção em romantizar o canteiro de obras, mas ampliar o leque de possibilidades oferecidas por esse espaço. Esse canteiro, mesmo fora do espaço universitário, foi uma das experiências mais importantes da minha graduação. Toda noção aprendida através de aulas teóricas dos sistemas construtivos se materializava, semana após semana, in loco. Eu pude aprender sobre instalações elétricas e hidráulicas na prática, perceber os fluxos de obra e sua gestão, me apropriar dos recursos disponíveis no local, interagir com o espaço e com as pessoas. Pude ver o projeto tomando forma, perceber espacialmente o que significam “47m²” e até mesmo reconhecer as falhas de projeto, e o que poderia ter sido previsto... Esse processo foi bem interessante porque pude começar a amadurecer a noção do que de fato é importante ser representado no desenho e o que pode ser deixado para ser decidido no canteiro. Se cada estudante de arquitetura passasse um semestre no canteiro, trabalhando na obra, pegando na enxada, batendo massa, assentando bloco, pedindo ajuda aos pedreiros, ouvindo o que o eletricista tem a dizer e o que o ajudante pode ensinar, acredito que teríamos arquitetos mais atentos aos processos construtivos e que veem no espaço do canteiro um espaço rico em aprendizado e trocas. Interagindo com os desenhos no canteiro.
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No canteiro do Canto do Uirapuru, os profissionais que fizeram parte da obra foram:
Eguinelson e Marcos Botelho no preparo de massa.
-Marcos, engenheiro civil responsável e bioconstrutor; -Eguinelson, ajudante de pedreiro, esteve presente do início ao fim da construção; -Seu Zé Lito, pedreiro que executou a fundação, o piso e o telhamento da cobertura; -Seu Aécio, encanador e eletricista, executou a passagem dos tubos hidráulicos e fez a instalação elétrica; -Seu Antônio, Mestre carpinteiro, executou toda a parte estrutural em madeira e a cobertura; -Léo, ajudante de carpinteiro; -Rocío, arquiteta bioconstrutora, trabalhou como voluntária na etapa de reboco grosso; -Lívia, bioconstrutora, trabalhou na etapa de reboco fino; -Kanéa, Júlia e Leiliane foram voluntárias após a vivência realizada; -Para os registros fotográficos profissionais, contamos com o olhar sensível de Camila, Kin e Milene. Além desses profissionais e voluntárias, contamos com a presença da família como um todo, amigos, amigas e tantas outras pessoas que auxiliaram na construção, seja no mutirão, na vivência, ou organicamente ao longo do processo.
Fundação A fundação e o piso foram executadas através dos métodos construtivos industrializados. Para fundação, vigas baldrames e brocas pontuais nos pilares. O projeto estrutural foi desenvolvido por Marcos Botelho. A execução da fundação levou um pouco mais de uma semana, entre marcação do espaço, escavação, compactação do solo, montagem da armação metálica e concretagem. Para este processo, contamos com a execução de Seu Zé Lito, Eguinelson e Marcos. Nesta fase, eu estive presente durante a marcação e escavação.
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Na primeira foto, escavação para a fundação do banheiro.
Na terceira foto, blocos canaleta e armação metálica colocadas.
Na quinta foto, vigas baldrame e brocas concretadas.
Na segunda foto, escavação para broca pontual do pilar.
Na quarta foto, perímetro do banheiro escavado com tubulação hidro-sanitária instalada.
Nas fotos da página ao lado, registros da fundação desde a escavação até a elevação do piso com blocos.
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Estrutura de madeira Tivemos a presença de um grande mestre na obra: seu Antônio. Ele contou com o trabalho de seu ajudante, Léo. Carpinteiro daqueles que quase não usa ferramenta elétrica, usa régua e esquadro, mas o olho já está treinado e nem sempre precisa medir o que vai cortar: o seu Saber está no corpo inteiro. Curiosamente, ele nunca havia trabalhado com madeira roliça. Mas a experiência é tanta que nem mesmo esse detalhe atrapalhou Seu Antônio. A presença dele foi de extrema importância para a boa execução da estrutura. Ele trouxe muitas sugestões que não haviam sido previstas no projeto e a tranquilidade de executar as vigas recíprocas, desafio inédito para todos do canteiro.
Acima, Seu Antônio que “no olho” sabe a angulação necessária das peças. Ao lado, registros dos encontros das peças de madeira executadas pelo Mestre e seu ajudante, Léo. Detalhes dos encontros das peças de madeira.
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No Canto do Uirapuru, a estrutura de madeira é composta por pilares, vigas e mãos-francesas. Para vencer o vão de 9 metros, propomos o desafio de vigas recíprocas na cobertura, as quais descreverei melhor no tópico seguinte. A supra-estrutura11 da construção foi feita com madeira roliça de Eucalipto. O tratamento em autoclave do Eucalipto é por vezes considerado nocivo, além de seu plantio que, por ser em forma de monocultura, não segue os princípios agroecológicos de produção, que têm como base a biodiversidade. No Brasil, tem sido amplamente usado por conta da facilidade de acesso e preço reduzido. O potencial da madeira para a construção, porém, é grande. Quando analisamos estudos comparativos entre estrutura de madeira e estrutura de concreto armado, percebemos que para a produção de Eucalipto menos CO₂ é emitido e o consumo de energia para sua produção é menor (VARA, 2015). Eu acredito que, com o incentivo da pesquisa, seja possível aprimorar as técnicas de tratamento e, através de métodos agroecológicos, cultivar o Eucalipto de maneira integrada com o sistema de plantio.
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Ao lado, Seu Antônio e Marcos conversando sobre a estrutura. Na segunda foto, instalação do primeiro pilar do banheiro e na terceira, estrutura do banheiro finalizada, inclusive o madeiramento da cobertura. Na página ao lado, estrutura de madeira do templo, pilares e vigas colocadas, mãos francesas ainda em processo de instalação. Na segunda e terceira fotos da página ao lado, Seu Antônio e Léo trabalhando na estrutura do templo.
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Estrutura recíproca Consiste em uma estrutura feita de vigas que se apoiam mutuamente em um circuito fechado (POPOVIC, 2008). Propus esse tipo de estrutura para a cobertura do templo, que possui um vão de 9m. São seis vigas ao total, apoiadas, cada uma, em um pilar. Na medida que aumentamos a inclinação das vigas, aumentamos a abertura central. No caso, tivemos vigas com aproximadamente 20% de inclinação e 60 cm de abertura central, em forma de hexágono.
Ao lado, estudos do princípio de reciprocidade com palitos de bambu. Abaixo, peças de madeira colocadas exatamente embaixo de onde as futuras vigas recíprocas virão a ser encaixadas, servindo como referência no prumo.
Para a execução, primeiro fizemos o estudo com peças de madeira, deixando-as como referência no prumo para as vigas. Com uma peça vertical de apoio, a primeira viga é instalada. Com a instalação de todas as vigas, a peça de apoio é retirada. Para a conexão entre as vigas e pilares, encaixes foram feitos nas peças.
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Colocação das vigas recíprocas e a peça de espera por baixo.
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Na primeira foto da página ao lado, trabalho com ferramentas manuais de Seu Antônio, que corta viga para ser encaixada no pilar. Ao lado, a união faz a força para levantar as vigas recíprocas!
Na primeira foto desta página, Leo e Eguinelson no encaixe da viga no pilar. Acima, colocação das vigas comandada por Seu Antônio.
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Estrutura recíproca da cobertura finalizada. Na página ao lado, acima, Instalação do madeiramento da cobertura do templo. Na página ao lado e abaixo, cobertura com madeiramento e telhas instaladas.
Cobertura Como as técnicas de terra utilizadas por nós não foram autoportantes, construímos primeiro o “esqueleto” estrutural de madeira, e assim conseguimos instalar a cobertura, para então iniciar o processo com a terra. Essa é uma vantagem ao se construir primeiro a estrutura, pois garantimos proteção das paredes em relação às intempéries no momento da construção. A cobertura utilizada foi de fibra vegetal impermeabilizada com betume e resina. Segundo o fabricante, mais de 50% do material utilizado é reciclado. Optamos por esse material pois era um tipo de telha facilmente encontrada na região e por ser mais leve que a telha cerâmica, resultando em menos madeira na cobertura.
