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figura 5: Modelo pós-moderno

Matemática é considerada pelos modernos - empiristas, iluministas, positivistas, marxistas e mesmo freudianas – como faculdade psíquica fulcral à descoberta da verdade.

É sobre o chão dessa lógica que emerge a chamada ciência moderna ou aquela que se fundamenta na recusa ao subjetivo e evidencia a importância do objetivo. A natureza da modernidade é racionalista e ultranacionalista, logo, é intensa e densamente objetivista. Conforme Edgar Morinc,5, a ciência moderna compreendeu e explicou a vida sob a regência da racionalidade matemática.

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Se o avanço e o crescimento são as matrizes geradoras do paradigma moderno, podese dizer que a obsessão desse modelo de sociedade foi a dominação do conhecimento e a sua proliferação de modo ostensivo. O primeiro e mais importante objetivo dessa forma de compreender e explicar a vida foi, sem dúvida, a proliferação do conhecimento embasado em estudos matemáticos, físicos, químicos e biológicos. Na lógica do paradigma moderno, a ciência – ou o conhecimento científico – deve ser a régua que mensurará todos os tipos de saberes realmente valiosos para o desenvolvimento de uma pessoa tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito social. A ciência funcionará como uma espécie de norte que tratará de conduzir o ser humano ora para o avanço ora para o crescimento.

Figura 4: Modelo moderno

Moderno

Razão Ciência

Difundir Conhecer Proliferar

A instituição de significados numa perspectiva da modernidade tem relação com os interesses que fundamentam tal modelo paradigmático. Nesse sentido, quando se pensa as redes de significações forjadas na e pela modernidade, pensa-se em compreensões e explicações racionais e matemáticas para a vida.

Sob a regência de algumas correntes do paradigma moderno, a descoberta da verdade, embora não seja mais oriunda de uma ação meta-humana, ainda é uma descoberta e não uma construção. Isto é, ainda é uma ação exógena à vontade do ser humano, forjada em alguma motivação superior ao desejo do homem ou da mulher.

Há expressivas diferenças entre os dois paradigmas até então tratados, mas há também similitudes as quais não podem ser desconsideradas, ainda que numa análise mais simples, como a que ora se faz aqui. A modernidade quis o avanço e o crescimento, mas não conseguiu se libertar de muitos ideais medievais.

c Edgar Morin é antropólogo, sociólogo e filósofo. Pesquisador emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), formado em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. Autor de mais de 30 livros, entre eles: O método (seis volumes), Introdução ao pensamento complexo, Ciência com consciência e Os sete saberes necessários para a educação do futuro. Durante a Segunda Guerra Mundial, participou da Resistência Francesa. É considerado um dos principais pensadores contemporâneos e um dos principais teóricos da complexidade.

No modelo pós-modernod , há, de certa sorte, mudanças em relação aos modelos anteriormente apresentados. Numa perspectiva pós-moderna, existem questões que trazem à tona a seguinte pergunta: a verdade tem sua existência deslocada da vontade humana ou a verdade tem sua existência fundamentada na vontade do ser humano?

Tal pergunta, se respondida de forma positiva em relação à instituição da verdade como resultado da mente humana, exibirá uma nova noção de verdade, de realidade e de real. A verdade não será mais exógena ao ser humano, mas endógena: advém das interações individuais e coletivas, geradoras de conhecimentos.

No modelo pós-moderno, há uma ruptura com a razão como sendo a única faculdade humana capaz de compreender e explicar a verdade, visto que os elementos emocionais passam a ser entendidos como possíveis elementos interpretantes da verdade, da realidade, do real. A Matemática não é mais a única disciplina sustentadora do conhecimento.

figura 5: Modelo pós-moderno

Pós-moderno

Saberes Verdades

Razão/Emoção Emoção/Razão Endógeno

A Figura 5 tenta representar o esquema estruturante do paradigma pós-moderno e de sua consequência para a compreensão e a explicação do real, tanto em termos individuais quanto em termos coletivos. A instituição de significados nessa proposta paradigmática tem a incerteza como uma das suas premissas, logo, a exatidão almejada pela modernidade não é exatamente o intento desse novo modelo. Sob a égide dessa nova lógica, emergem várias redes de significação no universo social da civilização ocidental e oriental. A ideia de local e global, nacional e transnacional ganha novos sentidos e a compreensão sobre o que é a vida e todos os seus desdobramentos passa a ter sentido novo e renovado constantemente. De alguma maneira, a era da incerteza toma conta do pensamento e do sentimento dos seres humanos.

A instituição da “droga” sob a ótica de um modelo pré-moderno

Segundo o dicionário Michaellis6, a palavra droga tem variação conceitual. Ora poderá ser entendida como uma espécie de substância química, ora poderá ser entendida como algo ou alguma coisa de natureza nociva. No primeiro conceito, a palavra “droga” tem a ver com algo externo ao ser humano e no segundo como algo interno.

A palavra droga, quando analisada sob a etimologia grega – pharmakon –, possui duplo sentido: remédio ou veneno. No entanto, a palavra droga, se analisada sob o termo holan-

d A expressão pós-moderno nem sempre é acatada por determinadas filiações teóricas, entretanto, em razão do que ora se argumenta, parece pertinente seu uso, ainda que se tenha clareza de sua fragilidade em determinados aspectos epistêmicos e metodológicos.

dês doog, tem a ver com a ideia de folha seca, de medicamento feito a partir de vegetais existentes na natureza.

As drogas, em sentido mais amplo, se consideradas como entorpecentes, têm matrizes étnicas e culturais registradas em diversas cronotopias e em diversas fases da chamada civilização humana, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Nesse sentido, quando se pensa na palavra droga, analisa-se o que se quer dizer e o que se está ouvindo alguém dizer.

De acordo com a OMS7, droga é qualquer substância que, não sendo produzida pelo organismo, tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento. Talvez o conceito tratado pela OMS tenha a ver com o significado pré-moderno de vida, uma vez que entende a droga como uma substância não produzida pelo organismo, logo, uma substância não viva.

A expressão aqui usada “não viva” tem relação com o conceito trazido pelas teorias da complexidade8 que subdividem a realidade em dois grandes blocos: as coisas que são in vivo são aquelas que são produzidas dentro do organismo e como tal funcionam; e as coisas in vitro são aquelas produzidas fora do organismo e como tal existem.

Seguindo essa lógica, a droga entendida como uma substância que não é produzida pelo organismo, porém com poderes de atuação sobre ele, poderá ser compreendida e explicada como algo exógeno ao ser humano, como algo que vem de fora para dentro, não é natural, é artificial, não é essencial e é estranha ao ser humano.

Nessa lógica, a droga é uma substância in vitro ainda que não seja quimicamente produzida em laboratório. Com essa concepção de droga, a OMS, de certo modo, usa critérios de separatividade, estabelecendo uma espécie de distanciamento entre o que é do ser – aquilo que o organismo produz – e o que lhe é externo, aquilo que não é produzido pelo organismo.

A lógica pré-moderna, como dito no tópico 1.1, entende que a harmonia e o equilíbrio são metas que deverão ser alcançadas pelos seres humanos, mas essas condições não existem in vivo, mas in vitro, se se recorrer aos termos da teoria da complexidade morraniana8 . Isto é, a harmonia e o equilíbrio estão fora e precisam ser alcançados.

A instituição da “droga” sob a ótica de um modelo moderno

De verdade, parece acertado dizer que o conceito de drogas tratado pela OMS, para além do paradigma pré-moderno, mantém-se também no moderno, visto que, em ambos, a ideia de exterioridade é predominante. Nesse sentido, se o intento da modernidade são o avanço e o crescimento, o entendimento de droga como psicotrópico talvez tenha aí sentido.

Drogas psicotrópicas podem ser entendidas como qualquer substância capaz de afetar os processos mentais (pensamento, memória e percepção). A palavra “psicotrópico” é composta de duas palavras: “psico” e “trópico”. “Psico” relaciona-se a psiquismo, tem origem na etimologia grega; e “trópico” diz respeito ao termo tropismo, que significa ter atração por. Desse modo, psicotrópico significa atração pelo psiquismo e drogas psicotrópicas são aquelas que atuam sobre o cérebro, alterando de alguma maneira o psiquismo. Todavia, essas alterações do psiquismo não são sempre no mesmo sentido e direção, posto que dependerão do tipo de droga psicotrópica ingerida e do contexto em que tal ingestão se deu.

Se os grandes objetivos da modernidade foram a difusão e a proliferação do conhecimento científico, amparado nas ciências ditas exatas, oriundas da matemática pitagórica,

da geometria euclidiana, da metafísica cartesiana, certamente a compreensão e a explicação que a modernidade possui sobre drogas relaciona-se àquilo que o dito saber científico diz sobre essas substâncias usadas pela humanidade desde sempre.

Nesse sentido, as drogas modernas, aqui pedindo toda licença poética para o uso do temo “modernas”, possuem significados que tendem a estar mais fundamentados nas chamadas drogas lícitas ou drogas que são utilizadas com finalidades autorizadas pelas ciências, pelas pesquisas médicas, pelas orientações prescritas. As drogas modernas são, nesse sentido, in vitro, mas drogas legais, utilizadas de modo que o usuário não se sente inadequado no seu uso.

No ponto de vista sociológico, a modernidade instaurou a utilização das drogas ditas lícitas e fez isso, na medida em que criou a industrialização dos remédios, fazendo distinção conceitual entre o que é remédio – usado para tratar doenças – e o que não é remédio, usado como forma de fuga da realidade, de desvio do equilíbrio, de entorpecimento adoecido.

Sob a ótica da modernidade, saúde é diferente de doença e doença é o contrário de saúde. Combater uma doença é proteger a saúde. As drogas modernas foram criadas com o objetivo de combater as doenças, visto que uma sociedade doente nem avança nem cresce, pois morre. A droga na modernidade é autorizada pelas vias oficiais, mas é diferenciada, com vistas a não ser confundida com restritos entorpecentes.

A instituição da “droga” sob a ótica de um modelo pós-moderno

A instauração de um conceito de “droga” sob a regência de um paradigma cuja principal característica é a incerteza remete às reflexões sobre os fundamentos que tanto a pré-modernidade quanto a modernidade utilizaram na construção do conceito de drogas. Talvez a grande problemática de uma ótica pós-moderna sobre drogas não seja a instituição do conceito em si mesmo, mas a instituição das relações conceituais.

Numa perspectiva pós-moderna, as drogas, de certo modo, deixam de ser a grande questão e o uso da droga se torna a temática relevante. Nesse sentido, o que é ou o que deixa de ser droga perde o espaço central na discussão e passa a ser fulcral a discussão de como os seres humanos se relacionam com as drogas e de que modo essa relação tem rebatimento na vida individual e coletiva de uma dada sociedade. Talvez essa seja a problemática que a pós-modernidade tende a enfrentar no campo da instituição das drogas.

Se na pré-modernidade e na modernidade os debates em torno do tema versavam sobre a categorização das drogas, classificando-as e estabelecendo licitudes e ilicitudes, as ocorrências contemporâneas põem essa discussão em âmbito secundário e trazem para o centro do palco variáveis que menos têm a ver com conceitos e hierarquizações e mais têm a ver com a maneira como o ser humano decidiu fazer uso do remédio e do veneno.

Eis uma questão que, vista de um ângulo meramente matemático, não consegue dar conta da complexidade do fenômeno. O Ministério da Saúde, por intermédio da Coordenação Nacional DST e AIDS, em 2011, lançou um documento cujo teor tratava sobre a política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogase , a qual reconhece que o problema exige abordagem integral.

O problema do uso das drogas e as possíveis motivações para esse uso não conseguem ser compreendidos e explicados, caso a abordagem utilizada esteja centrada numa linha de pensa-

mento pré-moderna e moderna, visto que essas abordagens paradigmáticas não contemplam necessariamente a utilização das drogas, mas a sua condição se in vivo ou se in vitro.

A abordagem integral propõe que o problema do uso das drogas seja tratado não como um fenômeno exógeno ao organismo humano, mas endógeno, uma vez que entende que a separação dentro e fora do organismo pode servir para conceituar as drogas, mas certamente não serve de modo ampliado para entender e explicar como se dão as ocorrências de uso, no tocante a motivações.

Em outras palavras, as razões que levam alguém a usar drogas, sejam lícitas ou ilícitas, é uma problemática que exige por parte de quem lida com usuários de drogas capacidade de tentar entender o ser humano como um ser vivo composto de inúmeras dimensões e, portanto, necessário de ser compreendido e explicado – se é que isso é viável – também a partir de uma visão transdisciplinar.

A vulnerabilidade e as relações contemporâneas

A vulnerabilidade de todas as pessoas

Entende-se por vulnerabilidade toda situação, toda circunstância, toda posição que deflagra fragilidade, seja de que natureza essa fragilidade esteja constituída. Ser vulnerável é não ser protegido. Nesse ponto de vista, existem muitos seres vivos vulneráveis em nossos ecossistemas, em nossas biodiversidades. No entanto, é sobre a vulnerabilidade que acomete seres humanos que se irá tratar.

Os seres humanos vulneráveis são, de modo geral, aqueles que não possuem um sistema de garantia de direitos que possa ofertar-lhes condição de seres fortalecidos, ou seja, aqueles que são seres desprotegidos, aqueles que são conhecidos como minorias. De modo individual e coletivo, os seres humanos classificados como minorias são vulneráveis, porque têm e/ou podem ter seus direitos aviltados.

Na história da formação do pensamento no Ocidente, a infância sempre esteve entre minorias, visto que seus direitos foram, em muitas situações, violados. Os povos negros e os povos indígenas, as mulheres, os homossexuais, os idosos, as travestis, os economicamente pobres e os usuários de drogas talvez sejam efetivamente sujeitos que vivem vulnerabilidades ou transitórias ou prolongadas, em alguns casos, efetivas, porque permanentes.

Quando se é vulnerável, também se pode dizer que se está vulnerável. Ser ou estar vulnerável, ao que parece, não é uma questão meramente individual, como sugeriu a Sociologia de Emile Durkheimf , mas uma questão que envolve circunstâncias também coletivas. Logo, não é exclusivamente uma opção, mas, de modo claro, uma condição.

Em seu livro A condição humana9, a filósofa judia teuto-americana Hanna Arendt explica que a condição humana é uma situação não necessariamente de natureza restritamente biológica, porém uma conjuntura de elementos que compõem uma dada situação que envolve a vida ativa do ser humano, ou seja, sua condição como sujeito social.

A vulnerabilidade das pessoas – de todas elas – tem a ver com a condição humana, ou seja, com a vida ativa em sociedade. Diz-se que se é vulnerável quando não se é seguro nem assegurado. As minorias são vulneráveis sempre que sua condição humana, a sua vida ativa, é posta em xeque e levado à situação de risco, de fragilidade, de insegurança.

f David Émile Durkheim (Épinal, 15 de abril de 1858 — Paris, 15 de novembro de 1917) foi sociólogo, psicólogo social e filósofo francês. Formalmente criou a disciplina acadêmica e, com Karl Marx e Max Weber, é comumente citado como o principal arquiteto da ciência social moderna e pai da Sociologia.

Mesmo que se faça distinção conceitual, em termos jurídicos10, entre minorias e grupos de pessoas vulneráveis, uma análise simples, ainda que superficial, mostrará que há uma relação sinonímica entre essas suas condições humanas e entre essas duas situações sociais. Os vulneráveis estão fragilizados em relação aos seus direitos e são ameaçados no sistema de garantia dos seus direitos individuais e coletivos.

As minorias, aqui incluídos os grupos vulneráveis, também têm o sistema de garantia de direitos ameaçado constantemente, logo, se se nominar por ameaçados todos que têm inseguranças na garantia de seus direitos, vulneráveis e minorias serão uma só coisa, embora, em determinados aspectos, sejam, de fato, diferentes. Mas nos aspectos que são diferentes, ainda possuem similitudes.

Nem sempre as pessoas vulneráveis têm consciência de que são ou estão em condição de vulnerabilidade. Segundo a OMS, o século XXI prima-se por muitas doenças psicológicas que emergem de modo expressivo. De algum modo, a condição de doente psicológico pode ser entendida como uma condição humana vulnerável. A vulnerabilidade, nesse sentido, não se restringe nem a um grupo nem a uma classe.

No entanto, para os objetivos com os quais se lida neste texto, o conceito de vulnerabilidade está menos relacionado ao que foi registrado na segunda parte do parágrafo anterior e mais relacionado ao que se vem afirmando ao longo do tópico. Isto é, embora existam diferenças conceituais entre minorias e grupos vulneráveis, de verdade, toda minoria, em razão de sua condição humana, pode ser vulnerável numa sociedade que assim a trate.

