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Figura 14: Evolução da população carcerária no Brasil entre 1990 e 201216

Observa-se que as teorias ora focam questões macrossociais (status socioeconômico, heterogeneidade étnica, desigualdade de renda, etc.), ora questões relacionadas às relações interpessoais (família, vizinhança, pares, etc.), ora questões relacionadas ao desenvolvimento psicológico. Gronde et al.10 comentam que a agressão violenta, como todas as formas de comportamento, se desenvolve tanto sob condições ambientais e psicológicas como também genéticas, apesar do modelo biológico ter sido recorrentemente negligenciado pelos estudiosos da área. Entretanto, sabe-se que há uma inter-relação entre esses fatores, assim, considera-se o modelo ecológico mais abrangente e mais condizente com a ideia de criminalidade de que se trata neste trabalho.

Vulnerabilidade, criminalidade e homicídios

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As drogas podem ser estímulos mediadores de comportamentos sociais violentos. Seja pelos efeitos diretamente relacionados ao sistema nervoso, seja pelas consequências do comércio ilegal, contextos com drogas aumentam significativamente a probabilidade de ocorrências de eventos violentos. Cabe ressaltar que “a relação drogas-violência é muito complexa, podendo ter suas origens em fatores como personalidade, antecedentes familiares de dependência, fatores genéticos, características de temperamento, relacionamento familiar fragilizado, transtornos de personalidade e todas as circunstâncias sociais que predisporiam ao crime e à dependência química”5 .

Outros estudos relacionam aos homicídios a existência de mercados de drogas ilícitas, de demanda por bebidas alcoólicas e por armas de fogo. Esses estudos indicam que, por volta da década de 90, houve significativo crescimento no número de homicídios ocasionados pelo consumo de drogas ilícitas. Concomitantemente, houve aumento na demanda por armas, já que o mercado de drogas necessita da violência para garantir seus contratos. Constatou-se, por fim, que o aumento da demanda por armas e drogas era seguido nos anos seguintes pelo aumento expressivo no número de homicídios11. Esses autores trataram de outros temas como desigualdade social e taxas de efetivo policial, os quais não serão aqui abordados por não serem objeto deste trabalho.

Ainda sobre homicídios no Brasil, o Mapa da Violência12 indicou que as vítimas mais comuns de mortes por armas de fogo são do sexo masculino, representando 94% na população total e 95% entre os jovens. Quando se trata exclusivamente de homicídios e considerando a cor da pele, têm-se quase três vezes mais homicídios de negros (28,5 homicídios por 100 mil habitantes) do que brancos (11,8 homicídios por 100 mil habitantes). Cabe ressaltar que esse estudo agrupou pretos e pardos na categoria negro.

Os instrumentos letais que ocasionam tantas mortes são, em grande parte, provenientes do tráfico de armas, conforme já mencionado, que caminha emparelhado com o de drogas. De comum nesses contextos tem-se novamente o jovem negro. Em um trabalho de 2005 denominado Cabeça de Porco13, que reuniu o rapper MV Bill, seu produtor Celso Athayde e o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, emergiu a compilação de vários elementos que levam a uma reflexão bem apurada do universo da criminalidade, dessa vez sob o olhar do jovem, especialmente o jovem negro. Observe-se o trecho a seguir:

“Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível. Como já deve estar bastante claro a essa altura, há muitos modos de ser invisível e várias razões para sê-lo. No caso desse nosso personagem, a invisibilidade decorre principalmente do preconceito ou da indiferença. Uma das formas mais eficientes de tornar

alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular, desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos”13 .

Esse tema já havia sido tratado por Soares, em 20037. Nessa época ele afirmou que quando um traficante cede uma arma a esse jovem, a invisibilidade se converte numa visibilidade perversa. Isso porque o jovem, outrora invisível, que não suscitava alguma emoção, agora desperta o medo. Mesmo ruim, o medo ainda é um sentimento. E além do ganho simbólico, a arma também pode proporcionar acesso aos bens materiais, seja a partir dos recursos financeiros provenientes do tráfico, seja pelos crimes contra o patrimônio.

Outros resultados nefastos desse processo de reconhecimento perverso foram observados. Na experiência de Minas Gerais2, o aumento do número de homicídios a partir de 2003 teve como cenário principal as disputas entre grupos juvenis sustentados pelo tráfico e que eram vizinhos. Assim, as vítimas e algozes partilhavam dados semelhantes: eram jovens, do sexo masculino, negros, com baixa renda e baixa escolaridade e moradores de alguns aglomerados urbanos14. E 10 cidades do estado concentravam mais de 50% dos crimes violentos15. A experiência mineira demonstrou que o uso/abuso de drogas, tráfico, cor da pele, sexo, dados socioeconômicos, conflitos interpessoais e local de moradia constituíramse em fatores de vulnerabilidade.

Vulnerabilidade, criminalidade e população carcerária

Assim como os homicídios, o número de presos no Brasil evoluiu consideravelmente nas últimas décadas. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) processados pelo Instituto Avante Brasil16 indicam que em 1990 essa população era de aproximadamente 90.000 presos. Em 2012 esse número superou os 548.000 presos, representando crescimento de mais de 500%.

Figura 14 – Evolução da população carcerária no Brasil entre 1990 e 201216

Ainda segundo os dados do DEPEN16, a maior parte da população de presos tem entre 18 e 29 anos (55%), possui escolaridade até o ensino fundamental incompleto (63,2%); 60% dos presos são negros e pardos; e o tráfico de entorpecentes é o segundo crime mais cometido, representando ¼ dos crimes atribuídos à população carcerária total. Os crimes contra o patrimônio somaram 43,9% (19% roubo qualificado; 9,8% roubo simples; 7,7% furto qualificado; 7,4% furto simples). Os crimes contra a vida foram 5,3% (homicídio qualificado); 4,0% (homicídio simples) e 2,5% (latrocínio).

Conforme Zaffaroni e Pierangeli17, existe no Brasil um processo de criminalização seletiva que cria condicionamentos que tornam pessoas ou grupos mais vulneráveis ao sistema penal. Esses mesmos condicionamentos, ou vulnerabilidades, impõem a essa mesma parcela da população índices consideráveis de mortes trágicas.

Vulnerabilidade, uso de drogas e dependência química

O envolvimento de usuários de drogas e dependentes químicos na criminalidade é tema que merece atenção. Dados da United Nations Office on Drugs and Crime18 evidenciam que mundialmente estima-se que em 2012 cerca de 243 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 5,2% da população mundial, com idade entre 15 e 64 anos tinham usado uma droga ilícita pelo menos uma vez no ano anterior. Já a população mundial que apresenta transtorno do uso ou dependência química corresponde a 27 milhões de pessoas. Embora não existam dados específicos e detalhados acerca do uso de drogas por parte da população carcerária brasileira, é recorrente o relato do uso de drogas por parte significativa da população privada de liberdade. Conforme apresenta a UNODC18, o uso de drogas é altamente prevalente nessa população. A instituição informa que em estudo realizado com a população carcerária europeia ficou evidente que em 11 países os sujeitos privados de liberdade apresentaram níveis de consumo de drogas 20% maior ou superior quando comparados à população geral. Notadamente tais dados variam quanto às legislações de cada país, fatores culturais e quanto aos métodos de pesquisas utilizados. Os crimes relacionados ao uso e tráfico de drogas são vistos hoje como um dos crimes mais recorrentes no Brasil. Segundo a UNODC18, a criminalidade relacionada à droga, registrada pelas autoridades, tanto em relação ao uso pessoal quanto ao tráfico, quando avaliadas separadamente, revelaram aumento no período de 2003-2012, em contraste com a tendência geral de declínio da criminalidade relacionada aos crimes contra a propriedade e aos crimes violentos. O uso de substâncias ilícitas por si só se enquadra como atividade ilegal prevista na Lei 11.343/2006 no art. 2819, que estabelece que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido [...]” às penas que variam de advertências, prestação de serviços comunitários e inscrição em programas educativos. Em nossa experiência profissional de atendimento psicológico no sistema prisional de Minas Gerais observou-se que significativa parte dos sujeitos privados de liberdade, usuários de substâncias ilícitas e dependentes químicos relata ter cometido crimes diversos que variam quanto ao tipo e gravidade, em função do consumo de drogas. É comum o relato dos reclusos acerca do cometimento de crimes como tráfico de drogas, furtos, roubos, assaltos, crimes sexuais, agressões físicas e homicídios, tendo como motivador

direto e/ou indireto o uso de entorpecentes. Tal envolvimento em crimes diversos, muitas vezes, relaciona-se à manutenção da dependência. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV TR já corrobora a existência da relação entre uso de drogas e criminalidade ao listar como um dos critérios diagnósticos para abuso de substância os problemas legais recorrentes relacionados ao uso da substância20 .

Como citado anteriormente, a população carcerária brasileira cresceu muito na última década. Assim como houve aumento da população privada de liberdade, houve também elevação da prática de crimes relacionados ao uso e tráfico de drogas. Segundo o Departamento Penitenciário Brasileiro, os crimes relacionados a entorpecentes são a segunda modalidade pela qual a população carcerária masculina mais responde e a primeira tipologia de crime mais praticado pela população carcerária feminina21. Entre 2008 e 2009 houve aumento de aproximadamente 18% da população brasileira em situação de privação de liberdade que respondem por crime relacionado às drogas. Entretanto, como já citado, para além dos crimes diretamente relacionados a entorpecentes, como uso e tráfico, encontramse os demais crimes cometidos direta e indiretamente em função do uso ou dependência das drogas.

Considerando o exposto, há necessidade de pesquisas com a população carcerária brasileira que salientem os motivadores para a prática de diversos crimes. Isso porque a experiência no sistema prisional tem evidenciado a mudança do público encarcerado, em que é gritante a jovialidade deste e sua relação direta com as drogas, quer seja pelo tráfico ou pelo uso, revelando a existência de uma relação entre diversos crimes cometidos e o envolvimento com drogas que merecem atenção. Diante desse cenário emerge a busca por explicações acerca do que pode tornar o usuário e o dependente químico mais vulnerável à prática de delitos.

Baltieri25 objetivou em sua pesquisa, entre outros, avaliar problemas com o consumo de álcool e outras drogas entre agressores sexuais custodiados na Penitenciária II de Sorocaba, no estado de São Paulo. Foram avaliados 198 apenados por crimes sexuais violentos. Os dados encontrados revelam que 40,9% dos sentenciados têm problemas com o álcool e 20,7% com outras drogas. No tocante ao uso da droga no momento do delito, a pesquisa indica que 47,4% haviam consumido álcool e 12,62% haviam usado outras drogas.

De acordo com o V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas28 entre estudantes do Ensino Fundamental e Médio da rede pública de ensino nas 27 capitais brasileiras em 2004, a idade média de início de uso das diversas substâncias ilícitas variou entre 12 e 14 anos, aproximadamente. Em revisão bibliográfica sobre o risco preditivo para o uso e abuso de drogas, evidenciou-se que o estresse é um fator marcante. Esta pesquisa revelou, ainda, que adolescentes em situação de risco para o abuso de substâncias quando em contato com vários estressores são mais propensos a mostrar diminuição do controle emocional e comportamental29 .

O National Institute on Drug Abuse (NIH)30 informa que o uso precoce de drogas é tido como um forte indicador de problemas no curso da vida, incluindo a dependência. O NIH identifica como fatores de riscos para a dependência, além do uso precoce, o insucesso escolar, ambiente doméstico propício, transtornos mentais, fatores genéticos, a forma de administração da droga que permite maior potencial (fumar e injetar), influência de colegas, entre outros. Acerca da influência de colega, os adolescentes são especialmente mais suscetíveis à pressão para agir conforme o grupo age e essa pressão pode levar o sujeito,

nessa etapa do desenvolvimento, mais facilmente ao comportamento delinquente31. O desenvolvimento ainda imaturo do cérebro do adolescente o torna mais propenso a agir impulsivamente e sem considerar totalmente as consequências, a fazer escolhas insensatas e a ter explosões emocionais e comportamentos de riscos32 .

Vulnerabilidade, criminalidade e o sistema judiciário brasileiro

Mesmo diante de dados tão estarrecedores quanto a criminalidade e o uso de drogas, que evidenciam as múltiplas vulnerabilidades às quais nossa juventude está sujeita, ainda não se dispõe de mecanismos capazes de conter o avanço desse processo nefasto. Conforme já indicado, adota-se regularmente a responsabilização individual nos processos de criminalização, ou seja, foca-se o olhar no sujeito e ignora-se o cenário no qual se desenvolve o “espetáculo da criminalidade”. Nesse processo de individualização da culpa, o que resta como alternativa é encaminhar o sujeito ao sistema judiciário e, consequentemente, à penalização via encarceramento.

Cabem, contudo, algumas indagações: será que a sociedade quer de fato que o sistema penitenciário funcione e ressocialize o sujeito? Afinal, se isso acontecer, quem serão os culpados dos malogros da sociedade? Os criminosos do colarinho branco? Esses são tratados pelas camadas dominantes da sociedade brasileira da mesma forma que os desfavorecidos social e economicamente? Veronese33 e Soares7 entendem que não. Segundo esses autores, o Código Penal brasileiro é tendencioso aos interesses de grupos e classes detentoras do poder político-econômico. Assim, as penas mais árduas serão destinadas aos menos prestigiados.

Assis34 entende que o sistema penitenciário brasileiro aplica não somente a pena de encarceramento, mas o apenado é submetido a várias outras penas transversais à sua condenação, tais como: precarização da saúde, perda da capacidade laborativa, violência sexual, exposição a situações degradantes, etc. E apesar dessa condição aterradora, esse autor levantou a hipótese de que a taxa de reincidência criminal no Brasil é de 90%. Assis destaca que não se dispõe de números precisos a esse respeito, mas a crítica à capacidade de ressocialização do sistema penitenciário é nítida em seu trabalho. E Veronese33 expõe ainda outro tipo de violência que acentua ainda mais o processo de criminalização, qual seja a aculturação, definida como processo pelo qual o detento assimila e assume valores e métodos criminais dos demais reclusos. Ao analisar o sistema judiciário brasileiro, observam-se diversas irregularidades, que levam inevitavelmente a graves injustiças. Não é segredo a falta de imparcialidade do judiciário nos julgamentos e procedimentos, já que prevalecem as condenações de negros, pobres e pessoas com baixo nível de escolaridade. Esses fatos são ainda mais comprometidos pela falta de acesso à defesa judicial pelo cidadão economicamente desfavorecido no Brasil, uma vez que a Defensoria Pública fica sobrecarregada e não consegue atender com presteza todos os necessitados, não por falta de vontade ou de comprometimento dos profissionais, mas pela impossibilidade de dedicação ao processo de forma pontual em decorrência da quantidade excessiva de trabalho. Se se considerar os índices de reincidência após o cumprimento das penas, certifica-se de que os mecanismos subjacentes ao sistema judiciário brasileiro se constituem como fatores que elevam a vulnerabilidade dos sujeitos aos processos de criminalização e que, consequentemente, podem elevar a vulnerabilidade dos sujeitos ao uso de drogas ou dependência química.

Vulnerabilidade e desenvolvimento humano

Pesquisas têm revelado que a entrada do sujeito para a criminalidade e o uso de drogas/ dependência química tem ocorrido cada vez mais prematuramente. Entretanto, observa-se que a fase de desenvolvimento humano que mais marca essa inserção é a adolescência.

No Estatuto da Criança e Adolescente35, o adolescente é compreendido como o indivíduo que tem entre 12 e 18 anos de idade. De acordo com os estudiosos de desenvolvimento humano36,37, para entender a adolescência deve-se levar em consideração que o sujeito nessa fase está em processo de construção de valores que firmarão sua identidade.

Para Piaget38, o desenvolvimento cognitivo do adolescente é caracterizado pela capacidade deste em raciocinar em um nível científico e abstrato. A partir dessa fase o indivíduo é capaz do raciocínio hipotético-dedutivo e a experiência desempenha importante papel para se chegar a esse estágio. Entretanto, o desenvolvimento cerebral imaturo leva a mais interferência das emoções no pensamento racional. Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo e afetivo é útil para a compreensão de muitos aspectos do comportamento do adolescente. Elkind, citado por Papalia31, descreveu atitudes e comportamentos imaturos que podem ser provenientes das incursões dos jovens no pensamento abstrato: tendência a discutir; indecisão; encontrar defeitos na figura de autoridade; hipocrisia aparente; autoconsciência; suposição de invulnerabilidade. Assim, o período da adolescência caracteriza-se por ser uma fase de aumento das vulnerabilidades comportamentais e psiquiátricas39 e corresponde a uma complexa interação entre processos de desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial, resultando em mais exposição a situações de risco e busca por novidades40 .

A suposição de invulnerabilidade acaba por tornar o adolescente e os jovens, de modo geral, mais vulneráveis às influências do meio. O adolescente é capaz de criar hipóteses, mas tem dificuldade em flexibilizar seus pensamentos/ideias, considerando as perspectivas de terceiros. O pensamento é diretamente influenciado pelo desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo e esses aspectos podem tanto ampliar como limitar os pensamentos e as ações do adolescente. Diante da necessidade de afirmação de sua identidade, o adolescente apresenta certa rigidez de pensamento, o que o impede de ponderar outras possibilidades.

É na adolescência que o sujeito vivencia de forma marcante e estruturante a chamada “crise de identidade” em que, na tentativa de apropriar-se de sua identidade, o sujeito cria uma série de rupturas com os valores até então estabelecidos, dando lugar a outros que emergem a partir do contato desse sujeito com os novos grupos nos quais se insere36 .

Aberastury e Knobel37 sugerem que na “síndrome da adolescência normal” uma das principais características é a “tendência grupal” em que o grupo de amigos, e não mais o familiar, adquire significativa importância como uma forma de obter segurança e estima pessoal. Assim, o adolescente transfere para os pares parte da dependência que mantinha com a família, tornando-se dependente dos valores do grupo, na medida em que se julga conforme a sua aceitação exterior. Nesse sentido, o grupo constitui uma transição necessária no mundo externo para se alcançar a individuação adulta.

Estudo realizado com objetivo de avaliar a associação entre comportamento de risco e status socioeconômico (SES) no período da adolescência concluiu que os comportamentos de risco nesse período estão associados a níveis mais baixos de SES41. A partir desses da-

dos pode-se inferir que talvez a maior exposição ao risco esteja diretamente relacionada ao risco de perdas e quem tem pouco a perder (afetiva, social e emocionalmente) tende a se expor ao risco mais frequentemente.

Segundo os dados levantados pela Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar42 realizada com 60.973 escolares brasileiros do 9º ano do ensino fundamental, 8,7% desses afirmam ter usado algum tipo de substância ilícita (maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança-perfume e ecstasy). E como já mencionado anteriormente, a idade média de início de uso das diversas substâncias dos escolares da rede pública de ensino varia entre 12 e 14 anos. A faixa etária de maior concentração de menores infratores é de 16-17 anos, o que corresponde a 54% dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas43. Tal dado sugere uma faixa etária aproximada acerca da idade inicial do envolvimento na criminalidade, considerando a escassez de pesquisas que contemplem tais informações. Diante do exposto, percebese que por suas características de desenvolvimento humano a adolescência evidencia a vulnerabilidade do sujeito em relação ao uso de drogas/dependência química e à criminalidade e que o nível socioeconômico pode potencializar ainda mais tais vulnerabilidades.

Compartilhando saberes: o atendimento a indivíduos privados de liberdade e a recorrência das vulnerabilidades

Lidar com a realidade do sistema prisional brasileiro significa deparar-se com a dura realidade de encontrar seres humanos oriundos de famílias desestruturadas, marcados pela vivência de violência doméstica e onde a ausência paterna é imperativa, delegando à mulher a responsabilidade, de sozinha, educar, moralizar, prover, além de ser o apoio emocional dos filhos. Essa tarefa está um tanto impossibilitada, já que, para prover economicamente esse lar, a mulher tem de se ausentar, deixando os filhos sozinhos e apoiando-se somente uns nos outros, o que os tornam presas fáceis de agentes da criminalidade e do uso de drogas. Nesse cenário, a experiência revela que é comum observar-se alto índice de abandono escolar, bem como um ambiente social hostil na medida em que as crianças e jovens não têm acesso igualitário à educação de qualidade, assistência médica adequada, lazer, apoio emocional familiar, referências sociais positivas e significativas dentro do seu grupo social. Isso possibilita que a figura do tráfico e seus representantes confiram o status social almejado pelo jovem. O uso de drogas passa, então, a compensar a carência afetiva e a suprir a ausência de um Estado comprometido com o bem-estar social do cidadão.

No atendimento psicológico a 68 homens condenados ou em cumprimento de prisões preventivas no presídio de Vespasiano-MG, entre os meses de maio e junho de 2015 verificou-se que, deste total, 57 relataram uso de drogas ilícitas. Entre os 11 homens atendidos que negaram o uso de drogas ilícitas, dois declararam uso recorrente de drogas lícitas: um usuário de bebidas etílicas e o outro de psicotrópicos. Dos usuários de drogas ilícitas, a maconha foi a droga mais consumida entre os sujeitos privados de liberdade. A maconha também é a substância ilícita mais consumida pela população geral (representando 8,8%), segundo os dados de 2005 do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil44 . Quanto às razões para iniciar o uso de drogas, a “influência de amigos” esteve presente em todos os argumentos, ainda que apenas três tenham citado também a relação desse aspecto à curiosidade e um relacionou o início do uso de drogas a conflitos familiares e emocionais. Do total de homens atendidos em acompanhamento psicológico, oito associa-

ram a sua entrada na criminalidade ao uso de drogas. Entretanto, o uso de drogas quase sempre foi anterior ao início da prática de atos delituosos, ou seja, em 30 casos o consumo de drogas antecedeu a prática de crimes; em oito casos o consumo de drogas e a prática de crimes ocorreram na mesma época; em 10 casos os sujeitos não souberam informar a idade com que cometeram seu primeiro ato delituoso; e apenas em nove casos os sujeitos depuseram que a prática de crimes foi anterior ao uso de drogas. Estudo realizado numa população sueca identificou significativa correlação entre características familiares psicossociais na infância e comportamento criminoso posterior e mortalidade45. Nessa pesquisa, as características familiares psicossociais avaliadas foram: criminalidade do pai, abuso de álcool e/ou drogas do pai, problemas de saúde mental dos pais e classe ocupacional do pai. Os autores reportam que 2% dos casos de criminalidade entre os homens poderiam ser evitados se o abuso de álcool do pai fosse tratado. E concluíram que a conexão entre características familiares psicossociais, comportamento criminoso e mortalidade parece ser mediada por fatores de riscos individuais, principalmente pelo uso de álcool e/ou abuso de drogas. Este dado corrobora a experiência em acompanhamento psicológico de homens e mulheres privados de liberdade, que cumprem pena em unidades prisionais do estado de Minas Gerais, em que é frequente o relato de vivência de violência doméstica na infância e adolescência, bem como o histórico familiar de criminalidade e uso de drogas. Verifica-se também que após o seu ingresso no sistema prisional o sujeito se vê com dificuldade ou impossibilitado de acessar as drogas para consumo próprio. É comum, porém, que os usuários de drogas/dependentes químicos encarcerados frequentemente passam a usar psicotrópicos durante o aprisionamento. Queixas de insônia, ansiedade, alterações de humor são recorrentes nessa população, o que leva o profissional de saúde (psiquiatra) a prescrever psicotrópicos, que muitas vezes são consumidos em larga escala. Nesse sentido, ocorre a substituição das drogas ilícitas por drogas lícitas nos estabelecimentos prisionais.