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Como conseguir a terra? Apesar de ser um material abundante, essa é uma questão quando se deseja construir com ela. A depender do tamanho da construção, do tamanho do terreno e de sua topografia, nem sempre é possível retirar toda a terra do próprio local da obra. Nós utilizamos parte da terra do terreno, fruto da escavação para a instalação hidrossanitária do biodigestor. Havia também uma terra excedente que havia sido escavada para a cisterna, construída antes de chegarmos. É habitual que sejam priorizados o emprego da terra do próprio local onde se fará a construção e a utilização de somente um tipo de terra. Porém, algumas vezes, a terra resultante de uma mescla de dois ou mais tipos de solo produz melhores resultados. Em geral, a mescla de diferentes tipos de solo ocorre quando a terra do local é muito argilosa, ou muito arenosa, e quando a incorporação de menor quantidade de outro solo melhora as propriedades que lhe fazem falta. (NEVES, FARIA, ROTONDARO, CEVALLOS, HOFFMANN, 2009, p. 12)
Muitas vezes é necessário trazer terra de fora. Para isso, um caminho possível é quando há excedentes de movimentações de terra em regiões vizinhas. Foi como conseguimos boa parte da terra utilizada. Com o olhar atento, vimos uma caçamba com terra circular pelas ruas de Feira de Santana. Segundo Botelho, foi reconhecido que a terra tinha característica geológica semelhante à do terreno, que já havia sido testada. Entramos em contato com o caçambeiro e como seria descartada, pôde ser deixada no nosso canteiro de obra. Em meios urbanos, o acesso à terra é ainda mais restrito. Se desejamos estimular seu uso mesmo nesses meios, é necessário desenvolver estratégias para otimização de obtenção e distribuição de terra. Estratégias possíveis seriam a integração entre o transporte de terra excedente, fruto de movimentações de obras, com os locais que utilizarão terra para construir. Em Salvador, devido à topografia acidentada, existe um fluxo de movimentação de terra significativo, apontando a potencialidade do uso de terra para construção na região.
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Testes de terra A terra é produto da erosão de rochas da crosta terrestre. Ela é composta por argila, silte e areia, e as vezes componentes maiores como cascalho e pedras. A engenharia a classifica através da granulometria dos seus grãos, sendo considerada argilosa, siltosa ou arenosa quando houver predominância de determinado grão. Gernot Minke (2015)
Cada um desses componentes atua de maneira diferente e cada porção de terra é única. Por isso, antes de começar a construir com ela, é importante realizar testes para se ter uma melhor noção da sua composição e prever seu comportamento, a estabilizando ou fazendo correção granulométrica, caso seja necessário. No tópico “Adição de materiais à terra” eu compartilho informações complementares a respeito. Existem testes laboratoriais que apresentam resultados bastante precisos e também os testes possíveis de serem realizados em campo. Através do tato e observação visual, se faz a classificação inicial, a qual é melhorada através de outros testes expeditos, convenientemente denominados: testes do vidro, do cordão, da fita, de exsudação, da resistência seca, da caixa, entre outros. Estes testes, que indiretamente avaliam a granulometria, a capacidade de trabalho e a retração do solo, verificam a textura e o comportamento da terra em diversas situações e identificam as técnicas construtivas mais adequadas.(CEPED, CONESCAL, CRATERRE, FRANÇA, HERNÁNDEZ e MÁRQUEZ, HOUBEN e GUILLAUD, KEABLE, MERRIL, MINKE, RIGASSI apud NEVES, FARIA, ROTONDARO, CEVALLOS, HOFFMANN, 2009, p. 15)
Para o Canto do Uirapuru, além das análises sensoriais táteis e visuais, foram feitos os testes do vidro, teste da resistência seca e teste do rolo. Segundo Botelho, o que se percebeu a partir dos testes realizados e da observação da terra, foi que a terra do próprio terreno, bastante parecida com a terra vinda de fora, era arenosa nas camadas mais superficiais e argilosa nas mais profundas. Ele pôde perceber isso no momento que se escavou uma certa profundidade para a instalação hidrosanitária. Segundo Minke (2015, p. 23 e 24): Tal como o cimento no concreto, a argila funciona como agente de ligação entre as partículas maiores no barro. O silte, a areia e os agregados constituem os agentes de enchimento do barro. O autor conclui que a proporção da expansão e da retração depende do tipo e da quantidade de argila e também da distribuição granulométrica do silte e da areia.
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Analisando o barranco de terra acumulada, assim como a parede de taipa, percebemos uma terra bastante estável, que não apresentou rachaduras significativas, indicando um bom percentual entre areia e argila, necessitando pouca correção nesse sentido. Independente da qualificação do solo, através de ensaios de laboratório, o conhecimento popular na arte de construir com terra pode indicar decisões, mesmo empíricas, tão eficientes quanto a qualificação resultante de ensaios normalizados, executados em laboratórios. Os testes de campo, que resultam de uma saudável combinação entre o saber popular e o conhecimento do meio técnico, são, muitas vezes, as únicas provas que se podem fazer para selecionar a terra e construir. (NEVES, FARIA, ROTONDARO, CEVALLOS, HOFFMANN, 2009, p. 14)
Técnicas construtivas de terra Para o Canto do Uirapuru, diferentes técnicas construtivas de terra foram utilizadas. Neste tópico mostrarei cada uma delas contextualizando histórica e tecnicamente a partir de referências de autores que já se aprofundaram especificamente em cada técnica, e contextualizando com a experiência no Canto do Uirapuru. Farei uma análise mais aprofundada especificamente na técnica do hiperadobe por entender que, por ser recente, ainda é pouco abordada na literatura técnica. Legenda das citações Abordagem histórica Descrição técnica
Taipa de mão (Pau-a-pique) “[...] Outra técnica construtiva muito interessante e usada em várias regiões caracteriza-se pela combinação de madeira, bambu, varas, palha, fibras, com a terra e, eventualmente, aglomerante. Conhecida como taipa de mão, taipa de sopapo, pau-a-pique ou também taipa no Brasil, ela recebe nomes variados em outros países, tais como quincha, bahareque, estanqueo, fajina. PROTERRA (2003) propõe a denominação geral do sistema como “técnica mista”, porém conservando as variadas nomenclaturas em cada região. Resumidamente, a técnica mista consiste em uma estrutura portante, de madeira, unida por entramados reticulados de madeira ou varas e coberta com uma massa plástica de terra. Em geral, os efeitos da retração da massa de enchimento muito pronunciados exigem um revestimento posterior à secagem, para deter o efeito desagregador. O uso da técnica mista se dá em climas variados, desde regiões com temperaturas elevadas até as mais frias, e em atitudes desde o nível do mar até as mais elevadas, nas montanhas. As edificações apresentam excelente desempenho durante os constantes abalos sísmicos, característicos em vários
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países da América Central e América do Sul” (NEVES, 2011, p. 9 e 10) A taipa de mão foi a técnica mais utilizada na construção. Essa técnica foi escolhida por estar presente no imaginário popular e na memória afetiva local da família e dos envolvidos. Utilizamos principalmente peças de biriba colhidas na lua minguante, em um vilarejo vizinho. Usamos essas peças para fazer o gradeamento, que ficou com 15 cm de espaçamento. Ao total, contando com as camadas de reboco, as paredes de taipa ficaram com 20 cm de espessura. Um detalhe muito importante para a escolha dessas peças é a utilização principalmente de peças retas, o que resulta na posterior economia de massa do reboco. Varas tortas resultam em saliências ou reentrâncias que precisam ser corrigidas com massa.
Gradeamento de madeira e preenchimento do paua-pique das paredes do templo. Nas fotos da página seguinte: Janela triangular do banheiro e parede do templo sendo preenchida com terra.
Para o preenchimento da taipa foi utilizada a própria terra local com adição de areia. Na parte de baixo das paredes, como parte de seu preenchimento, inserimos restos de obra como pedaços da cobertura, tijolos quebrados, pedaços que sobraram da estrutura de eucalipto, etc, o que resultou em economia de massa de preenchimento com descarte de resíduos. Em cima do madeiramento, prendemos garrafas, formando um efeito visual a partir da incidência de luz. Na parede do templo voltada para a vizinhança, adicionamos mais palha ao seu preenchimento, visando auxiliar no isolamento acústico. No banheiro também foi utilizada a técnica do pau-a-pique na maior parte das paredes. Arquitetura na prática com a terra: graduação no canteiro | 119
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Paredes de adobe e taipa do banheiro,
Adobe A construção com adobes ou blocos de barro se propagou por todos os climas quentes e secos, subtropicais e temperados do planeta. Encontram-se no Turquistão, Rússia, construções de adobe que datam 8000 a 6000 a.C. e na Síria há 4000 a.C. No norte do Egito, veem-se, hoje em dia, estruturas monumentais de 3200 anos de antiguidade, como as paredes enormes de blocos de terra da fortaleza de Medinet Habu; e as abóbadas do templo mortuário de Ramsés II, em Gourna. (...) Durante séculos, os índios do povo Taos, Novo México, construíram suas habitações com adobes, utilizando a terra do local, a água dos rios próximos e a palha das suas colheitas de cereais. O centro histórico da cidade de Shibam, Iémen, com aproximadamente 20.000m², e no qual se penetra através de uma porta, foi construído completamente de adobe. A maioria dos edifícios atinge oito andares de altura e datam do século XV. Na Escandinávia e Inglaterra, a construções com torrões de terra (em inglês sod) foi muito comum nos séculos XVII e XVIII. (...) Na Alemanha, a utilização dos adobes na construção data desde o século VI a.C. (MINKE, 2015, p. 72) O adobe é um componente fabricado com terra em estado plástico, moldado sem necessidade de compressão, com auxílio de moldes, e, uma vez seco, é usado na execução de alvenaria, geralmente unidos por uma argamassa preparada com uma mistura muito semelhante a do adobe, para parede autoportante, parede portante, arcos, abóbadas e cúpulas. Ele pode ser usado para gerar formas ortogonais e curvas, contanto que se respeite sua característica de resistência à compressão. (...) A técnica mais difundida é a que utiliza moldes de madeira para fabricação de uma ou duas unidades ao mesmo tempo, geralmente de forma retangular. O molde é preenchido com a mistura que é preparada com solos do local e água, e, em muitos casos, com a adição de agregados para controlar as fissuras, tais como vegetais, esterco e pelos de animais. (ROTONDARO, 2011, p. 17)
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Os adobes utilizados por nós foram reaproveitados de uma antiga casa de Belém de Cachoeira, localidade próxima a São Gonçalo. Na ocasião, Botelho foi visitar o avô que mora lá e viu a movimentação para a derrubada da casa. Perguntou ao pessoal se poderia aproveitar os tijolos e a resposta foi positiva. Dias depois, ele e Eguinelson colaboraram com a demolição de algumas paredes. Selecionaram os adobes sobreviventes, resgataram e posteriormente os assentaram com massa de terra. Os adobes da antiga casa viraram parede do banheiro.
