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figura 2: Prevalência do uso de bebidas alcoólicas entre os adolescentes brasileiros
Os problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas são complexos e têm origem multifatorial, envolvendo muitos fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos e culturais1 . As taxas para a maioria dos transtornos por uso de substâncias são influenciadas por variáveis demográficas como sexo, idade, escolaridade, estado civil e renda5-7. Variáveis psicológicas como certos tipos e traços de personalidade e transtornos mentais também parecem influenciar o uso e a dependência de drogas8-10. Outros aspectos se associam a fatores biológicos e genéticos11,12 (Figura 1). figura 1: Aspectos associados à vulnerabilidade para os transtornos do uso de sustâncias psicoativas
Idade 1º uso Renda Raça Escolaridade Vulnerabilidade social
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Experimentação
Disponibilidade Fragilidade orgânica Comportamento de risco
Abuso
Pré-experimentação
Disponibilidade Percepção de segurança Permissividade social Estruturação familiar Pressão dos pares Uso
Potencial da droga Idade de uso regular Genética Vulnerabilidade social Dependência
Impacto Qualidade de vida Doenças mentais Doenças orgânicas Violência Vulnerabilização
A compreensão das características que podem tornar certos grupos mais vulneráveis que outros depende, muitas vezes, da avaliação do nível de associação dessas variáveis.
Detalham-se, a seguir, alguns exemplos dessas características.
Fatores sociodemográficos
Idade
A idade é uma das características sociodemográficas mais importantes a ser analisada quando se estuda a questão da vulnerabilidade no uso de substâncias. No Brasil, levantamentos realizados entre 2003 e 2012 descreveram que a prevalência de experimentação de álcool entre adolescentes tem aumentando (Figura 2)13,14 e que a idade de experimentação vem diminuindo, de maneira mais significativa entre as mulheres.
Soma-se a essa acentuada vulnerabilidade às consequências negativas do uso de drogas o fato de que no início da adolescência surge intensa busca por novas sensações sem o aumento, em paralelo, da capacidade de inibir comportamentos de risco. Esse desequilíbrio, entre esses dois fatores, contribui para que os adolescentes experimentem drogas com mais facilidade.
A adolescência, como se sabe, é um período crítico do desenvolvimento cerebral em que ocorrem maturação e reorganização do córtex pré-frontal e do sistema límbico. Isso faz com que os adolescentes sejam mais vulneráveis a desenvolverem abuso e dependência e a sofrerem modificações cognitivas duradouras por causa do uso de drogas15 .
Esses fatores provavelmente tornam a adolescência um dos momentos mais vulneráveis para a exposição de um indivíduo à droga e, daí, às consequências negativas. Infelizmente essas consequências incidirão nas próximas etapas do seu desenvolvimento, influenciando e prejudicando vários aspectos do seu funcionamento psíquico e social16 . O risco para se desenvolver abuso ou dependência química é significativamente maior nos indivíduos que iniciam o uso de substâncias na adolescência, sendo o pico de risco dos 13 aos 14 anos de idade. Para o álcool, por exemplo, após essa idade, a probabilidade de se tornar dependente cai 13,2% e 14,7% e de tornar-se abusador cai 9,1% e 7,0% ao ano, para mulheres e homens, respectivamente15,17 .
Sexo
Além da idade, o sexo é importante para se analisar a vulnerabilidade às drogas. Estudos revelam que homens são mais propensos ao uso de drogas. Contudo, as mulheres apresentam progressão mais rápida entre experimentação à dependência de drogas. Alguns pesquisadores acreditam que as mulheres são menos propensas ao uso de drogas em razão da reduzida aceitação social e de fatores culturais, que as inibem de consumir. A baixa taxa de experimentação de drogas as torna menos vulneráveis a desenvolver um transtorno decorrente do uso de drogas15 .
Outros pesquisadores acreditam que a motivação para o uso de drogas em homens seja a busca por novas e intensas sensações, enquanto as mulheres usam drogas como uma tentativa de se automedicarem17.
A disponibilidade de drogas bem como a política de repressão ao tráfico, provavelmente, são fatores importantes no que diz respeito à vulnerabilidade. Dados da Organização Mundial de Saúde mostram que mesmo em países com diferenças geográficas sutis, com rendas semelhantes, existem grandes diferenças na prevalência do uso de álcool, nicotina e drogas ilícitas18,19 . Outro fator importante é a cultura de um país. Em estudos avaliando indivíduos que emigraram de um país para outro, observa-se reduzida prevalência de experimentação de drogas nos países de origem do que nos indivíduos que emigraram. Isso sugere que a mudança de cultura para uma cultura com mais aceitação do uso de drogas pode influir na experimentação15 .
Transtornos mentais
Os transtornos mentais são também importantes para a vulnerabilidade para o uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Além da vulnerabilidade psicológica dos indivíduos acometidos por uma doença mental, fatores como o tipo de droga e a sua frequência de uso também contribuem para o desenvolvimento da dependência. Contrariando o senso comum, a maior parte dos estudos sugere que os transtornos mentais precedem o uso de substâncias psicotrópicas20 e a dependência de álcool, mas não o seu abuso, que é mais prevalente em indivíduos com transtornos depressivos e de ansiedade21 . Não se deve esquecer de que o abuso ou dependência de drogas comprometem de forma negativa a evolução das doenças psiquiátrica. O uso de álcool, por exemplo, pode produzir sintomas característicos de depressão, ansiedade, agitação e hipomania/mania, tanto durante a intoxicação quanto no período de abstinência22 . Como dito anteriormente, características de vulnerabilidade ao uso de drogas não podem ser compreendidas de maneira isolada, pois muitas vezes elas se associam entre si. Exemplo disso é um estudo realizado entre setembro de 2006 e dezembro de 2010 nos Estados Unidos, que demonstrou que variáveis psicológicas, como humor e afeto, podem desempenhar importante papel no desejo e comportamento de beber. Porém, este estudo também mostrou mais interferência no desejo de beber e maior impacto negativo da depressão no curso do alcoolismo, entre as mulheres23. Outro estudo realizado na Alemanha, Reino Unido, Irlanda e França, no ano de 2010, encontrou associação entre o início precoce do uso de álcool e os traços de personalidade dos adolescentes24 .
Conclusões
Como se pôde ver ao longo deste capítulo, diversos aspectos contribuem para a vulnerabilidade de se experimentar, abusar e desenvolver dependência às substâncias psicoativas. A epidemiologia contribui para a compreensão e dimensionamento qualitativo e quantitativo da questão da vulnerabilidade e o uso de drogas. Conhecer a real magnitude do problema e identificar os grupos de mais vulnerabilidade pode auxiliar no processo de construção de medidas direcionadas para minimizar os prejuízos gerados para a saúde pública.
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Vulnerabilidades, estigma e uso de drogas
Pollyanna Santos da Silveira Ana Luisa Marliére Casela Érika Pizziolo Monteiro Jéssica Verônica Tibúrcio de Freitas Nathália Munck Machado
O conceito de vulnerabilidade vem sendo estudado e ampliado por diversos autores no decorrer dos anos, antes equivalente ao conceito de exclusão social e atualmente mais abrangente e contextualizado 1. A vulnerabilidade reconhece que diferentes indivíduos e grupos populacionais são diferentemente suscetíveis frente a determinado aspecto social, político-institucional e comportamental 2 .
No que se refere à dimensão social, a vulnerabilidade está associada a aspectos relacionados ao acesso a serviços de saúde, à informação e educação, além de aspectos culturais e sociopolíticos de certos determinantes populacionais, como idosos, crianças, mulheres, população indígena, entre outros 3. Ainda, os estudos acerca da vulnerabilidade social estão relacionados ao risco frente ao desemprego, à pobreza, à precariedade do trabalho, à falta de proteção social, garantia dos direitos e oportunidades, situação de rua, trabalho infantil, envolvimento com drogas, à violência 1,4,5, bem como ao maior ou menor grau de qualidade de vida da população, uma vez que esta é o resultado das oportunidades sociais, econômicas e culturais e da disponibilidade desses recursos 6,7 .
Do ponto de vista psicológico, a vulnerabilidade é entendida como uma predisposição individual ao desenvolvimento de distúrbios psicológicos ou de comportamento ineficaz em situações de crise 8. Nesse sentido, a noção de vulnerabilidade não visa à distinção de determinados grupos, mas sim à avaliação de suas características individuais e sociais e à probabilidade de mais ou de menos exposição ou proteção diante de um problema. Isso faz com que a vulnerabilidade se caracterize das mais diversas formas e que os aspectos individuais influenciem diretamente a forma como uma pessoa pode reagir a uma situação considerada de “alta vulnerabilidade” 8 .
No contexto brasileiro, o uso de substâncias representa um dos maiores problemas associados à saúde pública 9,10. Contudo, o uso de substâncias é visto como uma escolha pessoal ou desvio de caráter e, por isso, os usuários tendem a ser evitados e até considerados invisíveis socialmente, o que contribui para o aumento da situação de vulnerabilidade 11-13. A condição de status social desviante de usuários de drogas ilícitas pode afetar a saúde dos mesmos, a partir da exposição crônica de estresse, e se constituir em uma barreira para acessar o serviço de saúde, contribuindo para o agravamento da condição 14 .
A história da Psiquiatria social ensina que as concepções culturais de doença mental têm consequências dramáticas para a busca por ajuda, estereotipagem e tipos de estruturas de tratamento criadas para atender às várias formas de doença mental. Mais especificamente, os dependentes de drogas são vistos como a condição mais provável de ser violenta, por conseguinte, há mais desejo de distância social para a pessoa dependente de drogas. Por outro lado, se os sintomas de dependência continuam a ser associados a medo de violência, pessoas com tal condição serão afetadas negativamente pela rejeição, pela relutância em procurar ajuda profissional por medo da estigmatização e por medo da exclusão 15 .
Definindo o estigma
Erving Goffman, em seu clássico ensaio “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, publicado no ano de 1963, propõe uma definição de estigma social como uma marca ou um sinal que designaria ao seu portador um status “deteriorado” e, portanto, menos valorizado que as pessoas consideradas normais, tornando o indivíduo
estigmatizado incapacitado para a aceitação social plena. O processo de estigmatização seria uma forma de categorização social a partir do qual se identifica de forma seletiva um atributo negativo considerado desviante da norma e que por si só compromete a identidade social do portador por completo em uma situação de interação social 16 .
