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figura 16: Temas mais frequentes apresentados nas rodas de TCI

Nos encontros as pessoas são estimuladas a falarem de seu sofrimento, sem riscos de serem julgadas ou condenadas. Poder expressar seus sofrimentos, seus conflitos, medos e dúvidas, valorizando e respeitando as diferenças individuais e as experiências de vida de cada um, o que favorece a prevenção, o tratamento e a reinserção social de usuários14 .

A TCI é uma abordagem terapêutica promissora em relação aos problemas relacionados ao abuso de drogas, por incentivar o exercício do autocuidado, valorizar os recursos culturais e possibilitar que estratégias de resolução sejam compartilhadas, o que contribui para o empoderamento dos participantes e para a promoção da saúde numa perspectiva de busca de autonomia28 .

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A TCI tem se tornado um espaço de interconexão das diversas redes de apoio não governamentais, como os Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Pastoral das diversas igrejas e entidades governamentais, a exemplo das escolas, centros de apoio psicossocial e justiça. São recursos que precisam ser reconhecidos e valorizados em todo programa de prevenção e atenção ao uso de drogas18 .

A terapia comunitária integrativa funciona como uma primeira instância de atenção básica em saúde pública. Ela acolhe, escuta, cuida e direciona melhor as demandas e permite que só afluam para os níveis secundários de atendimento as que não foram resolvidas nesse primeiro nível de atenção. Ela não tem a pretensão de ser uma panaceia, nem de substituir os outros serviços da rede de saúde, e sim complementá-los. O fator determinante é o acolher indiscriminadamente, disponibilizando o suporte comunitário18 .

A promoção de redes de apoio social constitui um fator de proteção dos mais importantes a serem incrementados pelos programas de prevenção ao uso indevido de drogas, nas esferas federal, estadual e municipal. É nesse sentido que a metodologia da TCI foi qualificada como uma estratégia eficaz de prevenção do uso indevido de drogas e de promoção da saúde, sendo inserida em ações da Política Nacional Sobre Drogas13 .

A inserção da terapia comunitária integrativa em ações de políticas públicas nacionais

O reconhecimento da TCI como abordagem de saúde comunitária favoreceu sua inserção em ações de políticas públicas nacionais, estaduais, municipais e do DF. Esse reconhecimento é expresso pela capacitação de terapeutas comunitários em todo o país com financiamentos públicos13 .

Em âmbito federal, a TCI foi inserida nas ações da Política Nacional Sobre Drogas por meio do Convênio nº 16/2004 firmado entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, o polo formador Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária do Ceará (MISMEC) e a Universidade Federal do Ceará (UFC), o que possibilitou a capacitação em TCI, com ênfase nas questões relativas ao uso de álcool e outras drogas, de 780 lideranças comunitárias em 12 estados brasileiros14,18,26 .

As contribuições da TCI para a prevenção ao uso de drogas nas comunidades indígenas foram outro projeto desenvolvido de 2009 a 2012, na parceria SENAD, Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura (FCPC), UFC e Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (Convênio nº 16, de 2009). O projeto compreendeu a realização de três cursos: Terapia Comunitária Indígena Integrativa, Massoterapia e Técnicas de Resgate da Autoestima Indígena, sendo concluídos por 85 indígenas, de 13 etnias, de todas as regiões do país e a implantação da sede do polo de formação em Terapia Comunitária Indígena Integrativa e Ações Complementares para as Comunidades Indígenas Brasileiras na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, BA13 .

A inserção da TCI em ações da Política Nacional de Atenção Básica e da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares ocorreu pelos convênios 3363/2007 e 2397/2008, que proporcionaram a capacitação de 2.105 profissionais da Estratégia Saúde da Família e rede SUS de todo o país em TCI18. A articulação da TCI com a Política Nacional de Saúde Mental se deu pelo convênio 101/2014, que teve como foco a capacitação em terapia comunitária integrativa em cenários de calamidade pública de 560 profissionais do SUS de municípios dos estados de Alagoas, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo. Todos os convênios foram firmados entre o Ministério da Saúde, Universidade Federal do Ceará e Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura13,18 .

Nas formações, os cursistas realizaram rodas de TCI e as registraram em formulário predefinido. Os dados levantados foram sistematizados e estão apresentados na Figura 16, que ilustra os temas mais frequentes em rodas realizadas de 2004 a 2014.

figura 16 – Temas mais frequentes apresentados nas rodas de TCI

A Figura 16 sinaliza que a temática álcool e drogas foi um tema frequente em rodas de TCI no Brasil, estando na quarta posição dos temas. Destaca-se que os demais temas, embora não tratem diretamente das drogas, fazem uma interface com essa questão, a exemplo dos conflitos familiares, estresse, depressão e violência.

Cenas do cotidiano: a temática de drogas na roda da TCI

A seguir será apresentada uma roda de terapia comunitária integrativa coordenada pelo Prof. Dr. Adalberto Barreto, tendo como coterapeuta o líder comunitário Sr. José Lopes (Seu Zequinha). A roda foi realizada no Projeto 4 Varas em Fortaleza-CE e teve como tema: a droga, a família, a prisão e a reconquista de uma vida. Estavam presentes 68 participantes.

O vídeo da roda de TCI que foi parcialmente degravado neste capítulo integra a coleção “Terapia comunitária e a prevenção do uso de álcool e outras drogas”. Esse material pedagógico em audiovisual foi produzido no convênio 16/2004 (SENAD/MISMEC/UFC)13,14,18,26 . E é transcrito em sic.

Etapa 1 – Acolhimento – coordenada pelo coterapeuta

Coterapeuta (Seu Zequinha): “pessoal, o nosso cordial boa tarde e os votos de boasvindas a cada um de vocês. Quem está vindo aqui pela primeira vez?”.

Grupo canta: “seja bem-vindo, olê lê. Seja bem-vindo, olá lá. Paz e bem pra você que veio participar”. Coterapeuta (Seu Zequinha): “hoje, como sempre, na terapia nós vamos falar de coisa boa, de vida. Na terapia nós falamos não só de coisas ruim, mas falamos de coisas boa. Ela acontece para eu descobrir. Cada um fala de si, as coisas que está me incomodando. O que é que me incomoda? Falta de sono? Falta de emprego? Falta de relacionamento em casa? Com os meus vizinhos? Com o meu trabalho? Nas terapias nós não damos conselho e nem se faz discurso. A intenção de perguntar é para compreender. Porque, se a gente não buscar compreender o outro, o que se faz? Julgar? E aqui não se pode julgar. Durante a terapia se você se lembrar de uma música, de uma estoriazinha, de uma piada é só dá sinal para quem tiver coordenando a terapia e a pessoa dá o espaço para você. Todos tem direito de falar. Eu queria saber se tem alguém aniversariando esse mês”.

Dinâmica de integração e aquecimento: brincadeira em grupo

Etapa 2 – Escolha do tema – coordenada pelo terapeuta

Terapeuta (Adalberto): “chegou a hora da gente escolher o tema que vamos discutir hoje. Porque é importante a gente falar com a boca? Quando a gente não fala com a boca a gente vai falar com depressão, com insônia, com dor nas costas, com gastrite. Quando a boca cala, os órgãos falam. E quando a boca fala, os órgãos saram. Por isso é que é importante a gente falar com a boca daquilo que a gente tá sentindo. A gente escolhe a hora errada, a pessoa errada e aquilo vira uma intriga, vira uma futrica, e a gente vai fechando o coração e dizendo nunca mais vou confiar em ninguém. Tem um outro ditado que diz: quem guarda azeda, quando azeda estoura e quando estoura fede. Essa é uma terapia pra gente não andar com cara de azedo e estourar nos horários inconvenientes com as pessoas que não têm nada a ver com a nossa história. O que falar? A gente fala daquilo que tira o sono, das preocupações do cotidiano, da educação dos filhos, da relação familiar, do emprego, do desemprego. Quem tem segredo não traga pra terapia. Aqui não é espaço pra partilha de segredos. Aqui a gente fala das preocupações do cotidiano. Aqui a gente fala sem medo de ser julgado e de ser mal-interpretado ou de virar fofoca, porque aqui a gente fala com o coração em busca de compreender a si próprio. Como nós somos muitos, quem gostaria de compartilhar uma preocupação? Uma angústia. Qual é o seu sofrimento atual?”. Participante 1 (sexo masculino, 30 anos): “o sofrimento atual é que eu passo por muitas dificuldades, perdi a família, fiz coisas que eu não gostaria de ter feito. Hoje em dia eu me arrependo do que eu fiz. Hoje estou vivendo na rua, mendigando como se eu fosse um cachorro, mas tudo tem sua provação”. Terapeuta (Adalberto): “uma musiquinha – ‘Eu não sou cachorro não...’” Participante 2 (sexo masculino, 32 anos): “porque minha irmã é assistente social e

conheceu um médico lá no interior e ela propôs dele morar lá em casa. A minha primeira resposta foi não. Hoje em dia ele tá lá com a gente. Quando ele entra eu saio, quando ele sai eu entro”.

Grupo cantou “quando eu ia ela voltava, quando ela voltava eu ia”. Participante 3 (sexo feminino, 29 anos): “mora três irmãos lá em casa e a responsabilidade está toda nas minhas costas. E isso tá me incomodando”.

Terapeuta (Adalberto): “sentimento de burro de carga?” (participante 3 concorda fazendo gesto com a cabeça). “Nós temos aqui três situações problema e nós vamos poder escolher apenas uma dessas três. É aquela que mais me toca, que tem a ver com a minha história. Não tem aquela escolha objetiva não. São três temas importantes que têm a ver com o cotidiano. Não tem nenhum maior do que o outro. Agora gostaria que vocês se pronunciassem”. Participante 4 (sexo feminino, 38 anos): “escolheu o tema da participante 3. Eu tenho cinco filhos e durante um tempo da minha vida eu me senti também muito sobrecarregada”. Participante 5 (sexo feminino, 51 anos): “escolheu o tema do participante 2. Não era conviver com estranho, mas com dificuldade de relacionamento em casa”. Coterapeuta (S. Zequinha): “escolheu o tema do participante 1. Deve ser muito amargoso a pessoa perder a família. Eu acho uma qualidade a pessoa reconhecer o erro. E eu acho que ele precisa de uma ajuda”. Terapeuta (Adalberto): “agora a gente vai votar. Só pode votar uma vez, levantando a mão”.

O terapeuta reapresenta os temas e o grupo vota.

Tema do participante 1 – 40 votos

Tema do participante 2 – 12 votos

Tema do participante 3 – 16 votos.

Etapa 3 – Contextualização

Terapeuta (Adalberto): dirigindo-se ao Participante 1 – “você vai falar um pouco do seu sofrimento. Eu queria lembrar que todo mundo pode fazer pergunta. Só pergunta por enquanto”. Participante 1: “eu me sinto totalmente um cachorro arrasado. Sem ninguém. Só Deus por mim. Porque sem ele nós não somos ninguém”. Terapeuta (Adalberto): “o que tu tem feito pra reconquistar a tua paz interior?”. Participante 1: “fazer mais amizade, mas por outro lado as pessoas olham assim como se tivesse medo de mim. Como se eu tivesse coragem de fazer aquilo que eu tinha feito algum tempo atrás e com isso eu tô me sentindo muito arrependido do que eu fiz. Se eu soubesse que isso ia acontecer eu jamais tinha feito isso”.