A vulnerabilidade e as relações humanas

Seres humanos, se analisados sob a ótica pré-moderna, nada mais são do que duas coisas: carne e espírito. À carne cabe tudo que disser respeito ao biológico e ao espírito, tudo que disser respeito à moralidade. A condição humana, portanto, terá duas bases fundantes: • A biológica; e • a moral. Ambas não dependentes uma da outra, sem conexão e com pouco diálogo entre suas nuanças.

De alguma maneira, as relações humanas, se amparadas numa perspectiva paradigmática pré-moderna-moderna, ignorará a importância das interações e focalizará seus esforços na relevância das dicotomias. Relações humanas separatistas são hierárquicas, dispostas à construção de identidades inspiradas em padrões identitários previamente definidos. Quando se trata de identidades definidas previamente, está-se aludindo a modelos biológicos e morais os quais deverão servir de espelho para a instituição de relações individuais e coletivas. As relações humanas, fundamentadas em paradigmas pré-modernos, tendem a ser individualistas, pois buscam menos a conexão e mais a desconexão entre as bases fundantes da vida.

Relações familiares pré-modernas, por exemplo, são provavelmente mais relacionadas à ideia de superioridade de uns em detrimento da inferioridade de outros. O sentimento machista ou o seu duplo - o feminista - tem amparo nessa ordem de superioridade e inferioridade. O machismo, como se sabe, gera uma série de problemas nas famílias humanas.

Dados do Instituto Patrícia Galvãog , organização não governamental brasileira que investiga casos de violência contra a mulher, afirma que, a cada oito segundos, no Brasil, em

razão do machismo, uma mulher é espancada dentro de sua casa, na frente de seus filhos. O espancamento é feito pelo companheiro dessa mulher e geralmente pai dos filhos que presenciam a agressão.

Ainda segundo dados do Instituto, a violência infradoméstica é um problema social que, portanto, não se restringe a uma questão privada. A violência contra a mulher, fundamentada numa sociedade patriarcal e machista, afeta diretamente as relações humanas forjadas dentro das casas. De algum modo, a vulnerabilidade de uma família violentada é ostensiva.

Entende-se que as pessoas que estão em estado de vulnerabilidade ostensiva, antes mesmo dos problemas sociais que acometem grupos vulneráveis e/ou minorias, são as que experimentam sérios problemas emocionais oriundos da ausência de experiências amorosas. As vulnerabilidades ostensivas têm a ver com as poucas experiências amorosas dentro das casas, no seio das famílias.

As relações humanas e as experiências amorosas: o dogma da modernidade

É evidente que as experiências amorosas a que se refere no tópico anterior e que se pretende discorrer neste tópico propõem reflexões nem sempre acolhidas pelo chamado discurso científico. Nesse sentido, entende-se importante que se faça um esclarecimento: o discurso científico sobre o qual se trata não recusa o amor como uma de suas mais relevantes categorias.

No entanto, se se considerar experiências humanas a partir da ótica moderna, tende-se a rejeitar as experiências amorosas como categorias científicas e a considerá-las situações que se relacionam a um nível profundo de subjetividade. Logo, não favorável a análises mais quantitativas, estáticas, matemáticas. Talvez esse tenha sido o modelo de relação que predominou numa perspectiva científica. O que se afirma é que, para uma perspectiva paradigmática fundamentada numa lógica objetivista, experiências subjetivas não são senão obstáculos à descoberta sadia da verdade. A descoberta sadia da verdade, como prevê René Descartesh (1596-1650), é aquela que não se afeta pela miopia dos sentidos subjetivos, que não se imiscui em problemas de ordem simbólica.

Sob a ótica do pensamento moderno, diga-se assim, as relações humanas estão menos focalizadas nos afetos e mais focalizadas nas racionalidades. Experiências amorosas, considerando que existam - e existem -, tendem a ser pensadas ainda sob ideias separatistas e dicotômicas. O problema de relações humanas sob essa ótica é ainda a ideia de hierarquia de gênero, de geração, de cultura, de etnia e de nacionalidade.

É importante fazer uma distinção entre o que se chama de “modernidade” e os es-

h René Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650) foi filósofo, físico e matemático francês. Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius. Notabilizou-se, sobretudo, por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria - fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome. Por fim, foi também uma das figuras-chave na Revolução Científica. Descartes, por vezes chamado de “o fundador da filosofia moderna” e o “pai da matemática moderna”, é considerado um dos pensadores mais importantes e influentes da História do Pensamento Ocidental. Inspirou contemporâneos e várias gerações de filósofos posteriores; boa parte da filosofia escrita a partir de então foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente influenciados por ele. Muitos especialistas afirmam que, a partir de Descartes, inaugurou-se o racionalismo da Idade Moderna. Décadas mais tarde, surgiria nas Ilhas Britânicas um movimento filosófico que, de certa forma, seria o seu oposto - o empirismo, com John Locke e David Hume.

tudos científicos que ocorreram a partir do século XVI no Ocidente. Os estudos ditos científicos estão fundamentados nas teorias filosóficas de Descartes e nas pesquisas mecânicas e físicas de Newton, entretanto, o paradigma social e histórico que se forja, tendo tais pensamentos como base, é uma espécie de dogma.

O dogma da modernidade não são necessariamente os estudos dos grandes pensadores modernos, tampouco suas relevantes pesquisas para o avanço e o crescimento da vida na Terra. O dogma da modernidade é uma espécie de ideia oriunda dos princípios e pressupostos modernos e que gera toda sorte de distorção do que seja avanço e do que seja progresso.

De verdade, por razões que o espaço e o tempo não permitem analisar aqui, o dogma da modernidade tem adesão intensa dos seres humanos. E é nele que se criam as ideias reacionárias e conservadoras que mantêm as experiências amorosas distantes dos seios das relações entre as pessoas, visto que para esse dogma experiências amorosas são de pouca valia na condução da vida em sociedade.

O dogma da modernidade não necessariamente é moderno. Ele, de alguma maneira, se encontra na pré-modernidade e também poderá ser analisado na pós-modernidade. É um jeito, um olhar, uma atitude que tem na razão exacerbada a sua estrada de condução e relega às emoções humanas um lugar secundário na vida e nos desdobramentos que advêm da vida individual e coletiva.

Quando se trata, pois, de relações amorosas como sendo essenciais à estruturação mental de uma pessoa, trata-se de ocorrências que se dão entre as pessoas, dentro de suas casas, nas instituições de ensino, nas organizações trabalhistas e nas convivências diárias em diversas situações sociais. As experiências amorosas podem ser sinônimos de questões como acolhimento, escuta, cuidado, atenção, zelo, empatia.

As relações humanas e as experiências amorosas: o dialógico e o monológico, o sujeito real e o sujeito abstrato

Qualquer relação humana, para ser saudável, precisa acontecer de modo dialógico. O que é dialógico contempla o direito do outro de dizer o que pensa e sente e implica o direito do outro de aderir à escuta do que ouve e do que sente sobre o que ouve. As relações humanas saudáveis são confortáveis para quem as experimenta. Qualquer noção de desconforto pode ser sinal de que algo precisa ser dito.

Os interditos de uma relação - nem sempre indicados na linguagem verbal - podem estar ocultos em outras manifestações da mente e do corpo. Nesse sentido, a noção de separação entre mente e corpo, presente nos modelos paradigmáticos pré-moderno e moderno, são desconstruídos numa perspectiva de relação pós-moderna, para a qual o sujeito de direito prevalece sobre a ideia preconcebida de sujeito.

A ideia preconcebida de sujeito tem fundamento nas identidades que são forjadas previamente antes da experiência real. A ideia preconcebida de sujeito se choca com o sujeito real que aparece no cotidiano das relações. Na perspectiva monológica de relação humana, não existe espaço para diferenças e contestações. Eis um problema que necessita ser resolvido.

As relações humanas amorosas tendem a ocorrer quando existe um processo de empatia, ou seja, uma pessoa se põe no lugar da outra e nesse processo evitam-se a sobreposição de ideias e a hierarquização de opiniões. Numa perspectiva paradigmática dialógica, as relações tendem a ser ampliadas e a sinceridade passa a ser um chão no

qual se pisa com mais aceite.

Relações amorosas não são idealizadas nem forjadas nas experiências abstratas, mas se dão no concreto, no real, na lucidez mais ampliada sobre o que ocorre entre as pessoas que vivenciam as situações.

O sujeito abstrato que criamos em nossa mente e que de fato nunca se materializa na realidade é perfeito ou é imperfeito, mas efetivamente nunca é alguém que pode cometer falhas e cometer acertos, dizer bobagens e ao mesmo tempo alcançar níveis elevadíssimos de ações. O sujeito abstrato ou é ruim ou é bom, ele é maniqueísta, porque nunca é visto como alguém em construção identitária.

Não se conseguiu dialogar com a abstração que se faz do sujeito e, por isso, não se constrói, com esse sujeito, uma relação real e válida. De modo geral, é uma relação projetada, idealizada, pensada por um, porém não entendida pelo outro. Quase sempre, essas relações abstratas são fracassadas e simplesmente machucam quem nelas existe. Os machucões, ao contrário de nossas idealizações, são reais, deixam marcas e provocam sérios problemas.

As drogas e as rejeições: não me vejo no espelho

Não se aguenta muita pressão

Num livro chamado Emílio ou quando se nasce com um vulcão ao lado11, apresenta-se a história de um menino que, em razão da rejeição, decide viver com um vulcão escondido dentro dele. A experiência de Emílio é dolorida, visto que o vulcão em si é registro de sofrimento e de agonia, porém o medo de exposição também o faz sofrer. De alguma maneira, a condição ficcional de Emílio é a situação real de muitas pessoas que, em razão de poucas experiências amorosas no cotidiano de suas vidas, em razão de uma tentativa de fugir ao real, de encontrar refúgio, acolhimento e entorpecimento, decide, sem ter controle sobre seu organismo, viver uma vida ao lado das drogas e depois decide escondê-las dentro de si.

São pessoas vulneráveis, menos porque, em muitos casos, tenham problemas econômicos e financeiros e, mais porque, em muitas situações, suas trajetórias de vida são traçadas sob o silêncio e a inadequação em relação aos sujeitos abstratos com os quais teriam de ter identificação prévia, porém não têm. As drogas, nesse caso, são um jeito de dizer: Não aguento pressão.

Não aguentar pressão é, de todo modo, não se adequar aos modelos previamente estabelecidos. Não se encontrar na imagem posta no espelho. Não se sentir bem com aquilo que se lhe dão como referência. As drogas, para o bem ou para o mal, veneno ou remédio, surgem como espécie de lenitivo a quem não suporta a dor dilacerante de ter de ser o que não se preparou para tal.

É sobre essa condição de usuário de droga que se trata aqui. É evidente que existem outras motivações para que um ser humano opte pela experiência com as drogas, porém, acredita-se que as experiências da não identificação com o espectro que lhe impõem no individual ou no coletivo são merecedoras de destaque. Viver sob regência de modelos é um desafio, nem sempre superável.

Na contemporaneidade, como já mencionado, entender se existem drogas lícitas ou ilícitas, temática deveras relevante, parece não ser o tom da questão. O tom é outro, é o

que se faz quando se está diante de uma pessoa que, por marcas emocionais nem sempre ditas, busca fugir de si no entorpecimento e depois não controla mais o momento de se entorpecer.

A problemática é não saber controlar o momento e o local aonde se quer ir na fuga. Eis uma questão difícil para quem não suporta as pressões que a vida lhe confere nos momentos em que se fazem exigências individuais e sociais, pessoais e coletivas no momento em que não se abriram espaços para diálogos sinceros, verdadeiros, legítimos, nos quais os sujeitos possam dizer suas coragens e seus medos.

Talvez as drogas entrem nas vidas de pessoas que não encontram na relação com o outro o barco no rio que o leve à outra margem. As vozes silenciadas nas relações humanas não são excluídas, mas, como bem explicou Jean Piaget12, são introjetadas e passam a fazer parte de uma espécie de voz interior. A voz interior, como analisa Freud (1856-1939)i , pode ser fantasmagórica.

“Essa voz interior”, explicou Raulj , um dos usuários de drogas ilícitas com o qual conversamos em 2011/2012, época em que foram realizadas 100 escutas com adolescentes evadidos escolares e moradores de rua, é muito forte na minha cabeça e “ela” sempre me diz uma coisa que não consigo entender: Raul, você é forte. Mas sou fraco. Sou fraco igual caldo de cana com água.

Raul, assim como quase todos os sujeitos que responderam várias perguntas, não se identificava com a imagem que lhe diziam ser ele: um sujeito forte, capaz de vencer desafios, de superar obstáculos e de cumprir sua trajetória na escola e na vida. Raul, caso pudesse ter sido frágil, inofensivo, não estudioso, pouco corajoso, pudesse também ter sido mais genuíno.

O que se chama de “genuíno” é uma condição de sinceridade que relações forjadas em idealizações não alcançam. Os adolescentes evadidos da escola também eram “fugitivos” de relações familiares bastante difíceis, nas quais a violência havia sido uma linha de conduta para os membros da família. A violência experimentada dentro de casa refletia-se na necessidade de refúgio fora de casa.

Na construção de uma relação saudável

Os adolescentes com os quais conversamos ao longo de nossa experiência de pesquisador levaram a acreditar que, embora não seja fácil nem simples, há possibilidades de reabilitação. A reabilitação, todavia, talvez seja a compreensão sobre a inadequação de sujeitos inadequados ao sistema de identificação proposto.

Ou seja, não se deve querer que uma pessoa - usuária na experiência das drogas - se torne um ser sociável nos moldes previstos pela sociedade monológica. É imprescindível para quem está em processo de reabilitação que suas novas experiências não sejam a revisão daquilo que já experimentou com identificações projetadas, com projeções

i Sigmund Schlomo Freud (Freiberg in Mähren, 6 de maio de 1856 — Londres, 23 de setembro de 1939), mais conhecido como Sigmund Freud, foi médico neurologista e criador da Psicanálise. Freud nasceu em uma família judaica, em Freiberg in Mähren, na época pertencente ao Império Austríaco. Atualmente a localidade é denominada Příbor, na República Tcheca. j Raul é um nome fictício para um dos 100 jovens que participaram de uma coleta de dados realizada em 2011/2012, com vistas à elaboração de material para a pesquisa “Os que não respondem - presente, Professora!”. Projeto acadêmico cujo objetivo geral era investigar, a partir de pesquisa teórica e empírica, as razões que levavam adolescentes à evasão escolar e ao mesmo tempo ao confinamento das ruas.

não cumpridas.

A reabilitação passa pela revisão do que é viver em sociedade para uma pessoa que não se sente feliz sendo cobrada de modo veemente. Em outras palavras, está-se dizendo que entre os adolescentes pesquisados, cerca de 90% estavam dispostos a não continuarem utilizando as drogas como recurso de fugas, mas, ao mesmo tempo, não queriam ter de olhar no espelho. Olhar no espelho dói, tio. Essa frase dita por Rebeca, uma das adolescentes escutadas, revela o grau de sofrimento que alguém sente por não se adequar ao modelo social que lhe é imposto. É urgente que se passe a compreender que nem todas as pessoas são fortes ou devem sê-lo; são ágeis ou devem sê-lo; são maravilhosas ou devem sê-lo. As pessoas são diferentes umas das outras, meu caro.

Essa frase com a qual se encerrou o parágrafo nos foi dita por Demétrio, adolescente que tinha mania particular de ler livros de literatura numa biblioteca localizada no bairro onde já havia morado. Demétrio era dependente químico, porém reabilitado e que costumava, em razão de sua religião, ir tentar “salvar” vidas. Ele se “salvou”, porque se “identificou”. A identificação certamente não é a solução, talvez seja um equívoco terapêutico. Num processo de busca pela volta à escola, muitos adolescentes disseram que não queriam encontrar na sala de aula tudo o que eles viam antes. No entanto, eles viam o que os demais alunos viam, mas, para eles, aquilo visto não tinha o mesmo sentido.

A construção do sentido de quem se machuca emocionalmente não é a mesma construção de quem não vivencia essa experiência de dor. Alcançar o retorno daqueles adolescentes à escola, embora não fosse esse o objetivo central desta investigação, só se daria se a escola, no lugar de querê-los enquadrados em identidades estabelecidas previamente, fosse capaz, antes de tudo, de ouvi-los.

Ouvir uma pessoa em estado de reabilitação é algo que a escola - a família nem se fala - precisa saber fazer. A escuta, nesse caso, é sinônimo de empatia, de acolhimento, de compreensão e de respeito. O respeito implica a capacidade de entender que as pessoas possuem idiossincrasias específicas e não podem ser classificadas de modo padronizado.

A padronização é um dos maiores obstáculos à reabilitação. Quando alguém não se identifica com a imagem que lhe é dada como espelho, a ação mais saudável que se tem a fazer é compreender que, não havendo identificação, não precisa haver retaliação e, por conseguinte, rejeição. A rejeição é uma maneira perversa de jogar dentro do poço quem não sabe andar com as próprias pernas por estradas desconhecidas.