Na foto da esquerda, adobes de casarão antigo que serão reaproveitados para a construção do banheiro. Na foto da direita, início do assentamento de adobes no banheiro.
COB Há evidências que a construção com cob começou na Europa há cerca de 800 anos atrás. Algumas construções que foram feitas nos séculos XVI e XVII ainda estão de pé. Na Inglaterra, existem aproximadamente 50.000 de COB ainda em uso. A maioria delas foram construídas nos séculos XVIII e XIX. Infelizmente, com o advento da construção de tijolo queimado e alianças políticas entre esses produtores de tijolos e construtores, a arte e habilidade de fazer casas com cob quase morreu na Europa no século XIX. (BEE, 2018) Fazer COB é um processo melhor descrito como emplastrar lama. Terra, areia e palha são misturados e massageados sobre a fundação, criando grosas paredes resistentes. (BEE, 2018) Usualmente, a técnica do COB possui larga base, com cerca de 40 cms e, à medida que vai subindo, vai diminuindo sua grossura, caracterizando essa técnica com qualidade estrutural. No nosso caso, a técnica do COB foi realizada em cima dos adobes, limitando sua base à espessura dos tijolos. Por não suportar nenhum tipo de carga, e por ter apenas 1 metro de altura, a sua base mais fina não traz nenhum tipo de problema para nossa parede.
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Caso se deseje inserir garrafas na parede, é importante já estar certo de como ficará a disposição das garrafas. No caso do banheiro, criamos primeiro o padrão no chão, de acordo com as medidas in loco, e assim as garrafas foram sendo colocadas na medida que a parede de COB era feita.
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Cordwood Exemplares com aplicações análogas da técnica podem ser mais antigos, mas a construção em cordwood se tornou mais atrativa e popular após as primeiras serras manuais serem fabricadas em massa, por volta de 1840, e ainda mais com o surgimento de serras motorizadas, por volta de 1860 (ROY, 2016, p.22). Um grande número de habitações aplicando a técnica foi erguido em regiões da Europa e da América do Norte. Em muitos casos, o resíduo de madeireiras que despontavam nestas regiões foi usado pelos próprios funcionários e moradores próximos para erguer suas residências, galpões e celeiros. (E SILVA, 2019, p.20) No nosso caso, aplicamos a técnica de Cordwood com pedaços de eucalipto que sobraram da estrutura. A massa de terra utilizada foi semelhante à massa de COB. Em cima, na parte onde não há mais troncos de eucalipto, continuamos com a mesma massa, podendo dizer que completamos com a técnica de COB. As paredes receberam acabamento grunhido, com colher de pedreiro.
Hiperadobe O superadobe foi criado em 1984, quando a Agência Aeroespacial Norte Americana (NASA) reuniu arquitetos e engenheiros com o intuito de criar um método eficiente para se construir na lua. O fundador do superadobe foi o arquiteto iraniano Nader Khalili, que conseguiu criar um modelo construtivo para ser implantado na Lua sem ter que levar grande quantidade de material, e sim utilizar o próprio material do local. (BENVEGNÚ, 2017, p. 30) Então uma evolução desta técnica foi proposta pelo engenheiro brasileiro Fernando Pacheco, chamada hiperadobe, com principal diferença o uso do saco Raschel invés de saco de polipropileno. (...) O hiperadobe é uma técnica bastante apropriada no Brasil, por suas diversas vantagens e com a indústria produzindo sacos raschel para construção, facilita a sua execução. (BILETSKA, 2019) Os sacos de Raschel são preenchidos com solo e passam por um processo de compressão, que pode ser manual ou mecânico, para depois serem posicionados uns sobre os outros, formando estruturas que servirão de paredes para a construção. (LIBRELOTTO, p. 3, 2013) A técnica do hiperadobe resulta em paredes de 40 a 50 cm de espessura. São verdadeiras fortalezas e, a depender da configuração da planta, podem ser estruturais. Utilizamos a técnica do hiperadobe para construir dois
Na foto ao lado e abaixo, parede de COB com garrafas. Na terceira foto, estudo prévio, no chão, da disposição das garrafas a serem postas na parede. Na quarta foto, banco de COB nos banheiros, os quais não haviam sido previstos na fase anterior de projeto. Na quinta foto, início da parede de Cordwood.
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bancos externos durante a vivência de Bioconstrução. Adicionamos 10% de cimento na fiada da base, para prevenir a capilaridade ascendente. Se diz que o ideal para essa técnica é que a terra tenha cerca de 30% parte argilosa e 70% parte arenosa. Para a construção dos bancos de hiperadobe, usamos a mesma terra do preenchimento da taipa. A terra não deve estar muito molhada, mas levemente úmida, conhecida popularmente como “farofa”. No caso de terra comprimida, a identificação da umidade pode ser feita em campo, com razoável precisão por um processo expedito. Consiste em tomar uma porção da mistura, já umedecida, e comprimi-la com a mão: ao abrir a mão, o bolo formado deve guardar o sinal dos dedos e, quando deixado cair da altura de 1 metro, deve espatifar-se (desagregar-se). Caso não se consiga formar o bolo com a mão, a umidade é insuficiente; caso o bolo, ao cair, mantenha-se coeso, a umidade é excessiva. (NEVES, FARIA, ROTONDARO, CEVALLOS, HOFFMANN, 2009, p. 29)
As ferramentas utilizadas para a técnica são: pilão, martelo de borracha ou um batedor de madeira e funil (pode ser um cone cortado) para colocação do saco. O saco vem numa bobina e já existem fornecedores que vendem o material pronto para uso.
Registro da Vivência de Bioconstrução, onde adicionamos cimento à terra que preenche a fiada de base do banco de hiperadobe.
Para uma boa fluidez de execução dessa técnica, o ideal é que haja, no mínimo, 4 pessoas para executá-la. A primeira pessoa enche baldes com terra, a segunda transporta esses baldes para a terceira pessoa, que pega os baldes e transfere a terra pro saco, que está sendo segurado pela quarta pessoa. Preenchida a fiada, compactamos com um pilão, até a estrutura se tornar bem rígida e dura.
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A cada três fiadas, com um batedor de madeira ou martelo de borracha, compactamos lateralmente. Com um prumo, vamos conferindo a regularidade das paredes, importante observar em todas as fiadas, para não resultar em buracos ou barrigas. E com um nível de bolha vamos conferindo a superfície. Para a massa de reboco de terra, utilizamos barbotina, esterco, areia e sisal. Detalharei melhor a parte dos rebocos nos tópicos seguintes. Como os bancos estão expostos às intempéries, a massa final do reboco teve adição de cimento.
Na foto acima, bancos de hiperadobe prontos. Na foto ao lado, temos a “terceira pessoa” virando o balde e enchendo o saco com terra e a “quarta pessoa” segurando o funil com o saco Na foto abaixo, compactação da fiada de hiperadobe após seu preenchimento com terra.
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Mutirão de construção Uma prática muito comum em comunidades tradicionais é a reunião em formato de mutirão para construir algo. Ainda hoje mutirões acontecem, principalmente nas comunidades periféricas. O processo do mutirão é muito rico porque, além de envolver diversas pessoas no processo construtivo, ele é educativo também, pois inclui pessoas com e sem experiência em construir. No caso de mutirões de construções com terra, o processo é ainda mais sadio, pois não estamos lidando com materiais tóxicos. Crianças e grávidas podem participar, meter mão e se envolver com a terra. Tivemos um mutirão no canto do Uirapuru para o preenchimento das paredes de taipa. Aconteceu em um dia de sábado, e contamos com a presença de amigas, amigos e familiares da casa. Como nem sempre em mutirões contamos com pessoas que possuem prática em construir, o ideal é que a técnica escolhida para ser feita em coletivo seja simples de ser executada, mesmo por leigos, não gerando retrabalho de “consertar” o que foi feito. O preenchimento do pau a pique é facilmente executado em mutirões. Neste mutirão, a maioria das pessoas era leiga no assunto. Eguinelson trazendo massa para dentro do Templo durante o mutirão.