Apesar do marco teórico conceitual do estigma social ter suas raízes na Sociologia, possuindo grande valor heurístico, uma substancial porção da produção científica acerca do tema tem buscado compreender como as pessoas constroem categorias e as relacionam a crenças estereotipadas 17. Segundo essa perspectiva psicossocial, a definição de estigma envolve:
• A identificação da rotulação de indivíduos baseada em características pessoais; • A construção de estereótipos grupais a partir do rótulo; • A consequente separação desse indivíduo do convívio social pleno a partir da aplicação desse estereótipo; • A perda de status e discriminação; • O fato de ser expresso em uma situação de poder que permite que esses componentes se cruzem e gerem o estigma denominado público 17 .
Por fim, o processo de estigmatização é compreendido ainda como um processo dinâmico e contextual, produzido socialmente, moldado por forças históricas e sociais, tendo como características fundamentais o reconhecimento da diferença com base em alguma característica distinguível ou marca e consequente desvalorização do seu portador 18 .
As concepções culturais podem endossar que empresas públicas ou privadas, intencionalmente ou não, limitem as oportunidades de acesso de indivíduos ou grupos estigmatizados, baseada na percepção de imprevisibilidade ou ameaça. A estigmatização estrutural manifesta-se por meio de suas regras, políticas e processos de instituições públicas e privadas em posição de poder e que consciente e propositadamente restringem os direitos e oportunidades. O valor social dessas restrições é muito dúbio, uma vez que as descrições usadas em diversos documentos refletem mais os efeitos negativos do rótulo que elas carregam, em detrimento de qualquer medida de incapacidade. Sendo assim, a despeito de seu compromisso com a neutralidade, uma política ou princípio pode resultar em menos oportunidade para um grupo estigmatizado que para a maioria, ainda que de forma não intencional 19 .
Há que se destacar, ainda, que a estigmatização estrutural, assim como toda e qualquer forma de discriminação, tem implicações significantes para a agenda da pesquisa e para o desenvolvimento de programas de prevenção ou tratamentos 19. Dessa forma, a estigmatização representa um desafio à humanidade, seja da perspectiva do estigmatizador, seja da perspectiva do estigmatizado, visto que se torna penosa não só interpessoal e socialmente, como também pessoalmente 18 .
Internalização do estigma
No que se refere às consequências negativas para os indivíduos estigmatizados, o principal impacto é a internalização do estigma, conhecido também como estigma internalizado.
A internalização do estigma está diretamente associada ao grau em que uma pessoa internaliza crenças estigmatizantes compartilhadas socialmente. Esse processo surge
quando membros de um grupo desvalorizado, conscientes do preconceito, estereótipo e discriminação na sociedade, endossam e internalizam essas crenças, sentimentos e comportamentos acerca de si próprios 20. A partir de uma perspectiva sociocognitiva, a internalização do estigma ocorre à medida que o indivíduo se torna consciente de sua condição de saúde e está sujeita à maneira como ele atribui, para si próprio, responsabilidade por essa condição 20,21 .
O processo de internalização do estigma pode acarretar diversos prejuízos, como a perda da autoestima, autoeficácia, depressão 22,23, a diminuição do repertório de interações sociais, a exclusão social e o desemprego 24. Discute-se que existe uma relação entre o estigma internalizado e a vulnerabilidade, tanto o processo de estigmatização agrava a vulnerabilidade do usuário de drogas como o uso de substâncias, uma condição permeada por vulnerabilidades, acarreta mais chances de internalização do estigma.
A vulnerabilidade associada ao uso de substâncias
Sobre a vulnerabilidade associada ao consumo de substâncias, no estudo realizado pelo II LENAD, 8% dos usuários de álcool informaram que já tiveram prejuízos no trabalho decorrentes do consumo da bebida e 4,9% dos consumidores perderam o emprego em virtude do consumo de álcool10. Já em outra pesquisa realizada com dependentes de crack na cidade de São Paulo, a situação de emprego dos participantes revela que a maioria dos pacientes se encontrava fora do mercado de trabalho (75,0%) ou no mercado informal (21,4%). E a maior parte dos entrevistados declarou ser de extrema importância receber orientações para obter emprego (71,4%). Ainda sobre a mesma pesquisa, que teve como um dos objetivos avaliar a relação entre o estigma internalizado e variáveis sociodemográficas, o status ocupacional foi associado de forma significativa ao estigma internalizado. De acordo com os achados, a ausência de emprego pode induzir a um nível superior de internalização do estigma25 .
Na população feminina de usuárias de drogas, a vulnerabilidade torna-se evidente na prática sexual sem proteção com diferentes parceiros, aumentando o risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis, gravidez não planejada26 e violência sexual26-30, além de serem citados igualmente prejuízos no trabalho, atrasos, faltas e até pedidos de demissão em decorrência do consumo de crack31 .
Da mesma forma, outros estudos corroboram a associação de níveis mais elevados de estigma internalizado com o desemprego e baixa renda32,33. Segundo Link e Phelan17, a internalização do estigma limita o repertório de integração do indivíduo com suas redes sociais, devido à antecipação da rejeição e à evocação de sentimentos de vergonha, culpa e descrédito que podem prejudicar a disposição em procurar trabalho ou manter-se nele. Já no estudo de Luoma et al. 34, os dados indicam que os usuários de substâncias sentiam medo e acreditavam que poderiam sofrer rejeição após o descobrimento do consumo de álcool e outras drogas, bem como no trabalho receberiam menos que os outros empregados e seriam tratados de forma injusta. Ao internalizar o estigma, o indivíduo agrava sua condição de saúde, limita suas possibilidades de inclusão social, diminui a autoestima e autoeficácia, o que, de modo consequente, diminui a intenção de buscar um emprego, intensificando, desse modo, o estigma internalizado35 . Revisão de literatura foi realizada em 2014 por Sickel, Seacat e Nabors, com o objetivo de avaliar o impacto do estigma sobre as necessidades básicas dos usuários como o emprego, a habitação e as relações sociais, revelou que o estigma era uma barreira que
influenciava as necessidades básicas do ser humano, como emprego, habitação, relações interpessoais, saúde física e mental e a busca por tratamento de saúde. As necessidades de emprego de indivíduos estigmatizados em grande parte não são atendidas, por sua vez, causam o aumento dos prejuízos psicológicos e financeiros. Há que se destacar que o estigma internalizado pode interferir na procura de emprego bem como na execução da função no local de trabalho36. Por outro lado, a inclusão produtiva pode reduzir o impacto da estigmatização, na medida em que os usuários ocupam novos papéis e espaços sociais, contribuindo para melhor qualidade de vida e tornando-se um aspecto fundamental na recuperação e reinserção social37 .
O processo de estigmatização e o uso de substâncias
O uso de álcool e outras drogas é uma das condições que mais apresentam conotação moralizante do mundo 38-40, sendo considerado principalmente um problema individual, em que o diagnóstico e o tratamento muitas vezes exacerbam os aspectos morais do uso 12,41,42. Estudos sobre a percepção popular acerca de determinadas condições de saúde mostram que indivíduos dependentes de álcool são vistos como mais responsáveis por seu problema, mais violentos e imprevisíveis que outros indivíduos afetados por outros transtornos mentais 43,44. Além disso, respostas que colocam a responsabilidade da doença sobre o indivíduo, como fraqueza de caráter e falta de autoestima, são consideradas mais relevantes para explicar o problema da dependência do que as causas biológicas 45,46. Além disso, os dependentes são vistos como a condição mais provável de ser violenta e, como consequência, existe mais desejo de distância social em relação à pessoa dependente de drogas 37,48 .
As consequências do estigma relacionado ao abuso de substâncias foram descritas no estudo de Link et al. 15, no qual indivíduos com diagnóstico de dependência de substâncias e transtorno mental relataram experiências de rejeição que envolvem desde atendimento médico negado até receber menor remuneração por conta da história de abuso de substâncias. Os resultados mostram que não houve declínio da percepção de estigma, nas estratégias de coping ou na recordação de experiências de rejeição com a diminuição dos sintomas após um ano de tratamento, sugerindo que o estigma pode ter efeitos não só transitórios, como duradouros para os indivíduos 15 .
Outro estudo realizado com usuários de drogas encontrou que a percepção de desvalorização entre os usuários é prevalente, sendo que 85% dos respondentes relataram que muitas pessoas pensam que usuários de drogas não são confiáveis; e porcentagem similar (84,5%) opinou que as pessoas pensam que usuários de drogas são perigosos. Observou-se, ainda, que os usuários evitam contato com outras pessoas porque eles podem parecer inferiores aos olhos dos outros por usarem drogas. Os participantes reportaram alta frequência de discriminação devido ao uso de drogas, sendo que os tipos mais comuns de discriminação experienciada foram atribuíveis à família (75,2%) e a amigos (65,8%) 14 .
Como alternativa à concepção moralizante do usuário, procura-se estabelecer ações baseadas na perspectiva da saúde coletiva, em que o foco é dado ao uso de álcool e aos danos associados, e não aos indivíduos propriamente ditos, procurando traçar ações mais gerais, compreensivas e menos estigmatizantes, que também se articulem com ações direcionadas aos indivíduos12,41,42,49. Uma das estratégias é o foco na mudança de posturas que levam à estigmatização do uso de álcool como forma de prevenir os danos associados no
sentido de melhorar a eficácia e o acesso ao tratamento 50,51. Essas ações são planejadas partindo-se do princípio de que a automaticidade e a estereotipagem podem ser controladas ou modificadas por mediadores sociocognitivos 52 .
Para tanto, é importante considerar que as políticas assistenciais e a formação dos profissionais de saúde devem enfocar a mudança de atitudes negativas no sentido de evitar a estigmatização e a diminuição da consequente injustiça social que os portadores de sofrimento mental sofrem49,53 .
Como reduzir o estigma?
A dependência de substâncias deve ser considerada um fenômeno complexo, o que implica a utilização de conhecimentos multidisciplinares, permitindo, assim, que os diversos aspectos associados a essa condição sejam considerados. Dessa forma, tão importante quanto considerar os aspectos biológicos é a inclusão de estratégias que considerem os aspectos psicossociais da dependência nos programas de tratamento. Isso significa, inclusive, abordar as diversas vulnerabilidades às quais o indivíduo está exposto, caracterizando essas intervenções como de múltiplos níveis e, portanto, dinâmicas 49,54 . O presente capítulo, ao abordar especificamente o estigma como uma das problemáticas consideradas no escopo do conceito vulnerabilidades, pretende evidenciar que tal fenômeno deve ser também incluído nos programas que se propõem a tratar a dependência. Percepções moralizantes sobre os usuários ou dependentes de substâncias devem ser trabalhadas com os diversos atores envolvidos no processo de tratamento, sendo estes igualmente responsáveis pelo atingimento dos objetivos propostos pelo projeto terapêutico desenvolvido.