Na construção de uma relação saudável, é imperioso que não haja palavras de comando dadas por um e obedecidas por outro. A mente de alguém que busca acolhimento numa experiência de amor é frágil e precisa ser amada como ela é: frágil. Não se deve querer dicotomizar a fragilidade em oposição da fortaleza. Isso porque, numa relação saudável, o forte é fraco e o fraco é forte e a fragilidade é excelente e a fortaleza é excelente. Não se sabe o que é o que não é.

A dialética necessária para a boa convivência entre todos também precisa ser exercitada na convivência com quem não se encontra na mesma sintonia - seja qual seja essa sintonia. Os adolescentes, das mais diversas formas, disseram o tempo todo: Aqui,

na rua, é bom. Melhor aqui. Na escola, tem obrigação. Em casa, tem briga.

Na rua, local onde todos pensam existir o ruim, para os adolescentes ouvidos havia o bom. O bom a que eles se referiam estava indiretamente relacionado à possibilidade de não viver abstrações projetadas e identificações construídas. Aqueles adolescentes declaravam, por meio de seus interditos e - às vezes - de seus dizeres explícitos: não somos o que esperam que sejamos.

Eis algo muito importante na instituição de sentido: a liberdade. É muito importante que nós, seres humanos, no lugar de termos medo, tenhamos liberdade. No entanto, a liberdade não é senão o direito da genuína verdade. A genuína verdade não é senão o direito a ser o que sentimos e o que pensamos. Assim mesmo: o que pensamos e o que sentimos. Não é preciso ir muito além disso.

Eles inventam que a gente tem de ser médico, advogado, engenheiro, professor, artista, pianista, sei lá. Eu quero é ser só Raul. Saca, tio? Então, nós achamos que sacamos, Raul. No entanto, é uma longa jornada até que a sua fala, do jeito que ela é, ressoe por entre os muros dessa instituição que habilmente soubemos construir chamada sociedade humana.

Referências

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Sessão 2: Populações vulneráveis

07

Vulnerabilidade clínica em pacientes com dependência química: quando a vulnerabilidade é o corpo

Maila de Castro Lourenço das Neves Felipe José Nascimento Barreto Juliana Rodante Nádia de Souza Las Casas Nathália Didoné Poppi Paula Alves Pinheiro

A prevalência de doenças clínicas não psiquiátricas é maior entre indivíduos com o diagnóstico de dependência química do que na população em geral. Nos pacientes dependentes químicos, as doenças clínicas podem ser resultantes, direta ou indiretamente, do uso recorrente de substâncias psicoativas ou mesmo se constituírem em comorbidades. O surgimento de uma doença adicional é capaz de alterar a sintomatologia preponderante, interferindo no diagnóstico, tratamento e prognóstico de ambas¹. Além disso, comorbidades psiquiátricas e déficits cognitivos também são mais comuns em pacientes que fazem uso de substâncias, que por sua vez constituem ainda grupo especialmente vulnerável a distúrbios nutricionais e metabólicos. Observou-se que, durante a prática clínica, muitos profissionais de saúde têm dificuldade em diagnosticar e manejar as comorbidades clínicas e psiquiátricas nos portadores de dependência química. Uma hipótese plausível para explicar essa dificuldade seria o fato da existência de algum grau de preconceito contra esses pacientes. Esse preconceito não é só fruto do estigma que circunda o “paciente psiquiátrico”, mas também de julgamentos morais arraigados socialmente de que se trata de pacientes “manipuladores” ou que, por terem escolhido tais “desfechos desfavoráveis de vida”, não “mereceriam” cuidado, mas sim a responsabilização pelos seus atos. Quando os fatores supracitados somam-se às dificuldades de adesão ao tratamento, de mudança e adoção de hábitos de vida saudáveis e com a ruptura dos laços sociais em um portador de dependência química, tem-se um cenário de pior prognóstico para as doenças clínicas comórbidas e, consequentemente, para o próprio indivíduo. Trata-se, então, de paciente com corpo vulnerável, possuidor de cicatrizes do estigma social que denota o preconceito por trás da dependência química. O presente capítulo tem por objetivo discutir as principais dificuldades do diagnóstico e manejo das comorbidades clínicas em pacientes portadores de dependência química, bem como levantar fatores que possam contribuir para que tal população se torne especialmente vulnerável a prognósticos desfavoráveis.

Comorbidades clínicas e dependência química

O uso de uma droga ou de um conjunto de drogas provoca danos diretos e indiretos, alguns destes de natureza crônica e irreversível, em múltiplos sistemas do organismo humano. O conhecimento e a precisa avaliação das consequências clínicas da dependência química têm muita importância na prática clínica.

Álcool

O álcool é fator causal de cerca de 60 doenças e contribui como cofator causal em outras duzentas. A OMS, em publicação de 2011², estimou que o uso do álcool é responsável por 2,5 milhões de mortes por ano em todo o mundo, ou seja, 4% das mortes no mundo em um ano.

O estresse oxidativo decorrente do metabolismo do álcool leva à produção de alto nível intracelular de espécies reativas de oxigênio e de nitrogênio. Esses dois metabólitos estão fortemente associados à patogênese de uma série de complicações clínicas relacionadas ao álcool, entre elas a hepatopatia, a pancreatite, a miocardiopatia e as alterações

hematológicas. A peroxidação de lipídios, formando ácidos graxos, também contribui para as lesões orgânicas advindas do metabolismo do álcool. O álcool também interfere no metabolismo de macromoléculas celulares, como os ácidos nucleicos, na cascata de sinalização intra e extracelular e na integridade de organelas celulares como mitocôndrias e ribossomos³. A injúria orgânica causada pelo uso crônico do álcool também está relacionada à deficiência nutricional, como déficit de vitaminas, em especial àquelas do complexo B, e de aminoácidos como metionina-colina4 .

Na Tabela 1, a seguir, estão listadas as principais complicações clínicas associadas ao uso abusivo de álcool e/ou sua dependência.

Tabela 1: Complicações clínicas associadas ao uso abusivo e/ou dependência de álcool

Sistema Digestivo

Cardiovascular

Endocrinometabólico

Pulmonar Neurológico

Psiquiátrico 1 Osteomuscular Pele Miscelânea Doenças Associadas

Esteatose hepática, hepatite alcoólica, cirrose hepática, carcinoma hepatocelular; pancreatite aguda ou crônica, adenocarcinoma pancreático, carcinoma epidermoide, esofagite de refluxo, câncer esofágico, gastrite erosiva, adenocarcinoma gástrico; diarreia crônica. Miocardiopatia dilatada, arritmias cardíacas, hipertensão arterial, doença coronariana. Hipoglicemia; diminuição de hormônios masculinos e femininos, acarretando disfunções sexuais, infertilidade e alterações no ciclo menstrual Pneumonia aspirativa Demência, síndrome de Wernicke-Korsakoff, polineuropatia periférica motora e sensitiva, disfunção autonômica, degeneração cerebelar Depressão, ansiedade, síndrome psicótica secundária Osteoporose Pelagra, micoses Acidentes e traumatismos, Síndrome alcoólica fetal, ação imunossupressora - mais risco de infecções bacterianas (pneumonia, tuberculose) e virais (hepatites B e C, HIV)

1 - Transtornos mentais podem estar correlacionados com o alcoolismo e/ou serem causa de uso abusivo de álcool. (Adaptado de Campana AAM et al., 2011)5

Nicotina

O impacto do tabagismo na saúde humana é largamente difundido e atualmente reconhecido como um problema de saúde pública6. Todas as formas de consumo do tabaco, produtoras ou não de fumaça, têm ação nociva à saúde, além de favorecer a instalação de dependência à nicotina.

A fumaça do tabaco é uma mistura de gases e partículas, totalizando mais de 4.700 substâncias tóxicas, responsáveis por 55 doenças associadas ao consumo ativo do tabaco e outras doenças relacionadas à exposição passiva à fumaça ambiental do tabaco6. O risco e a gravidade dessas enfermidades estão diretamente relacionados à idade de início do tabagismo, duração e número de cigarros fumados diariamente.

No mundo, a mortalidade anual relacionada ao tabaco compreende 6 milhões de pessoas, sendo 23 óbitos por hora e uma morte a cada 10 adultos, dos quais 70% ocorrem em países em desenvolvimento. No Brasil, apesar de ter havido redução na proporção de fumantes de 34,8% para 14,8% entre 1989 e 2011, na população com idade igual ou maior

de 18 anos, 200 mil óbitos ao ano são associados ao tabagismo, sendo 3.000 de fumantes passivos6 .

O fumante inala uma mistura tóxica com cerca de 60 componentes cancerígenos7. Evidências revelam relação de nexo causal entre tabagismo e cânceres de pulmão, laringe, cavidade oral, faringe, esôfago, pâncreas, bexiga, rins, colo uterino e estômago e leucemia mieloide aguda8. A exposição à fumaça do tabaco pode danificar o endotélio vascular, levando a mais vulnerabilidade a eventos tromboembólicos. A mortalidade por doença isquêmica coronariana aumenta em razão direta com o aumento do número de cigarros fumados por dia9 . Há comprovação de associação entre a exposição à fumaça ambiental do tabaco e o risco de acidente vascular encefálico10 . As substâncias químicas produzidas pela queima do tabaco podem causar inflamação no tecido bronquiolar, reduzindo a capacidade pulmonar para efetuar trocas gasosas, podendo levar, com o tempo, ao desenvolvimento de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)11. Outras doenças também associadas ao tabagismo são: tuberculose pulmonar, histiocitose, úlcera péptica, doença de Crohn, doenças hepáticas, diabetes mellitus, doença de Graves, hipertireoidismo, osteoporose e periodontite8,12 .

O tabaco também pode ser fator de risco para não adesão ou ainda agravante para o controle de uma doença de que o indivíduo fumante já seja portador11,13. Isso ocorre, por exemplo, entre a população portadora do HIV, na qual a prevalência do tabagismo é alta e representa fator de pior prognóstico14 .

Cocaína

A cocaína é uma substância estimulante do sistema nervoso simpático; inibe a recaptação de catecolaminas, estimulando o fluxo simpático central e aumentando a sensibilidade das terminações nervosas adrenérgicas à noradrenalina. A cocaína pode provocar alterações estruturais irreversíveis no cérebro, coração, pulmão, fígado e rins, sendo vários os mecanismos envolvidos na gênese desses danos15. Alguns efeitos são produzidos pela hiperestimulação do sistema adrenérgico, mas a maioria dos efeitos tóxicos diretos é mediada pelo estresse oxidativo e pela disfunção mitocondrial. Existe uma infinidade de complicações cardiovasculares relacionadas ao uso de cocaína, incluindo infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular encefálico, arritmias, morte súbita, miocardite, cardiomiopatia, hipertensão arterial, ruptura da aorta e endocardite. No entanto, a dor torácica é o mais frequente problema médico associado ao uso de cocaína15. O consumo de cocaína aumenta 24 vezes o risco de infarto agudo miocárdio (IAM) durante os primeiros 60 minutos após o consumo de cocaína em doentes de baixo risco. O IAM é encontrado em 0,7 a 6% dos pacientes que chegam à urgência com dor no peito associada ao consumo de cocaína. Não se deve esquecer de que os IAMs secundários à cocaína se devem ao vasoespasmo oclusivo focal, à disfunção endotelial, à vasoconstrição difusa ou à trombose das artérias coronarianas. A aterosclerose coronariana prematura tem sido relatada em usuários de cocaína jovens, e doença arterial coronariana foi observada em 35 a 40% daqueles que se submetem à angiografia por causa de dor no peito associada ao uso de cocaína16. A disfunção endotelial associada à aterosclerose precoce é resultado de hipersensibilidade aos efeitos vasoconstritores da liberação de catecolaminas induzida por cocaína. Nos locais com aterosclerose o vasoespasmo coronariano associado à cocaína é elevado16 .

A cocaína pode produzir agregação plaquetária por meio de mecanismos alfa-adrenérgicos e potencialização da produção de tromboxano. Evidências experimentais mostram que a cocaína altera a integridade do endotélio vascular a partir da redução da produção de prostaciclina, reduzindo, então, a vasodilatação. Assim, o endotélio danificado no local da constrição arterial torna-se propício à agregação plaquetária seguida por adesão e trombose16 .

No sistema respiratório, as alterações decorrentes do uso de cocaína dependem do modo de administração (fumado, inalado, intravenoso) ou de alterações na regulação central da função pulmonar15 . Outras alterações documentadas resultantes do abuso de cocaína são insuficiência renal e, em estudos com animais, alta incidência de malformações cardiovasculares e cerebrais congênitas em crias nascidas de mães com histórico de abuso de cocaína17 .

Maconha

A Cannabis sativa (marijuana ou maconha) é usada em todo o mundo, sendo que a inalação da fumaça oriunda da queima dos componentes secos da planta é a sua forma de uso mais comum. O uso crônico e não medicinal de maconha está associado a alto risco de cânceres, como os tumores nasofaríngeos (independentemente do consumo de tabaco), elevado risco de câncer de pulmão (embora o consumo de tabaco possa ser considerado um potencial fator de confusão deste achado) e tumores de cabeça e pescoço. Há na literatura científica, ainda, evidências de consequências no sistema reprodutor de usuários de maconha, tais como irregularidades no ciclo menstrual, redução do número de espermatozoides e impotência nos homens. Recém-nascidos de mulheres expostas à maconha durante a gravidez apresentaram peso mais baixo ao nascer, mais chances de nascimento pré-termo e mais risco de necessitar de unidade de terapia intensiva neonatal do que os filhos de mulheres sadias18 .

Adesão ao tratamento

A adesão a um tratamento compreende o uso dos medicamentos ou outros procedimentos prescritos ao menos 80% das vezes previstas na prescrição, considerando horários, doses e tempo de tratamento. Representa a fase final do que se conceitua como “uso racional de medicamentos”19 .

A adesão é um ponto fundamental para que o tratamento seja resolutivo. A não adesão medicamentosa é produto de diversos fatores relacionados aos profissionais de saúde, ao tratamento, à doença e ao próprio paciente.

O uso de drogas é um fator condicionador de má-adesão a tratamentos para doenças clínicas. Estudo transversal realizado na cidade de Recife revelou que o uso de crack/cocaína estava relacionado à má-adesão a medicamentos antirretrovirais em portadores do HIV20. Noutro estudo norte-americano, com 557 adultos HIV-positivo com 50 anos ou mais, na cidade de Nova York, também identificou que o uso de álcool, maconha, cocaína/crack, opioides, nitrito de amila e outras drogas estava associado à má-adesão medicamentosa aos antirretrovirais21 .

Dessa forma, antes de se pensarmos em aumento de dose, resistência ou refratariedade

à terapêutica, deve-se sempre considerar a possibilidade de não adesão ao tratamento da comorbidade clínica em pacientes dependentes químicos. Essa simples afirmativa pode mudar o prognóstico desses pacientes. Sempre que possível, decisões clínicas personalizadas devem ser consideradas, como posologias simplificadas, incentivo ao retorno às consultas, uso de recursos como agentes comunitários de saúde ou visitas domiciliares ou mesmo indicação de tratamento hospitalar quando necessário. Além, é claro, do diagnóstico e manejo da própria dependência química.

Mudanças de hábitos de vida

Um dos pilares do tratamento e prevenção de comorbidades clínicas é a adesão a hábitos de vida saudáveis, como dieta equilibrada, melhoria do sono e a prática de atividade física. A experiência clínica indica que a implementação de tais mudanças em pacientes com dependência química é difícil e muitas vezes não se consegue obter resultados favoráveis. Tais pacientes por vezes não apenas não aderem às propostas de mudanças em tais áreas como também apresentam padrões nutricionais e de sono muito prejudiciais à saúde e relacionados a prognósticos desfavoráveis nessa população22,23,24 .

Comportamento de risco em pacientes com dependência química

Comportamento de risco pode ser definido como a participação em atividades ou atitudes que podem comprometer a saúde física ou mental do indivíduo, levando a consequências inesperadas e indesejadas, frequentemente graves ou fatais. Trata-se de um termo abrangente que envolve desde aspectos relacionados ao crescimento e desenvolvimento do indivíduo até atitudes mais próximas de um desfecho desfavorável, como atos violentos.

A dependência química é uma doença complexa, multifatorial e estigmatizante, muitas vezes associada a comportamentos de risco. Por ora, citaremos os comportamentos de risco sexuais devido à sua alta prevalência e importância de suas consequências para a população geral e para dependentes de substâncias psicoativas.