Conclusão

Ante o exposto, pensar em vulnerabilidade e criminalidade remete à interação das múltiplas vulnerabilidades (biológica, social, ambiental, desenvolvimental, histórica, cultural e econômica), conforme mencionado anteriormente. Diversos fatores são intrínsecos à criminalidade e relacionam-se diretamente ao cenário atual do uso de drogas. Algumas questões podem ser exploradas em maior profundidade, tais como: seria a dependência química um fator que predispõe o sujeito à criminalidade, ou seja, a dependência química promove mais vulnerabilidade à criminalidade? Ou seria a criminalidade o desencadeador da dependência química e fator de vulnerabilidade a esta?

O Brasil ainda é um país marcado por grande desigualdade social, cultural e econômica, onde a ascensão do tráfico de drogas é cada vez mais evidente. Esse fato tem sido discutido e pesquisado como um dos fatores, talvez o mais relevante, que têm colaborado para o aumento da criminalidade no Brasil, uma vez que diversos crimes (homicídios, roubos, furtos, sequestros, etc.) estão diretamente relacionados ao tráfico de drogas, sendo, inclusive, considerados uma consequência direta do tráfico. Embora não se tenha dados específicos e detalhados acerca do uso de drogas por parte da população carcerária brasileira, é recorrente o relato do uso de drogas por parte significativa da população privada de liberdade. Como já referido no decorrer deste trabalho, ve-

rifica-se que a população carcerária brasileira é constituída predominantemente de jovens pardos ou negros, com baixo nível cultural, socioeconômico e de escolaridade, oriundos de famílias desestruturadas. Ao coletar a história de vida dessas pessoas, fica evidente que a sua entrada na criminalidade e a inserção no mundo das drogas está, quase sempre, relacionada ao grupo social e à influência deste sobre a vida do indivíduo.

Não se pode deixar de ressaltar que, se por um lado é possível observar que o nível socioeconômico, cultural e a cor da pele são aspectos que podem influenciar a dependência química, em decorrência da desigualdade de acesso dessa população na participação da vida social, por outro as características individuais (personalidades e aspectos genéticos) também podem ser decisivas. E esses mesmos aspectos podem ser determinantes da criminalidade, apesar de serem pouco discutidos e pesquisados no Brasil. Em comum têm também a multiplicidade e entrelaçamento de fatores, tornando o sujeito mais vulnerável tanto à criminalidade quanto à dependência química. Conforme já afirmado neste trabalho, a condição ímpar de desenvolvimento dos jovens e adolescentes faz com que eles sejam mais suscetíveis às influências do meio em que estão inseridos. Assim, ao ter contato com as possibilidades simbólicas e materiais que o tráfico proporciona, boa parte dessa parcela da população é seduzida por esse mercado. Além disso, os efeitos das substâncias entorpecentes contribuem ainda mais no processo de “satisfação pessoal”. Alguns sujeitos conseguem manter certo controle sobre o uso. Outros não dispõem de uma estrutura psíquica tão eficaz e tornam-se dependentes químicos. Em muitos casos, essa dependência se constituirá no maior desafio no que se refere ao processo de restauração desses jovens. Percebe-se, então, que a condição peculiar de desenvolvimento associada às influências do meio é fator que torna os jovens mais vulneráveis ao tráfico de drogas e às diversas composições e formatos. Contudo, é o uso e, principalmente, a dependência química, que parecem tornar o jovem muito mais vulnerável à permanência no estado de autodegradação causado pelo uso contínuo de drogas.

À medida que se pensa na vulnerabilidade social e na dependência química versus criminalidade, evidenciam-se os fatores de risco, listados no decorrer deste capítulo, como aspectos predisponentes à dependência química e também à criminalidade, tais como: idade, sexo, cor da pele, desestruturação familiar, local de moradia, incompletude do processo de redemocratização, a fragilidade do sistema de justiça no Brasil, a incapacidade de ressocialização do sistema prisional, o modelo econômico, as especificidades do desenvolvimento dos adolescentes e jovens, o tráfico de armas e de drogas, entre outros. A agremiação dinâmica desses aspectos cria não somente uma atmosfera favorável à emergência da criminalidade e da dependência química, mas contribui efetivamente para sua manutenção.

Enquanto não houver ampliação do olhar sobre o cenário da dependência química e criminalidade, trazendo à luz a responsabilidade não só do indivíduo, mas também a responsabilidade do Estado, objetivando-se uma reformulação estrutural e verdadeiramente participativa da sociedade, corre-se o risco de ficar replicando “ad eternum” os dados encontrados neste trabalho que não deixam dúvidas de que a dependência química e a criminalidade trazem em sua essência a mesma complexidade associada à vulnerabilidade.

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Vulnerabilidade em profissionais de saúde

Monica Maria de Oliveira Melo Vinícius Sousa Pietra Pedroso Marco Túlio de Aquino Enio Roberto Pietra Pedroso

A interação entre as condições biológicas, psicológicas, sociológicas, culturais e espirituais na vida da pessoa, de sua família e da comunidade é o que determina o bem-viver, o bem-estar, a sua saúde. Expressa-se por intermédio da forma como a pessoa interage consigo e com as outras pessoas; pela reflexão sobre suas dúvidas, impressões, atitudes e preocupações, o que permite entender sobre seu corpo, seus sentimentos e sua expectativa social1-4 .

A obtenção deste bem-estar biopsicossocial, cultural e espiritual depende de muitos fatores, desde a percepção crítica, transformadora e transgressora do ser humano sobre si mesmo e a natureza, até o entendimento do limite expresso na dinâmica planetária em reciclar-se e permitir as condições propícias para a manutenção do equilíbrio desejável para a vida. Isto é, na homeostasia implícita nas necessidades de todos os seres vivos e da disponibilidade limitada da Terra na obtenção da matéria.

A vida humana caracteriza-se, na contemporaneidade, pelas incertezas crescentes e a sensação de fragilidade diante dos fatores de risco e vulnerabilidade aos quais todas as pessoas e a sociedade, direta ou indiretamente, estão expostas. Essas características repercutem-se no trabalho de cada pessoa e, especialmente, em relação aos profissionais da saúde, pela exposição usual a múltiplos e variados agentes químicos, físicos, biológicos, psicossociais e ergonômicos5,6 .

O conceito epidemiológico de risco representa a possibilidade de grupos populacionais modificarem a sua relação entre saúde e doença e se tornarem doentes, mas também de se prevenirem apropriadamente e impedirem o adoecimento, de forma que o seu bem-estar e de sua comunidade sejam obtidos e mantidos. O risco representa o cálculo da probabilidade e das chances maiores ou menores de grupos populacionais adoecerem ou morrerem por algum agravo de saúde. O risco ocupacional pode ser ou estar oculto em decorrência de ignorância, desconhecimento ou desinformação; situação em que o trabalhador nem suspeita da sua existência. Pode permanecer latente ou se manifestar e provocar lesão em momento especial ou de estresse; ou, ainda, ser real, conhecido de todos, mas impossível de controle, dado o custo para a instituição ou por falta de vontade política7,8 .

A vulnerabilidade permite entender as práticas de saúde em sua trajetória históricosocial e atuar inter e transdisciplinarmente para conhecer as condições que deixam cada pessoa exposta ao adoecimento pela soma do seu comportamento individual e coletivo, pelas condições socioambientais em que se situa, pelas formas como as políticas públicas apresentam soluções para as suas necessidades de saúde. Pode estimular a determinação da prevenção e de cuidado eficaz e seu encaminhamento para a recuperação plena de seu bem-estar. Pode ser compreendida como o conjunto de fatores que aumentam ou diminuem o risco de se expor ao adoecimento em todas as situações da vida, mas também como a forma de avaliar as chances de que cada pessoa possa contrair doenças. Essas chances variam e dependem de fatores biológicos, sociais e culturais e envolvem os do ambiente de trabalho e de cada atividade profissional. A vulnerabilidade compreende a perspectiva:

a) profissional - que se refere à quantidade e qualidade da informação que cada pessoa dispõe sobre sua atividade, à sua capacidade de elaborar informações e as aplicar em sua vida prática;

b) social - que se constitui nos fatores sociais que determinam o acesso às informações, serviços, bens culturais; nas restrições ao exercício da cidadania, exposição à violência, nível de prioridade política ou de investimentos dados à saúde e condições de moradia, educação e trabalho; c) programática - depende das ações, do compromisso, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção à saúde, que o estado, a iniciativa privada e as organizações da sociedade civil empreendem para o enfrentamento das condições que proporcionam o adoecimento e diminuem as chances de ocorrência das enfermidades9-13 .

A intervenção sobre todos esses fatores deve considerar não só o trabalhador, mas também as situações que interferem em seus comportamentos privados, políticos, econômicos, culturais e dos gestores das instituições de saúde, que podem determinar mais proteção e considerar que o cuidado do outro significa também o cuidado de si mesmo14-29 . Qual é a percepção dos profissionais de saúde sobre o risco e a vulnerabilidade a que estão afeitos? Quais estratégias podem ser empreendidas visando à adoção de práticas seguras no trabalho em saúde?

Intervenção para a busca de melhores condições de saúde

É preciso atuar em vários níveis para modificar as condições pessoais e sociais que impedem o bem-estar1-4,9,10,28,29 .

A educação representa o ponto central em que a informação e sua transformação em conhecimento, de forma crítica, reflexiva e libertária, alteram o padrão de comportamento e sua ação sobre as transformações pessoais e sociais. A educação para a saúde amplia o conhecimento sobre o bem-viver, a consciência individual e social e incita o desenvolvimento de ações preventivas, o reconhecimento de doenças prevalentes e o equilíbrio com a natureza, impedindo a exploração do trabalhador16-21 .

É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valores culturais sobre a doença, a saúde, a tolerância à dor e a legitimidade de reações ao mal-estar e perceber que a dimensão dos incidentes e eventos críticos que influenciam a vida de cada pessoa pode predizer a probabilidade de início de doenças físicas e mentais13,29-31 .

A intervenção para obtenção de bem-estar, portanto, constitui-se em missão de cidadania e pode ser realizada em todos os seus níveis de complexidade do sistema hierarquizado de saúde16-19 .

Risco e vulnerabilidade em educação e saúde

O conceito de vulnerabilidade em saúde relaciona-se ao esforço de superar as práticas preventivas apoiadas no conceito de risco. O risco constitui-se em instrumento de quantificação das possibilidades de adoecimento de pessoas ou populações, a partir da identificação de possíveis relações entre eventos e condições patológicas e não patológicas. As aplicações desse conceito às práticas de saúde pública associaram-se à sua operacionalidade, à ampliação da capacidade preditiva e de controle ou eliminação de determinados fatores de risco e redução de probabilidade da ocorrência de agravos e danos. No entanto, quando a interpretação das variáveis selecionadas não leva em conta a variabilidade e a dinâmica de seus significados sociais reais e o risco aferido passa de uma análise abstrata

para a intervenção prática sem as mediações necessárias para que ganhe significado real, a sua contribuição para orientar a prática preventiva é insuficiente ou até prejudicial, ao reduzir os fenômenos de adoecimento a alguns de seus componentes que podem ser isoladamente mensuráveis.

Os estudos de risco de adoecimento determinam, em geral, decomposição do todo em partes, associadas entre si por relações lineares e fixas de causa-efeito e lidam com a positividade que abstrai a variabilidade, a complexidade e a dinâmica dos significados e das práticas sociais em que as possibilidades de adoecer são vivenciadas e experimentadas. Essas relações de causa-efeito explicam, em parte, as chances de adoecimento e permitem, quando aplicadas ao comportamento relacionado à saúde, determinar o risco devido à ignorância, irresponsabilidade ou livre-arbítrio13,16,17,27-29 .

É essa compreensão que orienta os modelos educativos que visam a convencer a pessoa a agir de modo diferente com base em estratégias educacionais dirigidas ao alerta e à transmissão de informações técnico-científicas. Esses modelos orientam também o domínio dos profissionais de saúde, priorizam a sabedoria técnico-científica e desprezam a vivência do cuidado popular e tradicional, que não tem a pretensão de universalidade da ciência, nem de reprodutibilidade da técnica, mas que utiliza juízos que associam aprendizado e experiência, de valor para a construção do processo educacional de cada grupo populacional. É importante, portanto, incorporar aos projetos educativos em saúde a dimensão do processo saúde-doença, considerando sua complexidade e sua multiplicidade de interferências, como é a proposta do estudo de vulnerabilidade. Isto é: considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como o resultado de condições individuais, coletivas e contextuais implicadas na maior suscetibilidade ao adoecimento e, concomitantemente, na maior ou menor disponibilidade de recursos de proteção e, portanto, reconhecendo a vulnerabilidade de alguém, de quê e de quais circunstâncias ou condições1-8 . Os componentes da vulnerabilidade também agem sobre os profissionais da saúde e pode-se considerar que dependem das características: a) profissional-individuais - decorrentes de seu desenvolvimento i) cognitivo, devido à quantidade e qualidade de informação disponível e em sua transformação em conhecimento; ii) comportamental, na capacidade, habilidade e interesse em transformar a informação e o conhecimento em atitudes e ações de proteção contra o adoecimento, no controle de comportamentos que criam oportunidades para o adoecimento. O comportamento de mais vulnerabilidade não decorre, necessariamente, da ação voluntária das pessoas, mas relaciona-se, especialmente, às condições ambientais, culturais e sociais em que o comportamento ocorre e à consciência das pessoas sobre seu comportamento e à sua efetiva capacidade de modificá-lo; b) sociais - envolve o acesso e a possibilidade de refletir sobre a informação e de sua capacidade de provocar mudança que melhore sua vida, o que se associa ao acesso aos recursos materiais, à escola e ao serviço de saúde, ao poder de influenciar decisões políticas e à possibilidade de enfrentar barreiras culturais e de estar livre de todas as coerções; c) programático-institucionais - associam os componentes individual e social ao grau e à qualidade de compromissos e recursos; gerência e monitoramento de programas nacionais, regionais ou locais de prevenção e cuidado; que são decisivos para definir necessidades, orientar e otimizar o uso dos recursos sociais existentes. Depende do entendimento da presença, multiplicidade, interconexão, instabilidade e inconstância, momento, história,

dos fatores profissional-sociais e programáticos que determinam a possibilidade de adoecer10-13 .

Determinantes da saúde

A busca do bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual, e não apenas a ausência de doença, constitui-se no conceito contemporâneo de saúde e revela a busca por esse bem -estar, que se constitui no bem maior do ser vivo, portanto, do ser humano. É fácil ser definido? Não. Depende de cada um, da percepção sobre si e o outro, sobre a natureza e a vida. Os fatores biopsicossociais culturais e espirituais promovem e, ao mesmo tempo, protegem a pessoa de doença e dependem, essencialmente, da forma como a pessoa se comporta, como comporta sua família, como a sociedade atua, considera e valoriza a saúde e a educação e da forma, portanto, como todos exercem a cidadania e distribuem bens sociais com equanimidade e justiça social, direitos e deveres1-4,12,13 .

Determinantes da doença

Vários fatores podem desencadear modificações da relação saúde-doença com predomínio maior de uma sobre a outra e da possibilidade da perda do equilíbrio entre elas, como se observa com: a) Mudanças ecológicas e relacionadas às alterações que acompanham o tempo geológico, não modificáveis pela ação humana, ao desenvolvimento econômico e uso da terra, devidas ao manejo da agricultura e irrigação da terra e transposição da água, represamento de rios para a construção de represas e geração de eletricidade; às mudança nos ecossistemas hídricos, com des e reflorestamentos de monoculturas. Essas intervenções podem resultar em enchentes, secas, fome e mudança climática e favorecer esquistossomose e outras zooparasitoses, febre hemorrágica, expansão da leishmaniose, disseminação de arbovírus (mayaro, oropouche, rócio, sabiá), catástrofes, inundações de cidades; b) Demografia e comportamento humano - devido ao crescimento e migrações populacionais, às guerras, conflitos civis e étnicos, deterioração de centros urbanos, adensamento populacional, modificações no comportamento sexual, uso de drogas ilícitas (venosas ou não), pobreza e miséria, fome e perda de perspectiva de vida para muitas tribos e nações que permitem a introdução e disseminação do vírus da imunodeficiência humana e outras doenças sexualmente transmissíveis, de dengue e ressurgência da tuberculose, cólera, febre tifoide, ebola e vírus hemorrágicos e o agravamento das condições de nutrição, educação, imunidade, controle social, disputa por trabalho e poder, com resultados catastróficos e desencadeadores de ansiedade, tensão, agonia, depressão, insônia, intolerância e desajuste de atitudes, e guerras; c) Comércio e viagens internacionais - que possibilitam o movimento de bens e pessoas, a sua rapidez permitida pelas viagens aéreas, o que contribui para a disseminação da malária e influenza, mosquitos vetores, introdução de cólera e dengue em regiões desprotegidas de vigilância sanitária adequada; d) Indústria e tecnologia: responsáveis pela globalização em relação à oferta de alimentos, com mudanças em seu processamento e empacotamento, à técnica de transplan-

tes de órgãos e tecidos, ao uso de imunossupressores, à antibioticoterapia irracional em seres humanos e em animais fontes de alimentos, que se relacionam a encefalite bovina, síndrome hemolítica urêmica (E. coli), doenças transfusionais (hepatites virais, chagas), infecções em imunossuprimidos e hospitalares; e) Adaptação e mudança de agentes - que demarcam a evolução de microrganismos, a pressão seletiva e desenvolvimento de resistência aos antibacterianos e antivirais e que determinam variações naturais e mutações em vírus (vírus da imunodeficiência humana, vírus influenza), bactérias (febre purpúrica brasileira por H. influenzae, infecções hospitalares) e resistência a antibióticos, antivirais, antimaláricos, pesticidas e herbicidas e impulsionam o desenvolvimento de transgênicos e as suas possibilidades de interferirem no equilíbrio da natureza; f) Colapso de medidas de saúde pública que determinam a inadequação do saneamento e do controle de vetores, cortes em programas de prevenção de doenças e que se relacionam a cólera, dengue, difteria, desnutrição, supernutrição, aterosclerose e doenças degenerativas32,33 .

O modelo econômico baseado na exploração do trabalho, competição, solidão, menos capacidade afetiva, estresse, ação predatória sobre o meio, desvios da nutrição (sub e supernutrição), desemprego, condições insalubres de moradia, urbanização sem planejamento, saneamento inadequado, em detrimento da solidariedade e distribuição justa e digna de bens sociais aliado à falta de financiamento para a educação e a saúde favorece a variabilidade de comportamento de vetores e do ser humano. Essa variabilidade abrange fome, tuberculose, tuberculose multirresistente, hanseníase, cólera, febre amarela, dengue, imunodeficiência adquirida, hantavirose, hepatites virais, papilomavirose, leishmaniose, doença de Chagas, malária, estresse, esquistossomose, violência, pesticidas, uso indevido de antibióticos e de herbicidas, desequilíbrio ecológico, infecção pelo H. pylori e Chlamydia, exploração inadvertida de nichos ecológicos, uso de transgênicos, saúde e educação não priorizadas nas políticas públicas e uso de drogas lícitas e ilícitas. O neoliberalismo tecnocratiza decisões, centraliza riquezas, justifica o desemprego e a desigualdade social, exclui o cidadão do destino de seu país e incita o consumismo e a competição excessiva, que desagregam e promovem pressões psíquicas insuportáveis.

Observa-se na trajetória humana que a prevalência da ganância e a luta pela manutenção do poder e do dinheiro associam-se à acentuada possibilidade de desequilíbrio social e à insensibilidade na percepção do outro. Esse comportamento, ou modelo, possui grande probabilidade de promover onipotência, desconfiança, paralisia afetiva, intolerância, incapacidade em lidar com a realidade, vazio existencial, individualismo, violência, delinquência, falta de moradia, indefinição de políticas sobre a terra e sobre a produção de alimentos, ausência de água potável e esgotos, deficiência de imunizações, descaso com a saúde, destruição planetária, desenvolvimento falacioso, temporário, limitado, busca de poder e manipulação social. O que adoece e mata são menos os microrganismos e mais a criminalidade, violência, acidentes, solidão, angústia, depressão, estresse, deterioração ambiental, intoxicantes químicos, drogas lícitas e ilícitas, sedentarismo, má-alimentação, ignorância, miséria, desonestidade, fisiologismo e impunidade.

O que faz, portanto, o adoecimento ocorrer? Em quase dois terços das vezes, o comportamento humano, o que significa como a pessoa e a sociedade agem, seja em relação

ao que alimenta e bebe, o que respira e aspira, como exercita ou se mantém sedentário e, especialmente, no que pensa e como age!

Este é um assunto contemporâneo? Não; eterno, desde sempre. Simples? Não; complexo e da própria existência humana. Fácil de resolução? Não; depende de vontade, coragem e cidadania. Está relacionado aos valores sociais da contemporaneidade? Sem dúvida, especialmente de ganância, da busca de patrimônio rápido, de juventude, de eternidade, da estética, do poder e da incapacidade do estado em garantir bens sociais equânimes e de valorizar com justiça e dignidade a vida humana32,33 .

Saúde e sua transdisciplinaridade

A interação entre as condições biológicas, psicológicas, sociológicas, culturais e espirituais na vida da pessoa, de sua família e da comunidade é o que determina o bem-viver, o bem-estar, a sua saúde. Essa interação se expressa por intermédio da forma como a pessoa interage consigo e com as outras pessoas, na reflexão sobre suas dúvidas, impressões, atitudes e preocupações e que permite entender seu corpo, seus sentimentos e sua expectativa social e se resume na forma como se comporta. Esse bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual, que define o estado de bem-estar ou de saúde, depende, portanto: da percepção crítica, transformadora e transgressora do ser humano sobre si mesmo e a natureza; do autoconhecimento; do entendimento do seu limite vital, o que inclui o da sociedade em que está inserido e o do próprio planeta; do sentimento de finitude material e de como se interpreta em relação à morte e ao mistério da transcendência e como lida com suas limitações e a sua finitude1,2,32,33 .

A saúde pressupõe, portanto, estabelecer projetos de cidadania, harmonia com a natureza, solidariedade com tudo e todos, que potencializa o afeto e distribui equanimente bens sociais renováveis, que reconhece a importância dos ecossistemas para a vida e promove dignidade e prazer, com justiça social e paz32,33 .

Visão dos profissionais da área da saúde sobre seu papel profissional e a vulnerabilidade em seu exercício

O trabalho dos profissionais envolvidos na área da saúde, na maioria das vezes, representa desafio que não se limita ao diagnóstico e à abordagem terapêutica, mas implica perceber a pessoa em sua total dimensão, o que extrapola a objetividade e pressupõe a percepção subjetiva e integrada da pessoa na família e sociedade, plena e em intercâmbio com implicações resultantes de sua opinião, atitude e crença1-5,34-37 .

A visão unilateral e restrita em relação ao ser humano determina o que se observa quando se fixa algum parâmetro como variável dependente ou apenas independente, no estudo de um fenômeno físico-químico, o que incita ao risco de transformar o ser humano em objeto ou peça; e aferir o paciente e a comunidade a partir de partes e não como pessoa ou de seu todo “corpo e alma”.