A maioria das intervenções direcionadas à redução do estigma visa a atingir o estigma social a partir de abordagens como protesto ao estigma, informação e promoção de contato positivo, sendo que as evidências mais fortes indicam eficácia de abordagens que promovam o contato entre estigmatizadores e estigmatizados 55 .
Considerando o impacto negativo da estigmatização para o tratamento dos usuários de drogas, propostas de redução de estigma apresentam-se como uma forma de incluir a temática na abordagem ao fenômeno da dependência56. Tais propostas buscam mudanças em áreas intrapessoais, interpessoais e estruturais, sendo desenvolvidas para atingir pessoas vítimas de processos de estigmatização ou um público geral que não é estigmatizado 54 .
Ações de protesto, contato e educação
Em relação ao estigma social, consideram-se como possíveis abordagens ações de protesto, contato e educação. Tais ações podem ser realizadas em diversos contextos, tornando as discussões sobre a dependência e os fatores sociais a elas associados visíveis e produtores de avanços em termos de políticas públicas e das diretrizes práticas provenientes destas.
As ações caracterizadas como protesto referem-se à mobilização social contrariamente relacionada a aspectos classificatórios, estereotipados, moralizantes e discriminatórios sobre o usuário ou dependente de substâncias. Entre esses aspectos, enfatiza-se o uso de linguagem pejorativa para descrever usuários e dependentes.
A partir das técnicas que incentivam o contato, busca-se promover o contato de diversos atores sociais com usuários de substâncias, a fim de possibilitar a alteração dos
conteúdos das crenças a respeito dos usuários, utilizando-se como metodologia a troca de experiências.
Já as ações educativas incluem apresentações e discussões que visam a alterar atitudes e comportamentos em um nível comunitário, permitindo que a questão do uso de substâncias seja pensada de forma crítica 24 . Na tentativa de reduzir o estigma, é necessária, ainda, a sensibilização dos profissionais de saúde, uma vez que estes apresentam visão moralizante do consumo de drogas25 , o que por vezes contribui para a estigmatização e exclusão de dependentes de drogas. Diante disso, Ronzani et al. 56 buscaram elaborar um primeiro guia para profissionais e gestores para sensibilizar os profissionais sobre o impacto de se compartilhar imagens e percepções negativas sobre usuários de drogas. Esse guia pode ser acessado gratuitamente em: http://www.editoraufjf.com.br/ftpeditora/site/reduzindo_o_estigma_entre_usuarios_de_drogas.pdf
Grupos de Suporte e a Terapia de Aceitação de Compromisso
Há, ainda, ações a serem realizadas com indivíduos potencialmente estigmatizados, podendo ser utilizadas em serviços que objetivam lidar com a questão da dependência de forma ampliada. Entre essas ações citam-se a realização de grupos de suporte, o incentivo à promoção de autonomia e um processo terapêutico denominado terapia de aceitação e compromisso (ACT). Os grupos de suporte contribuem para a construção de uma noção de identidade, autoestima, habilidades de enfrentamento e integração social. Nesse âmbito, suporte mútuo pode significar motivação para adesão ao tratamento, partindo do pressuposto de que as experiências serão trabalhadas em conjunto. Por outro lado, ações que visam à construção de autonomia devem ser desenvolvidas a fim de proporcionar espaço para que os usuários e dependentes de substâncias se tornem ativos em seus processos de tratamento. Por fim, a terapia de aceitação e compromisso (ACT) é uma técnica oriunda das terapias cognitivo-comportamentais, que apresenta como conceito principal a flexibilidade psicológica, definida como a capacidade de entrar em contato com o momento presente e as experiências internas e, de acordo com o contexto, persistir ou alterar a busca de objetivos e valores pessoais. Exercícios que envolvem tais objetivos podem ser incluídos no processo de tratamento de forma a contribuir para o aumento de qualidade de vida dos usuários de substâncias e aqueles indivíduos com os quais eles se relacionam 57 .
Independentemente de qual forma de estigma será abordada ou qual ação será utilizada, enfatiza-se a necessidade de ações desenvolvidas e aplicadas de acordo com o âmbito em que os indivíduos para os quais essas ações se dirigem vivem, estudam, trabalham e se relacionam. Ações pontuais que não consideram as características de seu público-alvo tendem a ser menos eficientes, pois desconsideram os problemas de saúde, psicossociais e estruturais associados à dependência, assim como não trabalham as diversas potencialidades dos ambientes nos quais os atores, para os quais a intervenção se dirige, convivem.
Conclusão
Visões estigmatizantes sobre usuários de drogas legitimam abordagens ineficazes que atribuem aos usuários a responsabilidade pelos problemas não só que eles próprios enfrentam, mas culpabilizam os usuários por problemas sociais, como a violência, e configu-
ram-se em barreiras à procura de tratamento e trabalho, aspectos estes importantes para a recuperação e reinserção social de indivíduos. A superação desse estigma social torna-se necessária a fim de garantir estratégias de prevenção, tratamento e reinserção social com foco na evidência de efetividade e, mais do que isso, é importante que os pacientes sejam envolvidos no processo decisório do tratamento e considere as demais demandas do individuo, além do foco exclusivo na abstinência do uso de drogas.
O estigma social ou internalizado pode limitar as perspectivas de inserção social, diminuindo a autoestima e autoeficácia, o que, consequentemente, diminui a disposição para buscar um emprego. E isso, por sua vez, contribui também para aumentar ainda mais a internalização do estigma. Da mesma forma, esse ciclo também se reflete diretamente na vulnerabilidade social. O estigma social está relacionado ao risco frente ao desemprego, à pobreza, garantia dos direitos e oportunidades, ao agravamento da condição 1, 4, 5 e ao maior ou menor grau de qualidade de vida da população, uma vez que este é o resultado entre as oportunidades sociais, econômicas e culturais e a disponibilidade desses recursos 6,7. Sendo assim, é de fundamental importância no processo de recuperação considerar ambos os aspectos - estigma e vulnerabilidade -, a fim de garantir os benefícios do tratamento.
Referências
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04
Violência, vulnerabilidade e uso de drogas
Daniel Barcelos Renata Lima Luania Ludmilla Castro
O uso de substâncias que produzem alterações no organismo humano não é uma novidade. Milenarmente os indivíduos exploram os recursos naturais em prol da sua sobrevivência e paulatinamente descobrem as potencialidades desses recursos, estabelecendo nova relação com essas descobertas, as quais interferem diretamente na forma como os indivíduos interpretam o mundo e se interpretam no mundo. A história das substâncias psicoativas, a que muitos atribuem a nomenclatura drogas, não foge a esse cenário. Sociedades antigas e contemporâneas inseriram em seu cotidiano o uso dessas substâncias, associando-as às práticas medicinais, ritualísticas, religiosas e recreativas, entre outras.
Como problema social, observa-se o uso (ou abuso) problemático das drogas ilícitas como um processo moderno, que coincide com a expansão colonial europeia e com a consolidação do capitalismoa. O fenômeno da industrialização, por meio dos processos tecnológicos modificadores do uso de drogas tradicionais, e o desenvolvimento da indústria químico-farmacêutica são outros fatores que potencializaram as consequências do uso de drogas.
No que se refere ao tratamento dado pelos sistemas legais ao consumo de substâncias psicoativas, observam-se movimentos variados. No Ocidente, o fenômeno do proibicionismo teria sido desencadeado inicialmente em razão do álcool, na Inglaterra, em 1736, com a edição do “Gin Act”, uma lei que objetivava reprimir o consumo de gim, bebida destilada que fora largamente produzida com subsídios governamentais, inclusive, a partir de 1690, para fazer frente ao vinho francês, diante da produção excedente de grãos na Grã-Bretanha. Em poucas décadas o consumo de gim atingiu níveis considerados intoleráveis e desencadeou movimentos de “temperança” que se propagaram da Inglaterra para os Estados Unidos, onde encontraram campo e floresceram.
Os movimentos pela temperança, repressivos ao álcool, tiveram seu auge nos Estados Unidos, em 1919, quando foi promulgada a 18ª Emenda à Constituição Americana, que proibia a produção, o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território estadunidense. Em pouco tempo a proibição se tornou ineficaz e foram construídas alternativas mais severas, com o aumento de penas e sanções. Com o recrudescimento das penas, aumentaram também o silêncio da população, a corrupção e a sonegação de informações a respeito do tema, o encarceramento e o nascimento de uma criminalidade que se organizava para explorar os lucros da atividade ilícita1. Naquele período, fortaleceu-se consideravelmente o tráfico de álcool, resultando na construção de verdadeiros impérios pertencentes aos estereotipados gângsteres como Al Capone, imortalizado e romantizado pelo cinema.
Após a Primeira Guerra Mundial, havia indícios de que o consumo de álcool seria abolido do mundo e que já existia algum nível de proibição legal nos Estados Unidos e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, enquanto grandes líderes mundiais, como Hitler, Mussolini, Gandhi e Cárdenas, condenavam o consumo e pregavam a proibição total 2 . A falta de eficácia da Lei Seca nos Estados Unidos resultou na liberação de seu consumo e comercialização já em 1933, por meio da 21ª Emenda Constitucional, sendo relevante que as receitas tributárias obtidas pela taxação dessa atividade foram importantes para compensar o 2 New Deal resultante da Crise de 1929b .
a Exemplos desse desenvolvimento são o isolamento do alcaloide da folha de coca tradicionalmente usada pelos povos andinos, em 1860, por Albert Niemann e o isolamaento da morfina, codeína e heroína, derivados do ópio, em 1804, 1832 e 1874, respectivamente. b Programa de Medidas de intervenção do Estado na Economia implementado pelo Governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos da América.
A modificação legislativa não foi capaz de alterar, entretanto, a cultura proibicionista que conduziu à discussão sobre a proibição da maconha, culminando no “Marijuana Act”, que proibiu o consumo da substância no país.
No Brasil, foi o Decreto-Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que primeiro estabeleceu a Lei de Fiscalização dos Entorpecentes. Nele foram arroladas 19 substâncias sujeitas à disciplina dessa norma, por serem classificadas como entorpecentes, em relação às quais se proibia o plantio, cultivo, colheita, fabricação, transformação, transporte e comercialização discricionários, regulamentando-se ainda os processos de importação, exportação e reexportação, armazenamento e estocagem de substâncias entorpecentes por drogarias, laboratórios e unidades fabris, unidades de tratamento e de ensino. O capítulo terceiro do Decreto-Lei disciplinava a internação e interdição civil, considerando como doença aomia toxicomania ou intoxicação habitual, prevendo-se, em consequência, os condicionantes para internação obrigatória 3 .