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Para manter o fluxo do mutirão, a massa não podia acabar! Contamos com Eguinelson e Marcos para bater a massa na betoneira e transportar com carrinho de mão para dentro do templo. Inclusive, a betoneira esteve presente desde o início da taipa até a finalização dos rebocos, otimizando o processo de preparo da massa. Em um dia de mutirão, preenchemos quase metade das paredes. No final do dia, tivemos uma comida deliciosa de Dona Chica para fechar com chave de ouro! Construir coletivamente com pessoas queridas pode ser muito especial.
As crianças fizeram parte do mutirão! Foto: Camila Bahia (2018)
Adição de materiais à terra A partir do teste de composição da terra e da escolha da técnica a ser utilizada, podemos analisar se iremos adicionar determinados materiais para conferir objetivos específicos, promovendo estabilização do solo. Sobre a estabilização dos solos, temos: A expressão estabilização de solos se refere, em seu sentido mais amplo, a todo processo através do qual o solo melhora suas características, adquirindo assim as propriedades necessárias à finalidade a que se destina. A estabilização de solos para adequá-los ao uso que se pretende não é um procedimento recente. Como se sabe, a adição de asfalto natural ou palha na produção de adobes, para diminuir a permeabilidade ou reduzir a retração, é uma prática milenar. O apiloado, por compactação ou prensado, a mistura com outros solos para melhorar suas características granulométricas (denominada estabilização granulométrica) e a adição de aglomerantes são tipos de estabilização de uso muito freqüente no campo da Engenharia. (NEVES, FARIA, ROTONDARO, CEVALLOS, HOFFMANN, 2009, p. 13)
Além de poder trabalhar a terra a partir da sua dosagem granulométrica12, podemos adicionar outros tipos de materiais ao barro, objetivando alcançar diferentes propriedades. Na etapa do reboco, que será melhor descrita no tópico seguinte, além da terra foram usados areia, fibra, esterco, baba de palma e azeite de dendê queimado. A fibra também auxilia no processo de redução das fissuras, segundo Minke, (2015, p. 49):
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Quando se adicionam fibras como pêlo de animal, fibras de coco, sisal, agave, bambu e palha a retração se reduz. Isto se deve ao fato de que o conteúdo relativo de argila se reduz e parte da água é absorvida pelos poros das fibras. Também se reduz o surgimento das fissuras, já que as fibras aumentam a coesividade da mistura.
O autor também acrescenta que o uso das fibras contribui para o aumento da resistência à compressão e para o isolamento térmico. No documento Seleção de solos e métodos de controle na construção com terra – prácticas de campo, é possível encontrar informações sobre esse tipo de estabilização:
Registro durante a Vivência de Bioconstrução, no qual a fibra, neste caso de sisal, foi adicionada no preparo da massa do reboco dos bancos.
Estabilização por armação: consiste em agregar ao solo um material de coesão (grãos ou fibras), que permitam assegurar, por fricção com as partículas de argila, uma maior firmeza ao material. Segundo Bardou e Arzoumanian (1979), a resistência mecânica final do material é diminuída, mas se ganha em estabilidade e durabilidade. Não há determinação específica para os materiais a serem empregados, pois depende da disponibilidade e das adaptações locais. Podem ser citadas, principalmente, as fibras vegetais. (NEVES, FARIA, ROTONDARO, CEVALLOS, HOFFMANN, 2009, p. 13)
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Palha de braquiária seca utilizada durante a obra. Sabemos que está seca pela sua coloração amarelada.
Nós utilizamos fibra de braquiária seca na maior parte do reboco e nas paredes de COB. É importante lembrar que, para utilizar a fibra, ela precisa ter secado bem ao sol, para não haver deterioração posterior. Caso ocorra, pode ser queimada com maçarico.
Deterioração da palha na parede e a posterior queima com maçarico.
A adição do esterco serve para ajudar na estabilização por impermeabilização, conferindo à terra resistência à ação da água. Conseguimos o esterco em uma fazenda próxima da região. Produtos animais como sangue, urina, esterco, caseína e cola animal foram usados durante séculos para estabilizar o barro. (...) se for utilizado o esterco, ele deve ficar em repouso de 1 a 4 dias para permitir a fermentação; o efeito de estabilização aumenta consideravelmente devido ao intercâmbio de íons entre os minerais da argila e do esterco. (...) Investigações efetuadas no Laboratório de Construções Experimentais (LCE) mostraram que uma amostra de reboco testada com a prova de aspersão com jatos de água começa o processo de erosão em 4 minutos, enquanto que uma amostra com 3,5% em peso de esterco começou a apresentar erosão após 4 horas. (MINKE, 2015, p. 50)
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Coleta do esterco em fazenda próxima. Ao lado, o esterco batido com água formando o “creme”. Na terceira foto,buraco escavado no solo onde posteriormente recebe uma lona para formar a “banheira” de esterco.
Assim que conseguimos o esterco bovino e equino, fizemos a montagem improvisada de uma “banheira” para que ele pudesse ser fermentado. O esterco é batido com água e um pouco de terra em um tanque até virar um creme, é peneirado e depois deixado sob a lona para curtir. Por questões de logística de obra, preparamos o esterco todo de vez e deixamos ele na “banheira” na medida que fomos usando. A baba de palma é um estabilizador vegetal bastante usado em construções com materiais naturais que também foi utilizada por nós. Por ser um cactus abundante nas regiões do semiárido, foi muito fácil consegui-lo nas redondezas. A adição de óleo de linhaça no reboco é conhecida na literatura por ajudar na estabilização por impermeabilização. Para nós, como teste, utilizamos azeite de dendê queimado por ser um material abundante na Bahia e que, muitas vezes, vira resíduo.
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Teste dos rebocos Assim como fizemos testes antes de começar a construir para entender melhor a terra que tínhamos disponível, fizemos também teste com a massa do reboco para diferentes traços e analisando qual o melhor resultado. Aplicamos os testes em uma das paredes internas do banheiro.
Testes com diferentes traços para o reboco, aplicados na parede interna do banheiro. A cor é acinzentada mas não há adição de cimento.
Reboco e o preparo Os rebocos naturais ajudam a proteger as paredes de terra e muitas vezes cumprem o papel de cobrir eventuais fissuras que possam vir a surgir por conta da evaporação da água. É muito importante ter em vista que os acabamentos de construções em terra não devem selar os poros das paredes, de maneira que impeça sua respiração. Isso causa umidade destrutiva dentro das paredes. (BEE, 2018)
Para o Canto do Uirapuru, aplicamos três camadas de reboco: grosso, grosso-fino e fino. Mas antes de caracterizar cada uma destas três camadas, descreverei o processo de preparação dos materiais a serem utilizados no reboco e as ferramentas utilizadas. Os principais elementos do reboco utilizado foram: a barbotina, areia, fibra e esterco. Também utilizamos baba de palma, azeite de dendê queimado e um pouco de cinzas. A barbotina feita nesta obra consistiu em uma massa bem líquida de terra e água. Como essa massa é bastante utilizada, para otimizar o processo, um
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grande volume é preparado e deixado já pronto numa caixa d’água. Para a realização da mistura, se utiliza uma furadeira e um misturador. Não existe uma regra fixa para essa proporção de terra e água. É importante que, após misturada, a barbotina seja peneirada pois eventuais pedaços de terra aglomerados ou pedriscos ainda resistem. Optamos
Nas fotos acima, colocação de terra na caixa d’água e mistura sendo realizada para o preparo da barbotina. Na terceira e quarta foto, a massa de barbotina sendo peneirada e sua textura final.
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Nas fotos ao lado, diferentes tipos de misturadores utilizados para o preparo da barbotina, usados com uma furadeira de alta potência. Abaixo, palha sendo cortada com facão em uma base de madeira para posterior adição à massa de reboco.
por peneirar após a mistura ser feita, pois o processo de peneirar fica mais rápido com a terra seca. A fibra para ser utilizada tem de estar seca. A fibra foi colhida no terreno ao lado da obra. Ela precisa ser cortada e, para isso, usamos um facão sobre uma superfície de madeira. Há métodos mais otimizados, como por exemplo, o uso de cortador de grama com a palha dentro de um tonel. Para o reboco grosso, o tamanho da fibra é de até, aproximadamente, 12 cms e para o grosso-fino, 4 cms. O esterco depois de curtido fica com uma consistência cremosa. Para a etapa do reboco fino, ele é peneirado com uma peneira fina.