Coterapeuta (S. Zequinha): “você ainda tá usando ou já parou?” Participante 1: “Parei. Graças a meu bom Deus. Depois que eu comecei a andar na igreja as coisas melhorou pra mim”. Coterapeuta (S. Zequinha): “e onde é que tu tá dormindo?” Participante 1: “assim debaixo de teto, beira de calçada, pracinha...” Terapeuta (Adalberto): “e do que tu te arrepende?” Participante 1: “primeiramente foi usar drogas, porque esse crack só faz desgraçar sua vida, só pra perder família, mãe e pai. Eu aconselho quem usa isso sai fora enquanto é tempo”.

Terapeuta (Adalberto): “tu parou com o crack?” Participante 1: “parei, graças a Deus”.

Terapeuta (Adalberto): “e tu botou o que no lugar?” Participante 1: “nem cachaça, nem bebida. Só Deus”. Coterapeuta (S. Zequinha): “como você tá ganhando o pão de cada dia? Trabalhando com o quê?” Participante 1: “eu no momento não tô trabalhando com nada, mas eu tô atrás. Se fosse outra pessoa no meu lugar, se tivesse passando pelo que eu tô passando, eu acho que já tinha feito uma loucura. Porque o crack é o seguinte, quando a pessoa consome ela você não quer só um, dois, três... você quer mais. Eu tirava coisas de casa. É a coisa mais horrível. Não presta. Aí eu saía. Ia pelo meio da rua, não podia ver um casal fora de hora e eu chegava e era um assalto... ia pra bocada, comprava mais pra consumir. E assim ia levando...” Terapeuta (Adalberto): “e qual foi a reflexão que você fez que levou você a dizer que se eu continuar eu vou morrer e eu não quero morrer? Se você lembra do momento, da circunstância que você disse que agora vou parar mesmo”. Participante 1: “foi desde o dia em que eu caí na cadeia. Nem bicho era pra tá preso”. Terapeuta (Adalberto): “o que passava na tua cabeça quando tu tava lá dentro? Que filme passou na sua cabeça?” Participante 1: “muita loucura, arrependimento”. Terapeuta (Adalberto): “quer dizer que essa tua prisão foi um mal necessário?” Participante 1: “justamente, porque você pensa... tu tá no xadrez, aquele negócio apertadinho, só um quadradinho, sem poder se levantar, sem andar, com um bocado de macho ao seu redor, fedorento e suado”. Participante 6 (sexo feminino, 60 anos): “e seus pais te abandonaram?” Participante 1: “me abandonaram”. Participante 7 (sexo feminino, 25 anos): “agora que você já reconheceu tudo o que você fez, qual o teu maior desejo?” Participante 1: “meu maior desejo, moça, é que seu eu pudesse recuperar minha família de volta, de novo”. Terapeuta (Adalberto): “então eu queria te agradecer por ter aberto seu coração, feito um streep tease existencial. Mostrou sua alma de gente sofrida, mas que tá buscando sair dessa situação. A partir de agora ninguém vai mais te azucrinar fazendo perguntas e eu pediria que você ficasse só prestando atenção no que nós vamos conversar entre nós”.

Etapa 4 – Problematização

Terapeuta (Adalberto): “agora que nós ouvimos a história dele, que perdeu a família, fez besteira na vida, chegou a ir pra cadeia, mas se arrependeu do que fez. Quem de nós, também, já se arrependeu de alguma coisa que fez? E o que que eu fiz pra superar?” Participante 8 (sexo feminino, 47 anos): “há poucas horas atrás eu me sentia assim perdida, sem nome, sem lenço, sem documento, desmoralizada porque eu sou alcoólatra. Não posso, não devo ingerir nada que venha a conter álcool. Por conta do meu alcoolismo muitos viraram as costas pra mim. É o padrão normal, ninguém quer levar tapa. Todo mundo de preferência quer carinho. Mas eu tô admirada com o que eu ouvi aqui porque eu bebi demais, fui de cair nas calçadas, fui de urinar em via pública, enfim, tudo aquilo que faz que acha que embriagado tem direito. O que me admirou aí na história é que sem autoajuda...” Terapeuta (Adalberto): “o que se chama de autoajuda?”

Participante 8: “uma terapia de grupo pra conseguir sair de uma situação dessa. Nós temos três irmandades paralelas, né? Nós temos o NA, que é um problema com drogas. Nós temos a irmandade de alcoólicos anônimos, que é o meu problema. Nós temos ALANON, que é para os familiares compreender e passar pelo menos a conviver com o problema do alcoolismo. Alguém perguntou ao rapaz o que levou ele a parar. Ele insistiu, insistiu na fé. O que me levou a parar não foi a fé, foi meu fundo de poço”. Terapeuta (Adalberto): “como assim?” Participante 8: “expulsa de casa, desmoralizada, sem trabalhar, sem produzir, me tornei um bicho. Embriagado era um monstro. Quer dizer, as coisas todas se viraram contra mim. E eu cheguei no meu fundo de poço quando um dia eu tava numa churrascaria. Tava com várias pessoas bebendo e na hora da confusão eu fui a única que fui espancada, a única que fui presa e fui a única que paguei pelo assunto. Aquilo começou a me chamar a atenção. Meu fundo de poço foi poder nem olhar, nem abrir a porta da minha casa. O que me levou a superar vários problemas da minha vida em primeiro lugar foi Deus, a irmandade de alcoólicos anônimos e, sem sombras de dúvidas, essa caloria, esse abraço, esse aperto, esse sorriso, tudo o que existe aqui dentro, até por ser totalmente natural, que nunca vi nada igual na minha vida que se chama Projeto 4 Varas”. Participante 9 (sexo masculino, 59 anos): inicia uma música e o grupo acompanha. “Eu sou feliz é na comunidade, é na comunidade eu sou feliz”. Terapeuta (Adalberto): “quem mais já se arrependeu do que fez? Já chegou no fundo do poço, não interessa as razões, pode ser por outras razões, por outros caminhos...” Participante 4 (sexo feminino, 38 anos): “o fundo do poço lhe obriga a ir pra frente, não tem mais pra onde descer. E me obrigou a subir. E o fundo do poço foi uma relação. Eu era muito nova, 17 anos, primeiro namorado, primeiro amor, projeto arrojado de ter muitos filhos, desenvolvi quase que uma obsessão pelo marido. O que eu sei que tudo passa, tudo acaba e as relações não são eternas. Então ele deu um ponto final. Ele deixou muito claro há muito tempo, há mais de dez anos atrás que não me amava mais, mas eu não me conformava. Nunca aceitei. Parecia uma droga, um vício. Eu corria atrás, me rebaixava, me humilhava. Eu hoje olho pra trás e vejo que eu tinha tudo, bom emprego, dinheiro. Nunca precisei de marido pra pagar minhas coisas, tinha tudo. Carro bom. Mas tinha essa ânsia, essa falta, esse desespero por alguém que não me queria. À medida que eu insistia, mais ele me maltratava, me humilhava era degradante...” Terapeuta (Adalberto): Inicia uma música e o grupo acompanha. “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora, o que será me mim agora?” Participante 4: “e foi numa dessas de humilhação que eu cheguei no fundo do poço e falei pra mim...” Terapeuta (Adalberto): “então tem hora que chegar no fundo do poço termina sendo uma boa coisa porque dá um impulso pra vida?” Participante 4: “só resta subir. Foi interessante que o fundo do poço foi como se tivesse um espelho e eu disse pra mim mesma que eu não precisava disso. Aí eu comecei a resgatar. Tu é uma mulher nova, cheia de energia, trabalha, é querida, tem afeto, não tem afeto desse marido, mas tem afeto de tantas pessoas que te querem bem. Vai à luta. Deixa ele. Deixa esse troço pra lá”. Coterapeuta (S. Zequinha): “hoje em dia ele tá atrás de você?” Participante 4: “não sei. Só sei que eu arranjei um amor”. Grupo bate palmas e canta: “chorei, não procurei esconder. Todos viram, fingiram, não precisava. Ali onde eu chorei qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei quero

ver quem dava... reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”.

Etapa 5 – Encerramento

O grupo fica de pé em circulo, uma pessoa abraçada à outra formando uma roda. Fazem um leve balanço.

Grupo canta “Tô balançando, mas não vou cair”. Terapeuta (Adalberto): “esse é um pouco o movimento da vida. A gente vai pra um lado, quando pensa que vai cair pra direita, aí o da esquerda puxa e da mesma forma para o outro lado. E assim a gente vai saindo da rigidez das nossas ideias, das nossas convicções, porque toda convicção é uma prisão. E a vida passa a ser uma caminhada mais suave. Quero agora agradecer ao [participante 1], que contou sua história de vida, por causa da droga perdeu a sua família, perdeu o amor próprio. Antes de perder o juízo caiu no fundo do poço e você disse que pra você a sua espiritualidade foi uma coisa importante. Encontrou uma igreja que te deu apoio e que hoje você já tá dois meses sem usar crack e que tá querendo recuperar sua família, sua dignidade. Então queria lhe agradecer e dizer que a sua história é uma história muito bonita. E que você tá no processo. Já driblou vários, mas que é muito importante fazer gol. Não basta só driblar. Ainda tem muitos gols para serem feitos. E se você continuar nesse pique a gente tem certeza de que você vai fazer alguns gols. Quero lembrar se você lembrarem de alguma música, estória, poesia, vocês podem propor. O que eu tô levando da terapia de hoje? O que eu tô levando do [participante 1] ou das outras pessoas?” Participante 10 (sexo masculino, 45 anos): propõe uma música e o grupo acompanha. “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia...” Participante 10 (sexo feminino, 65 anos): “eu quero dizer pra você [participante 1] que você não está só. Parabéns pela coragem de ter vindo, por ter parado com esse vício e conte conosco e volte aqui, às terapias. Você vai vencer. Já deu o primeiro passo”. Participante 11 (sexo feminino, 42 anos): “eu vou levando daqui a coragem dele de ter parado com o vício da droga e já tá com dois meses sem usar”. Participante 2 (sexo masculino, 32 anos): “eu vou levando a conversão dele [participante 1]. Ele se propôs a se converter a uma vida sem estar no mundo das drogas”. Participante 7 (sexo feminino, 25 anos): “ouvindo a história do [participante 1], eu fiquei me perguntando o que passa na televisão quando a pessoa faz alguma coisa errada na sociedade, é um bandido, né? E aqui a gente foi tratando a história dele, cada um que tem sua dificuldade, como ser humano. Eu acho que o Projeto 4 Varas nos ajuda a mudar a mentalidade, a vida e a nossa linguagem. A nossa linguagem pesa nas pessoas. Pesa na gente. Nosso modo de pensar. E eu acho que hoje com a história dele creio que ninguém viu ele como um bandido, como um drogado, mas como um ser humano que quer se reerguer”.