Esse risco pode considerar que a saúde humana depende eminentemente da tecnologia, o que implica a possibilidade de reducionismo e de expressar parte da matéria, e não necessariamente o seu todo. A ampla visão da pessoa, sem limites de órgãos ou sistemas, do corpo e alma, indivíduo e coletivo, permite transgredir e ultrapassar conhecimentos

e habilidades técnicas e ampliar a capacidade de criar relacionamento consigo e com o outro e como valoriza sua vida e a dos outros e se percebe coletivamente capaz de trocas de tolerância e complacência com o improvável, o erro, o desafio, a solidariedade, a justiça e a equanimidade34-37 . A capacidade que todos os profissionais que atuam na área da saúde têm de entender o seu próprio potencial de intervenção em busca do bem-estar e de utilizá-lo com juízo, equilíbrio e sem aproveitar da boa-fé das pessoas constitui-se na chave de todo relacionamento com a pessoa doente e com sua família, com respeito, confidência e esperança. Isso beneficia a motivação, aliança e enlevo, de forma integral, em que o paciente se integra como espécie respeitosa com as outras em seu contexto planetário. Não é a tecnologia que impõe confiança e confidência, mas a ação empreendida pelos profissionais da área da saúde em sua capacidade de ausculta e ação. “A tecnologia não é boa ou ruim, mas boa ou ruim é a sua forma de aplicação”. O profissional da área da saúde, por isso mesmo, deve aprender a se conhecer o suficiente para impedir que seus preconceitos e problemas naturais perturbem sua relação com a pessoa doente, sua família e a sociedade e se aplique na obtenção de relacionamento adequado para evitar que essa interação conduza a erros que decorram de sua visão unilateral e preconceituosa32,33,37. A dimensão completa da vida e do trabalho dos profissionais da área da saúde, portanto, desdobra-se em todos os níveis em que é vivida, desde o compromisso irrestrito com a inovação, que pressupõe a coragem de criar e transformar o seu trabalho cotidiano, até se envolver e participar em movimentos e lutas justas e necessárias ao desenvolvimento humano. Constitui-se na procura de meios de atingir, pelo exercício profissional, lugares e experiências que se espalham e recriam por onde se encontram com as pessoas. Por isso mesmo, requer participar efetivamente do seu encontro com a experiência humana que puder acumular e entender, que se realiza em todos os momentos e locais, em sua interação com a vida e com as coisas. É preciso perscrutar a alma em todos os seus recônditos para reconhecer os limites próprios e de cada um. Esse processo busca entender a singularidade de cada pessoa e de sua harmonia com a própria natureza, em cada momento. A interação e o papel dos profissionais da área da saúde são perceptíveis na busca pelo bem-estar de todos e caracteriza-se pela percepção de que para cada 1.000 problemas de saúde que ocorrem usualmente no ambiente doméstico, 750 são resolvidos no próprio ambiente domiciliar, por medidas populares milenares, como observação, repouso, limpeza, banho, ventilação, tomar sol, dormir; ou uso de água, chá ou compressa. Dessa forma, a própria natureza se encarrega de resolver adequadamente e revelam-se observação e vigilância, tradição, vivência, impressão, cujo cuidado principal é não impedir que a natureza cuide de si ou que seja maltratada. O restante dos problemas recorre à atenção primaria à saúde sem influência de ato médico, recebendo medidas como hidratação oral, limpeza de feridas, orientação dietética, exercício adequado, sendo, desses pacientes, 100 encaminhados para consulta médica. Entre os pacientes sob avaliação médica, em 10 eventualidades a primeira consulta é suficiente para identificar o problema e ajudar na sua resolução; em 35 é necessário retorno para controle e vigilância, sem a necessidade de exame complementar; e em 40 o acompanhamento médico ocorre por mais de seis meses, sendo 14 encaminhados para a observação de especialista e um para a internação hospitalar. Na atenção primária à saúde com resolubilidade médica de quase 85%, ocorrem, em geral, oito grupos nosológicos,

sendo necessários 11 exames complementares e 14 medicamentos para a sua abordagem.

Essa observação decorre, em sua essência, de que “o que é raro é raríssimo, e o comum é comuníssimo”. Revela que há na prática a necessidade de ruptura com o consumismo e a valorização de bens sociais para qualidade de vida, aliadas da saúde, como: educação, trabalho, seguridade social; e da atenção e cuidado com a pessoa e sua família. É preciso entender que os avanços da biologia molecular-estrutural, imunologia, genética não podem impedir o valor da Psicologia, Antropologia e Sociologia sobre o entendimento da vida e da morbimortalidade32,33,37 .

A ciência requer muito mais do que aplicar o conhecimento do último segundo, é preciso conhecer e aplicar o padrão do pensamento científico, desenvolver mente inquisitiva, crítica, independência; projetar experimentos; obter dados; analisar sua validade e especificidade; questionar e responder no limite da precisão definida; estabelecer medidas de limite do que é adequado ou não, sem decisão fútil ou inútil, e ajuizar com equilíbrio o que deve e não deve ser feito. Os resultados falso-positivos podem sujeitar-se a algum procedimento desnecessário. O exame complementar que confirma o diagnóstico já feito constitui desperdício de recursos. É preciso avaliar se o exame complementar pode modificar a escolha da estratégia de tratamento. A compreensão da alma, entretanto, ultrapassa todos esses dados objetivos, e sem a sua perscrutação não se consegue perceber o pedido de ajuda, de auxílio, do encontro com o ser que está em cada pessoa. A obtenção de saúde nem sempre significa diagnóstico ou tratamento no sentido de que é preciso aplicar alguma fórmula físico-química industrializada. Muitas vezes caracteriza-se por aliviar o impacto da enfermidade, ajudar a pessoa a se integrar nela mesma, em sua família e comunidade; por perceber o esforço da pessoa em se adaptar à perda de sua saúde e a conviver com limitações; e pelo compromisso com o bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual. As enfermidades tendem a ocorrer em situações de excessiva exigência pessoal ou diante de necessidade de vida não resolvida de forma satisfatória. As doenças incuráveis inspiram desesperança, sofrimento e angústia. A morte pode devastar o paciente e sua família, o que inclui ansiedade, medo, pânico, enigma sobre o futuro, responsabilidade pela família, trabalho, dívidas. É preciso ajudar a pessoa doente a entender o correto para si, sentir-se valorizado, assumir com esperança recursos existentes para reduzir sofrimento, cooperar para a cura e o controle da doença.

É preciso, portanto, conhecer-se para impedir que a primeira impressão, não adequadamente reflexiva, afete a relação ou promova erros na interação com o paciente. O interesse e o bem-estar do paciente devem superar os de qualquer dos profissionais da área da saúde e impulsionar a transcender a capacidade técnica, o conhecimento científico e o interesse e distinguir o que é ou não supérfluo, a atingir a compaixão. A cura orgânica não significa, necessariamente, sentir-se satisfeito; e a tecnologia aplicada não representa melhor assistência e pode inclusive descaracterizar e despersonalizar o profissional da área da saúde ou torná-lo minimizador da tensão social. É preciso respeito, confidência, solidariedade desde o nascer até experimentar-se, ajuizar a experiência, entender a existência, viver a sabedoria do juízo, buscar bem-estar na própria essência, conscientizarse da própria morte, transcender a matéria, ajudar a pessoa doente a se sentir melhor com ou sem a doença e perceber o seu limite ou a doença em paz1-4,12,13,32,33,37 .

Perspectivas atuais do trabalho dos profissionais da área da saúde e sua influência sobre o estado de saúde

A impressão de que a tecnologia pode deixar o profissional da área da saúde mais disponível para se dedicar ao seu paciente não se confirmou. O pressuposto de atuação de todo profissional da área da saúde, entretanto, baseia-se na sensibilidade do cuidado das pessoas.

A luta pela sobrevivência incita à competição desenfreada, à perda da solidariedade, à concessão de uso de todo artifício para a manutenção de vantagens pessoais que mantenham a sua posição social e econômica, com prevalência do individualismo que nega a solidariedade, a espontaneidade, o respeito, a confiança, pressupostos essenciais para o acolher e cuidar de pessoas37-41 .

A sensibilidade de olhos, ouvidos, mãos, sentidos, sentimentos, coração, como a essência para a compreensão da pessoa não pode ser substituída pela razão, racionalidade, evidência, programa, protocolo e técnica, que veem a pessoa doente como doença, peça, órgão, sistema, técnica cirúrgica, protocolo computadorizado. A complexidade da atuação de todos os profissionais da área da saúde e a responsabilidade implícita em seu trabalho exigem, portanto, formação humanística e humanitária que requer também que tenha reconhecimento justo, condições de trabalho adequadas, educação continuada e proteção em sua função de forma a propiciar condições dignas para sua execução. É isso que se observa em sua prática? Não; ao contrário, as condições de trabalho são precárias, sendo o Brasil o país que menos aplica recursos em saúde, proporcionalmente a outras economias semelhantes em todo o planeta. Os profissionais da área da saúde são deixados ao seu próprio destino e sua dignidade exige múltiplos empregos, muitos sob sistema de produtividade, sob regime de trabalho exaustivo e sob tensão imensa. Esse ambiente é por si salutar? O exercício profissional que não privilegia a pessoa passa a se resguardar por guias, regras e diretrizes definidas muitas vezes por conflito de interesse, medo de demanda judiciária e de ser considerado obsoleto. Esse comportamento conduz à solicitação de mais exames complementares, em confiança mais em equipamentos do que na própria sensibilidade e capacidade de discernimento, o que mantém o lucro das indústrias, distanciando o profissional da área da saúde da pessoa32,33,42 .

Busca de melhores condições de saúde

É preciso atuar em vários níveis para modificar as condições pessoais e sociais que impedem o bem-estar. A educação é essencial, em que a informação e o conhecimento consequentes, reflexivos, críticos e libertários, aliados à experiência, ajudam a estabelecer melhor o padrão de comportamento frente às prerrogativas pessoais e sociais transformadoras e a obter a sabedoria que amplifica a vida humana. A educação para a saúde amplia o conhecimento sobre o bem-viver, a consciência individual e social, incita às ações de prevenção, ao reconhecimento de doenças prevalentes, ao equilíbrio com a natureza e impede a exploração do trabalhador.1-4,9,10,12,13 .

É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valores culturais sobre a doença, a saúde, a tolerância ao sofrimento, a legitimidade de reações ao mal-estar

e perceber que a dimensão dos eventos de influência sobre a vida de cada pessoa pode predizer, com muita certeza, a probabilidade de ocorrência de doenças físicas e emocionais32,33,37,42 .

A intervenção para obtenção de bem-estar é tarefa de cidadania e pode ser feita em todos os seus níveis de complexidade.

A transferência de responsabilidades de serviços básicos para o setor privado, sem garantia de equidade na sua oferta; a instituição do usuário-consumidor, na lógica do custo-benefício, não no cidadão que possui um bem, a saúde; a competição pela lucratividade, não como benefício para as pessoas e o planeta; a centralização da conceituação de saúde na doença e no indivíduo, baseada na tecnologia, sem favorecer o uso ajuizado de serviços adequados ou apropriados; os gastos indevidos com a atenção médica, medicamentos, exames, equipamentos; tornam impossível pensar em preservar a pessoa e o planeta. A lógica do individualismo não preserva o planeta para todos, nem privilegia o equilíbrio e a harmonia do corpo e da alma e de sua interação com a natureza, que é dinâmica e materialmente finita!

A decisão política de privilegiar o ser humano e não o capital como o substantivo de todas as decisões, portanto, significa como pressuposto de bem-estar da humanidade: educação para todos; financiamento adequado para o cuidado com as pessoas e o meio ambiente; valorização do trabalho como princípio fundamental da organização social; estrutura social com oportunidades igualitárias para todas as pessoas, incluindo a reflexão sobre estigmas; condições físicas dos serviços de atenção à saúde e à doença, em especial, para o setor saúde, como tipo de consultório, privacidade do paciente; proximidade do médico e de outros profissionais de saúde com o paciente e sua família, incluindo atendimento domiciliar, noturno, nos fins-de-semana e feriados; disponibilidade de recursos diagnósticos, terapêuticos e de reabilitação20-23,42 . Essa perspectiva profissional requer visão interdisciplinar e multiprofissional, com respeito não só entre os vários profissionais que compõem a equipe de saúde, mas com a pessoa doente, que é o substantivo de todas as ações, na preservação da sua dignidade e de seus familiares.

É possível, diante da complexidade das relações biopsicossociais culturais e espirituais o trabalho solitário dos profissionais da saúde?

O trabalho transdisciplinar e multiprofissional é a base da atenção completa à saúde. A interação dos vários profissionais que compõem a equipe de saúde diminui algum dos seus membros? A participação da Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Nutrição, Serviço Social, Psicologia e tantas quantas forem as profissões e as ações cidadãs são bem-vindas na tarefa de proteger a vida e o planeta. De que dependem as relações profissionais? Dependem da discussão do processo de trabalho, da organização do conhecimento a ser alcançado e da participação de cada um, do limite que se associa ao convívio com respeito e confiança. Da integração em busca da plenitude de todos e da obtenção do pressuposto de cada atividade profissional é que conflui a busca do bem-estar que todos almejam e merecem.

A distinção das ações na área da saúde diz respeito especialmente a: amizade, respeito, e solidariedade, em que – “tudo vale a pena se a alma não for pequena”. A saúde é dos bens mais significativos da expressão humana e da vida. Ela vale o esfor-

Preparo para a prática

A prática dos profissionais da área da saúde depende das condições que moldam a todos para a sua missão compartilhada e se relacionam ao estilo de vida, ao local escolhido para o trabalho, ao tamanho e às características da comunidade escolhida para o exercício profissional de cada um. Não é tarefa fácil. O conceito de vulnerabilidade contém algumas especificidades que abrangem: o indivíduo ou a compreensão do comportamento pessoal à qualidade da informação de que cada pessoa dispõe sobre os problemas de saúde, sua reflexão e a aplicação na prática; o social, que avalia a obtenção das informações, o acesso aos meios de comunicação, a disponibilidade de recursos cognitivos e materiais, o poder de participar de decisões políticas e em instituições; e os programáticos, estabelecidos para responder ao controle de enfermidades, o nível e qualidade de compromisso das instituições, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção12,32,33,37 .

Esses objetivos têm sido obtidos?

A vulnerabilidade do profissional da área da saúde

Observam-se, no Brasil, algumas características que são comuns a todos os profissionais da área da saúde, como: grande aumento do número de graduados em todas as áreas; concentração predominante nas áreas metropolitanas e região Sudeste; aumento da participação feminina; rejuvenescimento da força de trabalho, mais intensa entre os profissionais de nível universitário e na terceira década de vida; aumento de absorção de empregos no setor privado; extensão da jornada de trabalho de 46% dos médicos para mais de 50 horas por semana.

O trabalho nunca é neutro em relação à saúde do trabalhador, isto é, pode favorecer em maior ou menor grau a doença, influenciar ou não a sua autorrealização e satisfação, determinar relacionamentos que podem ser conflituosos, que requerem desenvolvimento de inter e intrassubjetividades e seu reconhecimento e valorização social1,34-37.

A Constituição Federal de 1988, no Capítulo II, determina a necessidade de redução dos riscos próprios do trabalho por intermédio de normas de saúde, higiene e segurança; de forma equânime, independentemente da área de atuação do trabalhador. A proteção aos riscos que o trabalho pode determinar à saúde do trabalhador é inerente a cada tipo de atividade, o que requer vigilância para a sua insalubridade potencial e a instituição de controle, prevenção, tratamento e recuperação das situações em que o trabalho submete o trabalhador à instabilidade e à perda de sua integridade individual, coletiva, orgânica e psíquica.

Os trabalhadores da área da saúde são continuadamente expostos a riscos que rompem com sua estabilidade biopsicossocial cultural e espiritual e que requerem atenção, reconhecimento e propostas decisivas para que sejam impedidos de exercerem influência deletéria sobre a sua vida. Todos são afetados pelo sofrimento psíquico próprio de seu trabalho, sendo que em algumas delas se soma a predominância da população feminina, o que adiciona ao desgaste profissional a superposição da dupla jornada de trabalho e a desvalorização do trabalho feminino.

A hegemonia médica pode também exercer efeito intimidador nas relações interdisciplinares e multiprofissionais, com o risco de desencadear dificuldades de relacionamentos, o que requer o entendimento do limite pessoal e o respeito com cada uma das profissões que compõem a equipe de saúde.

É essencial que as políticas públicas em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) sejam consequentes, dignas com o cidadão e com seus trabalhadores, como pressuposto para que seja eficiente e capaz de atender ao desejo das Assembleias Nacionais de Saúde que lutaram por décadas para que a saúde se transformasse em direito de cidadania e dever do estado. O SUS, em verdade, não é único, nem igualitário, nem democrático e com incoerências e desigualdades que representam desafios a serem resolvidos em sua construção e desenvolvimento. Esses fatores exercem efeito devastador sobre profissões que cuidam diretamente do descaso ao cidadão brasileiro, o que é aplicado a todos os profissionais da saúde. As profissões que são predominantemente exercidas por mulheres têm acrescido ao desgaste profissional a dupla jornada de trabalho e a pouca valorização do trabalho feminino na sua família; e as mulheres médicas ainda sofrem preconceitos, obstáculos familiares e sociais para o seu exercício profissional. O risco da transmissão da síndrome de imunodeficiência adquirida, nos Estados Unidos da América, foi mais comum, em ordem decrescente, em: enfermeiros, técnicos de laboratório e médicos não cirurgiões1-9,12-20 .

Vulnerabilidade do profissional de saúde do hospital das clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais nos anos de 2010 a 2014

Foram analisados dados disponibilizados pelo Departamento de Atenção à Saúde do Trabalhador (DAST) referentes às condições que favoreceram o adoecimento dos servidores do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/ UFMG) no quinquênio compreendido entre 2010 e 2014, por meio dos registros de afastamentos por motivo de saúde e dados de acidentes de trabalho notificados. Foram analisados dados de assistentes sociais, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas, psicólogos, técnicos e auxiliares de enfermagem e terapeutas ocupacionais, totalizando 10 categorias profissionais. Observou-se que, nesses cinco anos analisados, em média, 66,5% dos profissionais de saúde do HC/UFMG tiveram algum afastamento por motivo de saúde, incluindo afastamentos devidos a algum problema clínico ou psiquiátrico e de durações variadas. Apesar do alto percentual de servidores afastados em cada ano, a subnotificação dos dados ainda é realidade em serviço hospitalar onde, por motivos diversos, muitas vezes o servidor recorre a folgas ou trocas de plantão sem comunicar oficialmente sobre o seu adoecimento (Tabela 1).

Tabela 1: Número total de servidores ativos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais afastados do serviço por motivo de adoecimento no período entre 2010 e 2014

Ano

2010

2011

2012

2013

2014

Servidores ativos do HC/UFMG

Valor Absoluto

Total

1208

1193 Afastados

790

807 Psiquiátrico

95 (12%)

106 (13,1%)

Motivo do Afastamento (Número Absoluto e %)

Clínico

695 (88%) 701 (86,9%)

1243

1223

1216 794

847

813 93 (11,7%)

108 (12,7%)

111 (13,7%) 701 (88,3%)

739 (87,3%)

702 (86,3%)

Servidores afastados (%)

65,30%

67,60%

63,80%

69,20%

66,80%

Fonte: Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Os afastamentos por motivo clínico corresponderam a 87% do total de absenteísmos nos cinco anos analisados, sendo o motivo psiquiátrico responsável por 13%, em média, dos adoecimentos, com destaque para as doenças osteomusculares entre os motivos de adoecimento clínico (Tabela 2).

Tabela 2: O número total de afastamentos em relação às diversas categorias profissionais ativas anotadas no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014

Profissional

Assistente Social

Enfermeiro

Farmacêutico

Fisioterapeuta Fonoaudiólogo Médico

Nutricionista

Psicólogo T/A Enfermagem TO

Total

2010

11/1,4%

83/10,5%

20/2,5%

9/1,1%

1/0,1%

55/7%

7/0,8%

4/0,5%

595/75,3%

5/0,6%

790/100%

Número (absoluto/%) Total de Afastamentos (ano)

2011 2012 2013 2014

12/1,5%

95/11,8%

19/2,3%

13/1,6%

1/0,1%

57/7%

9/1,1%

1/0,1%

597/74%

3/0,3%

807/100% 16/2%

90/11,3%

18/2,2%

17/2,1%

2/0,2%

74/9,3%

9/1,1%

7/0,8%

552/69,5%

6/0,7%

794/100% 13/1,5%

103/12,2%

19/2,2%

15/1,7%

0/0%

68/8%

8/1%

12/1,4%

603/71,1%

6/0,7%

847/100% 6/0,7%

98/12%

17/2%

14/1,7%

3/0,3%

77/9,4%

9/1,1%

9/1,1%

574/70,6%

6/0,7%

813/100%

Total

58/1,4%

469/11,5%

73/1,8%

68/1,7%

6/0,14%

331/8,1%

42/1,0%

33/0,8%

2921/72,1%

26/0,6%

4051/100%

T/A: técnico/auxiliar; TO: terapeuta ocupacional

O número total de afastamentos, no período de cinco anos, foi em ordem decrescente de frequência relacionado aos técnicos e auxiliares de enfermagem (2.921/72,1%), seguidos pelos enfermeiros (469/11,5%) e médicos (331/8,1%), correspondendo a 91,7% do total.

A análise do afastamento do trabalho entre os servidores ativos dessas três categorias

a) técnicos e auxiliares de enfermagem, com 72% do total de afastamentos, representaram, respectivamente, em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014; o afastamento de 80,6%, 82,4%, 73,9%, 81,1% e 77,7% da força de trabalho em sua própria categoria; b) enfermeiros, com 11,5% do total de afastamentos, representaram, respectivamente, em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 62%, 72,5%, 64,7%, 76,2% e 73,6% da força de trabalho em sua própria categoria; c) médicos: com 8,1% do total de afastamentos, representaram, respectivamente, 23,3%, 24,1%, 30%, 27,6% e 31,5% da força de trabalho em sua própria categoria (Tabela 3).

Tabela 3: A análise do afastamento do trabalho entre os servidores ativos das categorias profissionais que mais requereram esse benefício, nos últimos cinco anos, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014

Ano

2010

2011

2012

2013

2014

Técnico/Auxiliar de Enfermagem

Total Afastamento

No Absoluto

738

724

746

743

738 595

597

552

603

574 80,6

82,4

73,9

81,1

77,7

Total

134

131

139

135

133

Enfermeiro

Afastamento

No Absoluto

83

95

90

103

98 62

72,5

64,7

76,2

73,6

Total

236

236

246

246

245

Médico

Afastamento

No Absoluto

55

57

74

68

77 23,3

24,1

30

27,6

31,5

Fonte: Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Tabela 4: Análise do número de dias e duração dos afastamentos do trabalho entre os servidores ativos das categorias profissionais, nos últimos cinco anos, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014.