Comportamento de risco sexual

A associação entre doenças sexualmente transmissíveis (DST), como a infecção pelo HIV e o uso de drogas injetáveis, encontra-se bem-descrita, sendo o risco de contrair o patógeno associado à frequência do uso da substância, número de pessoas com os quais as agulhas são compartilhadas, frequência do compartilhamento de agulhas e outros instrumentos, além do uso de cocaína injetável. Usuários de drogas injetáveis (UDI) apresentaram comportamento de risco para transmissão de HIV a não usuários por meio do ato sexual desprotegido, troca de sexo por drogas ou dinheiro e múltiplos parceiros sexuais. O risco de contrair o HIV e outras DSTs também é maior entre UDIs devido à prática sexual com outros usuários potencialmente contaminados. Não só para drogas injetáveis: a intoxicação aguda pelo crack também esteve relacionada a algum grau de promiscuidade, troca de sexo por drogas/dinheiro e sexo desprotegido, sendo o risco significativamente maior entre os usuários que injetam e fumam do que nos que só o injetam ou fumam.

Três variáveis independentes foram associadas ao não uso de preservativo durante as relações sexuais: uso de álcool, presença de um parceiro sexual usuário de drogas injetá-

veis e troca de sexo por drogas/dinheiro. Conclusão importante foi que usuários de crack reportaram mais uso de álcool do que outros UDIs, o que aumenta a probabilidade de comportamentos sexuais de risco entre aqueles usuários21 . Outro estudo também reafirmou a relação entre o comportamento sexual de risco e o uso de drogas, principalmente cocaína/crack. Tal estudo relatou, ainda, que a associação entre HIV e cocaína/crack é mais frequente nas mulheres, principalmente jovens e desabrigadas, mais propensas a realizarem a troca de sexo por drogas25. As mulheres também são mais propensas que os homens a iniciarem o uso do crack por influência dos parceiros26 . Esses dados citados endossam a relação entre dependência química e comportamentos sexuais de risco. Contudo, é importante ressaltar que nem sempre o comportamento de risco ocorre em decorrência da dependência química, podendo ocorrer simultaneamente. Transtornos psiquiátricos como personalidade antissocial e transtorno bipolar foram associados tanto a alto risco de dependência química quanto a comportamentos de risco em geral.

Estigma e dependência química

Um dos primeiros estudos sobre estigma foi o de Erving Goffman, autor do livro “Estigma: notas sobre a manipulação de uma identidade deteriorada”. Ele definiu o estigma como a desumanização do indivíduo com base na sua identidade social, participação negativa na sociedade ou categoria social indesejável que ocupa27 .

Segundo o modelo psicossocial, o estigma é observado em três aspectos do comportamento social: estereótipos, preconceito e discriminação. Estereótipos são aprendidos pela maioria da população e representam um acordo geral sobre o que caracteriza determinado grupo de pessoas. Quando esses estereótipos são disseminados e aplicados, o preconceito social é manifestado, expressando-se por meio de atitudes e valores que resvalam na efetiva discriminação28. Atualmente, considera-se estigmatizante qualquer característica, não necessariamente física ou visível, que não se harmoniza com o quadro de expectativas sociais acerca de determinado indivíduo.

Tipos de estigma

Recentemente foram propostos vários tipos de estigma, incluindo público, percebido, decretado e autoestigma27 .

Estigma público: corresponde à aprovação, pelo público, de preconceito contra um grupo estigmatizado específico que se manifesta em discriminação contra os indivíduos pertencentes a esse grupo.

Estigma percebido: refere-se a um processo em que pessoas estigmatizadas acham que a maioria das pessoas acredita que é comum estereótipos negativos sobre indivíduos pertencentes à mesma categoria estigmatizada.

Estigma decretado: descrito como uma experiência direta de discriminação e rejeição pelos membros da sociedade em geral. Autoestigma: definido como pensamentos, sentimentos negativos e diminuição da autoimagem, resultantes de identificação com o grupo estigmatizado e antecipação da rejeição pela sociedade.

A dependência química é definida pela 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS), como um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após o uso repetido de determinada substância. Fatores como quantidade e frequência de uso da substância, a condição de saúde do indivíduo e fatores genéticos, psicossociais e ambientais auxiliam no seu desenvolvimento. Trata-se de uma condição altamente estigmatizada pela população em geral, um comportamento que interfere tanto na integração social do indivíduo quanto no desenvolvimento de outros problemas psicossociais decorrentes da exclusão social.

O uso de tabaco, maconha, cocaína, heroína e álcool é o comportamento mais negativamente julgado29, sendo os usuários de drogas ilícitas mais propensos à discriminação do que aqueles que somente usam drogas lícitas30. Aqueles usuários experimentam diversas formas de discriminação que podem variar de acordo com o tipo de droga utilizada e com o modo de administração (por exemplo: injetáveis e não injetáveis). Usuários de cocaína em pó são menos propensos a experimentar a estigmatização e consequente tratamento negativo dela decorrente, quando comparados aos usuários de crack e de heroína. Esse fenômeno pode estar relacionado a alguns fatores: implicações sociais do uso da cocaína inalada são menos graves, visto se tratar de uma droga ainda considerada de pessoas abastadas; sua forma de usar e manifestações físicas e comportamentais decorrentes da intoxicação costumam ser mais facilmente dissimuladas pelos usuários; e diferenças nas punições legais para crack e heroína podem influenciar as percepções do público30 .

Entre os vários aspectos do comportamento social em que o estigma é observado, a generalização do estereótipo e a atribuição moral de certos comportamentos merecem destaque. A moralização envolve a concepção de algo como um “problema” indesejável a ser tratado, logo, tanto o problema quanto o indivíduo que o possui são vistos como indesejáveis nesse processo, influenciando negativamente no planejamento, comunicação e responsabilização pela doença. A dependência química é amplamente considerada uma questão de responsabilidade individual, fruto do modelo moral de percepção sobre problemas de saúde. Essa responsabilização pelo vício exacerba sentimentos morais não só da população, mas também dos profissionais da saúde. Entre a população, as pessoas com mais baixos níveis educacionais e com pouco ou nenhum contato prévio com alguém que usa drogas são os que mais julgam negativamente os usuários27. Profissionais que demonstram elevado grau de moralização são auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, enquanto os médicos exibiram os mais baixos graus. As idades dos profissionais também tiveram correlação positiva diretamente proporcional ao julgamento moral sobre os dependentes químicos29 .

Pesquisa realizada por Fortney (2004) referiu que quanto maior a sensação de estigmatização percebida por usuários de álcool por parte dos profissionais de saúde, menos adesão e qualidade de serviços prestados a esses usuários, uma vez que o diagnóstico e o tratamento da dependência muitas vezes são influenciados por sentimentos morais de provedor31. Isso é comum de ser observado em ambientes não familiarizados com abordagem de dependentes químicos, como enfermarias de hospitais gerais e unidades básicas de saúde. Todavia, Corrigan (2004) salienta que, mesmo oferecendo intervenção adequada, muitas pessoas que poderiam se beneficiar de serviços de atenção à saúde mental, como seria o caso de dependentes químicos, optam por não buscá-los ou, quando o fazem, não cumprem o tratamento conforme preconizado. Para evitar o rótulo de “doente mental” e os

danos associados, muitos usuários deixam de frequentar ou até mesmo de procurar ajuda nesses serviços. O estigma pode não apenas afetar negativamente sua autoestima, como também reduzir suas possibilidades de inserção social32. Esse isolamento dos usuários de drogas pode reduzir o acesso à prevenção de diversas doenças comórbidas, ao tratamento e aos serviços sociais.

Os efeitos nocivos do estigma sobre o bem-estar psicológico e social dos usuários de drogas ressaltam a importância de ir além do indivíduo, sendo necessário abordar o estigma tanto na população quanto, principalmente, entre os profissionais de saúde. Além do esclarecimento da população frente aos transtornos que podem ser desenvolvidos pelos usuários de drogas e os malefícios que essa estigmatização traz tanto para o doente quanto para a própria sociedade, a implementação de estratégias para formação adequada de profissionais de saúde é fundamental para a mudança de atitude em relação aos dependentes químicos e para melhorar tanto a qualidade do serviço quanto a qualidade de vida desse grupo.

Comorbidades psiquiátricas e dependência química

Pacientes usuários de drogas que apresentam comorbidade psiquiátrica, principalmente as de mais gravidade, exibem elevadas taxas de agressividade, detenção por atos ilegais, suicídio, recaídas, gastos com tratamento, falta de moradia, reinternações, longos períodos de hospitalização e mais utilização de serviços médicos. A evolução social desses pacientes tende a ser pior, causando mais impacto financeiro e sobre a saúde do cuidador33 .

Pessoas com algum transtorno mental podem sofrer uma série de efeitos negativos no seu bem-estar, adaptação e integração social, apenas pelo fato de receberem a conotação de “doentes mentais”. Por essa razão, pode-se dizer que, assim como outras condições humanas - raça, sexo ou orientação sexual -, a condição de ser acometido por uma doença mental também envolve processo de estigmatização34 .

Os doentes acometidos por transtornos mentais na sociedade ocidental são frequentemente vinculados a algum grau de periculosidade ou relação com atos violentos e imprevisíveis, à responsabilização deles como causadores da própria doença e à sua incapacidade de se tratar, a uma fraqueza de caráter e a incompetência e incapacidade de lidar com questões fundamentais como o autocuidado34. Essas crenças podem produzir comportamento de medo, preocupação e desconfiança por parte da população “sadia”. Como consequência, evidencia-se que os portadores de transtorno mental enfrentam dificuldades para conseguir um emprego ou a casa própria. Eles encontram limitações na esfera socioafetiva e convivem cada vez mais somente com pessoas que também tenham problemas psiquiátricos. Sem mencionar a precarização de seu acesso ao sistema judicial e de saúde.

O processo de estigmatização coloca, muitas vezes, o doente em situações de exclusão social, que podem estar associadas a outros riscos psicológicos tais como comportamento de autoexclusão, problemas cognitivos, comportamento autopunitivo, comportamento de risco, etc28 .

Estudo espanhol mostrou que 30% das pessoas tinham preconceitos e comportamentos discriminatórios dirigidos a portadores de doença mental no ambiente de trabalho e no acesso à habitação, de modo que o acesso dessa parcela da população ficou diminuído nessas áreas28. O estudo também demonstrou que essas pessoas têm moderado conhecimento sobre como é realizado o tratamento da doença mental, das capacidades laborativas que os portadores de doença mental possuem e das causas e dos níveis de

acometimento pela doença. As pessoas também não sabem ao certo sobre a capacidade desses doentes em gerir sua herança. O fato mais revelador sobre o conhecimento da doença mental foi o elevado grau de confusão entre o transtorno mental e retardo mental na população em geral, provavelmente devido à falta de conhecimento adequado sobre o significado das duas expressões28 .

Atitudes estigmatizantes têm foco especialmente sobre a disposição em ajudar a pessoa a se tratar até mesmo coercivamente, além do sentimento de piedade. Demais percepções como necessidade de segregação, raiva e os estereótipos de responsabilidade e periculosidade não foram questões fortemente evidenciadas no estudo28 .

Usuários de cocaína e HIV-positivo experimentaram nível mais alto de estigmatização quando comparados aos portadores de um câncer ou de depressão28. Observa-se também alguma percepção de contaminação ou influência da condição mental e sentimentos de piedade para com os familiares do doente mental, significativamente associado ao estigma sofrido pelo doente28 .

Existe, portanto, a necessidade de ampliar a atenção às pessoas com doença mental, considerando-se não só os sintomas como também suas necessidades sociais.

Conclusão

Diante de um paciente com diagnóstico de dependência química, deve-se estar sempre atento à possibilidade de comorbidade clínica. O manejo de tais doenças exige abordagem individualizada e desafia o profissional de saúde. É importante ter em mente todos os fatores que podem contribuir para que o corpo do dependente químico seja especialmente vulnerável a doenças clínicas e prognósticos desfavoráveis, para que, como profissionais de saúde, possamos fazer a diferença no tratamento e qualidade de vida de tais pacientes.

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As vulnerabilidades associadas às minorias sexuais que usam substâncias psicoativas

Alessandra Diehl Denise Leite Vieira

Vulnerabilidades variadas, estigmas, preconceitos, comprometimentos físicos, psíquicos, cognitivos e emocionais, dificuldades sociais, culturais, educacionais, jurídicas e familiares fazem parte da complexidade vivenciada por usuários de álcool e outras drogas da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI). Em especial para essa comunidade, a vergonha e o medo do preconceito podem afastar ou prolongar a busca de tratamento adequado1,2,3 .

Assim, ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero pode significar o desejo de ser amado e ter aspirações e objetivos como qualquer outra pessoa no mundo. Mas pode também significar ter de enfrentar desafios sociais diferentes de outros indivíduos, grupos e/ou minorias. Pode significar ambivalência quanto ao valor pessoal devido a mensagens pouco afirmativas da sociedade em relação à identidade e à aceitação. E finalmente pode significar o enfretamento de barreiras para vencer a discriminação no trabalho, a rejeição familiar, agressão ou o assédio4 .

Portanto, a compreensão das variações da orientação sexual humana, das diferentes identidades de gênero e das vulnerabilidades individuais e coletivas que a orientação homoafetiva e a transexualidade têm na sociedade em geral é tão importante quanto compreender a influência e a relevância da cultura, etnia, idade, genética, nível socioeconômico e do meio em que as pessoas residem no desenvolvimento de ajustamentos individuais a diferenças que nem sempre são bem toleradas e, sobretudo, respeitadas pela maioria das pessoas, quer seja por falta de esclarecimento, preconceitos, mitos ou por tabus1,2,5 .

A maneira como o abuso e a dependência de álcool e outras drogas expressam-se na população LGBTI vem sendo foco de muitos estudos transculturais na área da dependência química1,6,7. Especialmente nas últimas duas décadas, tem crescido o interesse de pesquisadores em avaliar aspectos emocionais, exposição ao vírus da imunodeficiência humana (HIV, do inglês, human immunodeficiency virus) e a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), comportamentos sexuais de risco, abordagens clínicas e a epidemia do uso de metanfetamina (Crystal, Meth) correlacionados à extensão do abuso e dependência de substâncias psicoativas entre indivíduos dessa comunidade1,8 .

Alguns estudos mostram que o uso de substâncias psicoativas, especialmente o álcool e as club drugs - drogas sintéticas obtidas por meio da manipulação laboratorial (particularmente após a explosão do uso da metanfetamina em meados dos anos 90) - têm exercido relevante papel quanto a prejuízos na vida de muitos gays e lésbicas ao redor do mundo7,8 .

Parece existir um “mito cultural” de que gays e lésbicas, por utilizarem drogas recreativas e por frequentemente estarem em situações sociais, teriam padrão de consumo de álcool e drogas mais problemático, multifacetado e “desviante” do que indivíduos heterossexuais, dando ênfase a um comportamento estereotipado que, certamente, não pode ser generalizado9 .

Estudos sobre o uso de álcool e drogas nessa população historicamente sempre foram mais escassos e com várias limitações metodológicas. Entre essas limitações, cita-se o viés de seleção, uma vez que foram conduzidos em locais de mais concentração de consumo de álcool e outras drogas como, por exemplo, as boates e bares10. Outra questão metodológica importante dessas pesquisas é a ausência de questionamento sobre a orientação afetivo-sexual em grandes levantamentos epidemiológicos sobre abuso e dependência

de substâncias psicoativas. Isso reflete poucos dados de representatividade populacional. No Brasil, por exemplo, os grandes levantamentos domiciliares nacionais sobre o uso de substâncias psicoativas na população brasileira, realizados tanto pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) em 2002 e 2005 quanto os dois últimos levantamentos Nacionais sobre o Consumo de álcool e Drogas (LENAD) de 2006 e 2012 pelo Instituto Nacional de Políticas para o álcool (INPAD), não contêm qualquer dado sobre orientação afetivo-sexual11,12 .

Diehl (2009) conduziu revisão da literatura sobre esta temática cuja busca de artigos baseou-se na seleção de estudos de abuso e/ou dependência de álcool e/ou drogas ilícitas na população geral (ex. estudos de base populacional) ou em amostras selecionadas representativas (ex. todos os estudantes de uma cidade) e na qual a orientação sexual foi relatada. Dos nove estudos incluídos nessa revisão, pelo menos seis mostraram claramente o risco ou prevalência de altas taxas de abuso de substâncias psicoativas, particularmente o álcool, entre lésbicas e mulheres bissexuais10,13 .

Portanto, a melhor compreensão de questões relativas ao universo de vulnerabilidades e especificidades da população LGBTI no que concerne ao abuso e dependência de substâncias psicoativas tem implicações importantes para o planejamento de políticas de saúde (tratamento e prevenção), para a adequada condução de pesquisas científicas e para o treinamento de profissionais nos serviços de saúde geral e equipamentos de atenção ao tratamento da dependência de substâncias psicoativas onde essas pessoas são atendidas1,14.

Assim, é objetivo deste capítulo fazer uma revisão narrativa das questões que envolvem estes dois universos: a dependência química e a população LGBTI, principalmente com foco em suas vulnerabilidades.