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Ao lado, creme de esterco curtido e peneirado para elaboração de massa do reboco fino. Opuntia ficus-indica (tabaibeira, figueira-dodiabo, figueira-da-índia, piteira, tuna, figueiratuna, figueira-palmeira ou palma) é uma espécie de cacto. Planta comum em regiões semi-áridas.
A areia foi comprada localmente e, com frequência, vem com pedriscos. Por isso, peneiramos com uma peneira média, pois esses pedriscos são ruins para a aplicação da massa. Para o reboco fino, a peneira é ainda mais fina, a mesma utilizada para o esterco.
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A palma é cortada e deixada de molho na água por pelo menos dois dias. Para sua utilização, precisa ser peneirada para as fibras serem retiradas.
A palma foi colhida nas redondezas e cortada em pequenos pedaços, deixada de molho com água por pelo menos 2 dias, formando assim a baba de palma. Ela é peneirada antes de ser usada para que qualquer pedaço de fibra seja retirado e apenas o líquido viscoso, a baba, seja usada. Já descrito o processo de preparo das matérias-primas, agora descreverei cada uma das camadas de reboco realizadas nesta construção. Muito importante: para a aplicação das camadas de reboco é fundamental que as paredes estejam secas. É possível perceber isso através da mudança de tonalidade da parede. O reboco grosso é assim chamado pois sua granulometria é grossa, sendo composto por barbotina, areia e fibra. É uma camada mais bruta, tem a função de cobrir o madeiramento que ficou exposto após o preenchimento do pau-a-pique, ajudando, inclusive, na regularização das paredes caso se Na foto da esquerda, desempenadeiras de madeira de vários tamanhos para a aplicação de reboco grosso e grosso-fino. Na foto da direita, através da diferença de coloração, vemos que a parte de cima ainda está úmida e a de baixo seca. Para a aplicação do reboco, é preciso que esteja completamente seca.
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Parede de taipa com madeiramento a mostra. No canto esquerdo da imagem, vemos o início da aplicação do reboco grosso finalizado com desempenadeira de madeira.
queira um acabamento mais aprumado. Foi aplicado com a mão e suavizado com desempenadeira de madeira. Nas extremidades, utilizamos eventualmente colher de pedreiro. Sua espessura final é de 2 cm. Já o grosso-fino é composto por barbotina com baba de palma, esterco e areia. É chamado assim pois sua granulometria é grossa porém sua espessura final é fina, com 0,5 cm. Essa camada intermediária de reboco vem com a função de cobrir eventuais rachaduras da camada do reboco grosso. Ela é aplicada com as mesmas ferramentas da camada anterior. Na aplicação dessa camada, o cuidado com a regularidade da superfície é maior pois para a próxima camada, que é a do reboco fino, é importante que a superfície esteja o mais plana possível. A última camada antes da tinta é do reboco fino, que exige muito rigor e limpeza de todas as ferramentas. Qualquer eventual resquício de pedrisco na massa atrapalha a aplicação. Esta camada é composta por barbotina, esterco, areia, tudo peneirado na peneira fina, formando um creme. Recebeu óleo de dendê queimado. As ferramentas para aplicação desta camada foram metálicas.
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Na primeira e segunda foto, desempenadeira de madeira pequena e colher de pedreiro estreita, ideal para aplicação de massa nas extremidades. Na terceira foto, desempenadeira metálica para aplicação do reboco fino. Na quarta foto, aplicação de massa do reboco fino. Na quinta foto, preparo de pequena porção de massa, servindo como teste do reboco fino. Podemos notar a pequena porcentagem do azeite de dendê queimado no centro. Na sexta foto, parede com reboco fino finalizado.
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Piso Para o piso do Canto do Uirapuru foi utilizada a técnica popular do cimento queimado, o qual recebeu pigmento vermelho. A execução desse piso foi feita por Seu Zé Lito. No projeto, foi indicado um caimento do piso direcionado para o círculo central, para que eventuais respingos de chuva fossem devidamente direcionados à parte permeável de terra.
Tinta de terra Muitas tintas industrializadas vendidas no mercado liberam compostos orgânicos voláteis (COVs) prejudiciais à saúde: trata-se de material tóxico aos seres humanos e ao meio ambiente. O uso dessas tintas é ruim para os usuários dos espaços e principalmente para os profissionais que estão em constante contato com esses produtos. Os COVs podem durar por anos dentro dos ambientes.
Na foto acima, processo de execução do piso de cimento queimado. Ao lado, teste de cores no fundo da parede do banheiro.
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A lista de doenças causadas pelo contato constante com esses compostos é muito grande e vai desde irritação na pele, depressão, irritação em várias partes do corpo a alguns tipos de câncer (GUÍO, 2013). Muitas pessoas desconhecem esses males e, por serem facilmente encontradas nas lojas, essas tintas ainda são bastante utilizadas. As tintas de um modo geral:
Pintura com tinta de terra durante a Vivência de Bioconstrução.
(...) são compostas por pigmentos, líquidos, adesivos ou colas. Os pigmentos dão cor, enquanto os líquidos e adesivos servem para dar fluidez e a viscosidade necessárias para transportar e fixar os pigmentos nas superfícies. Há vários tipos de pigmentos, líquidos e adesivos que podem ser utilizados na produção de tintas.Os pigmentos e adesivos podem ser de origem mineral, animal, vegetal ou sintética, enquanto os líquidos podem ser água, óleos ou solventes. (CARVALHO, 2019, p. 3)
Existem receitas de tintas feitas a partir de pigmentos, líquidos e adesivos com baixa ou nenhuma toxicidade à saúde humana. De um modo geral, essas tintas não liberam compostos orgânicos voláteis. Nas paredes do Canto do Uirapuru aplicamos tinta de terra que, no nosso caso, foi composta por terra argilosa/siltosa, cola branca e água, além
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do óleo de linhaça, para ajudar na impermeabilização. Na tinta para as paredes externas, por estarem expostas às intempéries, uma pequena porcentagem de emulsão asfáltica foi adicionada, escolha que promove aumento da toxicidade dessa tinta externa. O traço de nossa tinta foi de 8% de cola, 2% óleo de linhaça, externo 3% de neutrol. A proporção entre água e terra não foi registrada. A terra foi retirada de um barranco de uma estrada próxima. A cor da argila e do silte dão o tom da pintura. A tinta de terra não libera compostos orgânicos voláteis, resultando em um material com baixa ou nenhuma toxicidade. Como teste, aplicamos os diversos tons na parede do fundo do banheiro. Parte da pintura externa do templo aconteceu durante a Vivência de Bioconstrução. Para elaboração das tintas de terra, é necessário que o material, já em estado líquido, seja peneirado com uma peneira extremamente fina. Para aplicação das tintas de terra, usamos pincéis e rolo de lã de carneiro.
Elaboração da tinta de terra durante a vivência de Bioconstrução. Sua textura é macia e não é tóxica como as tintas vendidas comercialmente
Peneira feita por Botelho especificamente para a elaboração das tintas de terra. Fotos: autorais (2020)
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Plasticidade das construções “O barro, como nenhum outro material de construção, tem características para se transformar em material plástico ao ser misturado com água, e assim adquirir a capacidade de modelamento.” Gernot Minke, 2015
Trabalhar com paredes de terra nos permite plasticidade e liberdade para inserir diversos tipos de elementos. Para a dinâmica de uso do espaço do templo, é importante ter onde deixar os sapatos antes de entrar. Inserimos garrafas em uma das paredes para servir de suporte para que os usuários deixassem os sapatos. A garrafa também permite transparência e entrada de luz. Janelas com formatos inusitados não geram grandes transtornos para serem inseridas na técnica do pau a pique. Na parede onde está a entrada, inserimos jarros cerâmicos para servirem de jardineiras. Nos banheiros, bancos moldados in loco sob a técnica do COB e externamente, bancos de hiperadobe nos permitiram formatos orgânicos.
Janelas triangulares na parede do pau a pique. Foto: autoral (2018)
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O biodigestor, equipamento responsável pelo saneamento do banheiro, antes de ser instalado.
Saneamento local Um ponto importante ao se falar em bioconstrução é o tratamento do esgoto produzido nos espaços construídos. Na Permacultura, o esgoto não é resíduo. Quando inserido em um ciclo fechado de tratamento e tendo seus dejetos bem destinados, o esgoto passa a ser solução no sistema, e para isso existem diversas técnicas de saneamento do esgoto nas quais seu tratamento é resolvido localmente, sem precisar se deslocar a uma estação de tratamento longínqua, quando existente. O biodigestor é uma destas técnicas e, no nosso caso, foi usado um biodigestor industrializado, com capacidade de 500 L. Optamos por ele pois naquele momento não nos sentimos preparados para construir outra tecnologia de saneamento. O biodigestor funciona através da digestão anaeróbia das bactérias. É gerado lodo ao longo do processo e deve ser retirado após meses de uso, no leito de secagem que deve ser construído ao lado. Ao final do processo, ele libera efluente que deve ser direcionado para um círculo de bananeira ou alguma outra espécie que absorva a água. No nosso caso, direcionamos para um pequeno cajueiro que já estava no local. Segundo relatos das proprietárias, o cajueiro cresceu bastante depois da implementação do sistema. O biodigestor durante o processo de instalação.