Conclusão

A terapia comunitária integrativa é uma abordagem de saúde comunitária que contribui para a prevenção, tratamento e reinserção social de usuários de drogas e familiares. Trata-se de um recurso reconhecido em ações de políticas públicas e, também, de lideranças comunitárias. A TCI propõe muito mais uma postura do que uma técnica a ser aplicada. Postura de respeito e valorização das diferenças, acolhimento e fortalecimento das redes de apoio social.

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A prática do consultório de rua na abordagem da vulnerabilidade associada ao uso de drogas

Antônio Nery Filho Patrícia von Flach Andréa Leite Ribeiro Valério Adriana Prates Sem a real dimensão da aventura a que se propunha, o consultório de rua orientava-se pela certeza dos efeitos que podem produzir os encontros plenos entre humanos, sustentados em princípios éticos: responsabilidade, vulnerabilidade, autonomia e justiça.

Na vida, tudo parece determinado pelo acaso. Mas, se se atentar melhor, pode-se perceber que há certa organização no caos. Tomemos o consultório de rua: seu aparecimento exigiu 10 anos de trabalho do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), atividade ambulatorial especializada, inaugurada em 1985 como extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e apoiada pelo governo estadual. Para esse centro acorriam todos os que, fracassando ou não na relação com uma ou mais substância psicoativa, desejavam encontrar algum acolhimento que não os julgassem e, menos ainda, os considerassem doentes ou criminosos, destinados à exclusão em alguma unidade psiquiátrica ou prisional. Aliás, o próprio centro havia surgido inspirado na experiência de trabalho de um dos autores deste texto, em hospital judiciárioa . Para lá eram, por força da antiga Lei 6.368/76, dita Lei de Tóxicos do Brasil, encaminhadas todas as pessoas flagradas em um ou mais dos verbos constantes no rol das proibições (portar, transportar, guardar, etc.)1, tendo em vista definir a condição de dependente ou traficante e suas consequências, isto é, tratamento compulsório ou encarceramento.

Isso não pareceu ao autor uma medida justa. Aliás, considerando os danos causados à maioria dos adolescentes submetidos a essas avaliações, podia-se afirmar que não só eram injustas como gravemente danosas à vida física, psíquica e social daquela população de jovens, cujo uso preponderante de maconha (Canabis sativa) representava um ritual ordálico, de passagem da adolescência para a vida adulta. Ou era o recurso mais comum na prática transgressora que marcava e afirmava, subjetivamente, o lugar do jovem no mundo.

Deve-se ter presente, ainda, que a maconha estava, àquela época, impregnada da história hippie e, mais tarde, dos festivais, em que a paz, o amor e a recusa de uma sociedade orientada pelo e para o consumo eram tidos como fundamentais para uma nova ordem que se propunha mais justa, menos excludente e mais humana.

Desse modo, movido pelas discussões no ensino da Psiquiatria Forense, parte do conteúdo da disciplina Medicina Legal, um dos autoresb concebeu o CETAD, apoiado em três princípios: o anonimato, a gratuidade e a busca voluntária pelo tratamento. Este último assegurava ao paciente o direito de recusar tratamentos impostos pela família ou pelo Estado, posto que, em geral, estava fadado ao fracasso em razão da ausência de adesão ou envolvimento com a proposta terapêutica. No decorrer do tempo, o CETAD/UFBA sempre se orientou pelo respeito à decisão do paciente de permanecer ou não em tratamento, quando conduzido à sua revelia. Nesse sentido e de sua experiência foi pensado o consultório de rua, prática clínica voltada para os mais desvalidos ou vulneráveis e apoiada nos conhecimentos da redução de danos e das práticas do campo socioantropológico.

Um pouco de história

Até meados dos anos 90, em que pese o conhecimento largamente difundido entre médicos e acadêmicos de Medicina, particularmente nos serviços de urgência e emergência, o CETAD/UFBA, em Salvador, não registrava o uso de drogas injetáveis entre seus pacientes.

aAntonio Nery Filho, psiquiatra, trabalhou no então Manicômio Judiciário (1970-1973), hoje Casa de Custódia e Tratamento, instituição da estrutura da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia. bA Em julho de 1985, o Prof. Antonio Nery Filho apresentou ao Departamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFBA a proposta de criação de serviço especializado para cuidado, estudo, pesquisa e ensino, relacionado às substâncias psicoativas e seus usos. Inicialmente como atividade de extensão, localizado no Centro Social Urbano da Caixa D’água, desde 1993 o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) transferiu-se para o Canela, no campus universitário.

O motivo provavelmente estava relacionado à condição socioeconômica e à marginaliza ção envolvendo os consumidores de drogas injetáveis que dificilmente buscavam tratamento pelo uso de drogas2. Ademais, era muito restrito o conhecimento da prevalência da contaminação pelo HIV naquela população. A primeira pesquisa sobre o assunto foi realizada em 1996 por Andrade, apesar das primeiras abordagens terem ocorrido por volta de 1992, a partir do Programa de Redução de Danos3, iniciativa pioneira do centro, inspirada nas atividades desenvolvidas pelos Médecins du Monde, em Paris. No Brasil as experiências foram implantadas em Santos algum tempo antes.

Em consequência das informações obtidas envolvendo usuários de drogas injetáveis e HIV em outras regiões do Brasil4,5, foi inaugurada em 1999 no CETAD/UFBA a atividade denominada pontos móveis de prevenção, constituída por equipe multidisciplinar, qualificada segundo os princípios da redução de danos, atuando em diferentes locais da cidade. Essa atividade buscava alcançar os mais excluídos e fragilizados, usuários de drogas injetáveis (ou seus parceiros), incapazes de cuidarem dos diversos agravos à saúde e voltados quase, se não exclusivamente, para a sobrevivência no dia a dia.

Naquele mesmo ano, 1999, outra iniciativa foi posta em marcha no CETAD/UFBA e designada pelo seu idealizador como consultório de rua. Na verdade, anos antes (1989), técnicos do CETAD/UFBA se indagaram sobre a ausência de assistência aos meninos e meninas encontrados nas mais diversas regiões de Salvador, lavando para-brisas de carros, mendigando, roubando ou cheirando cola de sapateiro. Chamava a atenção a ausência dessas crianças e adolescentes no centro e, mais ainda, a possível inadequação técnica para seu atendimento, constatado na baixíssima adesão dos poucos encaminhados para tratamento por instituições religiosas ou de proteção à infância e adolescência. Parecia indispensável olhar mais de perto por essas crianças e o mundo da rua em que viviam. Era necessário compreender “onde as coisas se passavam”, dar significação aos gestos, ouvindo os atores sem a preocupação de contá-los ou de convencê-los a abandonar o uso de drogas, mas de compreendê-los por meio de suas histórias, não raro escritas no real de seus corpos.

A rua havia ganhado, segundo DaMatta6, estatuto de “categoria sociológica”, “como conceito que pretende dar conta de noções a partir das quais uma sociedade pensa ela mesma e define como códigos de ideias e valores sua cosmologia e seu sistema de classificação das coisas do mundo e, também, para traduzir aquilo que a sociedade vive e faz concretamente”, na medida em que “não designa simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas mensuráveis, mas, sobretudo, entidade moral, área de ação social, espaço ético dotado de positividade, domínio cultural institucionalizado, reações, leis, rezas, músicas e imagens esteticamente enquadradas e inspiradas”. As expressões “fora”, “já pra rua”, “coisas da rua”, “no olho da rua”, “gente de rua”, “rua”, pronunciadas com as mais diversas tonalidades afetivas, em português, como em muitas línguas, dão a dimensão desse lugar onde tudo é, ou deveria ser, transitório7 .

Nessa perspectiva, durante dois anos, pesquisadores do CETAD/UFBA desenvolveram intensa e produtiva observação de uma área central da cidade de Salvador (Praça da Piedade), a que chamaram de “banco de rua”c. Esse trabalho mostrou que uma criança (ou adolescente) não é igual à outra simplesmente porque são crianças. Do mesmo modo,

c Entre 1990 e 1991, Antonio Nery filho, Gey Espinheira, Nívea Chagas, Margareth Leonelli e Jane Montes denominaram de “banco de rua” a observação socioantropológica e clínica das crianças, adolescentes e adultos vivendo na Praça da Piedade, região central de Salvador. Este trabalho foi fundamental para a compreensão do que se passava na rua, envolvendo o consumo de drogas e as posteriores atividades desenvolvidas pelo CETAD/UFBA.

a presença de um pai, de uma mãe e de um filho não faz uma família igual à outra. Elas diferem por seu patrimônio material, cultural; por suas histórias e raízes; por seu passado, presente e possibilidades futuras. As famílias diferem em sua vida cotidiana a partir da qual se organizam e se estruturam, marcando o destino de seus filhos. A presença de crianças na rua denunciava, com base em suas vidas, a miséria, a crise, os desvios, a marginalidade. Crianças e adolescentes que não eram iguais às outras crianças e adolescentes porque haviam envelhecido pela vida. Homens e mulheres em corpos infantis. Homens e mulheres pelo saber, pelo amor e pelo sofrimento. Esse fato não era novo, nem na Bahia, nem em outras regiões do Brasil, mas se reatualizava no dia a dia da observação de suas estratégias de sobrevivência na rua e nas significações sociais que portavam, sem esquecer as oposições que marcam as famílias, as crianças e a rua, a ação do Estado por intermédio das instituições oficiais e suas interpenetrações7,8 .

O consultório de rua: primeiros anos

Quase uma década separou a experiência do “banco de rua” e a implantação do “consultório de rua”. A epidemia de AIDS, como já mencionado, colocou em evidência, numa cidade em plena “metropolização”, crianças e adultos em situação de rua, em geral considerados usuários de drogas, atraindo a ira e a repulsa, como “sujeira humana”, no dizer de Gey Espinheira9, ou “lixo do progresso econômico”, no dizer mais recente de Bauman, ao analisar contingente de trabalhadores e não trabalhadores nas novas formas de produção capitalista10 .

Impunha-se ao Poder Público, àquela época, intervir junto a essa população de rua. Contudo, a prática perpetuada ao longo dos anos consistia em verdadeiras “operações de guerra” conduzidas sem qualquer critério contra crianças, adolescentes e adultos vivendo da e na rua. Aliás, poucos distinguiam aqueles que estavam “na rua” daqueles “de rua”. Dito de outro modo, “na rua” designava as pessoas cuja relação com o espaço público seria transitória, de circulação, de trabalho, mantendo outras referências de pertencimento; enquanto que “de rua” significava a apropriação e transformação do espaço público em espaço privado, de permanência, sem outras referências11 .