Artigo 27 - A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é considerada doença de notificação compulsória, em caráter reservado, à autoridade sanitária local. [...] § 1º A internação obrigatória se dará, nos casos de toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo ou for conveniente à ordem pública. Essa internação se verificará mediante representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial.
No capítulo quatro, “Das Infrações e Suas Penas”, o Decreto-Lei dispunha:
Artigo 33 Facilitar, instigar por atos ou por palavras a aquisição, uso, emprego ou aplicação de qualquer substância entorpecente ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art. 2º ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias - penas: um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000.
Depois de 26 anos, em 4 de novembro de 1964, já no primeiro ano do Regime Militar, a Lei nº 4.451 alterou o artigo 281 do Código Penal Brasileiro, estabelecendo4:
Art 1º O artigo 281 do Código Penal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 281. Plantar, importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo, substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de um a cinco anos e multa de dois a dez mil cruzeiros.”
Até então, os dispositivos legais tratavam a questão sob uma perspectiva generalista que utilizava palavras como venda, aquisição, troca, posse, consumo e uso para definir condutas proibidas. Apenas em 1976 é que a Lei nº 3.668 trouxe a expressão “tráfico”, que pode ser definida sob duas perspectivas. De maneira ampla, como a circulação de todo tipo de mercadorias, e, em sentido mais estrito, como o comércio ilícito, tanto de substâncias, animais, armas e produtos, como de pessoas. A Lei 3.668/76 ainda explicitou o seu caráter repressivo, compartilhando a responsabilidade da prevenção e repressão do uso indevido entre a União,
unidades federativas e municípios, assim dispondo5: Art. 3º Fica instituído o Sistema Nacional Antidrogas, constituído pelo conjunto de órgãos que exercem, nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, atividades relacionadas com: I - a prevenção do uso indevido, o tratamento, a recuperação e a reinserção social de dependentes de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou psíquica; e II - a repressão ao uso indevido, a prevenção e a repressão do tráfico ilícito e da produção não autorizada de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou psíquica. Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; Pena - reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.
Não por coincidência, poucos anos antes, já no início dos anos 70, os Estados Unidos do então presidente Richard Nixon difundiram sua política de combate às drogas ou a chamada “War on Drugs” (Guerra contra as Drogas), sob a perspectiva de que os problemas de criminalidade urbana e ordem social estavam primordialmente vinculados às drogas, exigindo-se, portanto, a potencialização da atuação repressiva sobre a produção e distribuição, tráfico e uso de entorpecentes. De maneira geral, o mundo adotou a ideologia da “guerra às drogas”, incluindo o Brasil. Foram poucos os países, como Suíça e Holanda, que adotaram políticas de redução de danos ainda na década de 70, como vozes dissonantes à propagada ideologia norte-americana. No final do século XX, a perspectiva de uma política de redução de danos (RD), já adotada em países europeus com relativo êxito, passou a ser debatida no Brasil fora do âmbito exclusivo da saúde pública, provocando alterações legislativas com base na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, atualmente em vigência. E afastou a pena de prisão para a conduta de portar drogas para consumo próprio, prevista no artigo 28, embora não tenha deixado de tratá-la sob a égide do Direito Penal. Mesmo tratamento recebeu o ato de plantio de drogas para consumo próprio.
O breve relato acerca da evolução legislativa sobre drogas no Brasil, bem como do panorama geral nos Estados Unidos, visa a demonstrar como a sociedade brasileira tem tratado legalmente a questão, além de exortar as questões reflexivas sobre o fato de que a matéria transita ao longo do tempo como tema tratado ora pela saúde pública, ora pela segurança pública, recebendo influência relevante das dimensões morais e sociais que sustentam as alterações jurídicas e orientam a privação de direitos no país. Longe de pretender exaurir o tema, os pontos abordados neste capítulo objetivam agregar valor e elementos ao debate.
O usuário e o traficante
gas vigente no Brasil, que em comparação com as leis antecedentes é mais ampla, uma vez que, além de estabelecer as normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e definir crimes e dar outras providências, ainda regulamenta as medidas preventivas do uso indevido de drogas, regula as medidas de atenção e reinserção social de usuários e dependentes e institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). A discussão que veio gerar a edição da Lei nº 11.343/06 iniciou-se ainda no final do século XX, quando o discurso da guerra contras as drogas começou a sair do foco proibicionista puro e colocou-se em perspectiva uma política pública de redução de danos6. A Lei nº 11.343/06, embora criminalize o usuário, retirou deste a possibilidade de ser privado de liberdade. Em seu artigo 28 da Lei nº 11.343/06, dispõe que:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1 Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2 Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
No tocante ao tráfico, a Lei nº 11.343/06 manteve o rigor penal em relação à legislação antecedente, sendo no artigo 33:
Art.33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
O criminalista gaúcho Salo de Carvalho identifica em seu artigo “Nas trincheiras de uma política criminal com derramamento de sangue: depoimentos sobre os danos diretos e colaterais provocados pela guerra às drogas” “vazios ou lacunas na linguagem jurídica e “dobras de legalidade” nas estruturas incriminadoras da Lei 11.343/06, que permite amplo poder criminalizador às agências da persecução criminal, notadamente a agência policial; estruturas normativas abertas, contraditórias ou complexas que criam zonas dúbias que são instantaneamente ocupadas pela lógica punitivista e encarceradora” 8 .
A dobra de legalidade está associada ao excesso normativo, à previsão de condutas idênticas nos dois tipos penais que estruturam a política criminal de drogas – proibição das condutas facilitadoras do consumo (art. 28, caput, Lei 11.343/06) e incriminação do comércio (art. 33, caput, lei 11.343/06). São cinco as condutas idênticas, sendo elas: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo.
Todas essas condutas estão previstas no artigo 28 e se repetem no artigo 33, ao qual são somadas as condutas de vender, expor à venda, oferecer, prescrever, ministrar, entregar
a consumo ou oferecer drogas, ainda que gratuitamente.
O que se percebe é que cinco condutas objetivas (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo) impõem consequências jurídicas distintas e discrepantes, sendo aplicadas ao chamado “usuário” as sanções do artigo 28: advertência, admoestação verbal, prestação de serviços e medida educativa, nunca a pena de prisão. Sem dúvidas, este é o tipo penal mais leniente do ordenamento brasileiro, um “delito de mínimo potencial ofensivo”. E para indivíduo que se enquadrar como “traficante”, a pena de prisão entre cinco e 15 anos está entre as mais severas previstas, superior até mesmo à pena por estupro, que é de seis a 10 anos de prisão, classificado, assim, como um “delito de máximo potencial ofensivo”.
Além da severidade das penas mínima e máxima impostas, há ainda que se considerar que o tráfico de drogas, sendo crime equiparado aos hediondos, tem regime jurídico diferenciado no que se refere ao cumprimento da pena. Já a lacuna, ou vazio, é identificada quando, no artigo 28, §2º, o legislador diz: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente’”.
Embora tal regra se dirija ao juiz, o primeiro destinatário é o policial, que exercerá o primeiro “filtro” da aplicação da lei e avaliação da conduta. O dispositivo legal não define precisamente os critérios de imputação e é prolífero em metarregras que se fundem em determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem e onde circulam os traficantes e os consumidores, alimentando os estereótipos do “elemento suspeito” e da “atitude suspeita”, os quais estão definitivamente incorporados ao exercício de aplicação da lei penal, não somente pelas agências policiais, mas pelos demais órgãos da persecução penal 8 .
Campos6 ressalta que o debate sobre as drogas está permeado de representações históricas estigmatizantes que, por um lado, associam a imagem do usuário de drogas à práticas assistencialistas ou compulsórias, por outro lado, vinculam a imagem do traficante a uma figura monstruosa destinada a penalizações cada vez mais longas. Na mesma direção, Medeiros7 destaca que forjar uma imagem de um indivíduo às margens dos padrões e rotulá-los é uma estratégia intencional e política, assim tanto o modelo médico como o penal constroem representações que transitam entre o enfermo e o delinquente. Medeiros 7 complementa que Becker, ao estudar a categoria outsiders, concluiu que “os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e ao aplicar tais regras a certas pessoas, em particular, qualificam nas de outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, mas uma consequência da aplicação que outros fazem 7”.
Tráfico de drogas e vulnerabilização
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)10 divulgado em 23 de junho de 2015 com dados de junho de 2014 demonstram que o encarceramento por tráfico de drogas no Brasil aumentou 339% desde a edição da Lei 11.343/06. Os presos por tráfico correspondem a 27% do total de presos no país, segundo dados do INFOPEN de junho de 2014. Entre os homens, as prisões por tráfico correspondem a 25% dos encarceramentos, enquanto entre as mulheres o índice chega a 63%. Ainda, o número de presos (provisórios e condenados) por tráfico de drogas aumentou de 31.520 em junho de 2005 para 138.366 em junho de 2013. Em 2006 o percentual de
presos por tráfico era de 14%, totalizando 47.500 pessoas, número que passou para 25% da população carcerária em 2012 (132 mil presos). Especialmente, observe-se que, segundo dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz, em pesquisa coordenada pelo NEV-USP, em 2013, constatou-se que 67% dos presos por tráfico de drogas portavam menos de 100 gramas de maconha, enquanto 14% portavam menos de 10 gramas de maconha, o equivalente a cerca de 10 cigarros. Entre os que portavam cocaína, 77,6% portavam menos de 100 gramas da droga.
Os dados apurados demonstram os efeitos da política antidrogas em vigor e a fatia da sociedade que vem sendo atingida, em duas frentes, por assim dizer, pelos efeito da política de guerra às drogas.
Em um primeiro viés, a adoção do proibicionismo diminui drasticamente ou mesmo afasta as possibilidades terapêuticas de aplicação de uma política de redução de danos aos indivíduos que, além de usuários, recreativos ou não, são também enquadrados nas sanções do artigo 33 da Lei 11.343/06. Como explanado, não há uma quantidade mínima ou forma de acondicionamento ou outro critério objetivo que venha a definir o que configuraria o tráfico de drogas, penalizado por lei, distinguindo-o do porte de drogas para uso próprio, que apesar de definido na lei penal não implica penas de prisão para o denominado coloquialmente “usuário”.
Noutro ângulo, a mesma população, majoritariamente jovem, negra ou parda, de baixa renda e escolaridade, é atingida pela violência associada e decorrente do tráfico.