Homossexualidade não é doença

“Eu sou um gay alcoólatra. Esses dois rótulos têm informado a minha vida. Quando eu tinha 15 anos eu fui à biblioteca da nossa cidade natal e procurei todos e quaisquer catálogos e títulos que forneciam alguma referência sobre a homossexualidade. E sabem o que eu acabei aprendendo sobre mim? Sim, que eu era psicologicamente anormal, que eu era ilegal, que eu era imoral e que eu era inaceitável”3 .

Parece claro que as pessoas não escolhem sua orientação sexual, pois de alguma forma ela é “built in”, ou seja, algo inato15. O que “causa” a orientação sexual das pessoas permanece alvo de pesquisas. Aliás, muito poucas pesquisas de fato vêm sendo conduzidas para descobrir por que, por exemplo, a maioria da população (aproximadamente 90%) é heterossexual. A literatura científica recente tem se preocupado em focar mais os efeitos da homofobia e na homofobia internalizada de indivíduos com orientação sexual homoafetiva. Esse campo de pesquisa e documentário cultural assume frequentemente uma perspectiva construtivista social. Estudos biológicos também têm aumentado, tentando se distanciar da frequente confusão gerada entre orientação sexual e identidade de gênero1 .

A orientação sexual não pode ser explicada por um único fator. Acredita-se que existe uma base genética que fundamenta as influências biológicas, componentes bioquímicos, familiares e sociais que se moldam para o desenvolvimento da expressão da orientação sexual no adulto masculino e feminino1. Cabe aos profissionais da saúde diminuir estigmas e preconceitos e trabalhar a aceitação numa perspectiva mais afirmativa para indivíduos

com orientação homoafetiva ou bissexual6 .

Podem-se observar também diversas manifestações sociais e algumas manobras legislativas que se apoiam nas remanescentes categorias pouco definidas da Classificação Internacional das Doenças, atualmente na sua 10ª versão (CID 10) em relação à orientação sexual para propor tratamentos de “conversão” para a heterossexualidade. Nessas perspectivas de entendimento da orientação sexual é que o grupo de trabalhos da Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs a necessidade de revisar a atual Classificação Internacional das Doenças em relação a essa categoria15. A proposta desse grupo de trabalho é a total eliminação de todas as categorias do código F66 (transtornos psicológicos e comportamentais associados ao desenvolvimento sexual e à sua orientação) existentes na CID-10, os quais incluem: F66.0, transtorno da maturação sexual; F66.1 orientação sexual egodistônica; e F66.2 transtorno do relacionamento sexual15. Isso porque essas categorias não apresentaram relevância ou utilidade clínica. Além disso, há o intuito de eliminar qualquer “brecha” que permita a interpretação de uma resposta normal do desenvolvimento como doença, pois a patologização gera estigma, discriminação social e idiossincrasias terapêuticas16 .

Um breve olhar para o “terceiro gênero” das travestis

Travestis são pessoas que mantêm sua identidade de gênero em referência tanto à masculinidade quanto à feminilidade. A característica marcante da travesti é sua reivindicação no sentido de androgenia, e não apenas o reconhecimento social como gênero feminino, distinto do sexo atribuído à nascença. Uma travesti apresenta-se como uma mulher, sustentando uma identidade de gênero feminino, mas pode vir a assumir práticas sexuais masculinas (por exemplo, com a penetração e uso do seu pênis)17. No Brasil, uma travesti é um homem em sentido anatômico e fisiológico, mas refere-se ao mundo como uma mulher, seu corpo progride para formas e contornos femininas (com o uso de hormônios feminilizantes e/ou aplicações de silicone). Muitas podem entender que se “encaixam“ melhor como um terceiro gênero, ou seja, alguém com uma posição entre o homem e a mulher17 . Cenas de prostituição em geral tendem a emergir como espaços significativos para a formação de sociabilidade entre as travestis18,19. Principalmente no Brasil, as travestis têm sido historicamente patologizadas, criminalizadas, mortas e ridicularizadas. Desta feita, muitas delas têm buscado projetos de vida na prostituição, os quais trazem o aprendizado desde muito cedo de como se pratica o viver entre diferentes espaços e a construção de uma vasta rede de sociabilidade que pode fornecer-lhes o direito de viver uma “vida travesti”. Não raro existe o relato de terem sido expulsas de casa ao assumirem a sua travestilidade e acabam por buscar referências e proteção na afiliação a uma travesti mais velha, que as ensina os ”truques”, as estéticas e os jogos eróticos que garantem seu poder de sedução e os mecanismos de proteção e resistência em contextos potencialmente de risco para violência e discriminação20.

A prostituição entre as travestis está bastante associada à prática de comportamentos sexuais de risco, incluindo o não uso ou uso esporádico de preservativo, consumo de substâncias psicoativas com os clientes e, consequentemente, mais chances de contaminação pelo HIV e aquisição de infecções sexualmente transmissíveis21,22 .

Apesar da escassez de estudos populacionais voltados para a comunidade LGBTI no Brasil e no mundo e das várias limitações metodológicas dos mesmos, podem-se observar alguns indicadores de saúde física e mental preocupantes para este grupo quando comparadas à população geral ou aos seus pares heterossexuais, como, por exemplo: Homens gays estão sob grande risco de tentativas de suicídio e suicídio completo quando comparados à população geral23 .

A depressão afeta gays em taxas mais elevadas que a população geral e frequentemente com mais problemas graves para aqueles gays que permanecem “no armário”, ou seja, aqueles que não conseguiram assumir a sua orientação homoafetiva para seus pares, seus familiares e para a sociedade em geral. Homens e mulheres bissexuais relatam consistentemente níveis mais elevados de depressão e ansidedade23.

Lésbicas estão sujeitas a maior risco de desenvolverem câncer de mama do que as mulheres heterossexuais. Fatores de risco para câncer de mama entre as lésbicas incluem baixas taxas de gravidez, menos realização de mamografias e/ou exames clínicos da mama e excesso de peso24 .

Estudos têm mostrado que tanto as mulheres lésbicas quanto homens gays relatam ter sofrido assédio ou violência física de membros da própria família devido à sua orientação sexual. Quando comparados com os adultos heterossexuais (17,5%), uma porcentagem significativamente mais alta de adultos gays ou lésbicas (56,4%) e adultos bissexuais (47,4%) relatou ter sido vítima de violência por parceiro íntimo25,26 .

Problemas com a imagem corporal são mais comuns entre os homens homossexuais do que entre seus pares heterossexuais. Além disso, os homens homossexuais são muito mais propensos a ter um transtorno alimentar como bulimia ou anorexia nervosa27.

Mulheres que possuem parcerias sexuais do mesmo sexo têm taxas mais altas de depressão maior, fobia simples e estresse pós-traumático que a população geral28 .

Lésbicas são entre 1,5 e duas vezes mais propensas a fumar do que as mulheres heterossexuais. As lésbicas são significativamente mais propensas a beber em binge do que as heterossexuais. Mulheres bissexuais, por sua vez, relatam beber de forma mais nociva do que as heterossexuais ou lésbicas29 .

Alguns estudos mostram que homens gays usam substâncias psicoativas, incluindo o álcool e as drogas ilícitas em taxas mais altas do que a população geral. Muitos estudos também indicam que os homens gays usam tabaco em taxas muito mais elevadas do que os homens heterossexuais30 . Adultos bissexuais apresentam taxas significativamente mais elevadas de consumo excessivo de álcool (22,6%) do que seus pares heterossexuais (14,3%). Essa diferença do padrão de consumo de álcool foi significativa somente entre as mulheres bissexuais (23,7%)26 .

Bissexuais têm taxas de tabagismo 30% e 40% maiores do que a população geral. Novos estudos têm mostrado que as diferenças nas taxas de tabagismo são mais significativas entre mulheres bissexuais (39,1 %) e mulheres heterossexuais (19,4 %)31 .

Alguns estudos têm demonstrado que a maconha, o crack e álcool são as drogas mais comumente usadas por pessoas transexuais. Outros autores também encontraram índices alarmantes de consumo de metanfetaminas (4-46%) e uso de drogas injetáveis (2 a 40%). Algumas pesquisas revelam que as taxas de uso do tabaco entre as pessoas transexuais

podem variar de 45-74%. Os estudos também sugeriram que as barreiras aos serviços de tratamento de abuso de substâncias para essa população muitas vezes incluem discriminação, hostilidade e insensibilidade do prestador de serviço, rigor no binarismo de gênero (feminino/masculino), segregação no âmbito dos programas e falta de aceitação em grupos de recuperação destinados a gênero específico32,33 .

O fato de que homens que fazem sexo com homens (HSH) têm risco aumentado de infecção por HIV tem sido bem documentada. A eficácia de práticas de sexo seguro para reduzir a taxa de infecção pelo HIV é uma das grandes histórias de sucesso da comunidade gay. O sexo seguro (quando o preservativo é usado em todos os tipos de relações sexuais - oral, vaginal e anal) mostrou-se eficaz na redução do risco de receber e transmitir o HIV. No entanto, estudos ao longo dos últimos anos evidenciaram o retorno de muitas práticas sexuais inseguras. Os profissionais devem estar cientes de como aconselhar seus pacientes a apoiarem a manutenção de práticas sexuais mais seguras30 .

Alguns trabalhos também têm ressaltado que lésbicas, gays e bissexuais têm maiores taxas de fumantes do que seus pares heterossexuais. No entanto, faltam estudos empíricos sobre por que existem essas disparidades. Muitos tratados internacionais indicam também que os homens gays usam tabaco a preços muito mais elevados do que os homens heterossexuais, atingindo quase a diferença de 50% em alguns casos. Estudos americanos que coletaram dados sobre tabagismo a partir de inquéritos populacionais encontraram taxas 30 a 40% maiores entre bissexuais que na população geral. Outras pesquisas têm mostrado que as diferenças nas taxas de tabagismo são mais significativas entre mulheres bissexuais (39,1%) do que em mulheres heterossexuais (19,4%)31,34-37. Portanto, o tabagismo parece permanecer uma questão importante entre os gays, lésbicas e bissexuais, apesar dos esforços globais para reduzir o consumo de tabaco35,36,38. Pesquisa de documentos da indústria do tabaco têm revelado que campanhas de mídia foram direcionadas para impulsionar o tabagismo entre lésbicas e gays no mercado. A indústria do tabaco entendeu há muito tempo o papel que a orientação sexual pode exercer na aceitação do tabagismo e do marketing direcionado de determinadas marcas39 .

Vulnerabilidades

Muitas vulnerabilidades interagindo entre si podem contribuir para o uso, abuso e consequente dependência de substâncias psicoativas em indivíduos LGBTI1,40. Entre essas vulnerabilidades citam-se:

Homolesbotransfobia

Trata-se o medo irracional, aversão ou discriminação de pessoas com orientação homossexual, comportamentos homossexuais e identidade de gênero41,42. Preconceito é definido como qualquer opinião ou sentimento, quer favorável ou desfavorável, concebido sem exame crítico; enquanto fobia é um medo exagerado, falta de tolerância. Partindo-se da definição de fobia, cabe perguntar de que é que se tem medo em relação à homossexualidade. E, ainda, sendo a homossexualidade uma expressão normal da sexualidade, qual é a “ameaça” que ela representa? Do que e por que se tem medo, afinal? Uma das hipóteses que se pode aventar, utilizando um conceito da Psicologia, é a projeção, um mecanismo de defesa psíquico em que o indivíduo que tem pouca consciência ou tolerância em relação

às próprias características projeta no outro o que não aceita em si próprio, ou seja, se perturba tanto, pode ser que haja algo mal resolvido. Assim, em relação à orientação sexual, a homofobia internalizada, o não se aceitar homossexual, também pode contribuir para a expressão da intolerância em relação aos outros. Estudo realizado na Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, em 1996, sugere que a homofobia pode estar relacionada à excitação homossexual, ou seja, aqueles que se dizem homofóbicos podem, segundo este estudo, não estar cientes disso ou negar a excitação homossexual43 .

As várias faces do preconceito e discriminação contra os homossexuais muitas vezes tomam proporções avassaladoras e chegam ao extremo da violência, resultando em mortes. A homofobia definida como rejeição ou aversão a homossexuais e a homossexualidade são protagonistas e molas propulsoras de muitos crimes, crimes estes que são classificados como crimes de ódio. Como a orientação sexual ou etnia, crença, origem, classe social pode “justificar” um crime? Com que direito alguém discrimina, humilha, persegue, agride, mata outra pessoa devido à orientação sexual? Em nome de quê?

O Brasil tem a vergonhosa liderança internacional em crimes de homofobia: a cada 28 horas um indivíduo com orientação sexual não heterossexual é assassinado no país por crime de ódio. Além disso, 40% de todos os assassinatos do mundo contra indivíduos LGBT ocorrem no Brasil44 . Várias são as formas de preconceito que a população LGBT sofre no Brasil. A seguir, algumas são relacionadas segundo documento publicado pelo Grupo Gay da Bahia, intitulado “Violação dos Direitos Humanos dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais no Brasil: 2004”: agressões e torturas; ameaças e golpes; discriminação em órgãos e por autoridades governamentais; discriminação econômica, contra a livre movimentação, privacidade e trabalho; discriminação familiar, escolar, científica e religiosa; difamação e discriminação na mídia; insulto e preconceito anti-homossexual; lesbofobia: violência antilésbica; e travestifobia.

Homofobia, lesbofobia, travestifobia, transfobia, tantas fobias que talvez fosse mais apropriado o termo “diversofobia”, intolerância ao diferente. Resultados do estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo Stiftung, em 150 municípios brasileiros, em 2008, que teve como objetivo identificar o quanto as pessoas têm aversão ou intolerância a diversos grupos sociais: pessoas que não acreditam em Deus, usuários de substâncias, garotos de programa, transexuais, travestis, prostitutas, lésbicas, bissexuais, gays, gente muito religiosa, pessoas que estiveram em situação carcerária, gente muito rica, ciganos e pessoas com AIDS. Os resultados desse estudo (“Diversidade sexual e homofobia no Brasil: intolerância e respeito às diferenças sexuais”) mostram que um em cada quatro brasileiros tem preconceito contra pessoas LGBT. Além disso, um grupo que tem uma das maiores taxas de repulsa é o de usuários de drogas. Com base nestes resultados, vale ressaltar que lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros usuários de substâncias sofrem ainda mais preconceito, haja vista que sofrem com os dois estigmas45 .

É dever do Estado combater a discriminação e garantir os direitos de seus cidadãos. No Brasil, o Projeto de Lei 122/2006, que transformaria em crime a discriminação de pessoas em razão da orientação sexual foi arquivado, mas o tema foi incluído para ser discutido pelo Projeto 236/2012 sobre a reforma do Código Penal Brasileiro, ainda em tramitação. Enquanto isso, outras intervenções têm sido feitas para garantir os direitos do público LGBT. Exemplo disso é o Decreto 51.180, assinado pelo Prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que prevê que transexuais e travestis utilizem o nome social (nome que escolheram e não o de nascimento) na administração municipal, ou seja, “órgãos e entidades da

Administração Municipal Direta e Indireta devem incluir e usar o nome social das pessoas travestis e transexuais em todos os registros municipais relativos aos serviços públicos sob sua responsabilidade, como fichas de cadastro, formulários, prontuários, registros escolares e outros documentos congêneres”.

Cumprir essa medida, dirigir-se a alguém pelo nome social, é simples e importante para evitar constrangimentos desnecessários. No caso de serviços de saúde e de tratamento para uso de substâncias, por exemplo, além de evitar constrangimentos, o uso do nome social possibilita a criação do vínculo com o profissional e com o serviço com mais facilidade e aumenta adesão ao tratamento46. Outros municípios também já adotaram essa iniciativa. Atualmente, no país, ainda não existe uma lei federal que regule o uso do nome social por indivíduos transgênero, travestis e transexuais e que permita a alteração do prenome de registro de forma simples e rápida. Sendo assim, têm sido desenvolvidas estratégias para que o nome social seja incorporado e reconhecido em instituições públicas. Por exemplo, o Ministério da Educação já reconhece esse direito desde 2011 a partir da Portaria no 1.612/2011. É importante ressaltar que em 2014, pela primeira vez no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), travestis e transexuais puderam usar o nome social47 .

No sistema prisional brasileiro, travestis e transexuais têm o direito de usar o nome social, conforme Resolução Conjunta 01/2014 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT (CNCD/LGBT)48 .

Sociais

Gays e lésbicas continuam a encarar grande sofrimento social proveniente de fatores como a discriminação, baixa aceitação social, lutas contínuas para reconhecimento de relacionamentos, casamento e proteção no trabalho. Somam-se o risco de ataques verbais e físicos e o efeito do diagnóstico do HIV5,14.

Heterossexismo

Trata-se de um sistema ideológico que ignora, denigre e estigmatiza qualquer forma de expressão emocional, afetiva, comportamental, atividade sexual, relacionamento ou identidade social de um não heterossexual41 .