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Vivência de bioconstrução As vivências práticas e cursos são importantes motores de difusão das técnicas construtivas com terra, bambu, e tantos outros materiais naturais. Evidenciando, mais uma vez, a obra enquanto processo educativo. Nessas vivências, é recorrente termos participação de pessoas das mais diversas áreas não restritas ao público profissional da construção civil. No Canto do Uirapuru, organizamos uma vivência ao final da obra que foi facilitada por Marcos e eu. Muitas das etapas construtivas da construção já haviam sido finalizadas, mas deixamos algumas partes da construção “por fazer”, visando a finalização durante a vivência. Aconteceu durante 3 dias e os participantes puderam acampar no terreno. Os tópicos abordados por nós durante a vivência foram: análise do solo e testes com amostras de terra, conclusão de uma parede com a técnica do COB, construção de bancos em hiperadobe e a aplicação de reboco com terra. Além disso, também abordamos o preparo de tintas de terra e a posterior pintura externa do templo e aplicação de reboco de terra. Contamos com a explicação do então estudante de engenharia sanitária, Beto Gama, sobre o funcionamento do saneamento ecológico pelo biodigestor.
Momento explicativo durante Vivência. Foto: Camila Bahia (2018)
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Mulheres reunidas durante a pintura coletiva das paredes do templo.
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Em Tiébélé, Burkina Faso, na África, as mulheres da cultura Kassena retocam e pintam as paredes externas de suas casas de terra. Os desenhos são cheios de significados e histórias.
Mulheres constroem o mundo Como a terra, que nutre e gera a vida, as mulheres carregam no ventre o poder do nascimento. Assim como a terra, as mulheres também são símbolo de fertilidade. A conexão das mulheres com a terra é ancestral e sagrada. No contexto brasileiro do canteiro de obras, ainda causa estranhamento para alguns homens ter mulheres como colegas de trabalho. Quantas mulheres pedreiras você conhece? Infelizmente o cenário da construção ainda é bastante masculino e muitas vezes machista. Mesmo assim, o número de mulheres no canteiro vem crescendo. Segundo o IBGE, desde 2007 até o primeiro semestre de 2018 a presença das mulheres neste mercado aumentou 120% resultando em 239.242 mulheres até então. Na bioconstrução, é também crescente o número de mulheres que têm buscado se especializar e trabalhar na área. Em cursos, vivências e capacitações, é frequente vermos mais mulheres do que homens. Se elas são a maioria nestes cenários, porque elas não são a maioria, ou pelo menos um número igualitário, dentro dos profissionais em ascensão? Essa é uma pergunta trazida por Bárbara Silva, arquiteta, urbanista e bioconstrutora, em entrevista dada ao podcast do canal Bioconstruir.org com o tema “Mulheres na Bioconstrução: Desafios e Reflexões’’. Segundo Bárbara, uma resposta possível é por conta das oportunidades que são diferentes, existe a dificuldade das mulheres se inserirem no cenário
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profissional. Primeiro por toda dificuldade que existe em se profissionalizar no meio - que ainda é elitizado - e segundo porque para uma mulher se mostrar competente a realizar um serviço é preciso de muito mais provas do que um homem. Bárbara conta que no seu trabalho no interior do Maranhão, onde ela atua na capacitação de construtores locais para realização de técnicas construtivas com materiais naturais, por vezes é difícil ser levada a sério por outros homens. “Como uma mulher - uma coisa que não é comum no cenário da construção - quer me ensinar uma técnica se eu sou um profissional há anos?” são perguntas frequentes, segundo ela. Muitos destes profissionais já têm resistência em técnicas com materiais naturais, quando vindo de uma mulher, essa situação nem sempre é recebida com abertura pelos construtores. Segundo a arquiteta, existem situações onde é necessário uma voz masculina reafirmar o que ela já havia orientado na capacitação, ou ela precisar ouvir orientações de homens sobre coisas que ela já sabe e faz parte do trabalho dela. Questões como assédio são ainda problema. Na sociedade patriarcal que vivemos, situações como essas são, muitas vezes, naturalizadas. Na entrevista, Bárbara fala o seguinte: “Então, você tem que trabalhar sempre numa postura um pouco mais rígida, embora tenha todo seu perfil…. Sou uma pessoa que tem a característica de ser muito aberta, muito brincalhona, levo muito a sério essa questão da relação com o profissional ali no canteiro de obra, porque realmente é uma troca. Apesar de estar na posição de capacitadora, eles também tem muita coisa a me passar, a gente cresce junto ali. Então de que modo essa relação, esses posicionamentos, esse modo de expressar é recebido pelo outro e de que modo esse outro está se referindo a mim enquanto pessoa, enquanto mulher, naquele universo?” (SILVA, 2020) Finalização de parede de COB.
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São muitos aspectos que as mulheres vivenciam no canteiro de obras que os homens não têm ideia por não passarem. Este retrato está presente em muitos contextos de uma sociedade patriarcal. Não tenho dúvidas que o potencial das mulheres para construção é gigante. Que possamos ocupar também estes espaços! No Canto do Uirapuru tivemos a presença feminina no canteiro. Além de Jana e Dona Chica, suas familiares e amigas que eventualmente colaboraram, tivemos durante momentos pontuais voluntárias. Contamos também com Rocío, arquiteta que trabalhou no reboco grosso e Lívia, geóloga e bioconstrutora que trabalhou na etapa do reboco fino.
Na foto acima, realização do mosaico por mãos femininas. Inclusive, a escolha de realizar o acabamento em mosaico aconteceu durante a obra. Aplicação de reboco do banheiro por Lívia.
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Descrença de alguns pedreiros Existem muitos estigmas sobre estas técnicas construtivas. Dialogando com pedreiros, quando falo que trabalho com construções de terra, muitos comentam sobre memórias afetivas da infância, lembrando que construíam assim com o pai, mas que hoje não se envolvem mais com essas técnicas. Comentários como esse são bastante frequentes. Alguns se mostram abertos a retomar práticas com a terra e aprender novas técnicas. Alguns se mostram ainda relutantes. No Canto do Uirapuru, os construtores locais, Seu Zé Lito e Eguinelson, pedreiro e ajudante de obras, de início não colocaram muita fé na obra. Ao fina, já com o olhar mudado, seu Zé Lito comenta com Botelho que o que fizemos é arte.
Usar materiais naturais torna a construção mais barata? Eu vejo com frequência sites e reportagens vendendo, de maneira bastante superficial, a ideia de que através da “Bioconstrução” você constrói sem gastar quase nada. E evidentemente, esse tipo de informação atiça a curiosidade daqueles que sonham em construir a casa própria. Antes de afirmar que uma construção com materiais naturais, ou uma Bioconstrução será mais barata, é preciso observar como se dará seu processo construtivo. De um modo geral, podemos dizer que em uma obra com técnicas industrializadas, 50% do seu custo é relativo aos materiais e 50% à mão de obra. Em obras cujo a terra corresponde a principal materialidade das vedações e/ou estrutura da construção, essa composição chega a ser de aproximadamente 25% destinado aos materiais e 75% à mão de obra. (HOFFMAN, 2020) Como mostrei ao longo deste diário, muitas das matérias-primas obtidas gratuitamente como recursos naturais precisam ser trabalhadas para enfim se tornarem “materiais de construção”. Ou seja, investe-se principalmente na mão de obra e não nos materiais. A depender da mão de obra, dos recursos disponíveis e do tipo de acabamento que se deseja chegar, a obra pode sair, inclusive, mais cara. Em contrapartida, quanto mais otimizado for o processo construtivo, mais barato se tornará. Essa otimização pode se dar através de equipamentos, pelo prévio planejamento da obra, pela ação do coletivo, etc.
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A betoneira para a mistura das massas de terra.
No canteiro do Canto do Uirapuru os elementos que tornaram o processo mais otimizado foram: – A utilização de betoneira, facilitando a produção das massas; – A reutilização de adobes já prontos; – O uso de uma furadeira de alta potência com um misturador para a mistura rápida e eficiente da barbotina; – O preparo de uma grande quantidade de barbotina ao invés de vários pequenos preparos. E para isso, ter uma grande caixa d’água, baldes grandes ou tonéis disponíveis para guardar esses materiais; – A cobertura já estar instalada antes do início das etapas construtivas em terra, economizando o tempo diário de cobrir com lona e facilitando a secagem das paredes; – A escolha das varas retas para o pau-a-pique, ajudando na redução significativa da massa do reboco; – A inserção de todos os resíduos da obra dentro do pau-a-pique ajudando na diminuição do volume total de massa de preenchimento; – O mutirão no qual as pessoas puderam ajudar em parte do preenchimento do pau-a-pique; – A vivência de bioconstrução que materializou dois bancos, fechamento de uma parede e a primeira camada de pintura externa. Com um aperfeiçoamento da vivência nos canteiros, com certeza, essas etapas vão se otimizando cada vez mais, como em qualquer outra obra. Quanto mais artesanal for o processo, mais tempo leva. Quanto mais automatizado, mais rápido.