Luiz Flávio Sapori elaborou vários estudos, especialmente em Belo Horizonte, em que sugere uma epidemia de homicídios relacionados especificamente ao “crack”. Sapori, Bráulio Figueiredo Alves da Silva e Lúcia Lamounier Sena analisaram a evolução dos homicídios num período de 20 anos e desenvolveram a tese de que o recrudescimento dos assassinatos em Belo Horizonte está relacionado à consolidação do tráfico do crack na cidade, em seu artigo “Mercado do crack e violência urbana na cidade de Belo Horizonte”, de 2011. Em pesquisa realizada em São Paulo para a verificação da associação entre a mortalidade entre os usuários de crack e a violência urbana, constatou-se que entre 1992 e 2006 a taxa de mortalidade entre usuários de crack foi sete vezes superior à mortalidade da população em geral. Número superior a 50% das mortes decorreu de homicídios, sendo que o padrão de mortalidade dos usuários de crack é distinto dos usuários de outras formas de cocaína 11 .
Para Sapori, a introdução do “crack” no mercado das drogas ilícitas tende a incrementar a incidência de crimes contra a vida, conformando novo patamar da violência urbana11 . Dados sobre homicídios e “crack’ na cidade de Nova Iorque durante o ano de 88, no auge da violência que atingiu a cidade entre 1985 e 1993, notificam que 52% das mortes estavam relacionadas às drogas e, desse percentual, 65% envolveram o “crack”, não sendo causados pelos efeitos farmacológicos, mas por conflitos relacionados ao mercado ilícito da droga 11 .
No Brasil, a obra de Alba Zaluar também registra que a dinâmica da violência é afetada pelo tipo de droga comercializada, sendo que no final da década de 1970 o aumento da violência esteve associado ao tráfico de cocaína e à corrida armamentista entre as quadrilhas. No bojo do processo de armamento das quadrilhas, houve a incorporação dos jovens em situação de vulnerabilidade social e a institucionalização do ethos guerreiro e da hipermasculinidade, legitimando o recurso à violência física 11 .
O fenômeno mais recente do “crack” é destacado por Sapori em sua abordagem, destacando-se os “efeitos singulares do crack” na configuração de um mercado ilegal mais violento na região metropolitana de Belo Horizonte, sendo que a droga potencializou as
situações de endividamento devido ao principal efeito farmacológico, que é a compulsão. O usuário do “crack” está propenso a ser vítima de situação de violência quando quebra as “regras” do mercado em que está inserido, a partir do endividamento. Além da vitimização pelo homicídio do usuário devedor, o endividamento ainda afeta a criminalidade patrimonial. O roubo é um crime que é tido como prática própria do comércio de crack, seja pela prática de delitos para saldar dívidas, seja pela troca de mercadorias pela droga, nas “bocas de fumo”. Obviamente, todo um “mercado negro” antecedente ao crack existe em toda comunidade, o que favorece a existência dos crimes contra o patrimônio, decorrentes ou não do “crack” em si.
Dados sobre a intensidade dos homicídios derivados da dinâmica do mercado ilegal de drogas revelam que quando um território está sob domínio de um mesmo “patrão” os números de mortes decorrentes de disputas de “bocas” (pontos de venda) decresce. E quando há um conflito armado, com diversas “firmas” disputando o “mercado consumidor”, as situações de confronto e, portanto, as mortes tendem a ser mais frequentes.
Maria Lucia Karam escreve de forma incisiva: “não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja ou junto aos postos de venda desta e de outras bebidas alcoólicas. Mas isso já aconteceu. Foi nos Estados Unidos da América, entre 1920 e 1933, quando lá existiu a proibição ao álcool. [...] Hoje, não há violência na produção e no comércio de álcool ou na produção e no comércio de tabaco. Por que é diferente na produção e comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é óbvia: a diferença está na proibição” 12 .
Segundo esse ponto de vista antiproibicionista, só existiria a violência associada ao comércio das drogas “tornadas ilícitas” porque o mercado é ilegal, e a ilegalidade, além de fazer as armas necessárias enfrentar a repressão, é essencial para a resolução de conflitos, diante da ausência de regulamentação e de acesso aos meios legais e pacíficos.
Proibicionismo e a “Guerra às Drogas”
Thiago Rodrigues13 relata que “o proibicionismo emergiu como uma das táticas de controle social que, na passagem do século XIX para o XX, investiram na segurança das sociedades pela articulação de políticas punitivas e de intervenção sobre a vida e que procediam, por sua vez, de práticas de governo das populações que despontaram um século antes e foram chamadas por Michel Foucault de biopolíticas”.
A Conferência de Haia, de 1912, produziu o primeiro tratado internacional nesse campo e não proibia a produção, venda e consumo de qualquer substância, mas estabelecia uma intervenção sobre questões até então desregulamentadas. Foi dedicada ao ópio e seus derivados, com o objetivo de limitar sua aplicação nas chamadas finalidades médicas baseadas no juízo de que todo “uso não medicinal [de drogas] é patológico em si” 13 .
Com o fracasso da “Lei Seca”, em 1933, o alvo do proibicionismo se deslocou para outras drogas, inicialmente a maconha e posteriormente a cocaína e a heroína.
A partir da Conferência de Haia, em 1912, e especialmente depois da 1ª Guerra Mundial, os encontros diplomáticos sobre drogas tiveram impulso e a conferência foi seguida pelas reuniões e documentos produzidos pelo Comitê sobre o Ópio (Opium Board), ainda sob a Liga das Nações, os quais foram incorporados pela ONU após o fim da 2ª Guerra Mundial.
Na segunda metade do século XX, com a assinatura na Convenção Única sobre Drogas, da ONU, em 1961, convergiram os esforços para a padronização e universalização do regime de controle de drogas, estipulando-se as listas de psicoativos organizadas a partir do critério de “uso médico”: as drogas sob prescrição médica, ainda que com potencial aditivo,
seriam aceitas e todas as demais, consideradas de certa forma meramente recreativas, deveriam ser banidas. A partir da Convenção Única, consolidou-se e universalizou a lógica proibicionista, pautada na associação entre argumentos médico-sanitaristas e o objetivo de eliminação de todo uso que escapasse do controle estatal ou do estamento médico13 . Para tanto, deveria persistir a criminalização de traficantes e usuários, além da expansão de medidas internacionais para combater o fluxo de psicoativos ilícitos.
A partir de 1972, com a histórica fala de Richard Nixon proclamando a “guerra às drogas”, baseado em uma divisão estática dos países em dois blocos – produtores e consumidores –, ignorando a dinâmica complexa do mercado de produção e tráfico de psicoativos, passou a predominar a lógica militarista. É a partir desse momento que é forjado o conceito de “narcotráfico”.
A Drug Enforcement Agency (DEA), que centraliza o aparato repressivo da política antidrogas norte-americana, iniciou as ações em 1974 e atuou inicialmente no Caribe e no México, logo, voltando-se para os considerados “países produtores”, especialmente os andinos Bolívia, Colômbia e Peru.
Na década de 80, sob a égide do governo Reagan, o investimento em treinamento e formação de grupos policiais e militares na América Latina, pelos EUA, se intensificou. As agências norte-americanas identificaram associação entre guerrilhas de esquerda e o tráfico de cocaína e o fenômeno, denominado “narcoterrorismo”, justificaram a insistência do governo dos EUA em combater militarmente o narcotráfico e exigir dos países andinos medidas mais severas contra o tráfico de drogas, sem que, no entanto, fosse possível diminuir a produção e o consumo, tampouco o tráfico internacional.
Importante ressaltar que países considerados pela política norte-americana como “consumidores”, como o próprio Estados Unidos e o Canadá, são atualmente reconhecidos como grandes produtores de droga, especialmente maconha. Sobre tal fenômeno, trataremos mais adiante.
Enquanto em países como Panamá, Peru e Colômbia o efeito das intervenções norte-americanas na política interna com o respaldo da guerra às drogas justificou e incrementou o combate interno, especialmente diante do vínculo entre narcotráfico e guerrilhas de esquerda, no Brasil e no México é detectado o efeito da “guerra às drogas” no reforço de políticas de segurança pública voltadas para a repressão seletiva aos grupos sociais empobrecidos13 . No caso específico do Brasil, considerado até meados dos anos 90 um “corredor de exportação de cocaína”, hoje percebido como grande mercado consumidor e especialmente importante praça de lavagem de dinheiro, o tráfico é associado a populações pobres, habitantes de favelas ou periferias e vinculado aos chamados “comandos” ou “partidos” do crime. Mesmo não sendo um quadro simples, a associação “pobreza e tráfico” tem fundamentado vários programas de segurança pública que insistem na repressão e no proibicionismo como meios para tratar da “questão das drogas”.
A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) foi criada em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso, vinculada à Casa Militar da Presidência e foi inicialmente designada para atuar nos moldes da DEA norte-americana como uma agência de repressão. Mas esbarrou na divisão de atribuições prevista no art. 144 da Constituição e foi esvaziada, restando uma agência de trabalho no campo da prevenção. Já no governo Lula da Silva, quando foi promulgada a Lei 11.343, em agosto de 2006, foi alterada a denominação da SENAD para Secretaria Nacional sobre Drogas, mantendo-a, todavia, vinculada a um militar até o primeiro mandato de Dilma Roussef, quando foi transmitida a um civil.
A Lei 11.343/06 instituiu ainda o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), o qual tem como finalidade articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas à prevenção do uso indevido, à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas e à repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.
No campo jurídico penal, conforme já mencionado, não houve na nova lei de drogas a definição de um critério objetivo para a distinção entre as categorias “usuário” e “traficante”, mantendo nas políticas públicas como principal forma de prevenção ao uso de drogas o paradigma da abstinência, força motriz do proibicionismo. Todavia, a partir de 1994 ações de redução de danos no campo da saúde começaram a ser adotadas, levando a uma ponderação no campo penal que veio impactar na edição da Lei 11.343/06, na distinção entre as sanções impostas ao traficante e ao usuário.
As políticas de redução de danos e o uso de drogas
No Brasil, as políticas de redução de danos foram inicialmente adotadas na cidade de Santos, maior cidade portuária do país, ainda na década de 1980, diante do avanço da AIDS especialmente entre os usuários de drogas injetáveis.
As medidas, que incluíam a distribuição de preservativos e de seringas, foram duramente criticadas e o coordenador da ação, David Capistrano, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos-SP, chegou a ser processado criminalmente.
A Redução de Danos (RD) se impõe de forma oposta ao paradigma da abstinência, que é a força motriz do proibicionismo. Segundo Passos, “por paradigma da abstinência entendemos algo diferente da abstinência enquanto uma direção clínica possível e muitas vezes necessária. Por paradigma da abstinência entendemos uma rede de instituições que define uma governabilidade das políticas de drogas e que se exerce de forma coercitiva na medida em que faz da abstinência a única direção de tratamento possível, submetendo o campo da saúde ao poder jurídico, psiquiátrico e religioso” 14 .