Homofobia internalizada

Refere-se à resistência e autoaceitação de si mesmo em relação à sua própria orientação homossexual. Relaciona-se a vergonha e conceito negativo de si mesmo. Essa negação pode acarretar níveis diferentes de sofrimento, podendo culminar, muitas vezes, em suicídio1,10 .

Coming out

Essa expressão em inglês adaptada para o nosso idioma quer dizer “sair do armário”. Refere-se à experiência de alguns, mas não de todos os gays e lésbicas, quando exploram ou assumem o seu status homossexual atual, tentando conciliá-lo com a socialização anterior49. Esse parece ser um dos momentos mais difíceis e propícios ao uso de substâncias psicoativas, com riscos de mais possibilidade de manutenção desse uso ao longo da vida14 .

Drogas podem servir como um alívio “mais fácil”, promovendo a aceitação da sexualidade e, mais importante, fornecendo conforto que muitas vezes não existe na família ou na sociedade. O uso de substância psicoativa pode auxiliar o processo de socialização e a realização daquilo que se acha ser “proibido”. Muitos gays têm suas primeiras experiências sexuais sob a influência de álcool e outras drogas. Para muitos gays e lésbicas, essa associação entre abuso de substâncias psicoativas e sexualidade persiste e pode tornar-se parte do processo de “sair do armário” e da formação pessoal e social da identidade1 .

Adolescência

“Sair do armário” - assumir para si e para os outros uma identidade sexual diferente da maioria - pode não ser um processo fácil, principalmente durante a adolescência, quando a aceitação pelo grupo é tão almejada. Não é preciso muito esforço para compreender que adolescentes LGBT enfrentam mais desafios que seus pares heterossexuais, pois além daqueles inerentes à própria adolescência, esses indivíduos ainda lidam com intolerância, rejeição, provocações e violência provenientes da homofobia, inclusive dentro da própria família e na escola. Muitos sofrem com a falta de contato e de relacionamentos de apoio com adultos ou pares; falta de oportunidade para socializar com outros gays e lésbicas, exceto em clubes e bares; falta de acesso a uma modelagem positiva ou maneiras alternativas de vivenciar a diferença. Por isso, muitos desses adolescentes podem se sentir envergonhados e com problemas de autoaceitação e acabam vivendo em segredo, evitam exposição de muitas de suas características, opiniões e sentimentos, o que pode levar ao isolamento social, prejuízos de suas relações e repercussão na sua saúde mental50 .

A palavra-chave é inclusão. Quanto mais esses adolescentes se sentirem incluídos e acolhidos por seus pares, familiares, amigos e professores, menos dificuldades eles terão para se aceitarem. Retirar o foco da sexualidade e propiciar que deem atenção a outras áreas importantes da vida e papéis sociais possibilita a percepção de que a orientação sexual é apenas uma das características de uma pessoa e não o que a define como indivíduo50 .

A abordagem de tratamento do adolescente deve ser mais abrangente, especialmente para aqueles com mais vulnerabilidades. Além da homofobia internalizada, muitos adolescentes sofrem ameaças, incluindo de familiares e amigos que podem rejeitá-los. Alguns, inclusive, podem acabar em situação de rua (por terem sido expulsos ou por terem fugido de casa) e podem começar ou intensificar o uso de substâncias, além de muitas vezes acabarem se prostituindo para sobreviver50 .

Culturais

Existe uma tendência entre gays e lésbicas a terem mais convivência entre o chamado “gueto gay”, por questões de autopreservação da comunidade, proteção e suporte dos iguais e também por apropriação do sentimento de pertencimento51. O mundo social é repleto de bares, clubes, boates, turismo gay e saunas onde o álcool e outras drogas estão também muito presentes e amplamente disponíveis1,52 .

Tentativas de suicídio e suicídio

pessoas que abusam de álcool e drogas. Vários estudos têm mostrado que existe tal associação entre uso de substâncias psicoativas e comportamento suicida. Na pesquisa conduzida por Diehl e Laranjeira (2009), que avaliou tentativas de suicídio em uma amostra de pronto-socorro, todos os que preenchiam critérios para dependência química já haviam tido pelo menos uma tentativa prévia. A incidência e prevalência de tentativa de suicídio e suicídio na população LGBT, em especial entre adolescentes e adultos jovens, é maior em comparação aos heterossexuais. Extensa revisão sobre prevenção, tratamento e suicidologia foi conduzida em 2012 na população LGBT. Os principais achados de prevalência revelam ampla variação, dependendo da amostra estudada (10% a 63%), com taxa de tentativas claramente maior em indivíduos com orientação homoafetiva e/ou bissexual do que exclusivamente heterossexual.

A transexualidade e o serviço de saúde

Visitar um profissional de saúde pela primeira vez para um indivíduo transgênero pode ser uma experiência extremamente estressante e ameaçadora. Mesmo em retorno de consulta esses sentimentos podem novamente emergir, pela simples possibilidade de ter que lidar com outros membros da equipe de saúde que não são previamente conhecidos. Para transgêneros, visitas a profissionais de saúde geralmente envolvem algum grau de outing, ou seja, necessidade de ter que se revelar perante os outros sobre sua transexualidade, o que pode ser assustador principalmente para aqueles que frequentemente enfrentam discriminação e estigmatização dentro e fora dos serviços de saúde53 .

Medo e desconforto em relação a pessoas cuja identidade de gênero ou sua expressão não está em conformidade com as normas culturais de sexo de determinada sociedade são geralmente referidos como transfobia. Preocupações acerca da transfobia podem levar alguns transgêneros a não procurarem ajuda médica ou revelarem o seu status transgênero para o profissional de saúde, o qual, por sua vez, pode levar a um insatisfatório ou desastroso desfecho53 .

Indivíduos transgêneros também têm medo de rejeição oriunda não somente de profissionais da saúde, mas também de suas famílias de origem, de sua igreja e de outras redes sociais de sua comunidade. Dessa forma, transgêneros necessitam ter mais esperança, uma vez que “ser diferente” não é tarefa fácil de lidar no dia a dia, principalmente quando essa noção de se perceber transgênero emerge em idade bastante precoce, em geral entre os dois e 14 anos. No entanto, a maioria dos indivíduos transgêneros que procuram por tratamento psicoterápico pela primeira vez em suas vidas está entre 26 e 68 anos. A discrepância de idade revela, na verdade, a demora dessa população em estar pronta para buscar ajuda psicoterápica para lidar com todas as questões que envolvem esse universo (Samons, 2008). Na verdade, os transgêneros podem ter qualquer problema psicológico ou de ordem emocional tanto quanto outro paciente. O importante é o profissional de saúde ter habilidades para reconhecer e diferenciar a disforia de gênero de um sintoma de outros transtornos comórbidos54 .

É importante ressaltar que, de forma geral, indivíduos transgêneros procuram assistência de saúde pelos mesmos motivos que os não transgêneros - exceto se o motivo da busca for por profissional da saúde especializado em questões ligadas ao processo transexualizador. No entanto, qualquer profissional da saúde deve ter habilidades técnicas e culturais

para reconhecer algumas particularidades dessa comunidade53,54 .

A escolha de tratamento deve estar baseada na necessidade do indivíduo em combinação a diversos fatores, tais como: sexo biológico, status cirúrgico, declaração de gênero, uso passado ou corrente de terapia hormonal, idade, histórico familiar de doenças, uso de silicone, etc.53. É necessária atenção para algumas situações, por exemplo, o fato de a terapia hormonal aumentar as chances de risco de desenvolver certos tipos de câncer de mama. O uso de estrógenos por mulheres trans pode aumentar o risco de formação de coágulos sanguíneos, como o uso de testosterona por homens trans pode aumentar nível de colesterol e de enzimas hepáticas e levar ao aparecimento de acne e predispor a doenças cardíacas55. Transgêneros (mulheres trans) que ainda não fizeram a cirurgia de transgenitalização podem ter necessidade, dependendo da idade, de continuar a fazer exames de rotina para doenças prostáticas. Outra preocupação é o fato de muitas pessoas trans recorrerem a uma prática inadequada e perigosa, que é a utilização de silicone industrial ou adulterado para transformação corporal (aumento dos seios, nádegas, maçãs do rosto, etc.), geralmente aplicado pelas chamadas “bombadeiras” (gíria utilizada para designar as pessoas que aplicam o silicone de má-qualidade e sem condições adequadas de higiene e assepsia), o que acarreta uma série de complicações à saúde e até mesmo morte14,53.

Boas práticas

Um grande entrave - não somente nos serviços de saúde como em qualquer lugar em que um transgênero se apresente - é a exibição de documentos o qual gera algum grau de desconforto, pois em geral o nome do registro geral de nascimento não é compatível com a vestimenta que o indivíduo usa. É boa prática então, perguntar a essa pessoa como ela deseja ser chamada, assim como com qual prenome (masculino ou feminino) se sente mais confortável. Muitos transgêneros indicarão sua preferência, mas alguns podem querer que você tenha liberdade de tratá-lo como queira, desde que haja respeito2 .

É importante ter em mente que a presença de uma pessoa transgênero em um local de tratamento qualquer não significa sempre uma “oportunidade de formação” para outros prestadores de cuidados em saúde. Muitos indivíduos transgêneros podem se sentir desconfortáveis quando o seu cuidador chama outras pessoas, como residentes ou estagiários, para observar os seus corpos ou as interações entre um paciente e o profissional da saúde. No entanto, como em outras situações em que um paciente tem achado raro ou incomum, pedir permissão ao paciente é o primeiro passo necessário antes de convidar um colega ou estagiário para participar da consulta. Além disso, perguntas desnecessárias que visem satisfazer apenas a curiosidade do profissional da saúde e, sem relevância clínica devem ser totalmente evitadas55 . Outra boa prática é estabelecer uma política eficaz para lidar com comentários e comportamentos discriminatórios nos ambientes de saúde em geral, tanto pelos prestadores de cuidados quanto por parte dos usuários desse serviço de saúde. Outra atitude é assegurar que todos os profissionais do estabelecimento possam receber transgêneros com treinamento e competência cultural para que não exista um sistema de conduta inadequada, principalmente vexatória. Estar acessível, com “mente aberta”, numa atmosfera acolhedora e de não julgamento, disponibilizar cartazes sobre campanhas relacionadas a essa comunidade e ter a possibilidade de banheiros de neutralidade de sexo nos serviços podem ser estratégias que auxiliam nesse processo55. Em outras palavras, não há necessidade de criar

ou aumentar constrangimento tanto para os indivíduos transgêneros quanto para seus familiares, que muitas vezes se veem desamparados54. Os profissionais da saúde estão, sem dúvida, em posição bastante privilegiada quando reconhecidos como autoridades e formadores de opinião e têm a valiosa possibilidade (e incumbência) de informar, esclarecer dúvidas, usar terminologias adequadas e desconstruir crenças inapropriadas, principalmente no atendimento a pacientes e seus familiares55.

Relacionamentos

É importante lembrar que a participação da família e parcerias afetivas no tratamento de abuso e dependência de substâncias é essencial para o processo de recuperação de todo e qualquer usuário. Isso, certamente, não é diferente para a população LGBT. Portanto, a equipe deve estar preparada para sensibilizar e encorajar o paciente a trazer a família (parcerias afetivas, namorado, filhos e pais) para o âmbito do tratamento, assim como mobilizar a família a participar do processo de tratamento4 .

Dessa forma, também vale mencionar que às vezes o paciente LGBT pode contar apenas com as chamadas “famílias de escolha”, ou seja, aqueles amigos mais próximos que residem com o paciente ou que fornecem suporte e integram uma rede positiva e saudável de apoio, os quais devem ser considerados e integrados ao processo de tratamento. Isso porque a família de origem pode inicialmente não estar disponível, haja vista que os laços foram quebrados quando o paciente assumiu a sua identidade sexual e/ou sua orientação sexual para seus familiares4. Além disso, é importante que os profissionais da saúde estejam atentos ao fato de que as configurações familiares atuais mudaram, de acordo com o último censo no Brasil: hoje, 50,1% das famílias são constituídas por “famílias mosaicos”, cuja constituição clássica de pai, mãe e filhos já não é mais a predominante56 .

As técnicas de terapia de família e casal são as mesmas utilizadas para todos os pacientes, independentemente da orientação sexual. O profissional que conduz o grupo de família deve ter habilidade para lidar com as possíveis diferenças e estigmas no grupo devido aos conceitos heteronormativos4 .

Violência

Como já mencionado, a violência dirigida à população LGBT varia desde agressões verbais e ataques físicos até assassinatos por crimes de ódio motivados pela homofobia. A violência doméstica é também uma realidade entre casais gays, apesar de ser sub-relatada. Todos esses fatores contribuem tanto para o uso (experimentação ou aumento) de substâncias psicoativas, quanto representam um fator de risco para recaídas e devem ser considerados em programas de reabilitação4 .

Infecções sexualmente transmissíveis/vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida (IST/HIV/AIDS)

A prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST), incluindo o vírus da imunodeficiência humana (HIV), sempre deve estar integrada ao programa de tratamento e orientação para todos os usuários de substâncias psicoativas, pois embora as pessoas saibam sobre sexo seguro e uso de preservativo, muitas não têm essa prática. Esse fato é reforçado

pelos recentes dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) de 2014, que revelam que enquanto no mundo todo se observou diminuição de 27,6% nas taxas de novas infecções pelo vírus HIV de 2005 a 2013, no Brasil houve aumento de 11% de novos casos. Entre as populações mais vulneráveis estão os usuários de drogas e os homens que fazem sexo com homens (HSH)57 . Há evidências científicas de que indivíduos sob o efeito de álcool e drogas têm o julgamento prejudicado e se expõem a mais riscos, como compartilhar seringas, alto número de parcerias sexuais, assim como práticas sexuais sem proteção. Devido à vergonha, homofobia internalizada, depressão e baixa autoestima, alguns gays, consciente ou inconscientemente, podem se expor a mais riscos de contágio de IST. Outro desafio é fazer com que aqueles que já estão em terapia antirretroviral continuem tomando a medicação da maneira e horários corretos, pois com o abuso ou recaída ao uso de drogas pode haver negligência do esquema medicamentoso2 .

Gênero e identidade sexual

A identidade sexual é uma questão que pode gerar confusão e constrangimento para transgêneros nos serviços de tratamento para usuários de substâncias psicoativas devido aos conceitos heteronormativos e da “dicotomia” de gênero: masculino e feminino. Uma questão, por exemplo, é a utilização de espaços comuns nos centros de tratamento, como banheiros, enfermarias e acomodações: uma travesti usaria qual banheiro, de homens ou mulheres? Uma pessoa que é transexual quando internada ficaria na enfermaria masculina ou feminina? Profissionais de serviços de tratamento para dependentes químicos sempre se deparam com a polêmica questão dos banheiros e das acomodações/leitos separados por binarismo de gênero em seus serviços. Pergunta-se, por exemplo, se deveriam ter banheiro “neutro” ou se transgêneros/travestis se adaptariam em enfermarias/unidades onde o tratamento é misto, ou seja, para homens e mulheres. O fato é que não existe ainda uma política clara sobre essa questão para equipamentos de saúde de internação binários. E frequentemente vários equívocos são cometidos em nome da tão sonhada preservação de direitos. Infelizmente, sabe-se, de forma anedótica, que muitos transgêneros sequer são aceitos em comunidades terapêuticas para tratamento para dependência química. Novamente, a palavra-chave parece ser a inclusão e o bom senso e respeito do acolhimento e da aceitação da diferença, os quais deveriam prevalecer. Não existe uma regra, cada serviço deverá se adaptar dentro de suas realidades e, sobretudo, perguntar ao maior interessado, o paciente transgênero, como ele ou ela se sentiria melhor nesse serviço2 .

Nome social

Todos nós temos nomes e atendemos, quando chamados, pelo nome que nos identifica, que nem sempre é o nome de registro. Às vezes, é um apelido e que, de tão identificado com o mesmo, é integrado ao registro original (p. ex., Lula). No caso de travestis e transgênero, as pessoas escolhem ser chamadas por um nome diferente da carteira de identidade; uma travesti elege um nome feminino e apresenta-se e identifica-se com o gênero feminino. O mesmo acontece com as pessoas que desejam e/ou realizam a cirurgia de transgenitalização. Um caso famoso no Brasil é o da Roberta Close, que passou boa parte de sua vida com o nome com que foi registrada ao nascer (Luiz Roberto). Realizou a cirurgia de

transgenitalização e, embora já se identificasse com o gênero feminino e se apresentasse como Roberta muito antes da operação, apenas conseguiu alterar seu nome no registro civil depois de muita luta e constrangimento2.

As pessoas têm o direito de serem chamadas pelo nome que desejarem e pela identidade de gênero com que se reconhecem. Geralmente, os próprios pacientes (travestis e transgêneros) fazem uma ressalva em relação a como querem ser chamados quando se apresentam nos serviços de saúde. Então, por que provocar constrangimentos ao chamar pelo nome que consta na carteira de identidade uma pessoa que se apresenta com um nome (e gênero) diferente do registro? Dirigir-se à pessoa pelo nome com o qual ela não se sente confortável, além de gerar um mal-estar desnecessário, interfere negativamente no vínculo desse paciente com o serviço e/ou profissional e dificulta a adesão ao tratamento, além de prejudicar a qualidade de atendimento.