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Além do tempo das coisas, outro aspecto importante a se considerar é que a terra não compõe a totalidade da materialidade de uma construção. Para subir uma estrutura, temos a fundação, portas, janelas, elementos hidrossanitários e elétricos, estrutura, cobertura… etc. Resultando na necessidade de gasto com a compra dos demais materiais necessários. A reutilização de alguns elementos construtivos, como por exemplo peças em madeira de demolição, podem permitir, talvez, uma diminuição no custo total da obra. Ainda assim, não é totalmente garantido, uma vez que essas peças podem exigir algum tratamento posterior e uma logística custosa para enfim chegarem ao destino da obra. Em um contexto de obra autogestionada ou autoconstruída, na qual se contrata pouca mão de obra, o custo total da construção se reduz consideravelmente. Em contrapartida, se essa autoconstrução não contar com alguém com experiência construtiva, o tempo investido na construção pode ser consideravelmente maior. Além das possíveis falhas a serem corrigidas posteriormente, quando e se forem reversíveis. Por isso a importância da assessoria técnica. No final das contas, a resposta da pergunta seria: se estivermos lidando com mão de obra contratada, não necessariamente a obra sairá “mais barata” por ser de materiais naturais. Porém, se estivermos lidando com uma construção autogestionada ou autoconstruída, é mais possível que sim.
Templo de portas abertas para receber infinitas experiências.
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Fim da obra Acima, a relação do espaço, entre banheiro e templo. Na foto abaixo, Jana, Ravi, eu e Dona Chica! Na primeira foto da página ao lado, o templo visto de fora. Na segunda foto, a parte interna do templo.
Após 4 meses de obra, eis que a construção nasce, abre suas portas para receber tantas outras pessoas e proporcionar tantas outras experiências. Vai se desgastar com o tempo, vai receber retoques, talvez passe por reforma, provavelmente vai receber limpeza no biodigestor, um dia vai ter telha trocada… Tanta coisa pode vir a acontecer nessa construção. Como a pele envelhece, ela também vai sofrer influência do Tempo. Ela também passa por experiências. O espaço também tem vida. O espaço tem magia. Hoje as paredes desse espaço carregam um pouco mais de memórias e experiências do que há dois anos, quando essas fotos foram tiradas. Os usuários do templo interferem no espaço, cocriando possibilidades de uso e realidades distintas, particulares, sobre o que significa estar ali, presentes.
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Na foto ao lado, registro do banheiro finalizado. Na foto abaixo, janelas do fundo do banheiro, que possuem formato dos símbolos dos quatro elementos. Na primeira foto da página ao lado, cabelos de piaçava presos no centro da cobertura. Na segunda foto ao lado, Dona Chica e eu, felizes no espaço construído!
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Registros do templo durante ritual. O espaço é co-criado pelos usuários.
Jana contou que, durante os rituais, esse espaço circular no chão se tornou uma espécie de altar. Esse objetivo não estava previsto nos desenhos, mostrando que o uso também é capaz de alterar o projeto. Quem se apropria do espaço é também coautor. Esse tipo de interferência evidencia que um projeto de arquitetura nunca vai poder abarcar a totalidade de possibilidades e experiências que um espaço pode promover.
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Considerações finais Neste trabalho, vimos um pouco sobre o potencial da terra como material de construção: no aspecto da autonomia e acessibilidade de materiais, da saúde dos ambientes construídos e do menor impacto ambiental. Apesar de o potencial ser grande, muitos imaginários equivocados e pejorativos precisam ser desconstruídos. É muito importante que os Mestres artífices que resistem transmitindo um legado histórico de técnicas construtivas com terra e outros materiais sejam valorizados e a tradição popular reverenciada. Essa é a base histórica dessas técnicas construtivas, e encará-la sem preconceitos é o primeiro passo para a desconstrução de estigmas. No interior do Brasil são muitas as casas em condição precária construídas de terra. Isso acontece mesmo quando sabemos ser possível, com a própria terra e materiais naturais facilmente acessíveis, restaurar e ressignificar essas moradias. Nesse sentido, o déficit habitacional poderia ser minimizado com o incentivo político do aprimoramento das técnicas construtivas que utilizam os materiais naturais disponíveis. Porém, se de um lado temos tradições ancestrais sendo violentamente substituídas por técnicas industrializadas que rompem com essas tradições, temos também, de maneira menos significativa, mas com certeza crescente, a pauta das construções com materiais naturais tomando força através de movimentos ambientalistas, as chamadas bioconstruções. A internet e as redes sociais têm sido um importante veículo de difusão dessas técnicas, mas nem tudo o que é divulgado na internet tem fundamento: muitas informações são superficiais, sem muito rigor ou compromisso e acabam por colaborar com mais desinformação do que com formação. A
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lacuna de formação técnica nesse campo relega às bioconstruções, muitas vezes, um tom de improviso, como se não fosse necessário aprimoramento e técnica no assunto, o que é um equívoco. A lacuna de formação técnica preparada para construir com materiais naturais está presente nos mais distintos profissionais da construção civil, sejam arquitetos, engenheiros, pedreiros ou mestres de obra. Hoje existem os profissionais que trabalham no meio das bioconstruções, e são conhecidos como bioconstrutores, mas não existe um padrão mínimo de qualidade para o exercício da profissão, que é relativamente nova, apesar de possuir raízes ancestrais. É comum que muitas pessoas que desejam trilhar esses caminhos, ao não encontrar referências acessíveis de profissionalização na área, se desmotivem por não conseguir meios de se manter na jornada. Nesse cenário de lacunas, as “construções sustentáveis”, “bioconstruções” ou simplesmente construções com materiais naturais acabam se tornando um produto de nicho, o que é uma grande ironia, visto que muitas dessas técnicas são de origem popular. A grande parcela da população que detém esses saberes como forma de subsistência é subestimada e menosprezada, inclusive muitas vezes desconhecendo que existe uma gama de pessoas nadando contra a maré para acessar essas tradições. No campo da construção formal, quem deseja construir contratando profissionais acaba esbarrando num mar de desafios que muitas vezes acaba por desmotivar os interessados em construir dessa maneira. Desde a dificuldade de encontrar profissionais capacitados, a logística para conseguir os materiais “não convencionais” como a terra, bambu e etc., a pouca referência para encontrar informação de qualidade na internet… O processo acaba sendo muito “artesanal” e é preciso bastante paciência e envolvimento para que os processos fluam bem. É muito importante pensar estratégias de como difundir e capacitar profissionais para trabalhar com esse tipo de construção para, quem sabe assim, difundir informação de qualidade, desmistificar e aperfeiçoar as logísticas de trabalho com a terra e outros materiais naturais no contexto da construção civil, sem perder de vista o respeito ao material sagrado. A proposta não é sucumbir ao ritmo do capitalismo, mas facilitar o acesso a esses conhecimentos e aperfeiçoamento das técnicas. O que eu tenho percebido no campo da arquitetura é que os profissionais que desejam trabalhar na área precisam dedicar um esforço especial para correr atrás desses conhecimentos construtivos, não se limitando a noções de projeto. Nesse cenário, é preciso que busquem saber sobre todas as etapas que envolvem essas obras para poder fornecer orientações
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pertinentes a quem deseja construir, facilitando o processo. Vindo de uma faculdade de arquitetura, sei que esse não é bem o contexto de formação dos profissionais: somos formados para o desenvolvimento de projetos, não para o envolvimento com os processos construtivos da obra e do canteiro. É necessário que haja uma busca pessoal nesse sentido, pelo menos foi assim no meu caso. Os Canteiros Experimentais são, nesse sentido, espaços possíveis nas faculdades de arquitetura para uma formação mais ampla, que permite a experiência construtiva e evidencia a força desse aspecto profissional. A Universidade, enquanto instituição de pesquisa que trabalha à serviço da sociedade, pode e deve ser suporte para essa luta. É essencial a formação de arquitetas e arquitetos capacitados em projetar e construir com terra. As faculdades de arquitetura precisam olhar para as construções de terra de maneira mais aprofundada, pois elas representam parte significativa das construções do Brasil. Disseminar técnicas saudáveis de construção com terra e outros materiais naturais disponíveis é um caminho possível para amenizar o enorme déficit habitacional que nosso país possui e reduzir os impactos ambientais gerados pela construção civil. No início do trabalho, falei de Dona Marlene. Através da sabedoria popular, há 35 anos o pai dela construiu uma casa com a terra que pisa. A casa pôde abrigar gerações, onde hoje os netos de Dona Marlene moram. É um direito dela se sentir orgulhosa com sua casa, mas infelizmente não é o caso. Espero que com esse trabalho possamos, como formiguinhas, contribuir para que técnicas de qualidade sejam difundidas. Quem sabe assim, Dona Marlene e mais tantas outras brasileiras e brasileiros possam se sentir felizes e orgulhosas de habitar construções com um dos materiais mais abundantes da Terra.