Prossegue Passos: “pode-se dizer que a RD coloca em questão as relações de força mobilizadas sócio-historicamente para a criminalização e a patologização do usuário de drogas, já que põe em cena uma diversidade de possibilidades de uso de drogas sem que os usuários de drogas sejam identificados aos estereótipos de criminoso e doente: pessoas que usam drogas e não precisam de tratamento, pessoas que não querem parar de usar drogas e não querem ser tratadas, pessoas que querem diminuir o uso sem necessariamente parar de usar drogas”.
A realidade epidemiológica constatada em 1994 pelo Ministério da Saúde era de que 25% dos casos de AIDS no Brasil estavam ligados ao uso de drogas injetáveis, o que demandou que a RD deixasse de ser uma ação pontual do município de Santos e se tornasse uma ação dentro da política nacional. Nesse mesmo ano (1994), o “Projeto Drogas” do Programa Nacional de DST/AIDS passou a contar com o apoio político e financeiro da Organização das Nações Unidas, por meio do Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP). Esse projeto buscou articular, em torno do tema drogas, a Coordenação Nacional de Saúde Mental, o então Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) do Ministério da Justiça e as Secretarias do Ministério de Educação e do Desporto. A RD foi inserida em diferentes programas e secretarias que criaram, junto ao Projeto Drogas, diferentes linhas de intervenção estadual e municipal, principalmente a criação dos Programas de Redução de Danos (PRDs)14 . A partir da Portaria 1.028/2005 do Ministério da Saúde, a redução de danos foi oficia-
lizada como política pública federal, no cenário da atenção integral ao usuário de álcool e drogas, mas não é consenso, sendo que muitos entendem que incentivaria o consumo de drogas, com gastos desnecessários, quando o objetivo deveria ser a desintoxicação total.
Conforme Passos, na RD a abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, sendo, porém, uma meta pactuada e não imposta por uma instituição. As regras da RD, mesmo a abstinência, são imanentes à própria experiência e não se exercem de forma coercitiva como regras transcendentais. E enquanto a abstinência está articulada com uma proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a proposta de reduzir danos possui como direção a produção de saúde, considerada como produção de regras autônomas de cuidado de si.
Descriminalização
A mais atual discussão acerca da descriminalização no Brasil aportou no Supremo Tribunal Federal no segundo semestre de 2015, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 635.659-RG. Neste, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recorreu de decisão que condenou Francisco Benedito de Souza pela posse de 3 g de maconha no interior da cela onde cumpria pena, sentenciando-o à prestação de serviços pelo prazo de dois meses. A Suprema Corte entendeu tratar-se de julgamento com repercussão geral, significando que eventual decisão de que a posse dessa quantidade da droga para uso próprio não configura crime poderá orientar os juízes e os tribunais de todo o país. O julgamento está interrompido por pedido de vistas dos autos por Ministro que compõe o Pleno do STF.
É, portanto, por intermédio do Poder Judiciário que o país presencia o avançar de uma discussão que já levou inúmeros países, especialmente na Europa, mas também na América, inclusive vários estados dos Estados Unidos, a descriminalizar, liberar ou mesmo legalizar o porte (e, por consequência, o consumo) de drogas, com variações sobre o tipo de droga e a forma permitida para sua fruição, para uso medicinal somente ou, inclusive, para uso recreativo, manifestando-se ou não sobre quantidades, forma de produção, formas de obtenção, locais para consumo, etc.
Nessa perspectiva, ainda no século passado, Holanda e Suíça foram as primeiras nações a permitir o consumo controlado de drogas, e assim foram as primeiras a obter referenciais sobre os efeitos da não proibição absoluta, trabalhando com redução de danos. Já no século XXI, especificamente no ano de 2001, Portugal editou legislação que de fato descriminalizou o uso de todas as drogas, mantendo a proibição para o tráfico. Na América do Sul, o Uruguai, em 2013, também descriminalizou o uso de maconha, regulamentando toda a cadeia de produção. Atualmente, somente Brasil, Guianas e Suriname tratam o uso de drogas como crime, enquanto nos demais países do continente foram estipuladas regras de quantidade máxima e espécie de droga cujo uso é permitido, incluindose em alguns deles até mesmo a cocaína.
Como a maioria das experiências é limitada a permitir ou não punir o porte de drogas para consumo, poucas delas se manifestando quanto à cadeia de produção e distribuição, o tráfico permanece criminalizado e existem ainda poucos números oficiais que permitam a análise dos casos concretos.
Até o momento, o que se noticia é que o impacto da descriminalização foi neutro ou mínimo na escala de 1% de aumento ou 1% de diminuição da quantidade de usuários, no entanto, há de se fazer ressalvas quanto à amostragem e quanto ao período avaliado.
Recentemente, o Núcleo de Estudos e Opinião Pública (NEOP) da Fundação Perseu Abramo (FPA) e a Fundação Rosa Luxemburgo (RLS) lançaram os resultados de pesquisa amostral realizada no ano de 2013, com a população adulta brasileira de 16 anos ou mais
distribuída em 150 municípios brasileiros, totalizando 24.000 entrevistas15. A pesquisa titulada “Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça – proximidades e opiniões” apresentou resultados interessantes. Por exemplo, entre os entrevistados, 47% tiveram algum contato pessoal com drogas ilícitas, enquanto 20% disseram possuir algum familiar que faz uso de droga ilícita, dos quais 60% utilizam a maconha.
A maconha foi citada por 44% dos entrevistados como a droga ilícita mais acessível. Entre eles, 16% tiveram acesso ao crack e 0,2% à cocaína. Já 40% dos respondentes consideraram o crack a droga mais perigosa, 22% consideraram a cocaína a droga mais perigosa, 15% a maconha, 9% o álcool e apenas 3% dos entrevistados consideraram os fármacos como a droga mais perigosa.
A pesquisa constatou ainda que a taxa de dependência dos fármacos e da heroína e morfina foi de 50% ou mais, enquanto a maconha, crack e cocaína apresentaram taxa de dependência entre os usuários de 30%15 .
Conforme pesquisa do INPAD (2012) em parceria com a UNIFESP, estima-se que o Brasil teria em 2012, 2,6 milhões de usuários de crack e cocaína, sendo metade deles dependente (1,3 milhão). Deste total, 78% cheiram a substância exclusivamente (consumida na forma de pó); 22% fumam (crack ou oxi) simultaneamente e 5% consomem apenas pelos cachimbos.
Pesquisa similar da FIOCRUZ (2012), portanto, do mesmo ano informa números distintos: o levantamento, realizado em parceria com a SENAD, indica que cerca de 370 mil brasileiros de todas as idades usaram regularmente crack e similares (pasta base, merla e óxi) nas capitais ao longo de pelo menos seis meses em 2012. Por “uso regular” foi considerado o consumo de pelo menos 25 dias nos seis meses anteriores ao estudo, de acordo com definição da Organização Pan-americana de Saúde. Esse número (370 mil pessoas) corresponde a 0,8% da população das capitais do país e a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nessas cidades. O coordenador da pesquisa da FIOCRUZ alerta que os números são subnotificados, pois se trata de uma “população oculta”, que devido à questão criminal e à discriminação tem dificuldades de revelar seu uso (do crack), que é mais estigmatizado do que o uso de outras drogas.
Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor titular de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) e presidente da Associação Paulista Para o Desenvolvimento da Medicina, “cada vez mais o custo social, econômico e emocional das drogas aumenta e na sua proporção existe a tendência a buscar soluções mágicas e simples como a de legalização de todas. Os proponentes dessa solução não apresentam uma clara operacionalização de como isso deveria ocorrer, mas aportam argumentos a favor. Primeiro, dizem que a quantidade de crimes associados ao uso de drogas diminuiria na medida em que fosse retirado o lucro dos traficantes. O segundo argumento é que, tornando as drogas disponíveis legalmente, haveria uma série de benefícios para a saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas e agulhas limpas poderia prevenir doenças como hepatite e AIDS, por exemplo. Tais argumentos têm apelo somente no nível superficial. Quando olhados em detalhes, eles desabam. A ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela venha a ser usada novamente” 16 .
O debate travado atualmente no STF, no julgamento do RE, é um avanço quando se trata de ampliar a abrangência de uma discussão necessária. Porém, o Ministro Gilmar Mendes foi sagaz ao indicar que “quando se cogita, portanto, do deslocamento da política de
drogas do campo penal para o da saúde pública, está se tratando, em última análise, da conjugação de processos de descriminalização com políticas de redução e de prevenção de danos, e não de legalização pura e simples de determinadas drogas, na linha dos atuais movimentos de legalização da maconha e de leis recentemente editadas no Uruguai e em alguns Estados americanos” RE 635.659, STF.
Parece que os argumentos de ambos os lados, sejam de defensores, sejam de opositores da descriminalização, perpassam desde as questões de saúde pública até a esfera da privacidade e intimidade da pessoa humana.
O voto do Ministro Barroso, proferido no dia 10 de setembro de 2015, no citado julgamento do STF situa de forma adequada a questão: “Estamos lidando com um problema para o qual não há solução juridicamente simples nem moralmente barata. Estamos no domínio das escolhas trágicas. Todas têm custo alto. Porém, virar as costas para um problema não faz com que ele vá embora. Por isso, em boa hora o Supremo Tribunal Federal está discutindo essa gravíssima questão. Em uma democracia, nenhum tema é tabu. Tudo pode e deve ser debatido à luz do dia. Estamos todos aqui em busca da melhor solução, baseada em fatos e razões, e não em preconceitos ou visões moralistas da vida” (Ministro Luís Barroso, RE 635.659, STF).
O Ministro votou pela descriminalização da maconha, sugerindo uma quantidade máxima de 25 gramas ou seis mudas da planta-fêmea para que não se considere criminosa a conduta. Diferentemente, os Ministros Facchin e Gilmar Mendes usaram apartes para sugerir que há significativa incoerência nos votos de seus pares quando entendem que deverá ser permitido o porte de maconha, mantendo as sanções para as demais drogas.
Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, três já se manifestaram favoravelmente à descriminalização do porte para consumo, entre os quais apenas um se manifestou sobre a operacionalização desse entendimento jurídico, estipulando limites conforme mencionado. Exatamente para este é que os Poderes Executivo e Legislativo são tímidos quando se trata de debater temas considerados polêmicos, como a questão da legalização/descriminalização da maconha e de outras drogas devido ao custo político. Citou ainda o caso de Pedro Abramovay, que foi afastado do cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública após se manifestar publicamente como contrário à prisão de pequenos traficantes.