Ano

Causa Psiquiátrica

Absoluto/% Dias no Ano/% Total de Afastamentos

Causa Clínica

Absoluto/% Dias no Ano/% Total

No Ano Dias no Ano Média Dias/ Ano

2010

2011

2012

2013

2014 95/12

106/13,1

93/11,7

108/12,7

111/13,7 4160/21

4822/20,6

3697/19,2

3284/17,5

4934/27,3 695/88

701/86,9

701/88,3

739/87,3

702/86,3 15684/79

18529/79,4

15630/80,8

15562/82,5

13157/72,7 790

807

794

847

813 19844

23351

19327

18846

18091 25,1

28,9

24,3

22,2

22,2

A análise dos dias e duração dos afastamentos dos profissionais de saúde lotados no HC/UFMG (Tabela 4) revela que as licenças por adoecimento clínico, apesar de corresponderem a quase 90% do número total de afastamentos em todos os anos, foram responsáveis por cerca de 80% dos dias de afastamento. E as licenças por adoecimento psíquico, apesar de corresponderem a pouco mais de 10% dos afastamentos anuais, foram respon-

sáveis por cerca de 20% dos dias de trabalho perdidos, atingindo quase 30% dos dias de afastamento em 2014. Isso realça a influência do adoecimento mental, com licenças mais prolongadas em relação aos afastamentos por doenças clínicas. Na duração média dos afastamentos (número total de dias de afastamento no ano/número total de afastamentos), observa-se que o adoecimento dos profissionais de saúde gerou licenças prolongadas, de 24 dias por ano, em média, o que significa que a cada ano um mês é consumido pela ausência do trabalhador em seu posto de trabalho em decorrência de alguma doença. Esses dados são altamente relevantes e exigem a reflexão sobre como o trabalho, que representa a sustentação do indivíduo e sua família, a idealização da missão de cada pessoa, sua participação social e, especialmente na área da saúde, que cuida e acolhe o próximo, retorna com o adoecimento do seu trabalhador de forma constante e significativa. É possível conviver com essas questões sem serem avaliadas e enfrentadas em sua origem e convenientemente prevenidas?

Aspectos relacionados à vulnerabilidade do profissional de saúde em cada categoria profissional

Assistentes sociais

Os assistentes sociais convivem continuadamente com questões que envolvem a marginalidade e transgressão sociais, associadas à ausência no SUS e privado de estrutura que acolha pacientes em várias situações de riscos e vulnerabilidades individuais e sociais. Inclui a desorganização do Estado para o atendimento de pacientes com limitações socioeconômicas, insuficiência familiar, no limite da vida, sob cuidados paliativos, com dificuldades de cognição ou doença mental e que perderam a autonomia e não conseguem viver sozinhos, com crianças e adolescentes sem família e sem encontrar alternativas dignas para todos.

Seu envolvimento emocional é intenso e por vezes não resolutivo, o que obriga os assistentes sociais a conviver com ineficiência institucional, que é introspectada, e gera sentimentos de incapacidade, depressão, angústia e vazio existencial. A maioria nessa profissão é exercida por mulheres, o que adiciona as questões próprias de jornada dupla de trabalho, o cuidado da própria família, os salários depreciados e a dificuldade de sobrevivência pessoal. Esse conjunto de fatores possui elevado poder de promover adoecimento psicossocial deletério e que pode impedir a perspectiva de vida de bem-estar12 .

Agentes comunitários de saúde

Os agentes comunitários de saúde (ACS) apresentam importante vulnerabilidade ao sofrimento, determinada, especialmente, pela tensão entre o seu ideário profissional e a real prática de sua missão e que inclui as limitações do modelo assistencial determinado pelo Programa de Saúde da Família (PSF) na Atenção Básica à Saúde (ABS)1,2,13,29,35,36,40,41 .

O trabalho na ABS no Brasil baseia-se, predominantemente, em modelo relacionado à doença e à intervenção médica individual. A equipe básica do PSF é constituída por um médico generalista, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e cinco a seis ACS e, dependendo do município e sob regime referencial, com profissionais de saúde bucal, mental e de reabilitação. O PSF propõe a assistência integral, com ações preventivas, de

promoção da saúde e curativas. E a busca da qualidade de vida e da cidadania em cada etapa do processo de sua atenção, com visão interdisciplinar, e de seu trabalho baseia-se na supervisão contínua do ACS pelo enfermeiro. O PSF enfatiza a universalização e descentralização de suas ações, com a participação da comunidade; a substituição do modelo de atenção primária centrado na relação médico-paciente e no atendimento individual; a integralidade e hierarquização da atenção à saúde, com referência e contrarreferência interdisciplinar e multidisciplinar; a territorialização na atenção a todas as pessoas; e a ação de equipe multiprofissional36,38,39 .

Os cidadãos buscam, inicialmente, diante de sua necessidade, o ACS para informação, reclamação ou solução de um problema de saúde e dele esperam a resposta em relação às cobranças e exigências, nem sempre obtida de forma simples. Espera-se que o trabalho do ACS seja bem-aceito pela comunidade e consiga ultrapassar preconceitos e sigilo, com ética, comunicação fácil e capacidade de se integrar à equipe interdisciplinar para a obtenção da vigilância à saúde, de forma organizada e planejada. Sua função inclui a identificação e observação contínuas dos problemas que afetam a saúde de cada pessoa e da população em geral, em sua região de trabalho, inclusive por intermédio da visita domiciliar; com a supervisão individual, coletiva e contínua de grupos especiais de vulnerabilidade, para entender a sua necessidade, implícita ou não, e ajudar a superar essas dificuldades em busca de condições adequadas de saúde; além de esclarecer sobre educação para a saúde; envolvendo em todas as suas ações a participação do indivíduo e sua comunidade e de toda a equipe de saúde, desde a identificação dos problemas até propostas para sua resolução e o controle adequado dos fatores que desencadeiam a morbimortalidade reconhecida.

É necessário, em sua função, o desenvolvimento das ações básicas, como incentivo ao aleitamento materno, acolhida precoce das gestantes ao pré-natal, prevenção das doenças prevalentes, busca ativa de portadores de doenças crônico-degenerativas sem acompanhamento de seu estado de saúde, identificação precoce de doenças de notificação compulsória, além do desenvolvimento do conceito de participação popular como corresponsável nas ações e controle da qualidade da assistência à saúde. Espera-se que o ACS em sua missão seja capaz de realizar: observação, identificação, difusão de conhecimentos, integração, incorporação de valores, juízo profissional, iniciativa e produtividade. Esses objetivos nem sempre são obtidos, o que faz o ACS buscar esforços para se superar e se mostrar capaz, para a sua equipe e a comunidade, de que é útil na missão do PSF. Esse processo resulta em apreensão e sofrimento para o ACS, com riscos de depressão, angústia, frustração e desamparo32,40,41 .

O modelo de supervisão do ACS, sob responsabilidade do enfermeiro, foi se adaptando às condições precárias de sua implementação e condução, sendo hoje fundamental que supere o desafio de obter capacitação, educação continuada e resolução das suas demandas psicoafetivas. O cumprimento da excepcional missão do ACS requer o comprometimento de políticas públicas com os pressupostos constitucionais do SUS, a começar pelo seu financiamento adequado; valorização e o respeito pelo trabalho de todos os membros do PSF; e a participação multi e interdisciplinar na ABS dentro do limite de atuação de cada profissional de saúde.

A sociedade brasileira permanece sob condições precárias de educação baseada na domesticação, sem a perspectiva de libertação; atrelada à dependência colonialista e com economia dependente das potências industriais, mantida pelos produtos gerados pela agricultura e criação de gado e aves; submetida ao mercado sob pouca influência dos seus

interesses; com corrupção em todos os seus níveis de organização; com políticas públicas imediatistas e sem projeção para o desenvolvimento sustentável e sem comprometimento com a preservação da natureza; com as relações sociais valorizadas constituídas na ganância, rápida obtenção de patrimônio, estética e juventude. Esses fatores geram isolacionismo, tensão, violência, uso de drogas lícitas e ilícitas, tráfico de influências de toda natureza, desagregação social, guerra civil velada. É nesse contexto que se situa o trabalho do ACS.

O trabalho do ACS apresenta-se, portanto, com características que determinam riscos:

a) Biológicos: representados pelo uso de material perfurocortante e contato com fluidos corpóreos; b) físicos e organizacionais: dependentes de várias circunstâncias que ultrapassam a sua capacidade de controle, como: vinculação direta e diária com cada pessoa e a população, o que pode gerar conflitos devidos à imposição de normas e regras para a proteção da saúde individual e coletiva, sem a natural discussão de sua utilidade e limites; questões administrativas devidas ao distanciamento entre o projeto do PSF e seus objetivos originais; o modelo de supervisão do seu trabalho relacionado ao enfermeiro; as relações intraequipes e interdisciplinares inadequadas, que podem desgastar o trabalho; c) emocionais: devidos ao desgaste emocional, violência e irresolutividade do trabalho. A vulnerabilidade à violência na UBS depende do processo de trabalho, da necessidade de saúde das pessoas e da comunidade, da exposição à agressão e ao agressor, da gestão em saúde; das condições sociais, econômicas e culturais da realidade em que o trabalho está inserido. A vulnerabilidade relaciona-se à probabilidade de atuação do ACS criar e desencadear conflitos baseados, especialmente, na incoerência e no confronto com a realidade, isto é, se autodelega defensor da comunidade que assiste, com a tomada de decisões que podem ser desafiadoras para as pessoas e a comunidade. A carga psíquica envolvida no trabalho do ACS, portanto, decorre da dificuldade em: i) atingir os pressupostos do PSF, em sua totalidade, e quanto à responsabilidade que possui em sua área de atuação, o que provoca, em geral, sentimento de culpa, de isolamento e tomada de decisões sem apoio de sistema de referência e contrarreferência; ii) relacionar-se adequadamente, de forma interdisciplinar e multiprofissional, à equipe do PSF; iii) responder, sem dificuldades, aos questionamentos da comunidade em que atua e em estabelecer as reais necessidades de cada pessoa; iv) entender o seu papel no PSF, que se constitui na porta de entrada para o SUS1,7,34,37,39 .

Enfermeiro, auxiliares e técnicos de enfermagem

A enfermagem é profissão com muita responsabilidade, devido à sua natural atuação caracterizada pelo cuidar do ser humano doente e que apresenta, usualmente, instabilidade orgânica e mental, sofrimento e agonia, no limite da sua existência. Suas tarefas incluem o trabalho assistencial, de ensino e pesquisa; administrativo geral, em relação ao gerenciamento de serviço, assistência, ambiente, maquinários e equipamentos; planejamento das ações do cuidado de enfermagem; e de recursos humanos (gerenciamento de funcionários); condições que interferem decisivamente na sua qualidade de vida, por exigir contínuo esforço físico e mental; além de equilíbrio, juízo, retidão de conduta, equilíbrio

emocional e conflitos diretos em sua equipe de trabalho. Essas responsabilidades exigem conhecimento científico para a prática, atenção, destreza, raciocínio rápido para planejamento e tomada de decisões, equilíbrio emocional e exigência de doação pessoal ao paciente mesmo diante de situações pessoais críticas, sem receber condições favoráveis, incluindo salariais e de regime de trabalho, para o desenvolvimento de suas atividades38,42,43 .

A equipe de enfermagem torna-se vulnerável em função de ser o maior grupo individual da saúde prestador de assistência ininterrupta, por executar cerca de 60% das ações de saúde, realizar o maior volume de cuidado direto por intermédio de contato físico com o doente e executar rotineiramente procedimentos invasivos, principalmente administração de medicação injetável. Os acidentes de trabalho ocorrem devido ao uso inadequado ou resistência ao uso de equipamentos de proteção individual (EPI), mas, especialmente, em decorrência de sobrecarga de trabalho, autoconfiança, autodescuido, falta de capacitação e insuficiência de medidas de prevenção e reduzido número de caixas coletoras para material perfurocortante.

A vulnerabilidade da equipe de enfermagem decorre também da organização do trabalho, dos conflitos e ambiguidades nos papéis da equipe que gerencia, da falta de participação da equipe nas decisões administrativas superiores; de longas jornadas de trabalho, do rodízio de horários (perda de contato familiar e social), da sobrecarga de trabalho; do número insuficiente de pessoal e de recursos materiais; da mudança constante das regras do trabalho e excesso de burocracia; de conflitos com a equipe médica e da falta de reconhecimento profissional; da alta competitividade, dos baixos salários, da pressão por mais produtividade, da falta de confiança e companheirismo. Alguns fatores físicos podem ser realçados, como os que decorrem de trabalho em que existem riscos relacionados aos produtos químicos (para a limpeza hospitalar, medicamentos, produtos para limpeza de equipamentos, antiblásticos), biológicos (bactérias, fungos, vírus, resistência microbiana), físicos (ruídos, radiações, radiosótopos), mecânicos (transporte e/ou movimentação de pacientes; acondicionamento e preparo de materiais), psicossociais (pacientes agitados, descontrolados, agressivos, com contaminação pelo contato ou pela via aérea). Na UBS, os riscos e vulnerabilidades relacionam-se à deficiência de recursos para o trabalho, à violência física e ao desgaste emocional. No contexto hospitalar, destacam-se os acidentes com material biológico relacionados ao seu uso inadequado e não adesão às medidas de proteção, a sobrecarga de trabalho e a autoconfiança de que é capaz de fazer todas as tarefas43-46 .

O trabalho do enfermeiro suscita, em relação aos pacientes, sentimentos intensos e contraditórios, como: piedade, compaixão e amor, culpa e ansiedade e ódio e ressentimento. E podem ter, em relação e às instituições onde trabalham, angústia e dúvidas sobre seus objetivos. O paciente e seus familiares podem também expressar em relação ao enfermeiro: apreço, gratidão, afeição, respeito, solidariedade e preocupação; e ao hospital, a crença de que funciona bem. O paciente relata, usualmente, dependência, má-vontade em relação à disciplina imposta pelo tratamento e rotina hospitalares e inveja o enfermeiro pela sua saúde e competência, sendo exigentes, possessivos e ciumentos.

Os baixos salários obrigam o enfermeiro a ter mais de um emprego, o que multiplica sua sobrecarga de trabalho, seu esforço físico e mental; a simultaneidade de múltiplas funções, o tempo exíguo para o planejamento de suas ações; as condições inadequadas do ambiente de trabalho (iluminação, temperatura, ruído), de maquinário e equipamentos. Esses problemas promovem: insatisfação, improdutividade, absenteísmo e abandono da sua tarefa, acidentes, doenças ocupacionais, sentimento de fracasso e exaustão, alto grau

de tensão, angústia e ansiedade, mudanças de emprego. Observa-se que até cerca de 50% dos enfermeiros de hospital-escola apresentam distúrbios psicoemocionais, com repercussões sobre a qualidade do serviço prestado, a sua rotina de trabalho e a sua vida pessoal e social46-52 .

É preciso reconhecer esses problemas para repensar as práticas de forma crítica e transformadora, para a busca de mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas, capazes de influenciar as mudanças que proporcionem melhores condições de trabalho e de vida50-52 .

Médico

As qualidades do médico dependem de sua formação moral e ética e do equilíbrio emocional que desenvolve em sua experiência de vida. É demonstrável pelo interesse real e que expressa pelo paciente. Depende do conhecimento da natureza humana, da equanimidade de que trata as questões em que participa, sem preconceitos nem interesse pessoal (conflito de interesse), do entendimento e envolvimento com as lutas justas e necessárias para solução dos complexos problemas individuais e sociais, que marginalizam e subjugam o ser humano. Torna-se mais exigente a tarefa médica quando se sabe que toda pessoa, quando sente a perda da saúde delega, como em pacto, ao seu médico a luta em defesa de sua vida, com todas as suas forças. Os riscos representados pelos médicos refletem a luta histórica profissional em vencer as doenças e a morte dos pacientes7,32,33,37,53-56 .

No Brasil, são mais de 200.000 médicos, sendo que em torno de 65% vivem nas regiões metropolitanas das grandes capitais (vocação urbana); 50% têm parentes médicos, o que revela estreita relação entre escolha matrimonial e profissões da saúde (linhagem médica e afinidade profissional); 75% são adultos jovens (têm menos de 45 anos de idade); apresentam aumento rápido do contingente feminino (32,8%), revelando sua feminização; remuneração assalariada e diminuição da sua atividade liberal e da sua autonomia profissional (50% possuem três a quatro atividades; 50% são plantonistas; 80% dos que trabalham em consultório particular possuem convênio); com formação baseada em 71% na residência médica; sendo 57,6% especialistas, especialmente 14% em Pediatria, 12% em Ginecologia-Obstetrícia, 8% em Clínica Médica, 6% em Cirurgia Geral, 4% em Cardiologia; 80% consideram sua atividade desgastante; e suas perspectivas de incerteza e pessimismo. O exercício profissional está sob intensa influência de novos recursos diagnósticos e terapêuticos, da indústria farmacêutica e de equipamentos e da presença das empresas compradoras de serviços médicos, o que tem repercutido com perda da autonomia e da remuneração profissional, comprometimento do estilo de vida médico tradicional, grande influência no estado de saúde do médico e comportamento ético nas relações médico-pacientes e seus familiares. O tratamento jornalístico insistente e sensacionalista das agruras relacionadas à obtenção de assistência médica pela população brasileira, com pouca reflexão sobre as suas reais causas, incita a impressão negativa da atuação médica. A divulgação de informações sobre os avanços tecnológicos em Medicina também ajuda a produzir intensa influência emocional, sendo considerado, em geral, que os novos recursos tecnológicos resolvem todos os problemas, o que os torna desejados e buscados pelos pacientes e familiares, muitas vezes baseado em perspectivas irrealistas ou tendenciosas.

As leis (código de defesa do consumidor), normas e regulamentações que acompanham o desenvolvimento da bioética e o exercício da cidadania têm levado, muitas vezes, pa-

cientes e seus familiares a processarem juridicamente, e de forma indevida, médicos e hospitais por imperícia, imprudência e negligência. Todos esses fenômenos tornaram o relacionamento médico-paciente, médico-médico, médico-organizações públicas ou privadas permeado de desconfiança e tornando a Medicina atividade desgastante, defensivista, não espontânea e com elevado risco de não ter vínculo. Os principais fatores de desgaste são:

• excesso de trabalho; • baixa remuneração; • más-condições de trabalho; • responsabilidade profissional; • relação médico-paciente-família; • conflito-cobrança da população e perda da autonomia.

O grau de idealização da profissão pode gerar elevadas expectativas que, se não correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações, com repercussões na saúde dos estudante, dos residentes e dos médicos32,33,60,61 . O caráter altamente ansiogênico da profissão associa-se ao contato contínuo com: dor, sofrimento, intimidade corporal e emocional; cuidado de pacientes terminais, de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos e cronicamente deprimidos, associado à incerteza e limitação do conhecimento médico e do sistema assistencial que se contrapõe às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam certeza e garantia de que se tornarão saudáveis. A síndrome do estresse profissional surge nesse âmbito e se caracteriza por: embotamento emocional, isolamento social, exaustão, fadiga, cefaleia, distúrbios gastrintestinais, dispneia, humor depressivo, irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo, desinteresse, realização de consultas rápidas e rótulo depreciativo a todos os pacientes, evitando os pacientes e, inclusive, o contato visual com eles. Na residência médica, o estresse atinge o seu máximo e decorre de responsabilidade profissional, isolamento social, fadiga, privação do sono, sobrecarga de trabalho, pavor de cometer erros, depressão, ideação suicida, consumo excessivo de álcool, adição às drogas lícitas ou ilícitas, raiva crônica, desenvolvimento de ceticismo amargo e humor irônico. O resultado é a alta prevalência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais, disfunções profissionais62-65 .

Observam-se, em Minas Gerais, algumas características que prenunciam a vulnerabilidade médica e que incluem: quase a metade é jovem (48%), possui menos de 40 anos de idade; com formação pós-graduada (96,2%), baseada na residência médica (74%), mestrado (7,7%), doutorado (3,7%) e no exterior (10,8%); concentra-se nas regiões metropolitana de Belo Horizonte e na Zona da Mata; com mais de dois empregos; e melhor remuneração entre 41 e 60 anos de idade; e atividade realizada principalmente em consultório (84,4%), sendo 66,2% no setor privado e 58,7% no setor público. Os médicos com menos de 30, entre 30 até 40, mais de 40 até 60 e mais de 60 anos de idade possuem, em sua maioria, respectivamente: residência médica, trabalho em instituição pública, dois a três empregos, remuneração entre 20 e 40 salários mínimos; residência médica, trabalho em hospital privado, dois a três empregos remuneração entre 20 e 40 salários mínimos; residência médica, trabalho em consultório e em hospital privado, remuneração de mais de 40 salários mínimos; formação por outros meios que não a residência médica, trabalho em consultório e em hospital privado e remuneração de mais de 40 salários mínimos32,33,37,66 .

Registram-se, entre os estudantes de Medicina, riscos especiais, como: a prevalência de acidentes de 27,4%, sendo que 47,5% deles ocorrem ao cursarem o oitavo período, especialmente devido à perfuração de pele íntegra. Em 349 acidentes de trabalho acompanhados no início da década de 2010, foram verificados aumentos progressivos dos acidentes em sua prática, de 33,9 para 52,3% entre o quinto e o 11o períodos, sendo 63% deles determinados por agulhas ou objeto cortante, 18,3% afetando mucosas, 16,6% a pele e 17% pele e mucosa. Os principais contaminantes foram: sangue (88,3%) e secreção vaginal (1,7%). As regiões mais afetadas foram: mãos (67%), olhos (18,9%) e boca (1,7%). Os procedimentos no momento do acidente eram a realização de sutura (34,1%), administração de anestesia (16,6%), participação em cirurgia como observador (8,9%), punção de veia com agulha (8,6%) e observação de parto (6,3%). O setor de biossegurança foi procurado em 49% dos casos, o que representa como o acidente foi banalizado, pois de todos os estudantes, 29,2% não receberam assistência médica, 87% receberam antirretrovirais, 86% descontinuaram os antirretrovirais após determinação de que a sorologia do paciente-fonte era negativa para o vírus da imunodeficiência humana, 6,4% não conseguiram tomar a medicação e 16% completaram o tratamento30,32,33,39,67,68 .

Todos esses fatos revelam a vulnerabilidade da atividade médica, inclusive de alunos de Medicina, e como, mesmo se tratando de profissional de elevado nível intelectual e de sensibilidade e que se submetem à seleção árdua e formação intensa e demorada, estão expostos a sérios riscos em seu trabalho que podem resultar em várias consequências, inclusive graves e irreversíveis31,69,70 .

Dentistas e técnicos de laboratório odontológico

A prática odontológica associa-se, especialmente, aos riscos associados ao ruído excessivo determinado pelo uso de motores com altíssima frequência; às posturas incorretas e duradouras, em pé ou assentada, à rotação da coluna, aos movimentos dos membros superiores dos punhos e dedos das mãos; e à transmissão de doenças infecciosas pelo contato com saliva e sangue. O trabalho individualizado, usualmente presente entre os dentistas, propicia solidão e estresse em relação à incerteza do futuro, ao desgaste físico e à competitividade do mercado de trabalho.

Os acidentes de trabalho, por intermédio de material biológico, são mais frequentes entre profissionais de nível médio, mais frequentes com técnicos de laboratório7,34,71 .

A síndrome do túnel carpal (STC) tem incidência maior em dentistas, principalmente periodontistas, endodontistas, exodontistas e em higienistas dentais. As mulheres são mais suscetíveis, em proporção variável de 3:1 a 10:1 em relação aos homens. A STC é a principal responsável pela perda de horas de serviço de trabalhadores que desenvolvem movimentos repetitivos ou que submetem as mãos à vibração contínua, sendo mais incidente na faixa etária entre 39 e 40 anos. O desconforto musculoesquelético é notado em até 81% dos dentistas, com mais intensidade nas regiões da coluna cervical, ombro, pescoço, mão (dedos polegar, indicador médio e anular em ordem decrescente) e punho. Decorre da compressão do nervo mediano, no nível do canal do carpo, formado por rígidas e estreitas estruturas por onde passa o nervo mediano, na altura do punho. O nervo mediano é, nessa região, vulnerável à compressão e lesão. Manifesta-se, em geral, depois de trabalho intensivo e repetitivo, com queixas desde vagas até associadas a dor difusa, adormecimento e fadiga muscular; e evolução para alterações sensitivas, motoras ou tróficas limitadas ao

território do nervo mediano.