Em 1998, iniciativa relevante patrocinada pela então Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, da prefeitura de Salvador (SETRADS), denominada “Projetos Nossos Filhos”, buscava atender as crianças em situação de rua, perambulando pelo centro histórico da cidade (Pelourinho), em geral sob o efeito de drogas ilícitas. A fim de qualificar seus técnicos, a SETRADS buscou junto ao CETAD/UFBA os conhecimentos necessários ao desenvolvimento de novas estratégias, longe das antigas práticas repressoras e excludentes. Contudo, por motivos político-administrativos, o projeto foi interrompido, mantendo-se a relação técnica e o aporte financeiro necessários para que o consultório de rua fosse implantado pelo CETAD em 1999.

Selecionados os técnicos sob a condução da psicóloga Mirian Gracie Plena de Oliveira, cuja experiência anterior no trato com populações em situação de grave vulnerabilidade social foi de extrema importância12, teve início o trabalho de campo, marcado pelas constantes e inquietantes indagações sobre o que fazer? Como fazer? Onde se queria chegar? Qual a importância do consultório de rua no cenário das novas alternativas do cuidado em saúde? A redução de danos poderia ser considerada uma estratégia clínica posta em prática pelo consultório de rua? Os recursos humanos disponíveis estariam qualificados

para o atendimento a uma população cujas demandas eram tão específicas e especiais? Em que medida experiências como esta poderiam contribuir para a melhoria da formação acadêmica dos futuros profissionais da saúde?12. Vale lembrar que a equipe inaugural do consultório de rua era multidisciplinar, constituída por uma psicóloga (de orientação psicanalítica), um médico psiquiatra, um antropólogo, um acadêmico de Medicina (5º ano) e um motorista (capacitado como agente de saúde/redutor de danos).

Na primeira reunião do idealizador do consultório de rua com esta equipe, foi posta a seguinte questão: o que se deve fazer na rua? A resposta foi: destituírem-se de seus olhares e observarem a rua com os olhos de seus pares, de modo que possam viver a experiência dos “olhares cruzados”. Ao longo do trabalho esta equipe foi sendo modificada pelas exigências da prática, chegando a uma equipe mínima constituída por: psicólogo, médico generalista, pedagoga/educadora social, assistente social, redutor de danos e o motorista, também capacitado como agente de saúde.

Essa experiência durou de 1999 a 2006, quando foi interrompida por ausência de suporte financeiro, posto que durante sete anos a contratação dos técnicos (à exceção da coordenadora) se deu graças aos convênios estabelecidos com a prefeitura de Salvador e com o estado da Bahia, por intermédio da Associação Baiana de Apoio ao Estudo e Pesquisa Sobre o Abuso de Drogas (ABAPEQ), Organização Não Governamental de Utilidade Pública, apoiadora do CETAD/UFBA.

As pesquisas desenvolvidas no Brasil13,14 mostraram que a maioria dos jovens em situação de rua buscava atendimento em razão de problemas de saúde relacionados ao consumo de drogas, prioritariamente em uma instituição específica para essa população. Entretanto, apenas 0,7% dos entrevistados buscava atendimento em uma unidade de saúde, indicando “a enorme distância entre a situação de rua e os serviços de saúde”, provavelmente em razão da “descrença dos jovens em relação aos profissionais de saúde [...] e “preconceitos dos profissionais em relação à situação de rua”13,14 .

Pesquisa Nacional Sobre a População de Rua realizada entre agosto de 2007 e março de 2008, publicada em 2009, mostrou que 18% da população entrevistada haviam sido impedidas de receber atendimento na rede de saúde15,16, associando-se a esses fatores o despreparo das equipes de saúde: “Os serviços públicos de saúde não estão adequados à realidade e às necessidades das pessoas em situação de rua. Não existem condições de acolhimento e as pessoas que vivem nas ruas não procuram tais serviços, por conhecerem as limitações de acesso e por sentirem-se discriminadas. [...]. É necessário, assim, o desenvolvimento de ações especiais na área do atendimento de saúde, abrangendo a capacitação dos profissionais de saúde, a alteração da atual cultura sobre a população em situação de rua e a mudança de regras e procedimentos adotados no funcionamento dos hospitais e centros de saúde”17 .

Vulnerabilidade e população de rua

O reconhecimento da vulnerabilidade dessas populações em situação de rua sempre foi de domínio comum e, geralmente, mencionado como fator relevante na frágil relação com as diversas instâncias públicas. Entretanto, quase nunca essa vulnerabilidade é considerada em sua dimensão adjetiva. Patrão Neves chamou recentemente a atenção para a dimensão que essa expressão ganhou no campo da bioética, quer na sua significação substantiva, própria de todos os seres vivos como capazes de serem feridos (do latim vulnus,

ferida), quer na sua dimensão adjetiva, isto é, relacionada às circunstâncias especiais ou particulares que tornam os indivíduos mais suscetíveis de serem atingidos18 .

Firmin Schramm, por sua vez, distingue a potencialidade genérica de populações e indivíduos serem vulneráveis (vulnerabilidade), de uma efetiva vulneração, condição que define os vulnerados, propondo para estes uma bioética de proteção que pode ser entendida como:

Uma caixa de ferramentas – teóricas e práticas – para poder compreender a conflitualidade na saúde pública, descrever os conflitos de interesses e de valores nela envolvidos e tentar resolvê-los, tendo em conta as assimetrias existentes entre quem tem os meios – e o poder (indicado pelo termo empowerment ou “empoderamento”) que o capacite para uma qualidade de vida pelo menos razoável e quem de fato não os tem. Por isso, nesses casos de conflitos entre “empoderados” e “não empoderados”, os conflitos só podem ser resolvidos “protegendo” os afetados “não empoderados”, pois estes não possuem os meios necessários para se protegerem sozinhos, [necessitando de recursos] fornecidos pelo Estado Protetor contra ameaças e danos que prejudicam sua qualidade de vida e suas existências19,20 .

Nesse sentido, o consultório de rua pode ser reconhecido em sua prática junto aos vulnerados, em particular àqueles vivendo em situação de rua e usuários de drogas (lícitas e ilícitas), como efetivamente inseridos na dimensão de uma bioética de proteção, na medida em que os alcança em seus espaços de vulneração e lhes possibilita a indispensável assistência no campo da saúde mental e geral, pelo reconhecimento de sua cidadania, tornando -os visíveis socialmente e capazes de buscar outros recursos disponíveis e indispensáveis a uma vida minimamente digna, ainda que – reconheça-se – seja difícil estabelecer de que mínimo se está falando.

O consultório de rua: “o caminhar faz o caminho”

A despeito do tempo decorrido desde sua primeira implantação em Salvador (Bahia), o consultório de rua continua sendo um dispositivo potente e inspirador, cuja metodologia permanece praticamente a mesma. Contudo, suas estratégias mereceram constantes revisões e adaptações em razão da variabilidade dos contextos sociais, urbanos e políticos. Sem a profundidade e consistência necessárias a outros textos, podem-se lembrar, aqui, as alardeadas transformações na sociedade brasileira – e nordestina em particular – oriundas da implantação de duas estratégias: o “Fome Zero”d e o “Bolsa Família”d. Por outro lado, há de se considerar os fluxos migratórios e as intervenções urbanas que modificam, sem cessar, a paisagem das cidades. A bem da verdade, a iniciativa de ir para as ruas cuidar dos despossuídos e vulnerados não levou em consideração as dificuldades relacionadas ao espaço e lugar como conceitos diversos e complexos.

Segundo Yi-Fu Tuan, “o espaço é um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. O espaço permanece aberto; sugere futuro e convida à ação. Do outro lado negativo,

d O Programa “Fome Zero” foi criado em 2003 e coordenado pelo Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e Combate à Fome. A partir desse Programa foi formulada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Programa Bolsa Família. Legislação e Instruções. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm. Acesso em: jul. 2015.

espaço e liberdade são uma ameaça [...]. Ser aberto e livre é estar exposto e vulnerável. O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização. Não tem padrões estabelecidos que revelem algo, é como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer significado. O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e de lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade”21 .

A rua, como lugar (às vezes entendida como espaço), apresenta diferentes dinâmicas: é um ambiente instável, sujeito a várias interferências, à sazonalidade e a mutações contínuas, além de, sempre, poder surpreender por acontecimentos inusitados. O consultório de rua insere-se, portanto, nesse espaço/lugar, territórios psicotrópicos, definidos, segundo Luís Fernandes e Alexandra Ramos, como “lugares de concentração de atividades drug, onde uns chegam, partem e regressam, onde outros estão em permanência, mas em condições precárias, que asseguram a logística para as necessidades do consumo de drogas no imediato”22 .

Os territórios psicotrópicos, que equivalem ao que se costuma chamar de “cenas de uso”, têm como característica “sua grande mobilidade. Constituem-se, quando e onde reúnem uma série de condições ecossociais específicas, e deslocam-se quando estas são alteradas”. Esses territórios também costumam sediar atividades ilegais, especialmente o tráfico, o que atrai a polícia, tornando o cenário ainda mais tenso. Em alguns locais onde tem estado presente, o consultório de rua de Salvador tem se deparado com diferentes cenas de uso, possuidoras de diferentes especificidades. Naquelas formadas por pessoas em situação de rua, a atividade é geralmente bem aceita e consegue atuar na perspectiva da saúde e da redução de danos. Porém, cenas compostas, frequentadas por indivíduos com alguma inserção social, são geralmente menos permeáveis. A experiência acumulada ao longo dos anos permite, hoje, reconhecer, inspirada na prática de redução de danos, algumas “regras” fundamentais para a implantação e o desenvolvimento das atividades do consultório de rua23,24, como se segue:

Abordagem de uma nova área: a escolha de uma área de atuação do consultório de rua orienta-se pela presença de usuários de drogas em determinado território/lugar. Contudo, cabe observar de modo detalhado a dinâmica que os envolve e, sobretudo, identificar os possíveis aliados locais (pessoas, equipamentos sociais ou de saúde, comércio, etc.). A abordagem deve tomar como norte a saúde, compreendida em sentido ampliado e não como ausência de doença(s), deixando o mais claro possível seu distanciamento de propostas repressoras, higiênicas ou “salvadoras”.

A equipe deve ser constituída por pessoas destituídas de preconceitos quanto ao consumo de drogas, bem formadas tecnicamente - guardadas suas respectivas qualificações -, identificada com o difícil trabalho nas ruas, percepção clara de seus objetivos e, mais ainda, seus limites humanos, técnicos e administrativos, conhecendo os códigos e linguagens que variam de uma região para outra. Cuidar da sua própria saúde: a equipe do consultório de rua (como de qualquer equipe trabalhando na rua) está sujeita a muitas das circunstâncias que envolvem sua clientela, tais como contaminações por agentes infecciosos, acidentes, violência relacionada ao tráfico ou à repressão policial e, sobretudo, ao sofrimento psíquico inerente ao próprio trabalho. Há de ser garantido, além do tempo necessário à formação técnica permanente, o tempo indispensável ao acolhimento das dificuldades próprias a cada um e à equipe, a partir de supervisão permanente.

Deve-se lembrar que a atuação do consultório de rua não se sustenta sem articulação com a rede de saúde - atenção básica e especializada -, além das imprescindíveis parcerias com outras instâncias formais (educação, assistência social) e informais (ONGs e lideranças comunitárias).