Conclusão
A revisão do “estado da arte” sobre políticas públicas de drogas nos principais países do mundo indica que boa parte deles reconheceu o fracasso da “guerra às drogas”, passando a buscar alternativas para coibir e prevenir o uso/abuso de drogas, sem necessariamente fazer uso da coerção penal em todos os casos. O idealizador e precursor da política proibicionista, Estados Unidos da América, também dá sinais no mesmo sentido quando permite o uso legalizado da maconha para fins medicinais e até recreativos em vários Estadosmembros, registrando-se o fato de que, diferentemente do Brasil, eles possuem autonomia legislativa para disciplinar a questão de forma distinta.
No Brasil, onde apenas a União, por meio do Congresso Nacional, pode elaborar leis sobre a descriminalização ou proibição do uso de drogas, parece não haver indícios de um debate sólido sobre o tema. Apesar disso, existem abordagens e manifestações distintas que propõem, desde a descriminalização pura e simples do uso - com a vedação à comercialização -, até a legalização, com o controle da cadeia de produção, ora sobre todas as drogas, ora somente a maconha, o que tem sido mais comum. Os argumentos, tanto
de defensores como de opositores da descriminalização, variam entre questões de saúde pública e aspectos de segurança pública até a proteção da privacidade e intimidade da pessoa humana. A discussão acerca das vulnerabilidades da população em relação ao tráfico e uso de drogas parece orbitar, segundo os especialistas, ora sobre a utilização de mão de obra de jovens moradores de aglomerados urbanos no tráfico, gerando lucros acima do mercado convencional de trabalho e elevando os indicadores de criminalidade violenta, ora sobre as condições do usuário que traficam para manter a própria dependência ou vício e que é tratado pelo sistema como traficante.
Nesse aspecto, a falha ou insucesso da política antidrogas atualmente tem como resultado altas taxas de encarceramento, limitadas de forma geral a determinado segmento das populações, sem implicar a diminuição da oferta de drogas proscritas no mercado ilícito e sem impactar nos indicadores de violência e criminalidade, sobretudo a violência. Na perspectiva de que as políticas de redução de danos se mostram como caminho promissor a ser trilhado, deixa-se aberto o debate, concluindo que a atual política criminal atua em duas frentes de vulnerabilização da população: ao não estipular critérios objetivos, permitindo a seletividade do encarceramento exatamente dirigido às populações já abandonadas pelo Estado, e ao afastar do usuário de álcool e drogas, que é enquadrado como traficante, as possibilidades da atenção integral, perpetuando o ciclo da violência e da criminalização.
Referências
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Vulnerabilidade, guerra contra as drogas: uma abordagem econômica atual
Guilherme da Rocha B. Costa
O debate acerca da liberação e/ou descriminalização das drogas está presente entre os economistas há, pelo menos, 30 anos. Durante esse período, os argumentos mudaram pouco, mas a robustez do pleito aumentou consideravelmente, seja a favor ou contra. Optou-se, neste capítulo, por apresentar as principais considerações a favor do fim da guerra contra as drogas; as principais falhas do modelo atual de combate ao tráfico de drogas; e, finalmente, sugestões, tanto para aprimorar o modelo atual, como para mudá-lo completamente. Entretanto, cabe deixar claro que essa perspectiva não está fundamentada no conceito de vulnerabilidade individual, mas, sim, em questões de vulnerabilidade de países, já tratada no primeiro capítulo deste livro. Ademais, cabe definir racionalidade nos termos da ciência econômica, mais precisamente da ortodoxia econômica (mainstream), segundo a qual ser “racional significa que indivíduos maximizam utilidade consistentemente ao longo do tempo, e um bem é potencialmente viciante se aumentos no consumo passado aumentam o consumo corrente”1 . Finalmente, “a justificativa-padrão para a intervenção governamental em interesses privados requer que esses interesses ou atividades privadas produzam externalidades: em uma perspectiva econômica neoclássica, política pública deve intervir somente se o setor privado age de tal forma a gerar custos ou benefícios que são impostos sobre ou capturados por outro que não o agente original da decisão ou ação”2 .
Tendo essas considerações em mente, cabe agora revisitar alguns momentos históricos importantes no combate às drogas em uma perspectiva histórico-econômica, para, então, tecer comentários sobre políticas alternativas ao status quo.
O início do século XX nos Estados Unidos da América (EUA) e o álcool
É sabido que alguns produtos que podem ser classificados como “drogas” são considerados legais, ou lícitos, como o tabaco e o álcool. Entretanto, nem sempre foi assim. Nos primeiros anos do século XX, nos Estados Unidos, existia crescente preocupação de grupos conservadores com o alcoolismoa . A preocupação foi tamanha que alguns estados implementaram legislações proibitivas à comercialização do álcool, chegando ao ápice em janeiro de 1920, com o ato Volstead, que proibia a venda, manufatura e transporte do álcool. Foi a implementação da conhecida “Lei Seca”, que durou quase 14 anos, tendo sido revogada em dezembro de 1933.
Essa lei falhou, pois simplesmente não era obedecida: as pessoas continuaram a consumir álcool. Na época, estima-se que 1/3 da população norte-americana consumia álcool. Fazer cumprir a lei tornou-se um grande problema, já que expressiva parcela da população era “criminosa”.
A Lei Seca, então, acabou por ter efeitos ruins e absolutamente opostos aos seus objetivos: estimular o tráfico de álcool e aumentar os gastos com o combate ao tráfico. Segundo Hampshire3, para atender a essa demanda por álcool, a Lei Seca norte-americana “foi o elemento mais importante no desenvolvimento do crime organizado na América”. Já o custo para fazer cumprir a legislação proibitiva foi elevado. É estimadob que os gastos do governo e da justiça norte-americana tenham elevado em 500%, em um comparativo entre antes (em 1913 gastavam-se US$ 3 milhões) e depois da lei (em 1922 gastavam-se
US$ 14 milhões). Comparando também o período final da lei, houve queda de 50% dos gastos federais da justiça norte-americana, caindo de US$ 31 milhões em 1932 para US$ 15 milhões em 1934.
A guerra contra as drogas nos EUA (The War on Drugs)
Em junho de 1971, o então presidente norte-americano Nixon declarou “guerra às drogas”. Desde então, Presidente após Presidente nos EUA reafirmou o compromisso do governo em eliminar o tráfico de drogas. Nas palavras de George W. Bush, “esse flagelo irá acabar”.
O Presidente Ronald Reagan (1981-1989) iniciou um longo período de aumento acentuado no encarceramento, fundamentalmente advindo da guerra contra as drogas. O número de pessoas presas por crimes não violentos relacionados à droga aumentou de 50.000, em 1980, para 400.000, em 1997, crescimento de 800% nesse segmento da população carcerária norte-americanac .
Sendo assim, “[...] a guerra contra as drogas é costumeiramente justificada como uma medida de controle da criminalidade. Na verdade, a guerra pode gerar mais crimes do que controlá-los... [...] uma grande maioria daqueles que cometem crimes violentos e crimes de propriedade também são usuários de drogas ilícitas e pequenos traficantes. Entretanto, o contrário não é verdade. A maioria dos usuários de drogas ilícitas não comete crimes violentos ou crimes contra a propriedade... [...] álcool é a única droga consistentemente associada com comportamento violento realizado ‘sob o efeito’. A maioria da violência relacionada às drogas acontece entre os traficantes, por território” 4 .
Essa diretriz também é seguida por Benson2. Ou seja, para justificar a contínua política de guerra contra as drogas, no arcabouço delineado na introdução deste capítulo, o governo tem que ter criado externalidades positivas substanciais nesses últimos 40 anos de aplicação da política. Em outras palavras, o aumento crescente do orçamento desse programa e o resultado no número de prisões, com redução da violência oriunda das drogas e do consumo de drogas, devem ser justificados economicamented .
A guerra contra as drogas no México e no Brasil
O aumento da criminalidade fez com que estudos empíricos procurassem os determinantes socioeconômicos desse fenômeno. O drama de países como o Brasil começa pelo que afirmou o Secretário Executivo da Interpol, Robert Kendall: “seria melhor se as forças de polícia não fossem empregadas para caçar consumidores de droga ou os pequenos negociantes e atribuíssem muito mais seus recursos à repressão de grandes traficantes e de lavadores do dinheiro sujo”. Infelizmente, a legislação e, mais ainda, a prática policial em diversos países, incluindo o Brasil, guiam essas forças policiais para a primeira escolha5 . A autora tem tal posição por entender que a corrupção institucional, a ineficácia e a discriminação no sistema judiciário no Brasil fizeram crescer a violência urbana a níveis elevados. Ainda segundo Zaluar5 , “o que deve entrar em pauta de discussão é como a pobreza
c Fonte: Federal Bureau of Prisons. Disponível em: http://www.bop.gov/about/statistics/. d Cabe mencionar que, hoje, 48,7% da população carcerária norte-americana são compostos de indivíduos que cometeram crimes relacionados às drogas (“drug offences”).
e a falta de emprego para os jovens pobres se relacionam com os mecanismos e fluxos institucionais do sistema de justiça na sua ineficácia no combate ao crime organizado”.
Segundo Kassouf6: Os resultados [de seu estudo empírico] fornecem evidências empíricas que permitem dar sustentação à hipótese de que o mercado de drogas que se desenvolveu no Brasil é um dos principais responsáveis pela alta criminalidade que atinge a sociedade brasileira... Os resultados fornecem suporte para concluirmos que a desigualdade de renda e a urbanização exercem efeitos positivos sobre a criminalidade brasileira e, também, que as condições do mercado de trabalho podem implicar criminalidade.
Ou seja, o que esses autores defendem é que um combate sistemático e sistêmico sobre fatores socioeconômicos seriam medidas eficazes para contribuir para a redução da criminalidade, inclusive, da criminalidade oriunda das drogas. Entre as medidas necessárias, podem-se citar a diminuição da desigualdade de renda e a criação de meios para cessar o processo de urbanização, advindo da migração campo/cidade – o qual ainda ocorre sem planejamento e que causa uma urbanização desorganizada.
Adicionalmente, a realidade mexicana também é alarmante. Os níveis de violência no México, segundo Robles, Calderón e Magaloni7, aumentaram significativamente nos últimos anos, pois o conflito entre traficantes na busca por território se intensificou. Segundo os autores 7, três fatores explicam esse aumento na violência: mudanças exógenas no mercado de narcóticos (incluindo, acima de tudo, o sucesso relativo da Colômbia em sua “guerra” contra as drogas); o aumento da fragmentação dos cartéis de drogas; e a militarização da guerra contra as drogas e o tráfico, a qual começou durante a administração do Presidente Felipe Calderón.