Preparo de massa de terra com os próprios pés.
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Notas 1Comunidade tradicional pesqueira em Salvador e símbolo de resistência diante da especulação imobiliária que acontece nos seus arredores. Por estar localizada em uma encosta e diante da falta de infraestrutura necessária, eventuais deslizamentos de terra acontecem ali, principalmente durante as épocas de chuva.
6 Na FAUFBA temos o curso diurno e noturno com diferentes disciplinas. Analiso o curso diurno no qual fiz parte.
2 Peças conectadas por nós não fixos, permitindo o movimento de abrir e fechar, o que torna a estrutura retrátil.
9 no Programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo (PPGAU)
3 Metodologia de ensino desenvolvida por Paulo Freire, centrada na realidade socio-cultural do estudante e não do professor ou do ensino (GADOTTI, 2000)
11 Supra-estrutura diz respeito à estrutura acima da fundação, infraestrutura à estrutura de fundação.
4 LEI Nº 11.888, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2008. “Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005”. BRASIL, 2008. 5 técnica construtiva com terra, também conhecida como pau a pique, taipa de mão, taipa de sebe, taipa de sopapo, etc.
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7 Arquitetura e Construção com Terra 8 Técnica de saneamento ecológico para tratamento específico de águas provenientes de pias e chuveiros (a chamada água cinza).
10 Sistema de saneamento no qual abordarei ao final do trabalho
12 Mencionada neste trabalho no tópico dos Testes de terra
Terminologias Materiais industrializados: São materiais que passaram por processos industriais, produzidos a partir da transformação de matérias primas obtidas diretamente na natureza. Exemplo: Vergalhão de aço, cimento, etc. Técnicas com materiais industrializados: São as técnicas construtivas que utilizam os materiais industrializados. Exemplo: pilar e viga de concreto armado. Técnica construtiva industrializada é um termo sinônimo aqui neste trabalho. Permacultura: “A Permacultura surgiu na década de 1970, na Austrália, como alternativa aos acelerados processos degradação dos recursos naturais. O termo foi criado por Bill Mollison em parceria com David Holmgren ao observarem a degradação de alguns sistemas naturais e ao se proporem a observar, estudar e compilar outras formas de ocupação humana no planeta. Um dos meios para a realização da pesquisa foi o estudo sobre a vida dos aborígenes, antigos habitantes da região da Austrália, e como estes se relacionavam com o ambiente. A forma primitiva de vida desses povos inspirou o resgate de algumas práticas e tecnologias que foram sistematizadas e adaptadas para os contextos e necessidades da atualidade, aliadas às modernas tecnologias. Assim nasceu a Permacultura, um conjunto de práticas que reúne os conhecimentos ancestrais
e tecnologias modernas para uso sustentável dos recursos naturais e permanência humana no planeta. Na Permacultura, a sistematização dos passos para a construção de sistemas sustentáveis é denominado design permacultural.” (ZIMMERMANN, JACINTHO, RACHID, PADOA, 2015) Bioconstrução: É um movimento ambiental que visa estimular a construção de espaços saudáveis a partir de materiais naturais, tendo a preocupação e interação ecológica trazida desde o projeto até a ocupação da edificação. A Bioconstrução faz um resgate de muitas técnicas tradicionais mas também faz uso de novas, aliadas a novas tecnologias e adaptações. Muitos entendem a Bioconstrução como uma “pétala” da permacultura. Princípios permaculturais de “captação e armazenamento de recursos” estão muitas vezes presentes, como por exemplo coleta de água de chuva, tratamento e reaproveitamento de resíduos, aproveitamento da luz natural, etc. Materiais naturais: São obtidos diretamente na natureza e não precisam da ação humana para existir. Na construção, são bastante usadas a terra, areia, bambu, pedra, madeira, fibra, palha, esterco, palma, etc.
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Técnicas construtivas com materiais naturais: São as técnicas que empregam os materiais naturais para construir. Para sua execução, em geral, precisam trabalhar estes materiais para que eles sejam utilizados, muitas vezes no próprio canteiro. Por exemplo: colocar a palha para secar, peneirar a terra, cortar a palma e deixar de molho, produzir os adobes, ripar as madeiras, etc. Muitos saberes populares utilizam técnicas construtivas com materiais naturais, bem como no movimento da bioconstrução ou até mesmo em universidades. Construção com materiais naturais: Construção que utiliza completa ou principalmente materiais naturais a partir de técnicas construtivas com materiais naturais. Prática construtiva: Ação de construir a partir de técnicas construtivas, com materiais naturais ou industrializados. Fazer construtivo, atividade prática construtiva, prática do canteiro são termos semelhantes neste trabalho.
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Espaço Construtivo: Espaço que propicia a prática construtiva. Este espaço pode ser dentro ou fora da Universidade. Dentro, temos como possibilidade os espaços dos Canteiros Experimentais e fora, os Canteiros de obra, por exemplo. Breves notas: Hoje em dia, muita gente chama as técnicas construtivas industrializadas como a forma “convencional”. Realmente, é o que está posto e mais difundido, hoje, na sociedade. Mas eu prefiro me referir a estas técnicas como industrializadas, porque se damos um passo atrás e olhamos para a história da humanidade, veremos que tudo isso é extremamente recente e que o convencional mesmo é utilizar os materiais naturais disponíveis. A bioconstrução é um movimento que tem engajado muitas pessoas que não tinham envolvimento com o tema e apesar de ter sido através deste movimento que me aproximei das construções de terra e outros materiais naturais, eu entendo que ela é um recorte, a discussão precisa ser mais ampla.
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Créditos das imagens Página 4: Milene Mabel (2020)
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Página 91: Imagem 1 Fabrice Fouillet. Imagem retirada do site http://www.vergelyarchitectes.com/ ilot-b2-lyon-confluence/ (2020); Imagem 2 e 3 retirada do site http://www.construction-pise.fr/ Building-offices-in-rammedearth Página 92 e 93: Kin Guerra (2018) Página 98 à 101: Leticia Grappi (2020) Página 102 e 103: Camila Bahia (2018) Página 104: Imagem 1 e 4 Leticia Grappi (2018); Imagem 2, 3 e 5 Marcos Botelho (2018) Página 105: Imagem 1 e 2 Leticia Grappi (2018); Imagem 3 Marcos Botelho (2018)
Página 106 e 107: Leticia Grappi (2018) Página 108: Imagem 1 Camila Bahia (2018); Imagens 2 e 3 Leticia Grappi (2018)
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(2018); Imagem 2 Leticia Grappi (2018)
Página 111 à 114: Camila Bahia (2018)
Página 142: Imagem 1 Camila Bahia (2018); Imagens 2 e 3 Leticia Grappi (2018)
Página 115: Imagem 1 Janaína Almeida (2018); Imagem 2 Camila Bahia (2018) Página 119: Kin Guerra (2018) Página 120, 121 e 122: Camila Bahia (2018) Página 123: Imagem 1 Marcos Botelho (2018); Imagem 2 Leticia Grappi (2018) Página 124: Imagens 1, 2 e 4 Leticia Grappi (2018); Imagem 3 Marcos Botelho (2018) Página 126: Camila Bahia (2018) Página 127: Imagem 1 Marcos Botelho (2018); Imagens 2 e 3 Camila Bahia (2018) Página 128: Leticia Grappi (2018) Página 129 e 130: Camila Bahia (2018) Página 131: Imagem 1 Camila Bahia (2018); Imagens 2 e 3 Leticia Grappi (2018) Página 132: Imagem 1 Janaína Almeida (2018); Imagens 2 e 3 Marcos Botelho (2018)
Página 141: Camila Bahia (2018)
Página 143: Leticia Grappi (2018) Página 144: Imagem 1 Marcos Botelho (2018); Imagem 2 Leticia Grappi (2018) Página 145 à 147: Camila Bahia (2018) Página 148: World Monuments Fund Página 149: Camila Bahia (2018) Página 150: Imagem 1 Camila Bahia (2018); Imagem 2 Marcos Botelho (2018) Página 152: Leticia Grappi (2018) Página 153: Kin Guerra (2018) Página 154: Imagem 1 Marcos Botelho (2018); Imagem 2 Kin Guerra (2018) Página 155: Kin Guerra (2018) Página 156: Marcos Botelho (2018) Página 157: Kin Guerra (2018) Página 158 e 159: Milene Mabel (2020) Página 163: Camila Bahia (2018)
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