À exceção do veículo adaptado para as suas atividades, que garante a visibilidade, identidade e transporte dos técnicos do consultório de rua, os demais recursos materiais são variáveis e devem atender às necessidades do(s) campo(s). Os demais “dispositivos utilizados são secundários ao encontro e devem servir apenas como apoio para o favorecimento das relações interpessoais (transferenciais), a exemplo da música, oficinas lúdicas e/ou artísticas. Os objetos servem como apoio ao encontro e não como condição para o encontro”25 . Todos esses fatores, de diferentes modos, influenciam o trabalho na rua, por afetarem os espaços e mobilizarem os usuários de diversas maneiras. As modificações na dinâmica da rua, quer longitudinais, quer pontuais, demandam adaptações nas estratégias de atuação da equipe, tal como a pesquisa constante de novas cenas de uso, que têm se tornado de acesso cada vez mais difícil, sobretudo por conta de contínuas ações de “reordenamento urbano” e “limpeza pública”, relacionadas às políticas imediatistas e superficiais que buscam atender a interesses nacionais ou não, geralmente determinados pela ordem econômica, consumista.

O consultório de rua: uma clínica do cuidado

A rua pode ser assumida como espaço clínico, como campo de possibilidades. Constatamos em nossas andanças que “o seu olhar melhora o meu”e. Pode-se falar, então, de uma clínica marcada pela transformação de sujeitos - sujeitos usuários e sujeitos técnicos, em uma relação intersubjetiva, dialógica e dialogada. Uma clínica do encontro entre humanos, em movimento, ampliada, da escuta sensível, do olhar que vê, que torna visível, que cuida e que ampara. Uma clínica poética e estética que, por ser ética e política, se faz tecendo redes de pessoas vivas, usuários, cidadãos, militantes ou, simplesmente, pessoas voltadas para a construção de novas redes de significados/existências. Uma clínica que acontece no “entre” humanos suscitando humanidades.

Uma clínica de/na rua! Espaço de liberdade, mas também de aprisionamento. De encontros e desencontros. De guerra e de paz. Certamente, a rua pode representar um lugar de risco à saúde, mas pode, também, ser uma via de reafirmação de existências negadas, de organização e de relação com o mundo. Pode ser o único lugar cabível para alguns sujeitos que trazem em si a solidão, imposição da exclusão social, e que encontram, nos bons encontros, uma saídaf, o apaziguamento para uma vida marcada pelo sofrimento, pela falta, pela miséria que embrutece, pela violência que dilacera, pelo abandono que desampara, pela negligência que desprotege, pela exploração que denuncia a falta do Estado. Da violação de direitos à proteção, o certo é que a rua é intensa, é o espaço do inusitado e das mil e uma possibilidades. O que encontramos quando nos permitem (e nos permitimos) “entrar” no mundo da rua é uma rede de pessoas e relações com importante função afetiva e potencial de solidariedade, de compartilhamento que nos afeta e nos transforma na relação com “esse mundo”, com “esse outro”.

e Referência à música de Arnaldo Antunes, “O seu olhar”. Disponível em: http://musica.com.br/artistas/arnaldo-antunes/m/o-seu-olhar/letra.html.

f Os bons encontros referidos por Espinosa são aqueles que aumentam nossa força de existir, nossa potência de agir, nossa alegria. Nos encontros da vida cotidiana vamos aprendendo a fazer acontecer os bons encontros, fazendo!

A rua é sempre coletiva. Nela, não há lugar para o privado. Na rua, entretanto, podem-se viver múltiplas identidades simultâneas, pode-se ser até simulacro. Nela se foge das “tiranias da intimidade” que formulam, modelam, violentam. A rua é amparo coletivo, o lugar dos desamparados26.

A rua como lugar para os desamparados, um “lugar para onde ir”! E, como reiteradamente dizia Gey Espinheira , todo humano precisa de um lugar para onde ir, uma referência, uma casa. A rua, para muitos, tem sido essa casa. E a forma de se apropriar desse espaço também será a expressão da trajetória de vida de cada um, ainda que modificada ou potencializada a partir da relação que estabelecer com os outros da/na rua. Com a afirmação das possibilidades da rua e dos usuários nesse contexto, não se está negando ou deixando de reconhecer o caráter desumano, que marca e faz marcas nessas existências: a falta de dignidade, a privação de direitos humanos básicos, os estigmas, preconceitos, abusos, desproteção e, principalmente, todo o sofrimento subjetivo consequente às vivências objetivas de injustiças sociais cotidianas. Mas, também, não se quer reforçar essa rua estigmatizada (e estigmatizante) como lugar de marginais, dos drogados, da “sujeira humana” depositada nos guetos, esgotos e lixões das cidades. Quando nos envolvemos com esse “lixo”, quando o tocamos, quando nos responsabilizamos por ele, quando o tornamos “objeto de nosso desejo”, constatamos sua transformação diante dos nossos olhos e desvendamos toda a humanidade, antes escondida sob o efeito do discurso social que desumaniza e condena sujeitos à morte social. É importante considerar, então, que viver e existir não são a mesma coisa, pois que existir implica o reconhecimento do Outro e, conforme Bourdieu, citado por Bauman, “talvez não exista pior privação, pior carência que a dos perdedores da luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade”27 .

Se se considerar que as identidades se constroem a partir do reconhecimento do outro, ser identificado como o marginal ou o “sacizeiro” da rua tem como resultados o estigma, o preconceito, a desqualificação, a desmoralização. Nessa perspectiva, as atividades do consultório de rua iniciam-se na relação com os usuários, com a desconstrução dessa identidade marcada pela negatividade, na alienação mantenedora das relações de dominação, pois “a desmoralização, no sentido mais comum do termo, dos usuários de crack, requer, como prevenção ou intervenção, a moralização desse sujeito tornado “sujeira humana”9 .

O trabalho no consultório de rua ensinou a enxergar possibilidades e fazê-las existir, fazendo: dali, de onde nada se esperava, quando se passa a desejar e a cuidar, a vida brota. Essa potência de vida que se reafirma cotidianamente na rua pode ser entendida “[...] como uma potência de resistência que se afirma na contramão à desqualificação da vida, que se expressa nos ressentimentos, nos julgamentos morais, nas indiferenças, nos ódios, nas vinganças”28. A prática clínica do consultório de rua é, também e principalmente, ético -política, pois que, na sua dimensão terapêutica, busca sempre produzir mudanças, desvios, nunca acomodações.

O consultório de rua é uma tecnologia de produção de saúde que acontece lá onde a vida flui sem roteiro, inusitada, intensa e aberta à invenção de outros modos de existência, em um eterno por vir. Uma clínica do e no mundo da vida, aberta e disponível aos sentidos que dela emanam – os medos, as insônias, as depressões, a fissura, mas, também, a alegria, o amor, a felicidade, a solidariedade, a generosidade. Exige que se esteja atento a tudo aquilo que se estabelece como campo de expansão e de expressão. Propõe a invenção e a reinvenção cotidiana da vida, a pactuação em rede de novos fluxos, de outros percursos, de outras formas de caminhar pelos espaços da cidade, de outros movimentos produtores de

atos revolucionários, de transformação social.

Dessa forma, as drogas não ocupam, no fazer do consultório de rua, espaço privilegiado. Nessa clínica de rua ocupam lugar privilegiado “os humanos e suas vicissitudes”29, na qual “as drogas não podem ser tomadas como um mal em si mesmas, como causas, senão de modo enviesado ou como avesso da causa”f. Nesse sentido, o cuidado com os usuários, em nenhum contexto, visa separá-los da(s) droga(s), mas, junto com ele, trilhar os caminhos dos sentidos e responsabilizações em relação ao seu uso. “A clínica é o lugar aonde ir quando se sofre, quando se precisa ser acolhido”30. A clínica é o lugar do “encontro”, que é inseparável da vida social, da convivência, das conversações e que, assim, nos convoca a sair do lugar, a experimentar, a sentir, a problematizar nosso próprio eu, imagem do Outro. A direção clínica será, então, fomentar o desejo do cuidado de si, como propõe Foucault31. O cuidado de si que é ético consigo mesmo. Que implica uma relação com os outros, que é uma prática social, construída na e em relação ao outro. Uma ação que implica uma reflexividade e que não está dada, mas a ser construída cotidianamente. Esse “cuidar de si” implica, também, e principalmente, o cuidador, no reconhecimento de seus preconceitos, suas limitações, suas verdades, seus desejos, pois “[...] pensar num plano ético é pensar/intervir, antes de tudo, sobre nós mesmos, na vida, no viver” 28 .

Essa clínica, marcada por preconceitos e estigmas, não é simples. Exige de cada técnico coragem e reconhecimento de sua impossibilidade para mudar o mundo. Por isso a consideramos uma clínica ético-política e, como tal, exige militância e participação social. Aqui vale lembrar Goffman32 quando cita a militância como uma ação de contraestigmatização. Mas pode-se complementar, entendendo a militância como resultado da incorporação de um senso crítico de realidade a ser construído com e por nós, a partir do reconhecimento de que: O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço33 .

A clínica desenvolvida no consultório de rua “abre espaços” ao praticar o cuidado para o cuidado de si. O cuidado como atitude orientadora das ações de saúde e que é mais do que intervir sobre “a doença”. Para cuidar, há que se considerar e construir projetos de vida, sendo necessário, então, conhecer qual o projeto de vida/futuro está ali na relação terapêutica. A atitude “cuidadora” é complexa e exige expansão, continuidade, movimento, liberdade para voar junto em busca de sonhos de felicidade34 . Boff35 lembra que “[...] cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele” (p. 96). O ato cuidador, então, implica acolhimento, disponibilidade, escuta sensível e qualificada, respeito e envolvimento com o outro. O cuidado somente acontece quando esse outro é importante para o cuidador que se torna importante para ele. O cuidado se dá entre sujeitos, em um espaço intercessor no qual se produz uma relação de “afetamento” mútuo, que produz laço e também responsabilização e, por consequência, compromissos, que darão a direção das intervenções no sentido da construção, considerando o que é estar melhor na vida para o usuário36. A questão que abre um campo de possibilidades para os sujeitos é a “questão” sobre o seu próprio fazer, que reflete o ser. Fazer do técnico e fazer do usuário. Realidade e sujeito se construindo na relação. Então, não há

um caminho prévio, um cuidado bom ou mau, mas apenas narrativas polifônicas que, entre os encontros e desencontros, podem fazer vir à tona o si mesmo. “Mas se não pode ainda instalar o ‘si mesmo’ (percebido como insuportável), se a implicação não se inscreve, fica então um trabalho a ser feito”37. Afinal, o cuidado se faz fazendo.