Considerações finais

Como qualquer outra comunidade, a população LGBT é formada pela sua própria história, costumes, valores e normas comportamentais e sociais. Tem claramente identificados seus festivais, feriados, rituais e símbolos, heróis, linguagem, arte, música e literatura. Intervenção efetiva na prevenção do abuso de substâncias psicoativas, tratamento e recuperação deve ao mesmo tempo mobilizar e refletir essa cultura. Prevenção e tratamento que não sejam afirmativos e positivos em relação às pessoas LGBT não são somente improdutivos, mas podem também aumentar os problemas.

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Os desafios enfrentados pelos filhos no convívio com pais usuários de substâncias psicoativas

Neliana Buzi Figlie Daniele da Silva Gonçalves Pompeu de Camargo

Um levantamento inglês estimou que 30% (3,3-3,5 milhões) das crianças menores de 16 anos que moram no Reino Unido convivem com um dos pais que usa álcool de forma nociva, 8% com pelo menos dois bebedores nocivos1. Outro levantamento sobre morbidade psiquiátrica nacional indicou que, em 2000, 22% (2,6 milhões) viviam com um bebedor de risco e 6% (705 mil) com um dependente1. O British Crime Survey (2004) e MPN (2000) indicaram que 8% (até 978.000) de crianças viviam com um adulto que tinha usado drogas ilícitas naquele ano: cerca de 335.000 crianças viviam com um dependente de drogas, 72.000 com um usuário de drogas injetáveis, 72.000 com um usuário de drogas em tratamento e 108.000 com um adulto que teve overdose1 . Infelizmente não há estimativas nacionais e não é raro deparar-se com profissionais da área de saúde e politicas públicas no Brasil que desconhecem os danos sofridos pela população de filhos de dependentes químicos. Crescer em uma família que possui um dependente químico é sempre um desafio, principalmente quando se fala do contato direto de crianças e adolescentes com essa realidade. Esse desafio pode atuar desenvolvendo competências para lidar com situações estressantes e soluções de problemas, bem como desestruturar o crescimento saudável de uma criança e adolescente, podendo levar ao desenvolvimento do alcoolismo e de outros quadros psiquiátricos como depressão, ansiedade e transtorno de conduta. Além disso, pode desencadear problemas físico-emocionais, como baixa autoestima, dificuldade no relacionamento, ferimentos acidentais, abuso físico e sexual2. Daí a necessidade de um trabalho preventivo que almeje condições para um desenvolvimento mais estável e saudável e que busque a ampliação da capacidade de resolução de problemas e de habilidade de enfrentamento e relacionamento inter e intrapessoal. Este capítulo procura trazer informações sobre filhos de dependentes químicos que, apesar de serem vítimas indiretas do consumo de álcool e outras drogas, acabam sofrendo diretamente as consequências desse envolvimento, uma vez que não teve livre arbítrio para dizer “sim” ou “não” frente às consequências geradas pela dependência química na família.

Aspectos emocionais, cognitivos e comportamentais

A convivência com um dependente químico pode trazer diversos prejuízos, sendo grande fator de risco para criança e adolescente que pertence a essa família. Uma em cada quatro crianças está exposta ao abuso de álcool no ambiente familiar3. Esse dado alarmante traz muita inquietação, pois pesquisas têm mostrado que os filhos de alcoolistas estão em desvantagem quando comparados a filhos de não alcoolistas e costumam ter mais predomínio de problemas, tais como: déficit cognitivo, baixa autoestima, dificuldades acadêmicas, problemas de comportamento e dificuldades emocionais e de relacionamento4,5,6,7 .

Além disso, podem apresentar algumas características psicológicas que têm sido citadas como precursoras no desenvolvimento do alcoolismo e de distúrbios psicológicos, que são: insegurança, impulsividade, agressividade, baixa tolerância às frustrações, transtorno de conduta6,8 .

Belsky, Steinberg e Draper9 identificam alguns fatores como os maiores estressores para as crianças, são eles: baixos níveis de coesão familiar, discórdia matrimonial, emprego instável, insensibilidade, rejeição, incongruência e comportamento imprevisível dos pais.

Pode-se afirmar que esses estressores estão mais presentes nas famílias de alcoolistas, quando comparadas a famílias de não alcoolistas10,11,12.

Devido às problemáticas apresentadas e outras situações de vulnerabilidade, foi realizado estudo por Figlie et al.4, que avaliou amostra de crianças assistidas no Centro Utilitário de Intervenção e Apoio a Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA) e observou que 59% dos filhos de dependentes químicos necessitaram de algum tipo de tratamento, evidenciando consequências no desenvolvimento infantil. Por outro lado, 58% dos cônjuges apresentaram risco para o surgimento de distúrbios mentais, dificuldades no relacionamento familiar e agressividade. Nas crianças percebeu-se a predominância de sentimentos de insegurança e inadequação associados à depressão, apatia e repressão, rebaixamento de autoestima, alto índice de carência afetiva, empobrecimento na capacidade de solucionar problemas, isolamento e maturidade precoce.

Os pais são considerados as principais referências e a forma como se relacionam com os filhos é fundamental para a saúde mental deles, podendo algumas interações trazer sérios prejuízos para o desenvolvimento infantil13 .

No aspecto cognitivo, têm sido encontradas diferenças no desempenho em avaliações cognitivas e desempenho acadêmico inferior. Crianças e adolescentes filhos de dependentes de álcool frequentemente têm mais problemas acadêmicos14,15 . Estudo sobre autoconceito e desempenho escolar comparando filhos de dependentes de álcool com filhos de não dependentes demonstrou que filhos de dependentes tendem a ter autoconceito mais negativo e desempenho escolar inferior nas tarefas de leitura e aritmética16. Em idade pré-escolar, mostram linguagem e raciocínio mais precários que os filhos de não alcoolistas e o mau desempenho dos filhos de alcoolistas é previsto, pela qualidade inferior do estímulo presente em casa. Além disso, filhos de alcoolistas têm mais dificuldade de abstração e de raciocínio conceitual. Essas funções cognitivas desempenham importante papel na solução de problemas, sejam eles acadêmicos ou de situação relacionada à vida. Portanto, os filhos de alcoolistas poderiam necessitar de explicações e instruções mais concretas e aprofundadas17 .

Relações familiares e o impacto da dependência química

Vários estudiosos concordam que as relações familiares são modificadas quando um membro manifesta algum problema de saúde, por exemplo, alcoolismo, anorexia nervosa, depressão e outros18,19. Sendo assim, os prejuízos associados à dependência química afetam também os familiares20 cuja inclusão no tratamento tem levado à melhora do paciente e das relações entre os membros19. Essas intervenções diminuem o estresse e encorajam a interação positiva21 .

A convivência dos familiares com o usuário é afetada na medida em que a dependência química evolui e se desenvolve. Estudos evidenciam que esposas de maridos dependentes de álcool exibem sofrimento e apelo para uma vida de resignação e sacrifícios acompanhada por sentimentos de solidão, frustrações e tristezas em virtude da deficiência desses maridos no exercício do papel de pai e esposo22. Além disso, podem ter sinais de ansiedade, depressão, agressividade e prejuízos cognitivos devido ao alto estresse psicológico23 .

Pesquisas informam que há diferenças quando o membro dependente químico é o pai ou a mãe. Segundo Carter e McGoldrick24, as mulheres sempre tiveram papel central no funcionamento da família, pois cabia a elas assumir a responsabilidade emocional por todos os relacionamentos. Este dado revela que o funcionamento familiar, nos aspectos

afetivos, é mais prejudicado quando a mãe tem algum transtorno psiquiátrico25 . O impacto também pode variar dependendo da substância consumida. Estudo realizado com 305 famílias apurou que o ambiente envolvido com drogas ilícitas prejudica mais o desenvolvimento da criança do que o ambiente envolvido com álcool, a destacar: retraimento, queixas somáticas, problemas de contato social, problemas de pensamento e comportamento delinquente. Já os filhos de pais dependentes de álcool sofrem maior impacto na aprendizagem, depressão e ansiedade. Também foi constatado que quanto menor a idade da criança, maior a incidência dos fatores de risco em seu desenvolvimento26 .

O fato de na família alguém se envolver com bebidas alcoólicas ou outras drogas aciona nos demais membros uma série de reajustes, na qual cada membro tenderá a agir de uma forma, uns com melhores recursos, outros não27 .

Levando em consideração as reações negativas dos membros que convivem com o dependente químico, há mecanismos que podem aumentar o risco de uso e abuso de drogas dos filhos e são descritos por Ellis, Zucker e Fitzgerald28 (Tabela 1).

Tabela 1: Fatores de risco familiares que afetam no desenvolvimento de Psicopatologias entre os filhos de alcoolistas comparados com filhos de não-alcoolistas

Fator de risco Resultado de Pesquisas: Influências familiares alcoólico-específicas*

Modelo de comportamento Filhos de alcoolistas estão mais familiarizados com um ambiente que em relação ao consumo de envolve grande exposição de bebidas alcoólicas em idade precoce e bebidas alcoólicas desenvolvem esquemas do uso do álcool (crenças baseadas na experiência) mais precocemente. Expectativas quanto ao uso Filhos de alcoolistas têm expectativas mais positivas sobre o valor do álcool do álcool (mais chances de esperar que o álcool os faça sentir bem).

Etnia e hábito de ingestão de Filhos de alcoolistas de certos grupos étnicos apresentam risco aumentado bebidas alcoólicas de abusarem do álcool em decorrência de expectativas relacionadas ao álcool e etnia. Certos subgrupos de filhos de alcoolistas são criados em famílias nas quais Psicopatologia os pais têm transtornos psiquiátricos, tais como transtorno de personalidade ou depressão, acrescido da dependência alcoólica.

Status socioeconômico (SES) Filhos de alcoolistas são mais prováveis nas casas de baixo SES nas quais as famílias estão expostas ao estresse financeiro. Famílias de alcoolistas são caracterizadas por baixa coesão (falta de

Psicopatologias gerais da proximidade entre os membros da família), alta taxa de conflito e pouca família habilidade na solução de problemas. Filhos de alcoolistas são mais prováveis em lares desestruturados.

Agressão/violência familiar Filhos de alcoolistas são mais prováveis de terem sido alvo de abusos físicos e violência familiar.

Prejuízo cognitivo dos pais Filhos de alcoolistas são mais prováveis de terem sido criados por pais com habilidades cognitivas empobrecidas e em ambiente sem estimulação. Miscelânea Acidentes e traumatismos, Síndrome alcoólica fetal, ação imunossupressora - mais risco de infecções bacterianas (pneumonia, tuberculose) e virais (hepatites B e C, HIV)

*Influências alcoólico-específicas seletivamente prognosticam o abuso e dependência do álcool, ao passo que influências familiares alcoólico não específicas prognosticam toda uma variedade de problemas psiquiátricos, incluindo o alcoolismo.

Reilly29 descreveu uma série de padrões interacionais presentes em famílias que convivem com a dependência química em seus lares:

Negativismo: comunicação negativa, queixas, críticas e expressão de desconforto. De

modo geral, o humor do cônjuge que não abusa de substâncias é decisivo na interação familiar. Inconsistência parental: o ambiente de regras familiares geralmente mostra-se errático, inconsistente e com estrutura familiar inadequada. Geralmente as crianças mostram-se confusas frente ao que é certo ou errado, acarretando comportamentos inconsistentes. Negação parental: apesar dos sinais óbvios, os dependentes químicos afirmam não haver problemas, gerando com isso insegurança na perceção das crianças que convivem com essa realidade. Falha na expressão de raiva: crianças e adolescentes que convivem com a dependência química em suas famílias mostram-se temerosos em expressar seus sentimentos e pensamentos, uma vez que podem desencadear escândalos ou atrocidades na expressão de raiva por parte do dependente de substâncias. Automedicação: tanto um familiar quanto uma criança passam a usar substâncias ou bebidas alcoólicas para lidar com sentimentos, podendo acarretar quadros de ansiedade ou depressão. Expectativas parentais irreais: crianças expostas frente a expectativas irreais ou baixas expectativas tendem a se tornar inseguras e com a sensação de fracasso. Apesar de seu estado de risco, é importante salientar que grande parte dos filhos de dependentes químicos é acentuadamente bem ajustada e, por tal, uma abordagem preventiva de caráter terapêutico pode ser de vital importância no desenvolvimento dessas crianças e adolescentes. Dessa forma, nem sempre “filho de peixe, peixinho é!”.

Prevenção e fatores de proteção

A condição emocional e psicológica do cuidador, no caso o membro não dependente, pode contribuir como fator de proteção, uma vez que este é o responsável e preocupado em manter a rotina familiar e o dia a dia da criança e adolescente de modo saudável. A união entre irmãos também pode colaborar de forma positiva e diminuir o impacto do alcoolismo parental30 .

Altos níveis de organização familiar e comportamento de coping podem deter ou diminuir a iniciação do jovem no uso de substâncias. Além disso, se o adolescente percebe sua família como organizada, ele próprio sente que tem controle pessoal31 . É importante que os pais invistam no tratamento dos filhos, permitindo e atuando de forma positiva no processo de mudança, e que o terapeuta tenha expectativas de que a família colabore para boa evolução no tratamento32,33 .

Um ponto a ser ressaltado é o papel do irmão mais velho. Estudo brasileiro revelou características de algumas famílias, nas quais a participação dos irmãos mais velhos em atividades domésticas foi considerada essencial para a manutenção da família. Foram descritos como competentes agentes socializadores, capazes de orientar, estimular e facilitar a participação dos irmãos menores nas atividades familiares e comunitárias34. Esse estudo chama a atenção, no entanto, para fatores sociais e econômicos que interferem na dinâmica familiar e nas práticas educativas das crianças. Bolsoni35 investigou a relação entre empatia e o número de irmãos, bem como avaliou se o número de irmãos consistia em um elemento de proteção ou de risco ao desenvolvimento. Observou que crianças que tinham muitos irmãos podiam estar em situação de risco no caso de famílias muito pobres, que dividiam entre tantos filhos os poucos recursos

de que dispunham. No entanto, o cuidado entre irmãos, mesmo nessas famílias numerosas, foi considerado importante fator de proteção. O estudo salienta, ainda, que crianças que têm irmãos apresentam mais desenvolvimento emocional e social, especialmente em relação à empatia.

Diante disso, a implementação de programas de intervenção junto a esses grupos de crianças em situação de risco pode potencializar e favorecer o desenvolvimento da resiliência, sendo este um importante fator de proteção.

A resiliência pode ser vista como o resultado da interação entre aspectos individuais, contexto social, quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida e os chamados fatores de proteção encontrados na família e no meio social36. A ideia em torno da resiliência é a capacidade de desenvolvê-la na saúde coletiva, conectando o individual e o coletivo.

As ações institucionais só são entendidas como propiciadoras de resiliência desde que efetivadas por meio de um vínculo com a criança e o adolescente. E este talvez seja um dos grandes ganhos que a resiliência traga para o campo da saúde, ou seja, propõe uma nova práxis pautada em ações personalizadas, nas quais a interação entre sujeitos realmente se estabeleça como vínculo de confiança, como espaço de acolhida e escuta. Logo, a resiliência não pode ser vista como uma nova panaceia para a saúde, uma saída mágica aplicável inadvertidamente a qualquer situação. A questão que se estabelece é uma mudança de olhar em relação às crianças que vivenciam situações adversas. Tal mudança pode significar para o próprio sujeito uma aposta de emancipação diante de um estigma, como o dos maus-tratos37 .

Pelos aspectos expostos, torna-se clara a importância das abordagens interventivas que sustentem, ainda num período de prevenção, o desenvolvimento e o crescimento de filhos de dependentes químicos. No próprio contexto da dependência química, a abordagem familiar revela-se um importante recurso para o tratamento38. No âmbito da prevenção, investir em programas que ofereçam assistência aos filhos, bem como aos familiares, também é relevante para assegurar laços afetivos, cuidados básicos e promover recursos que ampliem os fatores de proteção39 .

O contexto de risco no qual uma criança se desenvolve deve ser foco de extrema atenção. Prevenir-se significa se antecipar, esse mesmo ambiente deve ser avaliado, acolhido e monitorado pelos profissionais, como forma de assegurar um olhar diferenciado aos filhos de dependentes químicos. Os serviços, tanto no campo da saúde como da educação, precisam buscar alternativas preventivas, psicoeducacionais e de assistência para garantir a essa população oportunidades de se proteger do meio em que vive.