O adormecimento e a parestesia geralmente localizam-se na porção distal do braço ou punho, com irradiação para os dedos médios (indicador, médio e metade radial anular) e polegar, mais frequentemente o indicador. É comum determinar, à noite, hiopoestesia nas mãos. A dor ou desconforto pode se irradiar até o ombro e ser contínua, intermitente ou paroxística e exacerbada pelo movimento, força ou uso excessivo da mão. É comum ocorrer transtornos do tato superficial ou discriminação tátil defeituosa, entretanto, raramente, provoca transtornos tróficos. Em casos mais graves pode haver hipotrofia ou atrofia tenar. O primeiro sinal de alteração motora é a lentidão de movimentos tenares pela manhã, que pouco a pouco melhoram durante o dia. À medida que evoluem a hipotrofia e a parestesia, os movimentos de coordenação do polegar e do indicador tornam-se débeis, rígidos e entorpecidos; e a força de preensão fica cada vez menor7,34,71-78 .

fisioterapeutas

Os distúrbios musculoesqueléticos (distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho ou lesões por esforço repetitivo) podem ocorrer em todos os profissionais de saúde, durante a sua prática laboral. Os fisioterapeutas constituem profissão, especialmente exposta aos riscos de distúrbios musculoesqueléticos ocupacionais, havendo necessidade de conscientização sobre a utilização adequada do próprio corpo, dos riscos da profissão com objetivo de prevenir futuras limitações físicas73,79,80 .

A sobrecarga do sistema musculoesquelético associa-se a: condições ergonômicas, muitas vezes precárias no local de trabalho; movimentos repetitivos de suas atividades; esforço em realizar a transferência de pacientes; postura estática e os movimentos repetitivos das mãos durante as práticas fisioterapêuticas; e frequente exposição à sobrecarga mental81-83 . Os distúrbios musculoesqueléticos são relatados por 85,4% dos fisioterapeutas, especialmente por: 80,5% das mulheres, 41,4% daqueles com 24-30 anos de idade; com cinco ou menos anos de profissão; 70,7% e 63,4% dos que trabalham em hospitais e em clínicas, respectivamente. A ocorrência desses distúrbios parece relacionada à carga de trabalho e ao número de atendimentos diários. As lesões localizam-se predominantemente na coluna cervical e lombar e membros superiores (punhos, mãos e dedos)83-87 . Em 65,7% dos fisioterapeutas acometidos pelos distúrbios musculoesqueléticos observa-se modificação da sua prática, desde a adoção de preocupação com a biomecânica corporal até o abandono da profissão. Entretanto, ressalta-se, em alguns, a falta de autocuidado e prevenção. É importante o conhecimento das possíveis repercussões da prática profissional sobre a qualidade de vida, de forma a permitir ações de prevenção, o que inclui medidas ergonômicas e de valorização profissional79,81,82,86,87 .

Fonoaudiólogos

Os principais fatores de desgaste são: excesso de trabalho, baixa remuneração, más condições de trabalho, responsabilidade profissional, relação conflituosa com o paciente e sua família. O grau de idealização profissional pode gerar elevadas expectativas e, caso não sejam correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações com repercussões em sua saúde e dificuldades de relacionamento multiprofissional7,88 .

O caráter ansiogênico profissional associa-se à convivência que desenvolve ao lidar com a dor, sofrimento, intimidade corporal e emocional; cuidado de pacientes terminais, de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos, cronicamente deprimidos, em uso de sondas nasogástricas, nasoentéricas ou ostomias. São aspectos que impedem a vida de relacionamento dos pacientes e o prazer do sabor dos alimentos associado à dificuldade de resposta de seus pacientes às manobras usadas para lhes dar alívio, que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam certeza e garantia de que se tornarão saudáveis88 .

Os seus riscos são semelhantes, potencialmente, aos de médicos com embotamento emocional, isolamento social, exaustão e fadiga.

Farmacêuticos

Os farmacêuticos que trabalham em ambiente de laboratório convivem com os riscos, que podem ser físicos e químicos, variados, que refletem a contaminação bioquímica, radioisotópica e radiológica. E os que trabalham na prática clínica, seja ambulatorial ou hospitalar, sofrem toda a agonia de receberem os reflexos da dificuldade social de seus pacientes como da dificuldade das instituições em oferecerem condições adequadas de trabalho. Sofrem ainda a pressão representada pela influência do poderoso sistema econômico-financeiro representado pelas indústrias químico-farmacêuticas e de equipamentos médico-hospitalares para que seus produtos sejam mercadologicamente viáveis e recompensem seus investimentos.

Todos esses fatos podem repercutir de forma deletéria sobre o relacionamento individual e social que precisa enfrentar em sua atividade e a conduta ética e solidária, isenta e digna com seu paciente7 .

Assim como ocorre com os médicos, sofrem potencialmente o desgaste de excesso e más-condições de trabalho, baixa remuneração, responsabilidade profissional, conflito-cobrança da população, perda da autonomia. O grau de idealização da profissão pode gerar expectativas não correspondidas que podem produzir decepções e frustrações com repercussões na sua saúde7,89 .

Psicólogos

O grau de idealização da profissão pode gerar elevadas expectativas que devem ser avaliadas em sua realidade ao tratar da complexidade profissional que remete ao comportamento humano. A profissão pode assumir caráter altamente ansiogênico, como ocorre com os médicos, e decorre do contato contínuo com: dor, sofrimento, intimidade emocional; cuidado de pacientes de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos, cronicamente deprimidos, associado à incerteza e limitação do conhecimento e do sistema assistencial, que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam garantia de que se tornarão saudáveis7 . A síndrome do estresse profissional pode assumir proporções de adoecimento intenso, em que prevalece: embotamento emocional, isolamento social, exaustão, fadiga, distúrbios psicofuncionais, irritabilidade, ansiedade, ceticismo, desinteresse.

A compreensão dos riscos e da vulnerabilidade profissional começa com a educação formal, desde o ensino fundamental, pelo conhecimento sobre as profissões, e seu aprofundamento no ensino médio, para que a opção profissional seja feita não só pela vocação e talento, mas também pelo entendimento de seu limite pessoal no seu enfrentamento e pela forma mais adequada de exercê-la no futuro, com a real compreensão de seus deveres e dificuldades7,14,90,91 . É preciso também que as representações sociais dos profissionais da área da saúde, como sindicatos, associações e conselhos, exerçam seu papel de forma a que as leis de exercício profissional atuem em seu propósito de ordenar de forma ética o trabalho e defendam a profissão e seus profissionais quanto ao bem social que exercem de forma digna, com condições de organização e estrutura que permitam o acolhimento e a consideração, de forma respeitosa, das pessoas que buscam seus serviços45,57,92,93 . É fundamental que os profissionais da área da saúde tenham a possibilidade de discussão de sua condição de trabalho desde a graduação e possam se manter atualizados por intermédio de reciclagem instrucional e reflexiva sobre seu propósito de trabalho em toda a sua vida profissional, de forma institucionalizada, em instituições públicas ou privadas e com participação de seus órgãos representativos. As ações de educação permanente ou de capacitação são essenciais como estratégia para a adoção de boas práticas em seu trabalho. Essas atividades contribuem para que os trabalhadores tenham consciência das consequências de suas práticas para a saúde e da importância das precauções e medidas de biossegurança no exercício profissional, entre as quais se incluem a prevenção de acidentes com material perfurocortante, a prevenção de doenças infecciosas, o entendimento das dificuldades de seus pacientes e de sua família e como lidar com a frustração e o limite da ciência. A educação continuada (treinamentos, seminários temáticos, reuniões clínicas) deve ocorrer regularmente, no próprio horário de trabalho, com a participação de toda a população e de todos os profissionais na definição dos temas a serem discutidos, assim como nas campanhas para o autocuidado, com importância especial para a higienização das mãos e adoção e uso de equipamento de proteção individual22,25,66 .

As instituições de saúde precisam mostrar para toda a sociedade os riscos de seus profissionais, para que sejam valorizados em seu comprometimento com o serviço que prestam. É um desafio para todos os profissionais de saúde a adoção de medidas que visam a mudanças de comportamento e à ampliação de estratégias para a prática segura de trabalho. Essa mudança não é tarefa fácil e requer esforços conjuntos dos serviços de saúde e dos próprios trabalhadores na promoção da saúde e prevenção de seus agravos.

Na busca pela adoção de mudanças para evitar exposições ocupacionais, o enfermeiro, elo da equipe e formador de opinião, pode desempenhar importante papel, pois suas ações são referenciadas em toda a sua equipe14,90,91 .

A prevenção da saúde precisa ainda ser considerada de responsabilidade não só do Estado e do setor privado, mas de toda a sociedade, para que as mudanças necessárias sejam obtidas diante da realidade sanitária do Brasil. Torna-se relevante o fortalecimento de ações interdisciplinares e intersetoriais em relação ao planejamento e às ações, em respeito aos direitos humanos, individuais e sociais, para que sejam obtidas mudanças de valor nas práticas de cuidado à saúde. A implementação de medidas de prevenção de acidentes

de trabalho e promoção à saúde do trabalhador deve ser institucionalizada e trabalhada em conjunto com o serviço de Engenharia, Medicina e Segurança do Trabalhador, das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes, assim como de todas as demais estruturas organizacionais que se encarregam de educação e vigilância em saúde.

Algumas medidas que podem tornar as condições de trabalho mais seguras são: estabelecimento de plano de gerenciamento de resíduos com critérios bem-definidos, de forma a contemplar todos os requisitos das legislações vigentes; imunização adequada dos trabalhadores; estabelecimento de protocolos de uso de EPI; planejamento de estruturas físicas que favoreçam a adoção de práticas corretas, como, por exemplo, lavatórios com recursos necessários para higienização das mãos e com acionamento de pedal, caixas de descarte de agulhas em locais de fácil acesso e não somente nos postos de enfermagem; utilização de dispositivos e agulhas com mecanismos de segurança. É importante estabelecer o fluxograma para atendimento do trabalhador vítima de acidentes de trabalho e que permita conhecer as suas características epidemiológicas.

A avaliação da maneira como o trabalho é dividido e organizado também é fundamental para a adoção de práticas seguras, especialmente para os acidentes de trabalho típicos envolvendo trabalhadores que desempenham funções sujeitas aos altos riscos profissionais. É preciso conhecer a forma de inserção social do trabalhador e como os processos de trabalho provocam desgastes. A gama de variáveis que compõem o trabalho hospitalar exige a preservação e promoção da saúde daqueles que se dedicam a cuidar da saúde de outros, e por isso não pode perder a sua própria situação de higidez22,25,90,91 .

As estratégias para a adoção de práticas seguras relacionadas a riscos ocupacionais, acidentes de trabalho e vulnerabilidade vão além de medidas de segurança, de mudanças estruturais e organizacionais. Requer de todos a postura voltada para a complexidade do problema, de forma a conscientizar todos sobre a importância do seu autocuidado. A educação em saúde é a essência do problema, com posicionamentos interdisciplinares e intersetoriais, envolvendo gestores, profissionais, estudantes, sociedade, de forma a olhar para o autocuidado, cuidado do outro e do ambiente de trabalho22,25. É preciso incluir a compreensão da dimensão psicológica na formação de todos os profissionais da saúde, o que inclui: a motivação para a profissão, a idealização do seu papel e de suas reações vivenciais durante a graduação, para a reflexão e trocas de experiências; a criação de serviços de orientação psicopedagógica para estudantes e de serviços de orientação psicológica e psiquiátrica.

Considerações finais

Os riscos e a vulnerabilidade presentes na prática dos profissionais de saúde são variáveis de acordo com a categoria profissional e a forma de sua atuação.

Os riscos ocupacionais associam-se, entre os médicos, à responsabilidade que têm para com seus pacientes em relação à vida e à morte, o que pode desencadear desajustes psicossociais; entre enfermeiros, em relação ao risco de contaminação biológica, além do contato contínuo com o sofrimento e agonia de seus pacientes; entre cirurgiões-dentistas, pelo risco de contaminação biológica e isolacionismo; entre todos os profissionais de saúde, pelos sentimentos de angústia, solidão e reflexão sobre sua capacidade de resolutividade e a recepção psíquica de toda a agonia de seus pacientes para a obtenção de higidez e para a compreensão da finitude da vida.

Acrescem aos fatores pessoais aqueles relacionados à estrutura organizacional do sistema de saúde, predominando na atenção ambulatorial aqueles relacionados, principalmente, à deficiência de recursos para realização do trabalho, à violência física e moral e ao desgaste emocional presente no contexto socioeconômico-cultural em que se insere. E no ambiente hospitalar destacam-se os acidentes de trabalho com material biológico. Acrescentam-se em todos os locais de trabalho o uso inadequado ou resistência de EPI, a sobrecarga de trabalho e a autoconfiança. Percebe-se baixa adesão às medidas de proteção à saúde, apesar do conhecimento, pelos trabalhadores, sobre a prevenção ao risco biológico37,91,92 .

A estratégia para o trabalho mais seguro requer educação permanente visando à capacitação e à conscientização para a boa prática profissional. E ressalta-se a necessidade de ampliar a discussão sobre os riscos ocupacionais, os acidentes de trabalho e a vulnerabilidade nas práticas profissionais, com o objetivo de elaborar políticas de saúde para o trabalhador que tornem adequadas as suas condições de trabalho e mais satisfação profissional.

É preciso, portanto, a promoção de avaliações seguras sobre os processos de trabalho e o conhecimento sobre a subjetividade do trabalhador para identificar resistências e possibilitar a adesão às medidas de autoproteção. O exercício da autonomia em forma de decisões ativas pode diminuir os riscos ao evidenciar a vulnerabilidade dos profissionais da área da saúde como ser humano, seja ela estrutural, individual ou social; e a necessidade de que respondam à transformação das práticas no sentido pessoal, mas também com a sua responsabilidade social.

Agradecimento: ao Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais, que forneceu dados atuais sobre a saúde dos profissionais da área da saúde do Hospital das Clínicas e que enriqueceram a discussão aqui apresentada.

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A interface da vulnerabilidade abordada pela atenção básica na saúde e na assistência

Telmo Mota Ronzani Pedro Henrique Anthunes da Costa Fernando Santana de Paiva Erica Cruvinel Taynara Dutra Batista Formagini Amata Xavier Medeiros

Ao debater sobre o tema drogas e suas repercussões na sociedade, é importante definir como se percebe a questão do uso e qual o papel que elas têm na sociedade. Afinal, assume-se aqui que a maneira como se percebe a questão influenciará diretamente na forma como se posiciona e age na sociedade.

É notório que o uso de drogas é parte integrante da história humana e com diferentes funções e finalidades. Algumas delas religiosas ou ritualísticas, outras recreativas e até mesmo terapêuticas1. Porém, ao ampliar um pouco mais a questão, partindo de uma perspectiva individual para uma visão sociocultural, pode-se observar que existem aspectos socioeconômicos e geopolíticos a serem considerados, seja no nível social ou até mesmo no ponto de vista da saúde pública2 .

Como exemplos, podem-se citar os dados apresentados pela Organização das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), que demonstram que o tráfico de drogas se constitui em uma das atividades ilícitas mais lucrativas do mundo. Essa mesma organização argumenta que em função do tráfico de drogas e de toda a cadeia de lucro envolvida nesse poderoso e potente mercado, surgem impactos diretos sobre questões geopolíticas, tais como a formação de bases militares nos chamados países produtores de drogas e demais consequências, como o impacto do mercado ilegal de drogas para países, cidades e comunidades3 .

Portanto, apesar da literatura demonstrar os possíveis impactos do uso de álcool, tabaco e outras drogas no organismo, o enfoque apenas nos aspectos biológicos limita o entendimento de um problema tão complexo como este4 . Mesmo no campo da saúde especificamente, observam-se importantes mudanças na concepção sobre o uso de drogas, que deixa de ser visto meramente como uma “doença”, com enfoque na dependência, e passa a ser permeado por uma visão de saúde pública, que procura ultrapassar a esfera individual para uma abordagem comunitária e integrada, indo além, inclusive, do setor saúde5,6. Nesse sentido, o consumo de drogas, no campo da saúde, tem sido considerado uma condição crônica que, como quaisquer outras, como hipertensão e diabetes, são condições passíveis de prevenção e que evoluem ao longo do tempo relacionadas ao “modo de vida” das pessoas e condicionadas aos aspectos sociais e culturais em que vivem. Portanto, devem-se levar em consideração ações contínuas, de base individual e coletiva e o contexto em que tais pessoas estão inseridas7, o que justifica a adoção de uma lógica interdisciplinar e intersetorial, baseada no trabalho integrado de diversas categorias profissionais e setores, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Seguindo o raciocínio aqui exposto, o enfoque tradicional de saúde na área de dependência, limitado ao entendimento das funções neurológicas e farmacológicas para entender a questão de drogas, torna-se bastante restrito. Não se trata aqui de negar a compreensão e o avanço do conhecimento nessa área, mas de procurar trazer aprofundamento e ampliação da questão, não como antítese, mas como complemento.

Logo, assume-se neste capítulo uma visão psicossocial do consumo de drogas, por entender que a esfera do cuidado inclui a compreensão da história de uso de substâncias e a relação de indivíduos e grupos com as drogas em determinado cenário sociocultural. O consumo de drogas, então, passa a ser entendido em uma interação entre droga-indivíduomeio, o que dá o real sentido dos problemas relacionados a esse consumo8. Por essa razão,

é estéril falar sobre temas como vulnerabilidade e atenção integral no campo da saúde ou da assistência social se não se adota uma perspectiva psicossocial. O próprio conceito de vulnerabilidade, bem como a caracterização e os princípios dos cuidados primários em saúde e assistência social, como será visto a seguir, leva a um aspecto sistêmico e ampliado da questão9 .

Nessa linha, torna-se importante a compreensão de que o uso de substâncias também se refere não necessariamente a uma relação simples e direta de causa e efeito, mas a uma série de determinantes sociais. A ideia de se compreender o consumo de drogas a partir dos determinantes sociais pressupõe que, mesmo o uso de drogas estando presente em diversas classes sociais e em vários contextos, alguns determinantes tornam ainda mais pesada a carga social ou de doença em relação a tal comportamento. Exemplos de determinantes sociais conhecidos na literatura em relação ao uso de drogas são: pobreza, raça, gênero, desemprego, moradia, escolaridade, desnutrição, entre outros10. A compreensão de tais fatores ajuda a compreender a vulnerabilidade social vinculada ao consumo de substâncias para um cuidado e planejamento de ações mais adequadas. De forma prática, pode-se fazer o seguinte questionamento: as abordagens ou intervenções seriam as mesmas entre pessoas de classe média e as de classe socioeconômica mais baixa, sem moradia ou condições adequadas de alimentação?11,12 .

Outro aspecto importante a se considerar quando se assume a perspectiva psicossocial e se considera os determinantes sociais é o que se chama de “ciclo vicioso do uso de drogas”. Como já mencionado, alguns determinantes aumentam a vulnerabilidade social de usuários de drogas, que por sua vez deixam de procurar ajuda por receio do estigma associado ao uso e ao usuário, levando ao agravamento da condição de saúde e de outros problemas sociais1. A não procura por ajuda está associada, entre outros aspectos, às barreiras de acesso aos serviços - sendo elas geográficas ou de disponibilidade - ou à vergonha e ao receio dos usuários em procurar ajudar por serem alvos de estigmas e preconceitos oriundos de percepções sociais degradantes da sociedade em geral, mas também de profissionais de diferentes áreas que abordam a temática (saúde, assistência social, entre outras). Há impacto do estigma na abordagem aos usuários de forma aprofundada, mas sabe-se que tal condição leva ao distanciamento dos mesmos aos serviços, agravando ainda mais suas situações e gerando um ciclo vicioso1,13 . Na mesma direção, acrescenta-se nessa linha argumentativa um dos grandes desafios com que se depara na linha de cuidado às pessoas, em especial em países em desenvolvimento e com grandes desigualdades sociais, que são as disparidades em saúde. Tem sido preocupação entre organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), que algumas populações específicas apresentam acessos comprometidos de cuidados em saúde, o que afeta sua qualidade de vida e suas atividades sociais de forma geral. As disparidades em saúde estão diretamente relacionadas aos determinantes sociais e apresentam forte recorte de classe social, raça e gênero14. Tem sido um grande desafio melhorar o acesso, qualidade e cobertura de saúde para alguns grupos, em especial negros, mulheres e pobres, uma vez que a visão de saúde como mercadoria ganha força e as políticas baseadas na universalização do direito à saúde encontram barreiras para sua efetivação15 .

Como se pode perceber, a intervenção junto aos usuários de substâncias requer um olhar para além dos efeitos das drogas em si e dos sinais e sintomas individuais comuns para se diagnosticar a síndrome de dependência. É preciso entender que, para uma inter-

venção integral, deve-se compreender a dinâmica e os sistemas complexos por trás dessa temática. Por essa razão, o primeiro passo no presente capítulo foi contextualizar e definir como é compreendido o consumo e como tal comportamento está associado a outros aspectos contextuais. A partir dessa breve introdução pode-se apresentar uma discussão sobre vulnerabilidade social e uso de drogas e discutir pressupostos para uma atuação ampliada sobre a temática, enfatizando o trabalho integrado entre atenção primária à saúde (APS) do SUS e proteção básica do SUAS. Por fim, será apresentada a experiência dos autores deste capítulo de como se planejar uma ação integrada entre serviços, baseado no modelo psicossocial do uso de drogas.

Uma perspectiva de análise sobre vulnerabilidades sociais e o consumo de drogas

As transformações ocorridas nas últimas décadas no âmbito econômico com expressões nos planos político e sociocultural têm sido caracterizadas pela agudização das desigualdades historicamente existentes em meio à sociedade. Expressões como a pobreza e miserabilidade, processos de opressão relativos à raça, etnia, orientação sexual, sexo, idade e território têm sido constantemente observadas em diferentes partes do globo. Fruto das contradições que conformam nossa realidade social, tais expressões de desigualdade contribuem para a constituição de grupos sociais marginalizados no tocante à garantia de direitos sociais e, por conseguinte, impossibilitados de se constituírem como atores políticos emancipados e agentes fundamentais na concretização de um ideário democrático com vistas à efetivação de uma cidadania plena16 .

Convive-se em um cenário composto de sujeitos e grupos sociais imersos em um conjunto de vulnerabilidades sociais que têm relação direta com a emergência e/ou reconfiguração de questões que estão presentes na agenda política e social: o uso e abuso de drogas, as diferentes expressões da violência e criminalidade, a contaminação pelo HIV, etc.17 Indubitavelmente que para analisar e intervir adequadamente sobre tais questões, na ordem da sociedade moderna, é imperioso que se considerem as dimensões socioeconômicas sob as quais estamos assentados, o que significa partilhar da seguinte concepção: a realidade social conforma quadros de opressão e marginalização, os quais, por sua vez, estão estreitamente relacionados às expressões de vulnerabilidades em que determinados sujeitos se inscrevem e constituem suas subjetividades e identidades.