Esses três autores, inclusive, mencionaram um fato, no mínimo, provocativo: quanto mais se coibiu o tráfico de drogas no México, mais violento se tornou o crime organizado das drogas. Não menos importante, identificou-se que 90% dos homicídios ligados ao tráfico de drogas foram execuções, de tal forma que foi possível inferir que o aumento da violência no México é fundamentalmente associado às rivalidades entre cartéis de drogas.
Ademais, o estudo empírico dos autores sobre o México revela que o aumento de 10 homicídios por 100.000 habitantes gera:
• queda na proporção de pessoas trabalhando no entorno entre 2 e 3%; • aumento na proporção de desempregados em 0,5%; • redução na proporção de pessoas que possuem negócio no entorno em 0,4%; e • queda no número de trabalhadores autônomos na ordem de 0,5%.
Por fim, o aumento de um homicídio por 100.000 habitantes diminui a renda municipal, na média, em 1,2%.
Desde 2006, quando se iniciou uma ofensiva mais clara e direta contra os cartéis de drogas no México, focando, principalmente, a prisão dos líderes das famílias e dos grupos dominantes, os crimes comuns aumentaram consideravelmente. Isso se explica pela falta do líder. Na visão desses autores, a ausência do líder, preso ou morto, desencadeia um efeito dominó entre os criminosos de “menor patente” - sem um líder para discipliná-los ou para direcionar suas ações, esses criminosos recorrem à forma de ganhar dinheiro que conhecem – como extorsão, roubo e sequestro -, até que novos líderes, menores e mais fragmentados, surjam.
Com isso, segundo Robles, Calderón e Magaloni7, “é importante enfatizar que um dos principais problemas que explicam a onda de crimes no México está relacionado com as instituições que fazem cumprir a lei de repressão às drogas no país”.
Avaliação do mercado ilegal e possíveis impactos de uma proposta alternativa
Becker, Murphy e Grossman8, em estudo de caso acerca das drogas, elucidam os benefícios e malefícios econômicos da proibição/criminalização das drogas e argumentam a respeito de impostos especiais de consumo. No caso, taxas não monetárias na forma de punições criminais para a produção ilegal de produtos. Ou seja, foram analisados os efeitos normativos e positivos de punições que fazem cumprir a lei que torna ilegais a produção e o consumo de drogas.
O ponto de partida foi determinar como o preço das drogas é formado. Becker, Murphy e Grossman8 afirmam que: “[...] a demanda por drogas, presume-se, depende do preço de mercado por drogas, que é afetado pelos custos impostos aos traficantes através de punições e aplicações da lei, tais como o confisco das drogas e prisão. Bem como a demanda também depende do custo imposto pelo governo sobre os usuários”.
Adicionalmente, cabe destacar que a demanda por drogas ilícitas é inelástica ao preço. Isso significa dizer que variações no preço geram reduzido impacto no volume do consumo. Ou seja, é necessário acentuado aumento nos preços para que a diminuição da demanda por drogas seja significativa.
Dessa forma, os autores passam a simular/modelar dois cenários, um com o atual modelo de proibição às drogas e outro no qual existe taxação sobre produtos legalizados. Um dos objetivos é simples, descobrir em qual caso o preço das drogas será mais elevado e, dessa forma, tornará essa indústria menos viável/rentável.
Ademais, ressalta-se que as tentativas de reduzir a oferta de drogas a partir de leis coercitivas têm consequências qualitativas, como o aumento da violência e da influência de gangues de rua e cartéis da droga (em outras palavras, fortalece o crime organizado, assim como fez a Lei Seca). Por outro lado, a liberação/descriminalização aumenta os custos com a saúde pública e outros problemas de segurança pública podem surgir.
No primeiro cenário, com o atual modelo de proibição às drogas, Becker, Murphy e Grossman8 modelaram o nível de intervenção governamental ótimo, no qual a queda do consumo e o aumento do preço do produto ilegal são mais satisfatórios para o governo. Nesse caso, os autores constataram que o grau de intervenção ideale é nulo, mesmo quando se considera que a demanda é, até certo ponto, elástica. Ou seja, quando são levadas em conta as externalidades, positivas e negativas, da intervenção governamental, o melhor que o governo pode fazer é não intervir no mercado de drogas (também realçando as externalidades positivas e negativas dessa ausência de iniciativa). A conclusão dos autores é de que somente em um cenário com demandas por drogas elásticas ao preço, uma política nos moldes da Guerra contra as Drogas seria bem-sucedida, pois apenas nesse caso um aumento nos gastos em fazer cumprir a lei traria benefícios suficientemente grandes para a sociedade, para justificar seu dispêndio (o custo de coibir o tráfico de drogas geraria externalidades positivas suficientemente grandes).
No segundo cenário, das taxas monetárias sobre bens legalizados:
[...] se as receitas fiscais são transferências puras, [a Matemática do modelo] dá o resultado clássico, que o imposto monetário ótimo é igual à diferença entre o valor marginal privado e o social. Com uma transferência pura, a elasticidade da demanda é irrelevante... [...] Nossa análise mostra, além disso, que usar taxas monetárias para desencorajar produção de droga legalizada pode reduzir o consumo de drogas de forma mais acentuada que a mais eficiente das guerras contra as drogas (Becker, Murphy e Grossman8 . Dessa forma, os autores reafirmam o trabalho de Becker e Murphy 1, o qual mostra que o consumo de produtos que criam dependências responde menos por mudanças temporárias nos preços do que mudanças permanentes. A conclusão dos autores é de que dependências fortes só são superadas caso os dependentes parem de vez, de forma abrupta e por um período consideravelmente longo de tempo (to go “cold turkey”).
Para reforçar o exposto até o momento, o relatório do grupo de experts da London School of Economics and Political Science (LSE), de 2014, tem no seu prefácio a seguinte passagem:
A busca pela militarização e aplicação das leis em uma Guerra contra as Drogas global tem produzido grandes resultados negativos e danos colaterais. Estes incluem encarceração em massa nos EUA, uma polícia altamente repressiva na Ásia, ampla corrupção e desestabilização política no Afeganistão e na África Ocidental, imensa violência na América Latina, uma epidemia de HIV na Rússia, uma aguda falta de medicamentos contra a dor e a propagação sistemática de abusos e violações dos direitos humanos ao redor do mundo. A estratégia falhou em seus próprios termos.
A mensagem do prefácio continua e foi assinada por muitos economistas de peso, como Kenneth Arrow, Dani Rodrik, Jeffrey Sachs e Oliver Williamson. Como visto até aqui, os argumentos para essa passagem citada já foram elucidados. Entretanto, é importante destacar, assim como fez Felbab-Brown9 no relatório da LSE, que essa contribuição não sustenta a ideia de que, com a legalização, per se, será erradicada a violência. Pelo contrário, mesmo em mercados de commodities de produtos legalizados, a aplicação da lei é fundamental. Ademais, o que é proposto, costumeiramente, quando é proposto o fim da Guerra contra as Drogas, é que a política atual de segurança pública, voltada para a repressão do uso e tráfico de entorpecentes ilícitos, seja substituída por uma política pública de saúde, acompanhada de uma política de segurança pública menos repressiva e, por isso, menos onerosa.
Csete10 afirma que: Serviços de saúde para pessoas que usam drogas são importantes em vários níveis. Além dos benefícios clínicos para o indivíduo e dos benefícios para a comunidade de reduzir os malefícios relacionados à droga, como HIV e crimes relacionados às drogas, eles representam uma alternativa à prisão e detenção por alguns crimes e, são, portanto, um começo para o desenvolvimento de políticas de drogas menos repressivas. Apesar de significativa evidência de que os serviços de saúde relacionados à droga são um ótimo investimento para a sociedade, eles continuam lamentavelmente subfinanciados e indisponíveis.
Portanto, o que se sugere é uma importante mudança de foco, de algo que já se provou ineficiente (repressão contínua, com externalidades negativas onerosas, tanto econômica, quanto socialmente) para algo que já se provou valoroso para a sociedade (política pública/privada de saúde), que gera externalidades positivas significativas (ressocialização de indivíduos, redução da população carcerária por crimes não violentos relacionados à droga e redução da violência relacionada à guerra por território de tráfico de drogas, para citar algumas). Isso, claro, além da tributação sobre os produtos que se tornaram legalizados.
“Apesar da ampla ação dos esforços norte-americanos [em coibir a produção e uso das drogas] – e várias outras tentativas em outras nações –, nenhum presidente, ou “czar” da droga, declarou vitória contra ela, nem mesmo a vitória está em vista” (Becker, Murphy e Grossman) 8. Com isso, mas não só por isso, conclui-se que declarar guerra às drogas a partir da legalização do consumo, atrelada a uma política tributária sobre esse produto, pode ser mais efetivo do que continuar proibindo seu uso. Afinal, nem mesmo o preço global das drogas ilícitas se elevou, pelo contrário, os valores caíram substancialmente ao longo dos anosf .
Dessa forma, acredita-se que o impacto orçamentário, e inclusive social, da guerra contra as drogas é deletério. As experiências apresentadas, tanto em um país desenvolvido (EUA), quanto em países subdesenvolvidos (Brasil e México), trazem à luz a ineficiência da guerra contra as drogas em reduzir o consumo e a violência. Adicionalmente, também se mostrou ineficaz em aumentar o preço do produto ilegal a patamares que tornassem a indústria da droga pouco atrativa para o crime organizado.
A fragmentação vista nos cartéis mexicanos, quando seus líderes são presos ou mortos, pode ser vista em escala global. Quando um grande cartel em um determinado país é “fechado”, a partir da aplicação de leis e medidas rígidas contra as drogas, um cartel, em outro país, emergirá para tomar posse do território que ficou “sem dono”.
Portanto, boa parte dos estudos econômicos acadêmicos sobre a indústria dos produtos ilegais recomenda o fim da guerra contra as drogas. Seriam criados tributos sobre os produtos recém-legalizados e substituir-se-ia no orçamento a guerra contra as drogas, hoje uma política de segurança pública, para gastos com políticas de saúde, para o tratamento do viciado em drogas. Contudo, não há consenso quanto à abrangência da liberação/descriminalização.
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Hugo Monteiro Ferreira José Aniervson Souza dos Santos Ei, menino branco, o que é que você faz aqui Subindo o morro pra tentar se divertir Mas já disse que não tem E você ainda quer mais Por que você não me deixa em paz? (Legião Urbana).