Uma proposta de intervenção: CUIDA, uma iniciativa pioneira no Brasil

Na periferia de São Paulo, em um dos bairros mais violentos da cidade, foi criado o serviço Centro Utilitário de Intervenção e Apoio a Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA), idealizado por Neliana Buzi Figlie, em parceria com a ONG Sociedade Santos Mártires e com o apoio técnico da Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD), pertencente ao Departamento de Psiquiatria da UNIFESP/EPM33 . O CUIDA funcionou de setembro de 2001 até setembro de 2011, inicialmente com financiamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, posteriormente com o da Secretaria Municipal da Saúde. Nesse período, 1.109 crianças e adolescentes

(não incluindo o atendimento de familiares) foram, assistidas. Infelizmente, o CUIDA teve suas atividades interrompidas devido corte de financiamento, deixando vulnerável aproximadamente 200 assistidos.

A missão do CUIDA é diminuir os fatores de risco que interferem no desenvolvimento biopsicossocial de crianças e jovens que convivem com a dependência química em seus lares e aumentar os fatores de proteção, capacitando-os para uma integração social e comunitária que lhes facilite a realização de seu potencial como cidadão, com saúde e dignidade33 .

Da experiência do serviço foram realizados alguns estudos sobre essa população, descritos a seguir: estudo inicial, desenvolvido com 63 familiares, 54 crianças e 45 adolescentes, demonstrou em relação ao perfil familiar que 67% pertenciam à categoria socioeconômica D; na maioria das famílias o pai é o dependente químico (67%), tendo como principal substância de escolha o álcool (75%); 59% dos cônjuges que não eram dependentes químicos apresentaram risco de distúrbios em saúde mental e 73% dos pais declararam que a gravidez não foi planejada. Nas crianças foram observados timidez e sentimento de inferioridade; depressão; conflito familiar; carência afetiva e bom nível de energia, o que é indicativo de equilíbrio emocional e mental. Nos adolescentes, foi detectado alto índice de problemas nas seguintes áreas: desordens psiquiátricas, sociabilidade, sistema familiar e lazer e recreação. É importante destacar que a área de uso de substâncias foi considerada fora do ponto de corte4 . Um dos maiores desafios encontrados nesse serviço foi a adesão dos adolescentes. Foi realizado então outro estudo com 791 crianças e adolescentes para identificar quais eram os fatores determinantes que impediam a adesão ao tratamento, tendo sido encontrados: mudança frequente de moradia, baixo grau de escolaridade do pai e situação socioeconômica desfavorável, nessa ordem. Vale ressaltar que na população estudada tais características eram extremamente frequentes40 .

A proposta de tratamento era de um ano, focada na prevenção do uso de substâncias e de transtornos na área de saúde mental com avaliação constante dos fatores de risco, de modo a reduzir danos e favorecer os fatores de proteção.

Como se deparava com alta rotatividade e difícil adesão dos casos devido à situação socioeconômica, que se apresentava como um fator importante tanto para a gravidade da situação familiar quanto para a possibilidade de conclusão do tratamento, e consequentemente com o prognóstico das crianças e adolescentes assistidos no serviço, optou-se por uma intervenção breve, pautada na resolução de problemas dentro do referencial da terapia cognitiva.

A solução de problemas nessa proposta é compreendida como um processo autodirigido cognitivo-comportamental, no qual a pessoa tenta identificar ou descobrir soluções eficazes ou adaptativas para os problemas da vida cotidiana. É representada pelos três componentes hipotéticos do pensamento meios-fins: 1. Capacidade de conceituar os passos sequenciais ou meios necessários para alcançar determinado objetivo na solução de problemas 2. Capacidade em antecipar possíveis obstáculos que possam interferir na obtenção do objetivo; 3. Capacidade em estimar que a solução de problemas leva um tempo determinado, que pode ser essencial para a implementação bem-sucedida da solução41 .

A abordagem de atendimento utilizada era a terapia cognitiva, que enfatizava os efei-

tos de crenças e atitudes mal-adaptativas ou disfuncionais no comportamento atual, partindo do pressuposto de que a reação de um familiar, criança ou adolescente é influenciada pelos significados atribuídos ao fato. Isso implica que as respostas emocionais e comportamentais a fatos diários decorrem da forma como esses eventos são percebidos e relembrados, das atribuições que são feitas, da causa desses eventos, das formas como esses eventos afetam a percepção que a pessoa tem de si própria e da forma como busca atingir seus objetivos. Esses esquemas são considerados moldes que guiam a percepção, o processamento, as recordações e a análise de informações42 .

Mediante respostas comportamentais inadequadas – quando prejudicam a adaptação social e escolar dos assistidos –, a proposta era reestruturar crenças disfuncionais e atuar na resolução de problemas, por meio de monitoramento de pensamento, identificação de distorções e erros cognitivos, avaliação de pensamento e desenvolvimento de processos cognitivos alternativos e treinamento de habilidades de enfrentamento42 .

Vale destacar que em nossa prática clínica as crenças disfuncionais mais prevalentes nesse grupo eram de incapacidade, principalmente com familiares que não eram dependentes químicos; baixa auto-estima associada a transtornos de conduta e crianças de casa -abrigo; e inadequação, mediante a existência de algum transtorno psiquiátrico.

A postura da equipe era de fundamental importância para a adesão ao tratamento. Nesse sentido, a utilização da entrevista motivacional visava auxiliar os atendidos em seus processos de mudança de comportamento.

Faz parte da essência da entrevista motivacional reconhecer que o cliente tem competência, recursos e força própria para construir uma mudança em sua vida. Dessa forma, quando o profissional vê o seu cliente como “capaz”, torna-se mais fácil para o profissional utilizar os princípios essenciais da entrevista motivacional - de colaboração, autonomia e evocação. Essa diferente visão a respeito do cliente torna mais fácil ao profissional entender a diferença entre essa abordagem e os outros tipos de aconselhamento43 . Nessa ótica, a postura do profissional e a intervenção passam a ser compostos pela parceria, aceitação, compaixão e evocação. A mudança aqui é compreendida em amplo aspecto do comportamento, possibilitando que o indivíduo se decida, tome atitudes e se resolva. Nessa nova proposta, a parceria do profissional é bastante significativa, sendo reforçada nas bases relacionais da entrevista motivacional, que inclui, além do engajamento, do foco e da evocação, o planejamento como condição para a mudança de qualquer tipo de comportamento43 .

Considerações finais

As habilidades parentais de responsividade às necessidades físicas e emocionais das crianças sob a influência de substâncias psicoativas mostram-se prejudicadas, bem como a saúde mental do cônjuge que não consome substâncias. Os estudos nacionais sobre os danos nos filhos associados ao abuso de substâncias por parte dos pais ainda são limitados.

A realidade brasileira ainda é muito curativa e fazem-se necessários a necessidade de intervenções preventivas que garantam acesso imediato ao tratamento eficaz, avaliação das necessidades familiares e apoio intensivo aos pais e aos filhos, com vistas a trabalhar a problemática antes que ela se cronifique. Faz-se mister também propiciar condições de proteção para que a criança e/ou adolescente possa ter um desenvolvimento mais próximo do saudável.

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Vulnerabilidade nas mulheres usuárias de droga

Luisa Zamagna Maciel Saulo Gantes Tractenberg Breno Sanvicente-Vieira Luisa Fernanda Habigzang Rodrigo Grassi-Oliveira

O envolvimento com álcool e drogas vem sendo, ao longo dos anos, identificado como um comportamento predominantemente masculino. Entretanto, recentes estudos epidemiológicos revelam crescimento substancial do consumo de substâncias psicoativas na população feminina1,2. Como consequência do aumento desse consumo, pesquisadores têm se dedicado a investigar os possíveis fatores associados à progressão e ao risco do uso de drogas entre as mulheres.

Tendo em vista as distinções biológicas, psicológicas e comportamentais entre homens e mulheres, alguns estudos se propuseram a investigar os fatores de risco e vulnerabilidade que levam ao início do uso, bem como as diferenças de sexo que poderiam estar envolvidas no curso do desenvolvimento do transtorno por uso de substâncias (TUS). Sabe-se, por exemplo, que existem diferenças significativas vinculadas às razões e motivações para o primeiro uso, bem como especificidades na progressão e desenvolvimento do TUS. Além disso, a adesão ao tratamento também tem particularidades ligadas ao sexo3-8 .

Além dos aspectos subjacentes às diferenças entre homens e mulheres, alguns autores defendem a ideia de que o uso de drogas entre as mulheres representa um rompimento dos padrões sociais e das expectativas do papel feminino. Situações da esfera social e emocional que acompanham a dependência, como marginalização e abandono da família, são exemplos de comportamentos que não correspondem ao papel culturalmente idealizado da mulher9,10.

O estigma social, desta forma, aparece como um dos possíveis motivos responsáveis por distanciar as mulheres dos serviços de saúde. O medo de julgamento e a vergonha são aspectos que fazem com que essas mulheres procurem menos auxílio especializado para tratar o TUS. Em paralelo, muitos profissionais responsáveis pelo atendimento de tal demanda possuem uma visão estereotipada em relação ao papel feminino e, por consequência, mesmo que não explicitamente, demonstram preconceito contra as usuárias de drogas2,11 .

A invisibilidade da população feminina com TUS coloca-as em mais vulnerabilidade e situação de agravo social e de saúde5. Estudar a mulher usuária de drogas desconsiderando as expectativas sociais implícitas no papel feminino impossibilita compreender os motivos e circunstâncias do uso de drogas. Também dificulta a construção de estratégias de saúde mais efetivas para atender essa população.

Embora os estudos com mulheres usuárias de drogas ainda sejam incipientes, as evidências reforçam a importância de se pensar em um atendimento particularizado, uma vez que, atualmente, a realidade nos serviços de saúde é prioritariamente baseada em protocolos de tratamento desenvolvidos e testados em populações masculinas, negligenciando as especificidades inerentes às mulheres.

Neste sentido, este capítulo tem por objetivo apresentar conceitos e fatores de risco e de vulnerabilidade específicos para a população feminina, que devem ser considerados ao pensar em uma avaliação e em um plano de tratamento especializado. Ao final deste capítulo será possível identificar: • Papel da desigualdade de gênero no cenário de álcool e outras drogas. • Fatores de risco e vulnerabilidade em mulheres usuárias de drogas. • Fatores que interferem no desenvolvimento e curso do uso de drogas. • Aspectos que dificultam a busca por serviços especializados e adesão aos tratamen-

Construção e desconstrução do papel feminino: mulheres usuárias de drogas

A construção da imagem da mulher é pautada por aspectos históricos e vem sofrendo transformações ao longo dos anos. Desde a década de 70 investiga-se a aplicação de estereótipos para homens e mulheres, visando entender a construção de ambos os papéis, assim como suas distinções. Estereótipos são entendidos como características pessoais ou sociais que servem para classificar um grupo de maneira taxativa. Inicialmente, percebeu-se que atributos femininos eram menos valorizados e as mulheres eram associadas a figuras amistosas, prestativas e servis12. Uma vez consolidada a existência dos estereótipos de gênero, na década de 90 alguns estudos buscaram entender de que maneira tais estereótipos interferiam, de forma consciente ou inconsciente, na percepção das mulheres em relação às suas próprias capacidades. O papel laboral da mulher, por exemplo, era visto como inferior ao papel do homem, sendo suas tarefas desqualificadas perante aquelas correspondentes aos homens. Essa percepção fez-se presente ao longo do processo de inserção das mulheres no mercado de trabalho, reforçando a insegurança em relação ao sucesso e êxito profissional, bem como o temor da rejeição social13 .

Sabe-se que o ingresso da mulher no mercado de trabalho colaborou para uma luta por direitos igualitários e a aquisição de inúmeros direitos civis, políticos e sociais9. É considerado um marco na luta pelos direitos das mulheres, entre outros avanços. Em contrapartida, ainda se verificam a desigualdade salarial e a expectativa social relacionada ao papel feminino, na qual ser mulher se encontra vinculado à imagem frágil, boa mãe, cuidadora e esposa9,10,14.

O uso de álcool e drogas também vem sendo atrelado à existência de estereótipos. Os indivíduos com TUS são frequentemente julgados moralmente de forma negativa. Nesse sentido, usuários de álcool e drogas, historicamente, são taxados como: “mau-caráter”, “fracos”, “sem força de vontade” e “vagabundos”. Essas características ainda permanecem presentes na sociedade e, muitas vezes, mesmo que não intencionalmente, são estendidas aos profissionais prestadores de serviços de saúde e assistência social15. Esses estereótipos foram identificados por estudo que buscou capacitar os profissionais da saúde para diagnóstico e intervenção breve no transtorno por uso de álcool (TUA)16. A presença de estereótipos mostrou-se prejudicial para o tratamento do usuário que deixa de receber intervenções adequadas ao seu problema. Por outro lado, foi identificado prejuízo também para o profissional que pode não utilizar, de maneira apropriada, o seu conhecimento. Como consequência, foi verificada menos motivação para atender esses usuários15,16 .

Unindo essas duas realidades – ser mulher e ser usuária de álcool e drogas – o estigma e o preconceito tornam-se ainda mais marcantes e revelam-se um fator de risco social significativo5. O uso de drogas representa uma quebra brusca do papel socialmente esperado das mulheres. A gravidade do TUS compromete tarefas consideradas inerentes ao papel feminino, sendo o abandono de filhos, comportamentos sexuais de risco e envolvimento com atos ilegais alguns dos exemplos de comportamentos desviantes do que se é esperado9,10.O não cumprimento das expectativas sociais contribui para sentimentos como vergonha, culpa e medo de serem julgadas. Além disso, esses sentimentos podem ser considerados fatores emocionais que interferem na busca por atendimento nos serviços de saúde e de assistên-

cia social2,11. Aspectos emocionais vinculados à baixa autoconfiança, irritabilidade e tristeza estão associados à maior vulnerabilidade ao uso abusivo de substâncias por mulheres5,17-20 .

Mulheres, uso de drogas e fatores de risco e vulnerabilidade biopsicossociais

No âmbito da saúde da mulher, explorar as particularidades relacionadas ao TUS permite que haja identificação dos fatores de risco e de vulnerabilidade. Por se tratar de uma temática abrangente e que envolve aspectos sociais, desenvolvimentais e de saúde, a presente sessão será abordada em tópicos independentes. Contudo, os tópicos não devem ser entendidos como fatores isolados, pois na prática encontram-se inter-relacionados.

Início e desenvolvimento do transtorno por uso de substâncias

O início de uso de drogas é motivado no indivíduo por diferentes razões. Alguns achados sugerem que os motivos que levam homens e mulheres ao primeiro contato com uma substância psicoativa podem ser distintos. Além disso, etapas sensíveis do desenvolvimento do indivíduo podem favorecer a experimentação, da mesma forma que o contexto social e familiar em que estão inseridos2-5,8. A adolescência, por exemplo, é considerada um período de vulnerabilidade, uma vez que contempla um conjunto de transformações orgânicas, físicas e psicológicas no indivíduo21. A busca de identidade e autonomia, a necessidade de aceitação pelos pares e a busca de separação emocional dos pais são características psicossociais do adolescente que podem estar associadas à experimentação de drogas em comparação às demais faixas etárias. A maioria dos quadros de TUS diagnosticados na vida adulta possui histórico de uso de drogas durante o período da adolescência22 .

O início do uso de álcool por mulheres é descrito em idades mais precoces. Os dados brasileiros referentes ao início de uso de substâncias em adolescentes mulheres apresentados no II Levantamento Nacional de álcool e Drogas mostraram que, no ano de 2006, 1% das adolescentes tinha experimentado álcool com idade inferior a 11 anos. Em 2012, no entanto, esse número quadriplicou. Isso demonstra início de uso de álcool cada vez mais precoce entre meninas brasileiras. Ainda nesse mesmo levantamento, observou-se que, em 2006, 7% das adolescentes entre 12 e 14 anos bebiam regularmente, enquanto em 2012 a estimativa foi de praticamente o dobro, atingindo os 13%23. Apesar do uso precoce vir sendo indicado como um dos fatores de vulnerabilidade para o TUS, percebe-se que existem também outros fatores influenciando esse início de uso.

Entre algumas razões reconhecidas que podem predispor a adolescente ao primeiro uso, percebe-se forte influência das experiências amorosas. Tanto na adolescência quanto na vida adulta, o cônjuge tem sido citado como um dos principais membros da família que influenciam o início do uso de drogas de sua parceira24. Nesses casos, o companheiro normalmente já é um usuário ou possui envolvimento com tráfico de drogas. Tal característica não é observada em populações masculinas, uma vez que a família tem pouca influência para o primeiro uso, sendo o grupo de amigos um dos principais motivos que levam jovens homens a experimentar qualquer tipo de substância psicoativa6 .

Além dos aspectos sociais, estudos mostram que o histórico de diagnóstico psiquiátrico ou mesmo sintomas de humor e ansiedade são condições capazes de motivar o uso de drogas entre as mulheres. A motivação para o uso de drogas parece estar associada à busca

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