A partir dessa linha argumentativa, acredita-se que pensar sobre a categoria “vulnerabilidade” implica considerar um conjunto de determinações sociais como elementos que explicitam os constrangimentos pelos quais inúmeros grupos sociais são interpelados em seu processo de constituição como sujeitos políticos, ativos e proponentes de suas histórias. Portanto, de maneira articulada e não isolada, as posições de classe social, sexo, raça, etnia, idade e território devem ser entendidas como categoriais presentes em nossa constituição como seres sociais, que potencializam quadros de vulnerabilidades sociais em razão das relações de poder existentes entre os diferentes grupos que conformam nossa realidade social.

Partindo dessas considerações, cabe questionar acerca do tema central do presente texto: a questão da vulnerabilidade! Pois bem, quem são os vulneráveis? Como se constituem como sujeitos ou grupos vulneráveis? Por que alguns são considerados vulneráveis e outros não? Qual a matriz de compreensão que se pode empregar a fim de minimamente construir um argumento inteligível sobre essa questão? Uma matriz individual/biológica

(como apreciam alguns)? Uma matriz social, que procura compreender a vulnerabilidade como resultado de um processo histórico, que expressa as contradições da sociedade vigente e conforma sujeitos individuais e coletivos em condições de vulnerabilidade?

É preciso sinalizar que os autores deste breve manuscrito se aproximam da segunda opção: compreendem a vulnerabilidade a partir de uma dimensão social. Isso não significa romper ou negar as dimensões biológicas, tampouco as riquíssimas contribuições advindas das ciências médicas para pensar sobre a intrincada relação do homem com a sociedade. Trata-se de compreender que as práticas humanas (como o uso de drogas) não ocorrem em um vazio histórico e social e que, portanto, sua análise deve buscar compreender a relação que se constitui entre sujeito e realidade, considerando as determinações sociais que incidem sobre ele e, portanto, sobre suas práticas. Nessa direção, ao buscar responder à questão “quem são os vulneráveis?”, pode-se arriscar que são todos e todas que se apresentam em posições subalternas no âmbito da sociedade vigente. Aqueles que são classificados (no plano objetivo e simbólico) como subcidadãos que perfilam no tecido social urbano e rural do país18 . Especificamente ao tratar a respeito do uso e abuso de drogas, em meio ao debate sobre vulnerabilidade, vale registrar as importantes contribuições que vêm sendo dadas a partir do entendimento acerca dos processos de saúde-doença que têm passado por intensas reformulações, em especial a partir das mudanças decorrentes da transição epidemiológica vivenciada ao longo das últimas décadas19. Atualmente, o uso e abuso de drogas contribuem para a formatação de um novo perfil epidemiológico no Brasil e em todo o mundo, no qual as doenças relacionadas a agentes etiológicos externos têm sido progressivamente substituídas pelo aumento da prevalência de morbidades crônico-degenerativas. Essa mudança tem sido a tônica dos debates sobre como formular políticas públicas mais adequadas e resolutivas. Cumpre salientar que compreender o uso e abuso de drogas exige amplos esforços para a conformação de novas modalidades de enfrentamento e modelos alternativos de atenção à saúde, priorizando políticas de redução dos quadros de vulnerabilidades e danos associados ao uso dessas substâncias, em detrimento das abordagens de cunho reducionistas e discriminatórias20,21 .

Dessa maneira, analisar o uso de drogas como uma prática manifesta por diferentes sujeitos tem sido um desafio, haja vista as explicações muitas vezes reducionistas, regadas a moralismos e preconcepções que não colaboram para uma reflexão ampliada acerca do tema. A culpabilização do sujeito tem sido comumente observada a partir dos discursos e práticas impetradas por instituições como a mídia, segmentos religiosos, aparato judicial e políticos conservadores, assim como por tradicionais alas da Psiquiatria que preferem o caminho da medicalização e individualização da questão em detrimento de uma análise mais abrangente e compreensiva. Essas análises não têm conseguido avançar no cuidado e, tampouco, no enfrentamento adequado da questão. Ao se privilegiar uma matriz individualista (biologicista e psicologizante) da problemática das drogas, perde-se de horizonte a referência da dinâmica social, bem como o aspecto das vulnerabilidades decorrentes dos determinantes sociais anteriormente sinalizados.

As vulnerabilidades sociais dizem respeito às condições de existências das pessoas, em suas variadas possibilidades e/ou impossibilidades de se desenvolverem com liberdade e autonomia22. Acredita-se que essa delimitação é importante para tentar analisar como o uso e abuso de substâncias psicoativas são potencializadores de quadros de vulnerabilidade socialmente constituídos (pobreza, miséria, opressões de raça, sexo e etnia). Assim, se

aceitar-se que o consumo de drogas é uma prática historicamente presente na cultura humana (conforme dito anteriormente), depreende-se que o uso e abuso (bem como os graus/ efeitos sentidos nos sujeitos usuários) estarão relacionados aos determinantes sociais que expressam quadros de vulnerabilidade socioculturais e político-econômicos. Por conseguinte, a relação que se estabelece entre o uso, abuso e tráfico de drogas e vulnerabilidade é de contradição, uma vez que as vulnerabilidades (decorrentes dos determinantes sociais acima mencionados) podem favorecer o uso e abuso, bem como potencializar os impactos e prejuízos na saúde e na constituição das identidades pessoais e sociais dos usuários.

Dessa maneira, pressupõe-se que o uso de drogas não conforma quadros de vulnerabilidades, uma vez que os processos de opressão já fazem parte da realidade social na qual nos inscrevemos. Por outro lado, o uso abusivo de drogas pode contribuir para a constituição de quadros de marginalização mais agudos, não sendo ética a mera patologização, punição e encarceramento dos sujeitos usuários, tampouco a criminalização arbitrária, uma vez que se corre o risco de obscurecer a realidade e legitimar padrões de desigualdades históricos em nossa sociedade.

Ou seja, não se trata de estabelecer uma relação de causa e efeito entre “uso de drogas” e “vulnerabilidades”, mas sim de favorecimento para que determinados sujeitos apresentem maiores problemas (especialmente no âmbito médico e jurídico) em virtude de recortes de classe, raça e sexo, e menos em função do uso das drogas. Em suma, pode-se considerar que a relação que se estabelece entre tais categorias é de um ciclo de exclusão já em processo, a partir do momento em que o enfrentamento (pelos sujeitos, gestores e profissionais) das vulnerabilidades sociais será cada vez mais limitado em razão do uso abusivo de substâncias psicoativas, bem como das intervenções sociais moralistas, limitadas e condizentes com a manutenção do status quo.

A partir desse prisma, considera-se mais produtivo e abrangente entender que a vulnerabilidade é socialmente construída e que o uso abusivo e o tráfico de drogas podem se configurar como elementos que potencializam os problemas já vivenciados por inúmeros grupos sociais, localizados em posições sociais hierarquicamente subalternas com reduzido poder de ação. Indubitavelmente que se se partir desse princípio, os dispositivos de atenção à saúde e assistência social se constituem como espaços extremamente importantes na construção de sociedades menos desiguais e, portanto, com menos propensão à constituição de sujeitos em situações de sofrimento ético-político23 .

A seguir será apresentado um panorama da política de atenção básica no âmbito da saúde e assistência social, indicando suas contribuições na oferta de políticas sociais sintonizadas com a garantia de padrões de cidadania em nosso país. Portanto, a discussão feita até aqui serve para que se tenha em mente que nossas ações devem ultrapassar simplesmente os procedimentos técnicos e protocolares, partindo para uma ação-visão crítica de nosso cotidiano.

Atenção Básica nas Políticas de Saúde e Assistência Social no Brasil: breve delimitação

Visando abranger a complexidade do uso de drogas a partir da visão psicossocial, as políticas brasileiras sobre drogas revelam a necessidade de um trabalho integrado, a partir de redes de atenção intersetoriais20,24. Nessas redes, os níveis de atenção básicos (ou pri-

mários) do SUS e SUAS aparecem como elementos-chave para o estabelecimento de um continuum de cuidado, com base em ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento.

Para entender esses níveis de atenção, será abordada a estruturação do SUAS e do SUS, de modo que esses níveis, juntamente com os dispositivos que lhes conformam, sejam entendidos de forma abrangente. Ressalta-se que tanto a saúde quanto a assistência social são direitos de todo cidadão e dever do Estado, previstas pela Constituição Federal de 1988. Dessa forma, esses direitos são geridos por políticas públicas que, em conjunto com leis e Normas Operacionais Básicas (NOBs), definem e regulamentam os processos, mecanismos e instrumentos de sua descentralização e operacionalização25,26 .

O Sistema Único de Assistência Social

Conforme sinalizado anteriormente, a política de assistência social brasileira é materializada pelo SUAS, implementado no ano de 2005, que se caracteriza como um sistema público não contributivo, descentralizado, participativo e organizado por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública que visam garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão25. Entre as principais características do SUAS está a centralidade no atendimento às pessoas e famílias, de forma territorializada e disponibilizada por níveis de proteção social25. Dessa forma, o SUAS implica uma perspectiva de integralidade e complementaridade, materializando a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e estabelecendo um novo modelo de gestão com enfoque na proteção social.

Dessa forma, o SUAS é estruturado de acordo com as condições de vida e necessidades sociais das pessoas e, consequentemente, o nível de complexidade das ações, tendo dois níveis de atuação: a proteção social básica e a proteção social especial. Especialmente no que diz respeito à temática das drogas, observa-se que a complexidade do problema demanda ações integradas de ambos os níveis e com diferentes setores, como saúde, educação, entre outros. Por essa razão, a política de assistência social é então fundamental, especialmente no que se refere à prevenção e inserção social.

Em relação à prevenção, a proteção social básica desempenha importante papel, já que seu objetivo é prevenir situações de riscos por meio do desenvolvimento de potencialidades e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, sendo destinada a famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade social. Sua principal estratégia é a oferta territorializada de serviços socioassistenciais, por meio dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que são unidades públicas que devem garantir o acesso e a oferta de serviços destinados à prevenção e promoção de melhores condições de vida. Os CRAS disponibilizam serviços e ações para a comunidade, de acordo com as necessidades sociais, tais como: atendimento e acompanhamento integral à família, gestão de benefícios, vigilância social, encaminhamento, entre outros27 .

Por outro lado, a proteção social especial atua de forma protetiva, sendo destinada a famílias e indivíduos que tiveram seus direitos violados ou ameaçados, que necessitam, portanto, de atenção especializada. O uso de drogas pode ser visto como um dos fatores dessa conjuntura, podendo impactar na condição de vida do usuário e de sua família, exigindo atenção especializada no trabalho social, que contemple diversas questões de forma integrada, tanto relativas ao acesso à renda, quanto ao apoio à família e fortalecimento das possibilidades de enfrentamento das situações de risco pessoal e social, promoção de autonomia e inserção social.

Cabe destacar que a proteção especial está organizada em dois níveis de complexidade: média e alta. Em relação à média complexidade, é oferecido acompanhamento a indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos. O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é o principal dispositivo na oferta de serviços especializados para tais indivíduos e suas famílias. Entre os serviços ofertados pelo CREAS, estão: programas de proteção e atendimento especializado a famílias e indivíduos, serviços especializados em abordagem social, entre outros, além do trabalho em rede com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os CAPS voltados para usuários de drogas (CAPSad). Além do CREAS, o Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) exerce papel fundamental na proteção especial, visto que tal equipamento atua junto à população adulta em situação de rua na realização de atendimento socioassistencial e construção gradativa do processo de saída das ruas28 .

Na alta complexidade é disponibilizado atendimento de forma integral a pessoas afastadas do núcleo familiar e/ou comunitário, isto é, em situações de vulnerabilidade social acentuada e/ou exclusão social. Para atingir esses objetivos é organizada a partir de quatro tipos de serviços, sendo eles: serviço de acolhimento institucional, serviço de acolhimento em república, serviço de acolhimento em família acolhedora e serviço de proteção em situações de calamidades públicas e emergências28 .

O Sistema Único de Saúde

No âmbito da saúde, o SUS consolidou-se, no Brasil, no início dos anos 80, impulsionado pelo movimento da Reforma Sanitária. À época, a maior parte da população não tinha direito à saúde, uma vez que tal direito era privilégio dos trabalhadores que contribuíam com o Instituto Nacional de Previdência Social, órgão até então responsável pela assistência em saúde26 .

Nesse contexto, as críticas feitas ao modelo biomédico/curativo aliadas à necessidade de redução de gastos abriram espaço para a emergência de um novo paradigma em saúde, uma vez que a proposta até então vigente vinha apresentando altos custos ao Estado e baixa resolutividade. Trata-se, portanto, de uma proposta de democratização do acesso à saúde. Dessa forma, surge uma nova estratégia de organização do sistema de saúde, a qual pretende responder melhor às demandas da população por meio de um modelo descentralizado, integrado, contínuo e hierarquizado.

Nesse novo cenário, em consonância ao estabelecido na Declaração de Alma-Ata (1978) e com a Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei Federal 8.080, surge o SUS, baseado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade da atenção à saúde. Sendo assim, o sujeito não deve ser abordado a partir de uma ótica fragmentada, pelo contrário, os serviços devem estar articulados de maneira a permitir um tratamento integral e contínuo, com promoção de saúde, prevenção e diversas formas de tratamento29 .

Nesses princípios, a construção do modelo de atenção à saúde tem se baseado nas redes de atenção à saúde (RAS). Estas são entendidas como arranjos de ações, serviços de saúde e profissionais, de diferentes modalidades e níveis de atenção, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão buscam o cuidado integral30. Nesse modelo, a APS é o centro de comunicação entre os dispositivos da rede, sendo também a principal porta de entrada do SUS e a responsável por regular o fluxo. Além disso, três elementos são responsáveis pelas diretrizes das redes de atenção à saúde, sendo eles a

população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde30 . Especificamente sobre o cuidado a usuários de drogas, é necessário incorporar a rede de atenção psicossocial (RAPS). Ela é formulada para ampliar e articular os pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas31. A RAPS divide-se em sete níveis de atenção, sendo eles: atenção básica em saúde, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial31 .

A atenção básica é formada por: 1. Unidades básicas de saúde (UBS) e equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), responsáveis pela organização da APS e por ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, reabilitação e manutenção da saúde; 2. equipes de consultório na rua (CR), atuando de forma itinerante e ofertando ações de cuidado em saúde às pessoas em situação de rua; 3. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), com equipes interdisciplinares que atuam de forma integrada com as equipes da ESF, ampliando as ações em saúde; e 4. centros de convivência, que são unidades que oferecem à população em geral espaços de socialização e produção cultural31 .

A partir desse panorama inicial sobre os níveis de atenção básica na saúde e na assistência social, a seguir serão subsidiadas possíveis articulações entre os setores na abordagem ao uso de álcool e outras drogas, considerando o cenário de vulnerabilidades sociais no âmbito da sociedade vigente.

Pressupostos da abordagem à vulnerabilidade e o uso de drogas: integrando atenção primária e proteção básica

A partir dessa caracterização inicial sobre o SUS e SUAS, é cabível o seguinte questionamento: como realizar a abordagem ao uso de drogas e seus determinantes sociais na atenção primária e proteção básica? De antemão, cabe ressaltar que não existem receitas prontas e únicas, principalmente levando em consideração a complexidade e dinamicidade do problema. Contudo, isso não significa que não se possam estabelecer alguns pressupostos gerais para as ações, utilizar ferramentas disponíveis de acordo com os contextos e necessidades ou inspirar-se em boas práticas.

Dessa forma, um primeiro aspecto importante a ser considerado é que, apesar da importância do trabalho articulado e intersetorial, entende-se que as redes de atenção aos usuários de drogas não são somente meras “articulações” de serviços, sem que se reflita sobre o que isso significaria. Tampouco é um amontoado de dispositivos. Apesar de fundamental, de que valem os serviços estarem articulados se a visão empregada à problemática, ou seja, o modelo de atenção, ainda é reducionista, voltada somente para os aspectos biológicos ou psicológicos? É possível abordar de forma efetiva, mesmo com todos os recursos e serviços à disposição, os determinantes sociais e a vulnerabilidade social, se minha atuação não contempla os usuários e seus contextos de vida? O que se pretende com esses questionamentos é refletir sobre o discurso retórico sobre as redes que acabam gerando dois aspectos negativos: 1. A ideia de rede como panaceia, que resolverá todos os problemas; e 2. que as redes se explicam por si sós, não sendo necessário pensar sobre o que são,

suas características, obstáculos e potencialidades32,33. Ou seja, não importa quantos recursos possui se você não sabe como usá-los ou se os emprega sem considerar os cenários e atores envolvidos, eles nunca serão suficientes34 . Essas reflexões também valem para as próprias políticas sobre drogas, que devem ser problematizadas e não tomadas como construções inquestionáveis. Por exemplo, onde está a intersetorialidade, quando a RAPS desconsidera os dispositivos do SUAS? Ou onde estão os direcionamentos específicos das políticas, para além do generalismo, referentes a setores como o SUAS e seus dispositivos na abordagem ao problema?33 Ademais, as reflexões são pertinentes também para o modelo de atenção psicossocial que, conforme ressalta Traverso-Yépez35, apesar de ser muito falado, “observa-se que se continua privilegiando a etiologia biologicista, a concepção fragmentada de saúde [...], esquecendo-se a relevância dos aspectos sociais, psicológicos e ecológicos como mediadores dos processos saúde-doença”. Todos esses fatores indicam que não é somente a inserção de mais setores e diferentes categorias profissionais que trarão essa perspectiva ampliada. Deve-se refletir constantemente sobre os modelos de atenção que, por sua vez, estão relacionados à visão que se tem de homem e do processo saúde-doença35 .

Nessa direção, os níveis de cuidados primários, como a APS no SUS e a proteção básica no SUAS, possuem papel fundamental na abordagem às questões relacionadas ao uso de drogas. Isso se deve não somente à capacidade resolutiva, mas principalmente por serem dispositivos com inserção comunitária, em que, a partir do trabalho territorializado com as equipes interdisciplinares, possuem a capacidade de prestar atenção contínua (promoção, prevenção e tratamento) e centralizada na população36,37. Mesmo com uma série de insuficiências (recursos, estrutura, etc.) auxiliando no aumento da demanda e sobrecarga de trabalho, é possível pensar em formas de assistência ampliadas e integrais. Da mesma forma que a rede, apesar de perpassada por isso, não se restringe aos serviços existentes, o trabalho em rede deve ir além, embasado pelos seguintes questionamentos: o que tenho em minha disposição para abordar o problema? O que é possível ser feito? Como mobilizar novos recursos? Como envolver os atores responsáveis? Como construir coletivamente alternativas para os problemas enfrentados? Um primeiro aspecto da resposta é o próprio usuário. Isso significa que ele deve ser implicado no tratamento, não como um mero recebedor de ordens e/ou ações, mas como um ator participativo, sendo, portanto, considerado o elemento central da rede. Ademais, o saber teórico-técnico do profissional deve fundir-se com o saber popular e sobre a sua própria vida dos usuários, numa abordagem participativa, afastando-se do modelo prescritivo, centrado no profissional38. Parte-se do entendimento de que o usuário é sua própria rede e possui capacidades e ferramentas dentro de si que podem ser potencializadas para o enfrentamento da questão.

Consequentemente, deve-se pensar na necessidade de abarcar, de forma participativa, a comunidade e seus recursos para maior abrangência e contextualidade do trabalho. Ora, se se procura realizar ações que estejam de acordo com os âmbitos e pessoas que as conformam, deve-se considerar essas mesmas pessoas e cenários para ação. Afinal, quem sabe mais sobre si e, por conseguinte, sobre seus cenários de vida, saúde, possibilidades, etc. se não as próprias pessoas e comunidade? Adianta dispor de extensa gama de serviços se eu não considero os usuários, suas redes sociais, os contextos nos quais vivem e se constituem como pessoas, bem como a comunidade e recursos comunitários?

A última parte da resposta está relacionada à atuação dos próprios serviços. Ou seja, é

suficiente a existência dos serviços se eles próprios não atuam internamente de forma articulada? Eu trabalho de forma integrada com o profissional que está sentado ao meu lado? Ou a relação que ocorre é entre profissional e as partes do sujeito, independentemente do sujeito dessas partes? Em suma, como é possível integrar diferentes níveis de atenção, setores etc. se dentro dos próprios serviços não se trabalha em rede? Acredita-se que, negligenciar essas reflexões e partir diretamente para as ações, estáse desvirtuando a ordem do processo, pois as ações, técnicas e procedimentos devem ser consequências dessas problematizações, e não o contrário. Tendo isso em mente, adentram-se nos dispositivos das políticas e possibilidades na abordagem aos usuários de drogas e seus determinantes sociais, considerando a vulnerabilidade social.

Em relação às UBS, equipes de ESF na atenção primária do SUS e os CRAS na proteção básica do SUAS, trata-se de construir caminhos em conjunto, em vez da fragmentação dos sujeitos em aspectos sociais e de saúde. Apesar das insuficiências estruturais e na formação, os sujeitos de ação e o território, em grande parte, são os mesmos para ambos os serviços. Assim, por mais que os enfoques possam ser diferentes, ambos dizem respeito ao sujeito como um todo, devendo, então, buscar compreender a relação dessas pessoas com seus quadros socioculturais e como a droga emerge como um desses elementos.

Trata-se, portanto, de romper com o modus operandi tradicional das políticas públicas de polarização e criação de diferentes frentes. Isso significa ser capaz de abarcar a necessidade de linhas-guia de cuidados que indiquem as possibilidades de tratamento e cuidado compartilhado de acordo com características gerais dos usuários e serviços, em conjunto com as particularidades e necessidades de cada caso, a partir de projetos terapêuticos singulares. Assim, o fluxo de cuidado estabelecido entre serviços, níveis e setores não permanece somente no plano das subjetividades e/ou das particularidades, devendo ser subsidiado por uma lógica organizacional. Entretanto, também deixa de ser mero receituário, enquadrando as pessoas em modelos pré-datados e, possivelmente, descontextualizados.

O encaminhamento, nessa perspectiva, deve ser visto como uma operação (entre outras) que possibilita o cuidado compartilhado e não uma transferência de responsabilidades. Apenas encaminhar alguém para algum serviço não significa trabalhar em conjunto39 . Dessa forma, podem ser úteis o mapeamento dos serviços existentes no município e bairros, a criação de mecanismos de comunicação e trocas contínuas, assim como a criação e compartilhamento de instrumentos unificados. Além disso, algumas ferramentas acessíveis e fáceis de utilizar como o ecomapa e o genograma podem ser integrados no cotidiano de trabalho, ao possibilitarem visão ampliada sobre o problema, mapeando a vida do usuário, identificando vulnerabilidades que podem ser minimizadas ou revertidas e aspectos positivos para dar suporte ao tratamento, como sua rede social (amigos, familiares, trabalho, etc.)40,41 .

Além desses dispositivos, destacam-se dois arranjos relativamente recentes: os CRs e os NASFs. Quanto ao primeiro, sua inclusão na RAPS e ampliação do escopo de atuação para além da saúde mental e transtornos relacionados ao uso de drogas indicam a necessidade de ver as pessoas em situação de rua em sua totalidade, efetivando seus direitos não só à saúde, mas à vida. Assim como observado por Londero, Ceccim e Bilibio42, os sujeitos necessitam de cuidados ampliados, decorrentes da situação de rua, sendo o uso de drogas uma das facetas desse cenário de vulnerabilidade social. Em concordância com Santana43 , para superar essas vulnerabilidades, é preciso potencializar a autonomia individual e cole-

tiva, o que é possível a partir de um trabalho integral e integrado entre profissionais, serviços e setores. Dessa forma, apesar de constar na atenção básica da RAPS, esse dispositivo pode ser utilizado como uma forma de aproximação entre SUS e SUAS.