Por uma conclusão inconclusiva

A título de conclusão deste capítulo, retoma-se o relato de Oliveira e Messeder38 quando das primeiras avaliações do consultório de rua, aqui revisitado pelo tempo e experiências acumuladas: o trabalho do consultório de rua se realiza ao lado das mais diversas intervenções próprias da liberdade das ruas: caminhantes, carros, religiosos movidos pela “salvação das almas”, agentes da polícia e do Judiciário; pesquisadores das mais diversas orientações, programas de saúde e social, entre outros. Em geral, as ações na rua visam “retirar da vista” aquilo que se considera quase indecente, ofensivo e degradante, tornando feias as passarelas, as praças, os jardins das cidades pelo Brasil mais e menos desenvolvido. Nesse contexto, trabalha o consultório de rua, buscando estabelecer vínculos com quem vive desvinculado e desconfiado das ofertas transitórias.

Uma das forças do consultório de rua está na sua permanência e disponibilidade, na construção de relações sem exigências nem promessas. Entendido, inicialmente, como um consultório médico especial, ambulante - marcado por seu próprio nome -, vai muito além disso. Pequeno curativo atrai gente que costuma ter uma relação bastante descuidada com o corpo. Diversos males crônicos são levados até os serviços de saúde, cujas portas estão, geralmente, fechadas para esses despossuídos. Reiterado apelo para que usem preservativos e façam uso de drogas em condições menos arriscadas ou protegidas é quase um mantra! Essas “relações transicionais” permitem estreitar os laços que levam a lugares menos acessíveis, inalcançáveis anteriormente. Em diversas ocasiões surge a demanda por alimentos ou vestuários. A visão caritativa é muito comum. Já disse o cancioneiro do Baião, Luiz Gonzaga: [...] Mas doutor, uma esmola para um homem que é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão [...]g

O consultório de rua busca provocar “no invisível” o reconhecimento de sua própria cidadania, pelo reconhecimento de sua existência humana, estampada no reconhecimento que lhe faz a equipe. Contudo, reconheça-se, este é o caminho mais árduo. A própria identidade do consultório de rua está sempre por se fazer, na constante transitoriedade dos encontros na rua. Apesar da pouca clareza sobre o papel do consultório de rua nos espaços em que atua, há uma confiança construída pela regularidade da presença e por sinais que asseguram sua postura ética: não repressão ao consumo de drogas, aliada ao lugar assegurado para a palavra. Tudo isso sinaliza a aproximação de mundos diferentes, o mundo dos que nada têm e o mundo dos que supõem ter. Aqui, aproximação quer dizer que “supõe-se a compreensão daquilo que ainda se especula”. Espaço para a dúvida, na construção de uma prática que se configura, de início, como uma sensibilização dos nossos sentidos e dos deles. Desse encontro de sentidos, que se complica pelos olhares de uma equipe multidisciplinar, vislumbram-se novos horizontes.

A questão central pode ser entendida como sendo a relação com pessoas privadas de estruturas básicas de sobrevivência, para as quais o consultório de rua oferece o cuidado relacionado ao uso de drogas, visando proteger a vida, cujo uso tem, não raro, o efeito de amenizar as dores do viver, permanentemente, na antecipação da morte. Estar na rua pos-

sibilita a construção de pontes passíveis de levarem a algum lugar, a uma transformação qualquer, que pode redefinir trajetórias, reacender sensibilidades, produzir novas emoções e novos desejos. O lugar do consultório de rua não é o da caridade, nem da pena. Um dos seus princípios é o da dignidade humana e os caminhos que empreende são do diálogo sem ilusões.

Referências

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A visita domiciliar motivacional em situações de vulnerabilidade

Edilaine Moraes Geraldo Mendes de Campos

O uso abusivo de substâncias e a dependência química são condições que, quase sempre, caminham lado a lado com as vulnerabilidades. Isso, pelo fato de já o início do uso de substâncias se dar, invariavelmente, pela exposição do sujeito a alguma situação de vulnerabilidade, seja ela ambiental, psíquica ou biológica. De forma semelhante, a continuidade do uso de substâncias e uma possível progressão ao abuso e à dependência se favorecem da exposição do sujeito a essas situações. Frente a essa realidade, surge a necessidade de intervenções que possam priorizar a identificação de tais vulnerabilidades, até mesmo atuando no desenvolvimento e fortalecimento de fatores protetivos essenciais para a modificação de tal cenário.

Atualmente, várias intervenções na área dos transtornos pelo uso de substâncias (TUS) procuram compreender e intervir nessas situações. Neste capítulo, aborda-se uma dessas intervenções já evidenciadas como eficaz: a visita domiciliar motivacional (VDM)1 . A assistência domiciliar (AD), da qual a visita domiciliar é uma das modalidades, é uma prática que vem sendo utilizada desde o século XVIII para os mais diversos fins, como sociais, religiosos, caridosos e também por questões relacionadas à saúde2. Embora seja uma prática utilizada há bastante tempo (exemplo: médicos da família), a criação “oficial” da AD no Brasil remete a um serviço de visitas realizadas por enfermeiras, no Rio de Janeiro, em 1919. Esse serviço visava, principalmente, à prevenção de doenças infantis3. Daí em diante, grande número de ações fortaleceu a prática da AD em nosso país2 .

Diversos estudos demonstram a gama de possibilidades e contribuições da AD para os mais diversos segmentos nas áreas social e de saúde, inclusive, mais recentemente, na área da dependência química (DQ)3 . Especificamente relacionando a AD à DQ, Moraes (2010) revela bons resultados propiciados pela VDM tanto aos pacientes (alcance e manutenção da abstinência; aumento da motivação e adesão ao tratamento; melhoria nas relações familiares; resgate de papéis familiares; reinserção no mercado de trabalho e em atividades sociais), quanto aos familiares (melhor compreensão das especificidades da DQ; mudança de atitude em relação ao paciente; participação nos grupos de orientação familiar; melhoria da dinâmica familiar; resgate de vínculos afetivos; etc.)1 .

Como intervenção que se propõe a atuar na complexidade do tema TUS, a VDM surge objetivando, entre outros, identificar e intervir tanto nos fatores preditivos (fatores de risco e vulnerabilidades), quanto nos problemas decorrentes.

De forma sucinta, este capítulo procurará apresentar a práxis da VDM, seus principais fundamentos e outros aspectos importantes a serem considerados durante as visitas. Será proposta, também, uma reflexão sobre possíveis contribuições da VDM diante de situações de vulnerabilidade. Além disso, estará incluído, no final do capítulo, o Protocolo das Visitas Domiciliares Motivacionais4, elaborado para a realização de uma pesquisa concluída em 2007, para que possa ser adaptado e utilizado por outros profissionais, conforme seus objetivos e realidades.

A visita domiciliar motivacional (VDM)

A VDM é uma estratégia terapêutica cujo diferencial é agregar aspectos motivacionais às visitas domiciliares que já vinham sendo realizadas anteriormente, embora com obje-

tivos outros que não o engajamento que aqui se propõe. Para isso, a VDM utiliza técnicas da entrevista motivacional5, uma intervenção com eficácia já reconhecida na área da DQ.

Entende-se a VDM não como uma modalidade de tratamento independente, mas como uma estratégia que deva ser aliada às intervenções já praticadas pelos serviços de atenção aos usuários de substâncias. Pode ser utilizada por quaisquer propostas de ação que busquem a prevenção, tratamento e promoção de saúde nessa área, sejam elas públicas, privadas ou não governamentais.

Aspectos importantes a serem considerados

Uma das principais características da VDM é sua adaptabilidade às condições de trabalho, à disponibilidade de recursos materiais e financeiros e aos objetivos dos serviços que a utilizarão.

Sendo assim, serão apresentadas algumas peculiaridades dessa intervenção, importantes de serem compartilhadas, pelo fato de já terem sido avaliadas e consideradas custo-efetivas em estudo clínico randomizado1. Trata-se, portanto, da utilização da VDM com um propósito específico (aumento da adesão ao tratamento), em um contexto específico (tratamento ambulatorial para dependentes de álcool). Daí a utilização de termos como pacientes, tratamento, adesão, etc. Ressalta-se, porém, que os itens abordados a seguir não configuram a totalidade das possibilidades da VDM, mas apenas algumas delas. Esse modelo pode – e deve – ser adaptado às propostas de ação nas quais será inserido.

Objetivos principais

Estabelecer ou fortalecer um bom vínculo com as pessoas que receberão a visita - a qualidade do vínculo estabelecido é um forte preditor do sucesso – ou fracasso – da intervenção. Por intermédio dessa relação de confiança que se estabelece, torna-se possível mais comprometimento entre terapeuta, paciente e familiares, permitindo maior engajamento de todos no processo terapêutico.

Favorecer e incentivar a adesão de pacientes e familiares ao tratamento - a presença dos profissionais na residência dos pacientes, por si só, provoca um sentimento de importância e valorização nos visitados, que favorece maior engajamento e aceitação das propostas terapêuticas sugeridas. Possibilitar acesso a informações específicas sobre a dependência química - muitas vezes, tanto o paciente quanto seus familiares não possuem informações confiáveis sobre esse transtorno. Muitos mantêm, ainda, o entendimento da DQ apenas como um desvio de caráter, falta de força de vontade, de vergonha na cara, etc. O entendimento adequado, livre de preconcepções, pode modificar a imagem que se tenha criado do usuário. Observar e intervir em possíveis vulnerabilidades percebidas - profissionais capacitados, em visita ao ambiente do paciente, poderão identificar e intervir, in loco, em vulnerabilidades importantes que possam estar favorecendo o comportamento aditivo; Fortalecer fatores de proteção (FP) já existentes - da mesma forma que é possível a identificação de fatores de risco e vulnerabilidades, pode ocorrer também com os FPs. Pessoas significativas, atitudes assertivas, recursos disponíveis na comunidade, etc. podem se transformar em facilitadores da adesão ao tratamento, da melhoria da qualidade de vida, do alcance e manutenção da abstinência, entre outros.

Questionar discrepâncias percebidas entre comportamentos atuais e metas futuras - auxiliar paciente e familiares a perceberem as divergências que possam existir entre seus comportamentos atuais e metas almejadas, possibilitando mudanças em aspectos importantes para o alcance dos objetivos.

Provocar mudanças de crenças e atitudes “defensivas” - não raro, pacientes e familiares apresentam uma visão distorcida de si, do outro e de suas relações com as realidades que os cercam. A VDM procura reconhecer e modificar crenças e atitudes que surgem como escudos nas relações interpessoais.

Estabelecer planos de ação - estratégia muito importante no tratamento da DQ, o plano de ação terá mais validação se for pactuado junto ao paciente e seus familiares. Como “cúmplices” nesse processo, obtém-se mais comprometimento de todos.

Fortalecer o compromisso de todos - a presença dos profissionais na residência demonstra, subjetivamente, seu comprometimento com o processo de recuperação do paciente. Essa percepção, por parte do paciente e seus familiares, propiciará mais compromisso com o tratamento e com as mudanças propostas no plano de ação.

Quantidade de visitas

O número de visitas irá variar de acordo com os objetivos propostos. Para os objetivos listados, considerou-se a realização de quatro visitas como sendo o ideal. Essas visitas foram semanais e consecutivas, com duração aproximada de uma hora. Assim, a intervenção se deu de forma bastante intensiva, visto que ocorreu em aproximadamente um mês. Vale ressaltar que o número de visitas poderá variar, também, de acordo com a dimensão dos fatores de risco e vulnerabilidades identificadas.