Assim como o CR, o NASF, apesar de prestar suporte na APS às equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), trata-se de um dispositivo composto por equipes interdisciplinares, que poderiam potencializar e aprofundar a atuação de dispositivos como os CRAS. Essa proposição diz respeito à necessidade de se ampliar o apoio matricial dos dispositivos especializados (como o NASF, mas também o CAPS, o CAPSad, etc.) a todos os serviços não especializados, incluindo os CRAS do SUAS, entre outros. Por mais que isso possa esbarrar na formação profissional inadequada, insuficiência de serviços, alta demanda e sobrecarga44, é possível pensar em ações que utilizem o que já existe, mas expandindo-as, como: englobar profissionais e serviços do SUAS nas reuniões de supervisão com a APS, e vice-versa; grupos de trabalho intersetoriais para planejamento e acompanhamento das ações; discussão de casos clínicos que perpassam ambos os níveis e setores, etc. Afinal, se está-se falando de intersetorialidade e integralidade, as práticas não devem ser discutidas por todos os profissionais e serviços que as conformam?

Nesse sentido, é necessário adentrar na dinâmica de trabalho, problematizando o papel das diferentes categorias profissionais. Tanto as UBS e equipes de ESF na atenção primária quanto os CRAS na proteção básica devem atuar de forma prioritária na promoção de saúde e prevenção, indo para além da droga e do uso, prevenindo também outras condições de saúde, situações de vulnerabilidade e risco social, desenvolvendo potencialidades individuais e fortalecendo vínculos familiares e comunitários31,37. Para isso, devem-se considerar as potencialidades de todos os profissionais que compõem as equipes interdisciplinares, em vez de estabelecer uma hierarquização das ações, com o planejamento concentrado nos profissionais de nível superior e as decisões sobre a concepção do trabalho não sendo partilhadas por todos, o que compromete a construção de projetos comuns45. Assim, agentes comunitários de saúde (ACS) e os profissionais de nível técnico dos CRAS aparecem como atores-chave para o cuidado territorializado, centralizando a atenção na comunidade, a partir de seu conhecimento local ampliado, não devendo estar relegados somente a orientações gerais aos usuários e familiares e à realização de serviços administrativos (encaminhamento dos usuários aos serviços, agendamento de consultas e exames, etc.)46 .

A oferta dos serviços de atenção primária e proteção básica deve integrar-se aos demais níveis, serviços, programas e projetos (sejam eles dos SUS, SUAS, educação e também da comunidade), tendo como norte a atenção territorializada. Apesar da ênfase dada no presente capítulo aos serviços de cuidados primários, é necessário pensar na articulação com os demais níveis e seus respectivos serviços, tendo em mente que a ideia de redes de atenção pressupõe uma organização horizontal não hierarquizada, visando minimizar a fragmentação entre esses níveis de cuidado30. Na seção seguinte apresenta-se um pouco da experiência do Centro Regional de Referência sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF), que vem desenvolvendo uma metodologia de trabalho direcionada pela abordagem colaborativa e contextualizada à realidade do município.

Possibilidades para o trabalho integrado: a experiência do Centro Regional de Referência Sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF)

O CRR-JF busca em sua metodologia de trabalho priorizar uma atenção integral dos usuários de drogas levando em consideração as vulnerabilidades sociais e as possibilidades para uma atuação ampliada sobre a temática, enfatizando o trabalho integrado entre atenção primária à saúde do SUS e proteção básica do SUAS. Para isso, desde sua implantação, que ocorreu no ano de 2011, a equipe vem intensificando o diálogo entre a universidade, gestores locais e profissionais para diagnóstico das necessidades de formação e planejamento das capacitações, viabilizando a interlocução com recursos importantes da rede de assistência, tais como o Conselho Municipal de Políticas Integradas Sobre Drogas (COMPID), com o plano municipal integrado sobre crack, álcool e outras drogas (JF + Vida) e também com o Comitê Intergestor do Programa “Crack, é possível vencer”. A partir do diálogo inicial estabelecido com a gestão municipal, foram definidas duas regiões prioritárias para abrangência inicial do CRR-JF no ano de 2015. As regiões foram escolhidas considerando-se os seguintes aspectos:

• suas extensões territoriais; • seus índices de vulnerabilidade social; • a quantidade de profissionais já capacitados pelo CRR-JF nas edições anteriores; e • disponibilidade da rede de proteção básica do SUAS, representados por intermédio dos CRAS.

Após conhecimento das áreas prioritárias, a equipe do CRR realizou diversos contatos com os serviços, bem como visitas para familiarização com o território, na tentativa de conseguir o envolvimento de ampla representatividade dos recursos públicos disponíveis nas duas regiões. Foram envolvidos os seguintes dispositivos: CRAS, CREAS, UBS, CAPS, CAPSad, CR, residências terapêuticas, recursos comunitários, escolas municipais e estaduais das regiões.

Posteriormente, esses serviços foram convidados a participar dos processos formativos (oficinas ampliadas), realizados a cada dois meses, com o objetivo de planejar e acompanhar a execução de atividades conjuntas. Além dessa ação, a equipe do CRR pactuou atividades de campo (denominadas oficinas no território) realizadas no próprio espaço dos serviços envolvidos. A cada encontro, os profissionais estabelecem atividades que devem ser trabalhadas no intervalo entre as reuniões e mapeiam prioridades e necessidades para as oficinas ampliadas bimestrais. Essas ações vêm contribuindo não só para se pensar propostas direcionadas para álcool e outras drogas, como também para que os serviços reflitam sobre sua forma de trabalho como um todo. As primeiras oficinas formativas reuniram vários dispositivos assistenciais, já mencionados anteriormente. Um dos objetivos principais desses encontros foi estimular os profissionais a refletirem sobre os vínculos (fortes ou frágeis) estabelecidos entre cada serviço e os demais setores presentes no encontro, tendo em vista a necessidade de se olhar o trabalho conjunto para além da lógica do referenciamento de pacientes. Conforme descrito, os níveis de cuidados básicos (ou primários) do SUS e SUAS aparecem como elementos-chave para o estabelecimento de um continuum de cuidado, com base em ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento. No entanto, a continuidade do cuidado e a apropriação

adequada de novos arranjos organizacionais, tal como dos CRs e NASFs, exigem a incorporação de uma nova forma de organização do trabalho em saúde que muitas vezes não é vivenciada pelos profissionais envolvidos nos diferentes dispositivos da rede de assistência.

As novas estratégias de gestão e estruturas organizacionais já vêm sendo há algum tempo discutidas com um novo olhar para as concepções de saúde. Essas reflexões foram incorporadas nas discussões referentes à estratégia da clínica ampliada e exemplificada por meio dos projetos terapêuticos em saúde mental. Os projetos terapêuticos foram pensados de tal forma que fossem planejados a partir da atuação integrada das equipes de saúde e com a finalidade de se considerar outros aspectos, além da medicação e diagnóstico no cuidado. Nesse sentido, destaca-se a pactuação e construção de diálogo como aspecto primordial para a elaboração coletiva de propostas adequadas às necessidades dos contextos e pessoas. Além disso, o vínculo dos membros da equipe com os usuários, família e comunidade passa a ser fundamental47 .

A discussão da reestruturação do trabalho e dos modelos para atenção ampliada aos usuários de drogas segue as exigências citadas anteriormente, com o desafio de envolver não só a rede SUS, como também o SUAS, no plano terapêutico. No entanto, mesmo não sendo recentes as discussões sobre a reorganização do trabalho, ainda persistem os limites do trabalho coletivo vivenciado nos níveis microrganizacionais. Isso chama a atenção para a necessidade de os serviços trabalharem a articulação interna e também com os recursos disponíveis no próprio território, e não apenas restringir as discussões à insuficiência de dispositivos. Nesse sentido, o CRR-JF vem adequando sua metodologia de trabalho para uma atuação cada vez mais próxima dos serviços e territórios, utilizando ferramentas para mediar esse diálogo e ampliar a compreensão do que se constitui como rede de assistência para os usuários de drogas.

Conclusões

Este capítulo teve como propósito refletir sobre o modelo psicossocial no entendimento e abordagem às questões relacionadas ao uso de drogas, compreendendo os determinantes sociais - entre eles a vulnerabilidade - como construções sociais, sendo o uso abusivo de drogas um dos elementos que se inserem nessa conjuntura vivenciada por inúmeras pessoas e grupos. Dessa forma, perpassa-se pela estruturação dos níveis de atenção básica na saúde e assistência social como arranjos possíveis para a articulação de ações abrangentes sobre a temática, conforme exemplificado pela experiência do CRR-JF.

Destaca-se a necessidade de se considerar os usuários e seus contextos de vida como eixos centrais no cuidado integral e para a construção das redes de atenção intersetoriais aos usuários de drogas, ultrapassando o entendimento restrito às “articulações” de serviços ou referenciamento de pacientes. Portanto, espera-se que a discussão apresentada neste texto contribua para que se tenha em mente que nossas visões e ações devem ultrapassar lógicas reducionistas ou focadas meramente na implementação de procedimentos técnicos e protocolares, partindo para ações que envolvam o reconhecimento dos aspectos contextuais, como os determinantes sociais, de cada território ou usuário.

Referências

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Sessão 3: Abordagem da vulnerabilidade e do uso de drogas

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A vulnerabilidade dos agentes de segurança pública

Wellington Eustáquio Ribeiro

A delicadeza que envolve a temática da violência, o uso de drogas e a segurança pública é amplificada quando se discute a vulnerabilidade dos agentes de segurança pública, principalmente pelas expectativas depositadas nesses sujeitos. Deve-se ter em mente que há significativa variabilidade das perspectivas do conceito de vulnerável, visto que as organizações voltadas para a segurança têm campos distintos de atuação e, por consequência, são influenciadas de modos distintos pelos fenômenos sociais, em especial no que diz respeito à sua atuação no campo das drogas. Portanto, é necessário distinguir os termos “risco” e “vulnerabilidade”. É importante que se analise a estrutura das organizações responsáveis pela provisão da segurança pública e quais são as pressões a que estão submetidos os seus agentes nos diferentes níveis de atuação em que estes estão inseridos.

Agentes de segurança pública e vulnerabilidade parecem ser termos que seguem em caminhos opostos. Em um primeiro momento, considerando o treinamento qualificado e a meticulosa seleção desses profissionais. Mas é importante estar atento aos antagonismos a que esses sujeitos são submetidos no seu cotidiano, já que os riscos inerentes à sua prática de repressão à criminalidade e à violência contrastam de modo significativo com as novas filosofias de prevenção à violência, principalmente quando se fala do trabalho de polícia comunitária. Essas variações de práticas e condutas, os papéis institucionais e de relação com as comunidades, a relação entre agentes de segurança e a população têm provocado acentuadas mudanças na estrutura das organizações e, consequentemente, nas identidades desses agentes. Outro aspecto que chama a atenção são as relações de poder que envolvem o universo da segurança pública e que não podem ser desconsideradas, pois estão diretamente ligadas às condutas dos agentes e às causas da vulnerabilidade.

A discussão sobre a vulnerabilidade dos agentes de segurança pública passa pela análise de alguns aspectos da política nacional para a atenção integral ao uso de álcool e outras drogas e como essa política, originária da área de saúde, reflete a importância da integração intersetorial. Investiga, ainda, como políticas públicas de segurança influenciam os processos de organização da estrutura de segurança pública de estados e municípios. Essa análise é primordial para que se observe o papel dos órgãos de segurança pública e se suas atuações são condizentes com o que preconizam os seus regimentos e códigos de conduta.

Um ponto relevante para a nossa investigação é a perspectiva e a política do governo federal no tocante à política de segurança em relação às drogas. Pautados pela estrutura do programa “Crack, é possível vencer”a, atuação descrita no eixo autoridade é de que os operadores de segurança atuem junto às comunidades, estimulando a sociedade a construir soluções conjuntas para a resolução dos problemas de criminalidade e violência locais. A interação entre os agentes de segurança e a população local, chamada de polícia de proximidade, é a filosofia a que subjaz esse eixo. Na perspectiva do programa, essa filosofia atribui uma característica mais preventiva da segurança pública, afinal, os agentes de segurança deverão conhecer os problemas locais e focar a sua atuação na resolução desses problemas. É uma proposta cunhada de tal forma que inverte a prática difundida até então, de uma polícia desvinculada da realidade do território de atuação.

a O programa “Crack, é possível vencer” é um plano do governo federal com vistas à atuação integrada entre a União, os Estados e o Distrito Federal em ações de enfrentamento ao crack e outras drogas, nos termos do Art. 5º-A do Decreto 7.179, de 20 de maio de 2010.

Essa característica diferenciada de policiamento e da atuação dos agentes de segurança pública traz novos paradigmas no que diz respeito ao papel dos agentes e da relação que estes profissionais estabelecem com a população assistida pelas suas ações. Há tentativa de aproximar saúde e segurança. O agente de segurança não terá o usuário de drogas como o inimigo a ser combatido, mas como um sujeito de interações cotidianas, o que, inevitavelmente, desconstrói a distância entre o mundo do enfrentamento e o mundo do consumo.

O objetivo que norteia a presente discussão é compreender os fatores que fazem com que os agentes de segurança pública apresentem altas taxas de letalidade em suas ações e a relação dessas ações com a chamada guerra às drogas, bem como a associação com as taxas de letalidade relacionadas ao consumo de drogas. Buscam-se encontrar nessa trajetória alguns pontos de confluência e divergência que colocam os agentes de segurança pública em um lugar de conflito entre a sua prática profissional e as suas relações sociais. As representações sociais sobre as drogas, sobre os usuários de drogas e sobre os agentes de segurança pública usuários de drogas são muito variáveis e, assim, a abordagem e o tratamento a ser dado à questão da drogadição envolvendo agentes de segurança pública precisa ser observado com especial atenção.

Estamos em guerra? Quem é o inimigo?

Quando se utiliza o termo “agentes de segurança pública”, está-se referindo aos profissionais pertencentes aos quadros dos órgãos responsáveis pela segurança pública descritos no Artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil, que são as polícias federais: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal; as polícias estaduais: Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; e, ainda, os agentes municipais, que são as Guardas Civis Municipais1 .

Os cenários de atuação das forças de segurança pública e o papel de seus agentes sofreram alterações significativas ao longo da história e continuam em constante mudança. Os critérios para o uso moderado da força fazem parte de discussões recorrentes nas instituições de segurança, mas essa não é uma temática recente e, por esse motivo, será feito breve percurso histórico para contextualizar o quadro de risco e a vinculação deste com a vulnerabilidade dos agentes de segurança pública.

No período compreendido entre a Primeira e a Segunda Grande Guerra Mundial, a Liga das Naçõesb organizou uma troca de correspondências entre intelectuais da época para a reflexão dos mais variados assuntos, sendo que em 1931 o físico Albert Einstein é convidado a se corresponder e sugere o nome de Sigmund Freud para ser o seu interlocutor. O tema escolhido por Einstein dá título à sua carta e se torna um texto muito interessante na obra de Freud. A pergunta de Einstein é “Why war? (Por que a guerra?)”. Um fragmento da resposta de Freud2 é significativo para nossa reflexão:

“A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo: - uma ou outra facção tinha que ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força.

b Instalada em janeiro de 1919, pelo Tratado de Versalhes, o mesmo que colocava termo à Primeira Guerra, sua sede era Genebra, cidade suíça. A Liga das Nações era organizada de uma maneira bem semelhante à da atual ONU, sendo composta de um Secretariado, Assembleia Geral, e um Conselho Executivo (semelhante ao Conselho de Segurança atual da ONU). Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/liga-das-nacoes/ acesso em 02/06/2015.

Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse”. c

A introdução desse discurso de Freud deve ser contextualizada ao se considerar que os combatentes de guerra são as Forças Armadas, são os exércitos os encaminhados para o campo de batalha e com objetivos claros e bem-definidos: avançar no terreno, tomar posições estratégicas, eliminar o inimigo. Entretanto, os agentes de segurança pública têm se envolvido cada vez mais em guerras urbanas, que são travadas em terreno hostil, onde há população civil, onde os inimigos não são bem-definidos, o alvo não é claro e, portanto, os riscos são muito altos. Há risco de identificação do combatente com o inimigo, pois o campo de batalha é o mesmo lugar das relações cotidianas dos agentes de segurança, é onde este vive e onde estão a sua família e amigos.

A chamada Guerra às Drogas expõe a face mais cruel de uma batalha urbana. Não se luta contra drogas, pois são apenas objetos, matéria inerte, o alvo droga é personificado na figura do usuário e/ou do traficante. Esse usuário (ou traficante) normalmente não é o produtor da droga, também não é o grande distribuidor, o senso comum atribui a ele características gerais, tais como classe social (baixa), cor da pele (negra), idade (jovem) e endereço (favela). É este o grande inimigo, é contra esse sujeito que a guerra é deflagrada, este é o alvo. Entretanto, essas características atribuídas ao inimigo da guerra urbana são majoritárias na população brasileira, inclusive, pertencem à maioria dos nossos agentes de segurança pública. Um primeiro ponto para reflexão é que se está lutando contra os pares, que a luta é violenta, inglória e que, paradoxalmente, não se consegue identificar vencedores, apenas os vencidos. Cotidianamente, contabilizam-se os mortos e feridos, que a mídia insiste em afirmar serem vítimas das drogas, mas será mesmo a droga o grande matador? Os sujeitos são vítimas de uma violência estrutural ou de uma violência midiática que reforça a necessidade de consumo? Os sujeitos precisam corresponder a um imperativo moral dominante e este se encontra corrompido na sociedade contemporânea3. O imperativo que se apresenta para que os sujeitos se constituam socialmente é o do consumo.

A Guerra às Drogas declarada pelo Presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, de modo explícito, propunha altos investimentos financeiros e militares para o combate ao tráfico e aos grandes cartéis, porém, implicitamente, o que se vê é a estigmatização de grupos étnicos e de repressão a movimentos contraculturais surgidos na década de 1960 nos Estados Unidos da América4 . Porém, a virulência dessa guerra é aterradora, atravessou fronteiras e se tornou discurso prevalente em quase todo o mundo. Era uma guerra que combatia os questionamentos contra o consumo bélico.

Em outro texto, este de 1915, Freud5 chama a atenção para a intolerância às diferenças e sobre o que sustenta um estado belicoso entre as nações (ou entre uma nação e seus cidadãos). “Já se disse, a nós mesmos, sem dúvida, que as guerras jamais podem cessar enquanto as nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da vida individual for tão diversamente apreciado entre elas e enquanto as animosidades que as dividem representarem forças motrizes tão poderosas na mente” .d

c FREUD, Sigmund, Por que a guerra? (1933[1932]), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, volume XXII p. 191-210 – Rio de Janeiro: Imago, 1996a. d FREUD, Sigmund, Reflexões para tempos de guerra e morte. (1915), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, volume XIV p. 285-310 – Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

Mesmo que existam nações que possuam em sua constituição populacional uma preponderância quase absoluta de determinada etnia, não serão encontradas as “raças puras”, talvez apenas entre algumas tribos primitivas que não tiveram contato com outras civilizações. Mas estas são cada vez mais raras e, assim como são diversas as civilizações, os valores da vida de seus indivíduos também têm apreciações diversas, como sustenta Freud. São esses valores distintos que promovem a violência entre grupos e tornam uns ou outros alvos vulneráveis de guerras que objetivam destruir ideologias e culturas e não um inimigo comum, como as drogas, por exemplo. As condições diferentes a que Freud se refere são comumente encontradas nas grandes cidades brasileiras e essas condições compõem o quadro principal da presente investigação.

Estamos em estado de guerra, ou melhor, o Brasil vive uma guerra civil não declarada. A história brasileira nega a presença de guerras civis em função de uma postura ufanista que prega a ordem e o progresso presentes apenas no lema da nossa bandeira. A Balaiada, a Sabinada e Canudos são exemplos de guerras civis que foram conceituadas como movimentos revolucionários, apesar da morte de centenas de civis. Todas essas guerras tinham caráter de resistência a culturas impositivas e buscavam o reconhecimento de uma organização social e de um modo de vida próprio de um povo. Se essa organização social não se enquadra nas normas vigentes, ela é exterminada. É uma imposição necessária para que a lógica de consumo prevaleça. Waiselfisz6 destaca no mapa da violência de 2015 que o Brasil encontra-se no 11º lugar no ranking das mortes por armas de fogo, organizado pela ONU entre 90 países. Apesar do mapa se pautar pela proporcionalidade e pelo número de pessoas mortas por 100 mil habitantes, o que chama a atenção é que em nenhum dos outros 89 países a quantidade de pessoas mortas se aproxima dos números do Brasil. Diante desse quadro de alta letalidade e considerando que essa mortalidade está diretamente ligada à violência urbana, tendose que os agentes de segurança pública estão diretamente envolvidos com essas mortes, sendo vítimas e autores, é inegável que esses agentes encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. Assumir a gravidade do momento histórico em que nos encontramos possibilita um planejamento mais elaborado das ações de segurança.

Drogas e sociedade

Cabe ressaltar que o tráfico e o consumo de substâncias psicoativas se dão em todas as esferas sociais e que, em grande parte, o combate desorganizado às drogas é o que expõe usuário e agentes de segurança a situações de risco e mais vulnerabilidade. O que difere a prática dos agentes é a representação social sobre os traficantes e os usuários em cada uma dessas esferas sociais. A representação social, assim como definida por Spink7, auxilia na compreensão de que:

“Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem para a construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a partir do seu contexto de produção. Ou seja, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas de comunicação onde circulam” 7. As representações sociais sobre drogas e violência no Brasil estão fortemente vinculadas à pobreza e às favelas, mesmo que não existam indicativos de que violência e

drogas estão circunscritas a determinado local ou a um nicho populacional. O estigma se encarrega de consolidar essa percepção e de difundir socialmente a tríade violência-drogas-pobreza. A própria política nacional sobre drogas8 afirma que a pauperização do país, que atinge em maior número pessoas, famílias ou jovens de comunidades já empobrecidas, apresenta o tráfico como possibilidade de geração de renda e medida de proteção. É uma renda que propicia a entrada no ciclo do consumo. Esses apontamentos são muito coincidentes com as reflexões de Freud9 sobre a guerra e as desilusões que o afligiam, especialmente quando o autor destaca a baixa moralidade dos estados e “a brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento”5. A violência e a resposta dada às condições de enfrentamento a que estão submetidos os agentes de segurança pública podem proporcionar reações brutais e inesperadas, em situações de grande tensão.

O fenômeno do consumo de drogas

As drogas sempre estiveram presentes na história da humanidade, os padrões de consumo variavam conforme o tipo de substância, o objetivo do consumo, a época histórica, a cultura, a religião... O consumo coletivo, quando vinculado à cultura ou à religião, traz consigo algumas fundamentações, mas não é tarefa simples explicar as motivações subjetivas para o consumo de substâncias entorpecentes. Freud atribui à dureza da vida uma das justificativas, segundo ele9 .

“A vida, tal como a encontramos, é árdua demais; proporciona muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não se pode dispensar as medidas paliativas. “Não podemos passar sem construções auxiliares” - diz Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que fazem extrair luz da desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável”9

Então, parece que uma inferência bastante plausível como uma das justificativas para o consumo de drogas seja a busca pelo prazer, ou mesmo a diminuição do sofrimento. Entretanto, o que interessa em especial é o que torna alguns sujeitos, principalmente os agentes de segurança pública, mais vulneráveis ao consumo e à dependência das drogas.

A política nacional sobre drogas destaca que o consumo de drogas não atinge de maneira uniforme toda a população e sua distribuição é distinta nas diferentes regiões do país, apresentando, inclusive, diferenças significativas em uma mesma região, tanto nos aspectos sociais quanto nas vias de utilização e na escolha do produto8 .

Vulnerabilidade, Drogas e os agentes de segurança pública

Existem inúmeras vertentes que indicam o uso de drogas lícitas ou ilícitas como resultante de problemas de autoestima, autoconfiança, falta de habilidades para enfrentar situações adversas, ansiedade, fragilidade emocional e sofrimento psíquico10. Mas há uma característica específica que vincula o uso de drogas aos agentes de segurança pública? É importante salientar que o uso de armas de fogo no exercício de suas funções é um dos

fatores que chamam a atenção sobre esses profissionais e a sua vulnerabilidade no que concerne ao uso de drogas.

Agentes de segurança pública estão expostos cotidianamente a situações de violência estrutural, que oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte. Esse contato permanente com a violência e com situações de risco produz um quadro de vulnerabilidade e sofrimento naqueles profissionais e a resposta se dá na replicação da violência contra grupos também vulneráveis ou numa das medidas paliativas descritas por Freud para reduzir o desconforto, o sofrimento e o consumo de substâncias tóxicas9 .

O que se observa é que a presença cada vez mais intensa de drogas nas estruturas sociais contemporâneas tem fomentado novas discussões sobre os padrões de consumo e dos usuários. Um ponto relevante e que tem chamado a atenção é o consumo de drogas no ambiente de trabalho. Alguns países vêm adotando medidas de controle sobre o uso de drogas nos ambientes de trabalho. Costa pesquisou sobre o uso de drogas em 12 unidades da Polícia Militar do Estado de Goiás11. Esse estudo destacou de modo pormenorizado quais as substâncias psicoativas mais usadas pelos militares e traz ainda a confirmação de que o uso de substâncias psicoativas não seleciona o consumidor.

Estudo realizado por Souza12 junto ao Centro de Perícias Médicas Militares (CPMM) constatou que entre os anos de 2001 e 2008 cerca de 1% do efetivo da Polícia Militar do Estado da Bahia foi afastado em caráter definitivo em razão de transtornos mentais e comportamentais. Esses militares tinham entre 35 e 45 anos de idade, portanto, encontravam-se em idade produtiva para o exercício de suas funções. Souza12 ainda destaca que em 2007, entre os meses de janeiro e outubro, a unidade de assistência psicológica da Polícia Militar da Bahia registrou 45 internações em estado grave de policiais militares em decorrência do uso abusivo de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O autor atribui esse cenário a uma vulnerabilidade psicoestrutural para o uso de substâncias psicoativas, causada pelo enfrentamento da violência nas ruas, em suas casas, baixos salários e, ainda, pela violência institucional praticada nos quartéis 12 .

Segundo Souza12, em 1999 31 policiais militares do estado de São Paulo foram a óbito em decorrência do uso abusivo de substâncias psicoativas, o que denota não ser uma realidade exclusiva da Polícia Militar da Bahia. Estudo realizado por De Souza et al. 10 revela a necessidade de elaboração de políticas públicas voltadas para o cuidado em saúde e com as condições de trabalho da Polícia Militar e da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Este estudo corrobora a afirmativa de Souza (2009) de que o uso de substâncias psicoativas por agentes de segurança não é exclusividade de um ou outro estado12 . Os atos de mediação de conflitos e todas as demais ações do exercício profissional dos policiais são particularmente cercados de um estado de tensão, pois lidam com as mais obscuras facetas dos seres humanos, o que exige desses profissionais um esforço físico e mental extremo12. Os níveis de estresse e de frustração são, normalmente, elevados e isso faz com que se busquem saídas para o alívio dessas tensões, o que deixa os agentes de segurança extremamente vulneráveis ao consumo de drogas, principalmente às drogas lícitas. O uso regular de álcool não é tão estigmatizante como o uso de drogas ilícitas, o que dá a sensação de aceitação social. De Souza et al. 10 destacam que cerca de 50% dos

policiais que participaram de sua pesquisa faziam uso regular de álcool (uso diário ou pelo menos uma vez por semana), a maioria do sexo masculino, com idade entre 36 e 45 anos, casados, com filhos.

Outro dado que parece relevante é que os policiais lotados em unidade operacional, ou seja, que vivenciam cotidianamente a guerra urbana, são os maiores consumidores de drogas. Um ponto também relevante é que quase 60% desses profissionais exercem outra atividade remunerada fora de suas corporações. Além de confrontar com os regimentos internos das instituições que proíbem esse tipo de prestação de serviço, isso é um indicativo da carga de trabalho estressante e de como o lazer e o repouso são negligenciados. Uma consideração importante é que aproximadamente 80% dos policiais que fazem uso pesado de álcool se consideram expostos a riscos constantes 10 .

Riscos e implicações

Ciente dos riscos a que está submetido e da vulnerabilidade em relação ao consumo de drogas, o que leva um agente de segurança pública a enfrentar o julgamento social e até a possibilidade de exclusão da corporação?

Os agentes de segurança podem ser submetidos a tratamento diferenciado e estigmatizado por parte da sociedade e por parte de seus colegas de profissão. O que se espera de um agente de segurança pública é colocado em dúvida, considerando-se que os efeitos das substâncias psicoativas podem produzir comportamentos destoantes daqueles que se espera de um agente da lei. Para Goffman, o indivíduo estigmatizado se define como não diferente de qualquer outro ser humano, embora ao mesmo tempo ele e as pessoas próximas o definam como alguém marginalizado. É essa marginalização, nem sempre percebida nitidamente pelo sujeito estigmatizado, que catalisa os processos de adoecimento, pois há um estranhamento na relação desse sujeito com o mundo que o cerca. Os sentimentos, temores e crenças oriundos desse processo de marginalização causam a alienação do sujeito com a sua atividade profissional, pois há uma fragmentação da identidade do agente de segurança. Há um dado momento em que o uso de drogas e os seus efeitos se tornam tão latentes na vida do profissional que não se pode mais distinguir qual o momento de atuar como agente da lei13 .

Em seu estudo sobre o uso de drogas por policiais militares do estado da Bahia, Souza12 destaca como objetivo central a reflexão sobre o tratamento dispensado aos policiais dependentes de substâncias psicoativas legais e ilegais pela instituição da qual fazem parte e da representação social que se constrói pelos seus comandantes e pares. O abandono, o estigma e o sofrimento mental decorrentes do trabalho policial comprometem de modo significativo a saúde dos agentes de segurança e, segundo Souza (2009), esse cenário de abandono e estigmatização é condição inexorável para que o policial militar busque nas drogas uma forma de minimizar esse sofrimento. É necessário que se faça uma observação ao partir do estudo de Souza (2009), que apesar da aceitação do uso de drogas lícitas em determinado uso e padrão que não exponha a instituição, o uso das drogas ilícitas entre os policiais militares não é aceito socialmente, devido à sua associação com a marginalidade13 .

Diante do cenário atual sobre o consumo de drogas e da sua estreita relação com as condições de trabalho dos agentes de segurança pública, é necessário pensar a implementação de políticas de saúde específicas para esse público. É importante que se leve em consideração as condições de trabalho a que esses profissionais são submetidos. Essas políticas não dependem somente de decisão política, mas também, e principalmente, de arranjos organizacionais constituídos de recursos humanos, recursos materiais e financeiros.

Conclusão

O cenário atual sobre o uso de substâncias psicoativas no Brasil não se circunscreve a espaços específicos, a cerimônias religiosas, ao uso farmacológico, não distingue classes sociais ou a idade dos consumidores, tampouco categorias profissionais.

Tratar da vulnerabilidade dos agentes de segurança pública deveria ser pauta em todas as instituições, mas sem conotação punitiva ou depreciativa. Esses profissionais, pelos encargos e atribuições a que estão sujeitos, encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. Não só pela carga de trabalho, mas pela facilidade de acesso a todo tipo de substâncias psicoativas. As fontes de pesquisa que tratam sobre adoecimento profissional não abordam com profundidade a questão da drogadição nas instituições militares e de órgãos responsáveis pela segurança pública, mas os estudos que trataram dessa temática demonstraram que é necessária atenção especial sobre as corporações. Os riscos a que estão sujeitos os agentes de segurança pública são potencializados se se levar em conta os índices de profissionais em sofrimento mental decorrente do uso abusivo de drogas lícitas ou ilícitas.

Negar que os agentes de segurança estão sujeitos às vicissitudes comuns à população em geral, principalmente no que concerne aos quadros de sofrimento mental decorrentes do uso de substâncias psicoativas, é negligenciar a necessidade de elaboração de políticas públicas de saúde e de segurança que garantam direitos, protejam esses profissionais e também a população que, pretensamente, está sob os cuidados desses. Enfim, analisar os aspectos promotores de quadros de vulnerabilidade em diversos grupos sociais é partir do pressuposto de que há fatores específicos que afetam grupos distintos. Considerar os fenômenos que colocam os agentes de segurança pública em situação de risco e vulneráveis às drogas perpassa uma gama de vertentes que nos suscita olhares mais cuidadosos sobre cada uma dessas vertentes. A Guerra às Drogas, as representações sociais, as violências institucionais e as condições de trabalho são aspectos que foram considerados brevemente, mas que comportam em si fatores causadores de quadros de sofrimento mental e, consequentemente, uma exposição fragilizada ao consumo de drogas. Vale salientar que não há uma apologia na tentativa de justificar condutas indevidas ou críticas a qualquer instituição. O objetivo que conduziu este estudo foi constatar que há um cenário preocupante e que merece atenção e cuidado por parte dos órgãos de segurança e de saúde. Os agentes de segurança pública são sujeitos passíveis às vicissitudes que atingem a qualquer indivíduo, mas com o agravante de estarem submetidos a riscos e a pressões sociais intensas e para a implementação de políticas públicas que assistam a essa categoria de profissionais, é essencial que essas especificidades sejam observadas.

1. BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, DF: Senado; 1988. 2. FREUD, S, Por que a guerra? (1933[1932]), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira– Rio de Janeiro: Imago, 1996ª; volume XXII p. 191-210BALESTRERI, Ricardo. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Revista Dhnet, 2004. 3. LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, São Paulo: Manole;2005. 4. DA SILVA, J. Guerra às Drogas: Violência, mortes, Estigmas e Marginalização. Rio de Janeiro, : Revista EMERJ; 2013 dez; v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 38 - 45, out.. 5. FREUD, S, Reflexões para tempos de guerra e morte. (1915), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1996b; volume XIV p. 285-310. 6. WAISELFISZ, J J. Mapa da violência : mortes matadas por arma de fogo. Disponível em www.juventude.gov.br/juventudeviva;2015. 7. SPINK, M. J. P. The Concept of Social Representations in Social Psychology.Rio de Janeiro: Cad. Saúde Públ.; 1993; 9 (3): 300-308, jul/set,. 8. BRASIL. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas / Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Coordenação Nacional de DST e Aids. – Brasília: Ministério da Saúde; 2003. 9. FREUD, S, O mal-estar na civilização. (1930), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996c; volume XXI p. 73-148 –10. DE SOUZA, E R et al. Consumo de substâncias lícitas e ilícitas por policiais da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista Ciência & Saúde Coletiva;2013 v. 18, n. 3,. 11. COSTA, S H N. Uso de drogas psicotrópicas por policiais militares de Goiânia e Aparecida de Goiânia, Goiás, Brasil. Goiânia: Tese (doutorado em ciências da saúde) – Universidade Federal de Goiás; 2009. 12. SOUZA, R. Representação social dos policiais militares da Bahia: dependentes de substâncias psicoativas – Universidade Federal da Bahia: Disponível em: http:// twiki.ufba.br/twiki/bin/viewfile/PROGESP/Formacao3?rev=&filename=A_representa%E7%E3o_social_dos_policiais_militares_da_bahia.2009. 13. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro/RJ:Ed. Zahar Editores – 1978.

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Práticas em prevenção

Juliana Joni Parada Antônio Augusto Bastos Alvim

Diante dos conhecimentos atuais sobre as consequências clínicas, psicológicas, laborativas, sociais e econômicas dos transtornos por uso de substânciasa (TUS), das dificuldades inerentes ao tratamento e da alta taxa de mortalidade, o ditado popular “é melhor prevenir do que remediar” torna-se inquestionável.

Embora seja clara a necessidade de prevenção, a melhor maneira de como fazê-la ainda não é. Pelo fato de os TUS serem crônicos, com causas inter-relacionadas e multidimensionais, sua prevenção é similarmente complexa. A identificação e a avaliação de quais fatores são suscetíveis a intervenções preventivas é igualmente difícil. Entretanto, mensura-se que para cada dólar investido em prevenção pelo menos 10 podem ser economizados em custos futuros com saúde, programas sociais e crime1 .

No passado, as medidas preventivas limitavam-se à distribuição de folhetos impressos que alertavam os jovens sobre os perigos das drogas, com pouco ou nenhum impacto sobre seu comportamento.

Nos últimos 20 anos a ciência da prevenção apresentou inúmeros progressos. Contudo, a maior parte dos estudos de qualidade e com resultados “eficazes” foi realizada em países desenvolvidos, em contextos controlados, pequenos e bem amparados de recursos, diferentes do “mundo real”. Análises econômicas sugerem que essas intervenções de prevenção são custo-efetivas, pois os benefícios no decorrer da vida são substanciais, mesmo diante de pequenas reduções das prevalências de uso precoce de álcool e drogas2 .

Embora existam lacunas na ciência, basear os esforços preventivos nas evidências disponíveis é certamente melhor atitude que usar iniciativas pautadas apenas em suposições e boa vontade. Este é o caso particularmente de intervenções voltadas para vulnerabilidades que são expressivas em todas as culturas – como fatores genéticos, negligência parental e violência, entre outros. Além disso, conhecer abordagens que falharam ou que impactaram negativamente os resultados evita que medidas candidatas ao fracasso ou a iatrogenia sejam adotadas. Governantes e profissionais da área de prevenção às drogas devem sempre levar em consideração tais exemplos.

O objetivo deste capítulo é discorrer sobre os fatores relacionados ao risco e à proteção quanto ao uso de substâncias psicoativas (SPA) e sobre aspectos importantes da prevenção. Apresentam-se de forma sucinta os achados científicos sobre quais estratégias têm produzido resultados satisfatórios, bem como quais não demonstraram bons resultados ou mesmo apresentam desfechos negativos, em diferentes faixas etárias e contextos.

Fatores relacionados ao risco e à proteção ao uso de drogas

Uma vez que o abuso de drogas tem se iniciado cada vez mais precocemente, com pico na adolescência3, o grupo considerado mais importante para prevenção é formado por adolescentes e adultos jovens.

É difícil prever quais adolescentes, entre os que experimentam drogas, se tornarão dependentes, mas é certo que os futuros dependentes estão inevitavelmente entre eles. Até certo ponto, a experimentação de drogas na adolescência pode ser considerada natural, assim como é natural que o adolescente busque novas sensações e experiências em inúmeras esferas da vida, como, por exemplo, na sexualidade. De fato, a maior parte dos adolescentes que tem contato com SPAs irá permanecer apenas na fase experimental e abandonará esse comportamento, a depender de suas vulnerabilidades. Estas são observa-

a Os unitermos “drogas”, “substâncias” e “substâncias psicoativas” (SPAs) serão usados neste capítulo como sinônimos e referem-se a todas as drogas, lícitas e ilícitas.

das nas esferas individual, biológica, psicológica, familiar, escolar e social e se inter-relacionam de forma bastante complexa e multidirecional. No âmbito individual, a hereditariedade é um fator bastante relevante, que confere um risco biológico/genético para o desenvolvimento de dependência química (DQ). A prevalência de dependência entre familiares de dependentes pode ser até quatro vezes maior do que na população geral, inclusive em estudos de adoção4. Do ponto de vista biológico, idade precoce de início do uso, mais tolerância aos efeitos da substância e doenças psiquiátricas concomitantes acarretam mais riscos.

Algumas características de personalidade podem predispor o jovem ao abuso de SPAs, sendo algumas delas:

• timidez excessiva; • baixa autoestima; • baixo limiar a frustrações; • baixo nível de resiliência; • pouca responsabilidade e autonomia; • agressividade e busca por sensações novas.

No âmbito familiar, riscos mais altos são observados quando há uso de drogas e permissividade pelos pais, falta de supervisão, falta de clareza com regras e tolerância a infrações. Ambientes familiares com conflitos conjugais, violência doméstica, falta de expressão de afeto e padrão de comunicação negativo podem igualmente contribuir para o risco.

A escola tem papel crucial no risco ou proteção em relação às substâncias, sendo recomendadas regras bem-estabelecidas e fiscalização do uso, envolvimento entre professores e alunos e estímulo ao desenvolvimento das potencialidades do estudante. Baixo rendimento, defasagem e evasão escolar trazem riscos maiores do uso de SPAs.

O padrão de uso (ou não uso) de drogas pelos amigos é uma fonte de importante influência, tanto pelas pressões sociais que estes exercem sobre o adolescente, quanto pela necessidade deste de se sentir parte integrante de um grupo com o qual se identifica.

Fatores sociais determinantes incluem leis e políticas públicas sobre drogas. A ampla tolerância social com as drogas lícitas, facilidade de acesso à aquisição e ao uso de substâncias, falta de fiscalização e baixa percepção de risco (por exemplo, a crença de que a maconha é uma droga inofensiva) colocam o jovem em posição de mais vulnerabilidade. Outros fatores sociais, tais como criminalidade na vizinhança, empregabilidade, acesso a opções de lazer, acesso e qualidade dos serviços de saúde também exercem influência.

O uso de drogas em idade precoce está relacionado a uma série de consequências negativas que serão determinantes para os desfechos da vida adulta e que podem retroalimentar a manutenção do consumo:

• Risco de desenvolver dependência ou outros quadros psiquiátricos; • complicações clínicas; • acidentes e mortes precoces (sobretudo por causas violentas, incluindo homicídios e suicídios); • doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) /AIDS; • gestações indesejadas; • violência sexual;

• perda de produtividade; • envolvimento com criminalidade5 .

No mais, a neurotoxicidade das drogas pode limitar o desenvolvimento cerebral e as potencialidades do indivíduo. No âmbito acadêmico, o uso de SPAs traz dificuldades de aprendizagem, queda no desempenho e evasão escolar. Estudo realizado com 2.410 estudantes no Rio Grande do Sul demonstrou associação entre o uso de drogas e maior número de faltas e reprovações escolares6. Inalantes, comumente usados por crianças em situação de rua7, são altamente neurotóxicos e com consequências devastadoras. Outro exemplo é o da maconha. Grande estudo prospectivo neozelandês identificou claramente a associação entre o consumo precoce de maconha e uma série de desfechos negativos em termos acadêmicos e profissionais aos 25 anos: índices até quatro vezes menores de conclusão do nível superior, taxas até três vezes maiores de desemprego, recebimento de benefícios de auxílio-doença até cinco vezes maior, baixa renda pessoal e menos satisfação com a vida8 .

De forma geral, pode-se constatar que as mudanças de valores sociais e culturais (valorização do lucro crescente e incessante, busca do alívio imediato de situações desprazerosas e do prazer rápido e intenso a qualquer custo, competitividade, individualismo, fragilidade dos arcabouços religiosos e morais, em conjunto à apologia da mídia e à tolerância social ao uso de drogas lícitas) também contribuem para o uso de SPAs. Ou seja: ao mesmo tempo em que a sociedade combate e repudia as drogas, também incentiva, ainda que involuntariamente, o adolescente a procurar saídas imediatas que são facilmente nelas encontradas9. Se o uso de drogas não pode ser de todo evitado, medidas de proteção às crianças e adolescentes necessitam urgentemente ser tomadas na esfera preventiva.

Considerações gerais sobre prevenção

A prevenção é um dos principais componentes de um sistema de saúde focado na abordagem da questão das drogas, conforme as três Convenções Internacionais existentes10,11 . O objetivo principal da prevenção é evitar ou adiar o primeiro uso de drogas e, caso este uso já ocorra, evitar ou minimizar o desenvolvimento de transtornos relacionados, como a dependência química e outras comorbidades clínicas e psiquiátricas.

Adotando uma perspectiva mais ampla, pode-se compreender que o objetivo global da prevenção é:

• favorecer o desenvolvimento seguro e saudável dos indivíduos; • fortalecer suas habilidades e potenciais; • incentivar seus talentos, contribuindo para que se tornem membros positivamente atuantes nos ambientes familiar, escolar, comunitário e de trabalho.

A prevenção da toxicodependência é uma parte integrante de um esforço maior para que crianças e jovens se tornem menos vulneráveis e mais resilientes.

Em todos os níveis de prevenção é fundamental o controle estatutário da disponibilidade de drogas, bem como um arcabouço legal relacionado à posse e distribuição de SPAs. Ainda, a política de drogas deve objetivar também o bem-estar a partir da promoção de saúde individual e coletiva, da coesão familiar e comunitária, da segurança dos espaços públicos e da redução da criminalidade2 – tópicos que fogem ao escopo deste capítulo. Entretanto, por si sós tais medidas não são suficientes, uma vez que seria utópica a possibilidade de erradicar o fornecimento e o consumo de drogas. Dessa maneira, concomi-

tantemente se faz necessária a redução da demanda populacional e individual pelo uso dessas substâncias. Ressalta-se que medidas eficazes de prevenção devem estar inseridas em um sistema de saúde que responda de maneira contundente ao tratamento das dependências químicas, à prevenção e ao tratamento das complicações clínicas (HIV, overdoses, abstinências, doenças clínicas secundárias) e à prevenção das consequências sociais e outros comportamentos de risco associados (acidentes, violência, abuso sexual, gravidez indesejada, DSTs, por exemplo)12 . Ainda, um sistema de prevenção eficaz requer um conjunto integrado de políticas e ações múltiplas baseadas em evidências científicas, com avaliações diagnósticas e situacionais dos resultados e da qualidade das estratégias implementadas para tal fim. Deve abranger diferentes contextos, focando faixas etárias, níveis de risco e vulnerabilidades, com recursos financeiros e técnicos adequados e com manutenção a longo prazo.

Definições e conceitos

Leavell e Clark13 operacionalizaram um construto teórico sobre diferentes níveis de prevenção (Quadro 1), que incluem:

Prevenção primária

Consiste em evitar que uma doença se instale, dirige-se a um público que ainda não foi afetado pela doença. No caso dos TUS, envolve evitar que o uso de drogas se inicie. São exemplos: reduzir a disponibilidade de drogas, concomitantemente a estratégias de promoção de saúde e intervenções em populações de risco e vulneráveis.

Prevenção secundária

Consiste na identificação precoce do abuso de drogas e medidas para evitar a instalação da dependência.

Prevenção terciária

Consiste na redução do prejuízo funcional ou a manutenção do equilíbrio, sem deterioro adicional. Ou seja, reduzir as consequências clínicas e sociais ou o agravamento de uma dependência já instalada.

Quadro 1. Níveis de Prevenção

Prevenção Primária Promoção da saúde Proteção específica

Prevenção Secundária

Prevenção Terciária Diagnóstico e tratamento precoces Limitação da invalidez

Reabilitação

Adaptado de Leavell&Clark, 196513 Outro sistema de classificação, que considera mais amiúde a determinação social dos processos de saúde e doença, conceitualiza a prevenção nas seguintes esferas (Quadro 2):

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