Agendamento

Recomenda-se que a primeira visita seja agendada com aproximadamente uma semana de antecedência, de acordo com a conveniência do paciente e de seus familiares. É importante ser enfatizada a necessidade da presença de todas as pessoas que fazem parte do convívio familiar; não só moradores, como também de outras pessoas significativas para o paciente. As demais visitas poderão ser agendadas nesse primeiro encontro, a fim de facilitar a participação e implicação de todos os envolvidos. Mostrou-se ser mais produtivo manterse o mesmo dia da semana e horário para os demais encontros.

Profissionais

Caso seja possível, a VDM deve ser realizada por, no mínimo, dois profissionais com formações distintas, porém ambos atuantes na área da dependência química. A ação em dupla favorece a pluralidade de olhares, a troca de informações sobre o que foi observado e compreendido por cada um, o manejo das intervenções necessárias e a própria segurança dos profissionais.

É importante e desejável que também estejam capacitados e treinados para utilizar os princípios e estratégias da entrevista motivacional5, atuando com sensibilidade, empatia, flexibilidade e escuta reflexiva. Dessa forma, estarão aptos a apresentar, de forma acessível ao paciente e familiares, aspectos importantes para a compreensão do contexto no qual estão inseridos e dos processos de mudança propostos durante as VDMs.

O ambiente

O ambiente é revelador, por si só! Os visitadores precisam ter a clareza de que a visita domiciliar motivacional começa antes mesmo de adentrarem na residência visitada.

Pode parecer estranho, mas o trabalho já deve começar com a atenção aos arredores da casa, à vizinhança, aos equipamentos (sociais, de saúde, educacionais, culturais, etc.) localizados no bairro, às possibilidades de lazer nas proximidades, aos pontos de venda de álcool, tabaco e outras drogas, etc. Essa observação apurada poderá auxiliar na identificação de vulnerabilidades ambientais e comunitárias, assim como de possíveis fatores de proteção, o que será de muita valia na elaboração de propostas de intervenção mais efetivas.

A quem beneficia?

A VDM já se mostrou capaz de propiciar benefícios não apenas para aquele que tenha gerado a demanda pela visita, mas também para outros integrantes dos contextos familiar e comunitário4 .

Há múltiplos desdobramentos e implicações que podem atingir fortemente todos os envolvidos em casos de TUS, sejam eles os próprios familiares ou outras pessoas de convívio, vizinhos, uma vez que a maioria dos usuários de substâncias reside com familiares, mantendo, ainda, certos vínculos familiares, afetivos e financeiros6. Essas pessoas, então, precisam ser consideradas como elementos-chave na progressão da DQ, seja por atuarem como mantenedoras do comportamento de uso ou pela sua modificação.

Geralmente, sentem-se sozinhas, desamparadas e impotentes diante da situação em que se encontram. Além disso, são facilmente percebidos sentimentos como angústia, culpa, raiva, medo, desmotivação, desvalorização de si e do outro e angústia, entre outros7 .

Quando bem conduzida, a VDM pode se tornar uma intervenção capaz de propiciar atenção e cuidado a essas pessoas, contribuindo para a modificação de um ambiente disfuncional já estabelecido. É possível propiciar, a todo o grupo familiar, um espaço de diálogo em que seja “permitido” falar sobre angústias, queixas, inseguranças e outros temas por vezes evitados, dando oportunidades – talvez as primeiras – para que os demais integrantes “olhem”, também, para suas próprias questões. Além disso, por diversas vezes já foram percebidos, durante as visitas, conflitos familiares originados na crença distorcida de que o consumo de substância se dá apenas pela fraqueza de caráter, pela falta de vergonha na cara, etc. Nessas situações, os esclarecimentos prestados pelos visitadores possibilitaram o enfraquecimento dessas crenças e o surgimento de novos entendimentos sobre o fenômeno, menos enraizados no senso comum.

Tenha-se em mente que qualquer ação que vise à melhoria das relações familiares e do ambiente comunitário trará benefícios, também, a outros envolvidos.

Atenção

Um cuidado a ser tomado refere-se a uma possível “invasão de privacidade” dos visitados, devido a atitudes que possam ser consideradas invasivas. É necessário pedir autorização, buscar consentimento, estabelecer parcerias e cumplicidades, não “tomar partido”, defendendo alguns e acusando outros e buscar estabelecer vínculos pela empatia e acei-

Possíveis contribuições da VDM em diversas situações de vulnerabilidade

Não é novidade para as pessoas envolvidas com o universo da DQ - sejam os profissionais de saúde, os agentes sociais, os familiares e até o próprio usuário – a existência de diversos fatores ou situações capazes de facilitar o desenvolvimento da DQ e dos problemas associados a ela. Esses facilitadores podem ser aqui considerados como as vulnerabilidades a que algumas pessoas ficam expostas. Uma vez que essas vulnerabilidades podem ser identificadas e “abordadas” de forma profissional e competente, suas consequências podem se tornar passíveis de mudança. Nesse sentido, a VDM pode ser um instrumento utilizado por profissionais e equipes de saúde na identificação de vulnerabilidades e promoção de mudanças, uma vez que se propõe, entre outros objetivos, a verificar, no próprio ambiente dos visitados, situações de risco para o surgimento e/ou agravamento de problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas (SPAs).

Assim sendo, pretende-se, a seguir, sugerir possibilidades de utilização da VDM diante de situações de vulnerabilidade, aliando conhecimentos já adquiridos dessa prática a novos objetivos e realidades de atuação, com a intenção de facilitar a compreensão e provocar, no leitor, uma reflexão sobre a viabilidade dessa intervenção em suas práticas profissionais.

Embora não seja intenção deste capítulo a descrição de situações de vulnerabilidade a ponto de esgotar suas possibilidades, considera-se importante mencionar algumas delas, quer pela frequência com que aconteçam, quer pela força que possuam ou pela complexidade de suas interações com o uso problemático de substâncias.

Situações de vulnerabilidade psíquica

Características individuais, em certos casos, podem contribuir para o desenvolvimento de vulnerabilidades na área psíquica. A literatura referencia algumas delas como sendo fortes indicadores de que cuidados precisam ser tomados para a prevenção da experimentação precoce.

Sem pretender citar grande número delas, veem-se a ausência de habilidades sociais e os comportamentos antissociais precoces como dois eixos de grande importância, capazes de tornar algumas pessoas mais vulneráveis que outras ao uso de SPAs8 . A falta – ou deficiência – de habilidades sociais costuma provocar diminuição na estima, na confiança, no controle e, consequentemente, na autoeficácia de algumas pessoas, favorecendo a busca pelas substâncias psicoativas.

Da mesma forma, também favorecem essa busca os comportamentos antissociais precoces (agressividade, mentiras, roubos e furtos, etc.), dificuldades escolares, falta de interesse por questões familiares, comunitárias, religiosas, etc.

Tanto quanto timidez excessiva, vergonha de si e sentimentos de não pertencimento, também hiperatividade, arrojo em demasia e excesso de confiança podem aumentar os riscos para o início do uso. A identificação dessas características durante as VDMs, em tempo de serem “trabalhadas”, poderá facilitar o desenvolvimento de fatores protetivos capazes de contraporem as

• O desenvolvimento de habilidades sociais - como assertividade na externalização de sentimentos, desejos, opiniões e direitos; manejo adequado de pensamentos e emoções; habilidades de fazer e receber elogios ou críticas; de resolução de problemas, etc. - poderá favorecer a elevação da autoestima e autoeficácia, possibilitando outros sentimentos positivos em relação a si mesmo; • O fortalecimento de vínculos com instituições sociais (família, escola, instituições comunitárias, esportivas, religiosas) e de crença nos valores sociais; • a adequação de competências emocionais, como empatia, bom humor, autonomia, autoexigência e disciplina para atingir suas próprias metas.

A correta identificação de características individuais relevantes e o bom direcionamento das demandas que possam surgir farão com que os resultados esperados se tornem possíveis de serem atingidos.

Situações de vulnerabilidade biológica

Além das questões psíquicas, vulnerabilidades genéticas e biológicas podem estar relacionadas tanto a uma predisposição hereditária ao desenvolvimento da DQ, quanto aos efeitos e danos causados ao organismo, devido ao uso e abuso de substâncias. A identificação dessas vulnerabilidades pelos visitadores poderá propiciar orientações adequadas às particularidades percebidas, seja na questão genética ou nas questões dos efeitos das substâncias e suas consequências para determinado organismo, em específico.

Mas cabe ressaltar que os transtornos pelo uso de substâncias já deixaram de ser vistos como fenômenos exclusivamente individuais e muito se tem debatido sobre a importância do contexto socioambiental como facilitador da experimentação e progressão do uso.

Situações de vulnerabilidade ambiental

Normas implícitas, cultura local, condições de convivência, desemprego e discriminação de várias formas são aspectos que também precisam ser considerados pelos visitadores. Sabe-se que a disponibilidade de substâncias e a permissividade do uso existentes em diversos ambientes comunitários tornam-se facilitadores da experimentação de SPAs. Da mesma forma, a ausência de alternativas de lazer, culturais e esportivas e oportunidades de atuação social e comunitária também podem tornar seus moradores mais vulneráveis ao uso9 . Diante da identificação de tais situações, os visitadores poderão provocar, entre os visitados, uma discussão sobre essas questões e a possível influência que estes acreditam poder existir em suas vidas. Essa discussão visa, inicialmente, mais conscientização sobre a influência do ambiente na vida das pessoas, podendo resultar, até, em mobilização para a busca de alternativas viáveis junto às lideranças comunitárias e o Poder Público.

Da mesma forma, o próprio ambiente familiar pode tornar seus membros mais vulneráveis ao uso de SPAs, principalmente diante do uso ou permissão do uso por pais e irmãos; da fragilidade ou inexistência de laços familiares; da falta de envolvimento dos pais na vida dos filhos; entre outros.

• a identificação de situações de vulnerabilidade que poderiam ficar despercebidas, se outro fosse o setting; • a intervenção imediata em algumas situações; • o correto encaminhamento, quando necessário.

O Quadro 1 demonstra, de forma resumida, as possibilidades de atuação dos visitadores durante as VDMs:

• Identificar refere-se ao olhar atento e seletivo dos visitadores, com o claro propósito de verificar a existência de situações de vulnerabilidade; • orientar, como código específico, está relacionado às situações em que a correta orientação possa ser a intervenção suficiente para se obter os resultados esperados; • encaminhar diz respeito às possibilidades de apoio e atenção percebidas pelos visitadores, que poderiam ser prestadas por outros serviços ou profissionais. É muito importante que esses encaminhamentos sejam feitos de forma responsável e comprometida, mediados pelos visitadores junto ao serviço/profissional referenciado; • intervir nas ações que possam ser executadas pelos visitadores após a identificação das situações de vulnerabilidade. Também contempla as orientações verbais e os encaminhamentos específicos, mas permite outras possibilidades de atuação, como a proposta de discussões sobre conteúdos percebidos, planos de ação, comprometimento com mudanças consideradas importantes e possíveis pelos visitados, etc.

Quadro 1: Atuação da VDM nas situações de vulnerabilidade

Situações de vulnerabilidade

psíquicas (escolhas, preferências, experiências e características individuais)

Possibilidades

- identificar; - intervir; - encaminhar.

O que fazer?

- observação dos moradores; - questionamentos; - orientações; - avaliações dirigidas (escalas); - encaminhamentos.

Resultados esperados

- prevenção ao uso de substâncias; - conscientização; - motivação; - aceitação de cuidados e/ou encaminhamentos; - redução de danos.

biológicas (efeitos fisiológicos do uso de substâncias) - identificar, - orientar, - encaminhar. - observação dos moradores; - questionamentos; - orientações; - encaminhamentos. - prevenção do uso de substâncias ou de seus agravos

ambientais (cultura, localização e condições de moradia, contexto familiar, idade, sexo, escolaridade, etnia e outras necessidades especiais) - identificar; - intervir; - encaminhar - observação do ambiente e das relações familiares; - questionamentos; - orientações; - intervenções breves e pontuais; - encaminhamentos. - prevenção ao uso de substâncias; - conscientização; - motivação; - melhoria das relações familiares; - aceitação de cuidados e/ou encaminhamentos; - redução de danos.

Considerações finais

A proposta deste capítulo foi apresentar a VDM como uma intervenção eficaz na identificação e atuação em situações de vulnerabilidade, no contexto dos transtornos pelo uso de substâncias psicoativas. Essa eficácia se deve, em parte, à aproximação que a VDM

propicia entre os profissionais de saúde e os âmbitos vividos por aqueles aos quais prestam algum tipo de atenção e cuidado - realidades estas que, muitas vezes, só podem ser realmente compreendidas “se” e “quando” observadas in loco. Contudo, ao mesmo tempo em que se considera fundamental a aproximação entre os profissionais e seus “pacientes”, também se faz necessária a aproximação entre as intervenções propostas e as realidades de atuação desses profissionais. Ou seja, a intervenção que se pretende aplicar necessita ser adequada aos serviços e profissionais que a utilizarão. De pouco adiantaria uma intervenção clinicamente eficaz que não fosse passível de aplicação, no cotidiano dos profissionais e dos serviços.

Por isso, a VDM se propõe a ser adaptável às mais distintas realidades de trabalho, sem que se perca - ou se confunda - sua finalidade. A VDM busca intervir nos contextos, nas relações que os visitados estabelecem. E, para isso, treinamento e capacitação das equipes são condições primordiais. Não se trata de intervenção domiciliar cuja justificativa seja a impossibilidade de o visitado ir até o serviço, como no caso da assistência aos acamados. Tampouco a visita investigativa ou de comprovação, como em alguns casos assistenciais. Em nossa prática clínica, já se puderam verificar modalidades de visitas sendo feitas por psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos, agentes comunitários de saúde, conselheiros, acompanhantes terapêuticos, educadores sociais e outros, com os mais diferentes fins; embora, geralmente, com objetivos únicos e rígidos. Acredita-se que esses profissionais, se devidamente capacitados para as questões do TUS e da entrevista motivacional, serão capazes de agregar esses conceitos às visitas que já fazem, ampliando objetivos e maximizando resultados. Outros pontos que, percebe-se, merecem consideração são: o número de profissionais presentes nas visitas e a quantidade de visitas. Embora, neste capítulo, se tenha apresentado uma experiência de quatro visitas semanais e consecutivas, feitas por dupla de profissionais (psicólogo e assistente social), ressalta-se que esse modelo deve ser adaptado de acordo com as possibilidades e necessidades dos serviços que a utilizarão. Sabe-se que a disponibilidade de transporte para o trabalho externo de profissionais é muito diferente de um serviço para o outro: alguns têm veículos próprios, exclusivos; outros só podem contar com veículos do mantenedor (prefeituras, secretarias, universidades, institutos, projetos, etc.), mesmo assim, esporadicamente. Há também aqueles que não têm possibilidade alguma de acesso a veículos, dependendo exclusivamente da improvisação, criatividade e abnegação de seus profissionais.

Se realizar uma visita já pode ser tarefa bastante complicada – devido à logística necessária -, quanto mais realizar quatro, semanais e consecutivas. Fica evidente que esse aspecto precisa ser adaptado à realidade dos serviços que irão utilizar a VDM. Da mesma forma, percebe-se, em muitos serviços, uma importante defasagem entre a quantidade “existente” de profissionais e a quantidade “necessária”. Isso faz com que muitos deles trabalhem com carência de pessoal, sendo obrigados a reduzir cuidados ou limitar suas atividades. Evidente que, nessas circunstâncias, uma exigência de visitas em dupla poderia inviabilizar a intervenção, tornando-a impraticável. Por fim, sabe-se que visitas ao domicílio já vêm sendo feitas por diferentes profissionais e que a VDM é uma intervenção custo-efetiva10 que já se mostrou viável nos mais diferentes quadros de tratamento e prevenção do abuso de substâncias. O que aqui se propõe é que gestores e profissionais da saúde percebam que poderão dispor da VDM como mais uma ferramenta de trabalho, bastando iniciativa, capacitação e um pouco de criatividade. Não se trata apenas de mais tarefas a serem executadas, mas

Referências

1. MORAES E, CAMPOS GM, FIGLIE NB, FERRAZ MB, LARANJEIRA R. Home Visit in the Outpatient Treatment of Alcohol Dependents: randomized clinical trial. Addictive Disorders & Their Treatment, 2010; 9:18-31. 2. MORAES E, CAMPOS GM. Visita Domiciliar: uma intervenção motivacional no tratamento da dependência química. In Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselhamento em Dependência Química. 3.ed. - São Paulo: Roca, 2015. 3. MORAES E. Visita Domiciliar: Avaliação do Impacto Clínico e Econômico em um Tratamento Ambulatorial para Dependentes de álcool. Tese de doutorado – Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica – Universidade Federal de São Paulo, 2007. 4. MORAES E; CAMPOS GM, LARANJEIRA R. Visita Domiciliar Motivacional. In: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R e cols. Dependência Química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed; 2011. 5. MILLER WR, ROLLNICK S. Entrevista Motivacional: preparando as pessoas para a mudança de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001. 6. STANTON M, TOOD TC. Terapia Familiar del Abuso y Adiccion a las Drogas. Barcelona: Gedisa, 1985. 7. KAUFMANN EF. The family therapy of drugs and alcohol abuse. New York: Gardner, 1982. 8. CAMPOS GM, FIGLIE NB. Prevenção ao uso nocivo de substâncias, focada no indivíduo e no ambiente. In: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R e cols. Dependência Química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 481-494. 9. CAMPOS GM; MORAES E. Como planejar um projeto de prevenção. In: DIEHL A, FIGLIE NB e cols. Prevenção ao uso de álcool e drogas: o que cada um de nós pode e deve fazer? Porto Alegre: Artmed; 2014. p. 167-182. 10. MORAES E, CAMPOS GM, FIGLIE NB, LARANJEIRA R, FERRAZ MB. Cost-Effectiveness of Home Visits in the Outpatient Treatment of Patients with Alcohol Dependence. Eur Addict Res. 2010; 16:69-77.

Protocolo de Visita Domiciliar Motivacional

(Edilaine Moraes, 2007)

Identificação do paciente e seus familiares (nome, parentesco e idade) Frequência durante as visitas: sim (s) /não (n) 1ª 2ª Paciente:_______________________________________ idade:_________ ( ) ( ) Residem na casa ____ pessoas (especifique): Nome: ____________________________ parentesco: _____________________ idade:_____ Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) 3ª 4a . ( ) ( )

Agendamento da visita domiciliar motivacional

1a Visita: ___/___/_____ 2a Visita : ___/___/____ 3a Visita: ___/___/____ 4a Visita: ___/___/___ Horário: ______________ Horário: _____________ Horário: ____________ Horário: ___________ Duração da visita: ____ Duração da visita: ___ Duração da visita: ___ Duração da visita:__

Durante as visitas, estar atento para responder às questões a seguir.

Condições de moradia:

Famílias na mesma casa: ( ) uma ( ) duas ( ) três ou mais Famílias no mesmo terreno/quintal ( ) uma ( ) duas ( ) três ou mais

Construção: ( ) alvenaria ( ) nova ( ) madeira ( ) ventilada ( ) mista ( ) antiga ( ) úmida Energia elétrica: ( ) rede pública; ( ) emprestada; ( ) clandestina Habitação: ( ) casa; ( ) apartamento; ( ) favela ( ) cortiço Saneamento básico: ( ) água e esgoto (rede púb.) ( ) água de poço; ( ) fossa séptica; ( ) esgoto a céu aberto

Saúde e higiene:

1ª visita

( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

3ª visita

( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

2ª visita

( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada

Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

4ª visita

( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada

Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

Relações familiares: MS (muito satisfatório); S (satisfatório); PS (pouco satisfatório); I (insatisfatório); NP (não percebido)

1ª visita

diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

3ª visita

diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

2ª visita

diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

4ª visita

diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

1a visita

( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

2a visita

( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

3a visita

( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

4a visita

( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

Tentativa de mobilizar o paciente a retomar o tratamento para dependência química

1a visita

( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

2a visita

( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

3a visita

( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

4a visita

( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

Fatores que dificultam a frequência do paciente aos atendimentos

1a visita

( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

2a visita

( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

3a visita

( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

4a visita

( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

Tentativa de mobilizar o familiar p/ participação de grupos de orientação familiar

1a visita

( ) não demonstrou interesse em participar;

2a visita

( ) não demonstrou interesse em participar;

3a visita

( ) não demonstrou interesse em participar;

4a visita

( ) não demonstrou interesse em participar;

( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

Fatores que dificultam a frequência do(s) familiar(es) aos atendimentos

1a visita

( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

2a visita

( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

3a visita

( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

4a visita

( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

1a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

2a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

3a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

4a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

Suspeitas de abuso ou agressões físicas provocadas pelo paciente nos familiares

1a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

2a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

3a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

4a visita

( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

Informações adicionais Agendamentos para o paciente

1ª visita

Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

3ª visita

Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

2ª visita

Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

4ª visita

Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

1ª visita

Gpo de orient. familiar compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ enc. Outros (especifique) ______________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento w

3ª visita

Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

Planta geral da casa 2ª visita

Gpo de orient. familiar compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ enc. Outros (especifique) ______________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

4ª visita

Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

Mapa geral da vizinhança: verificar, nas proximidades da residência, a existência de:

Serviços (escola/creche, posto de saúde, banco, etc.) ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________________________________

Locais de risco (bar, boteco, casa de amigo que possui bebida, etc.) ___________________________________________________________________________________________________________________________ _________________________________________________________

Evolução clínica e observações gerais ___________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________

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