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figura 15: Eficácia de políticas de drogas em resultados populacionais e individuais

Ações destinadas à população geral, sem fatores de risco identificados.

Intervenção Seletiva

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São ações voltadas para grupos sociais com fatores de risco já identificados.

Intervenção Indicada

São intervenções para populações e indivíduos identificados como abusadores ou dependentes com alterações comportamentais e prejuízos físicos já instalados.

Quadro 2. Intervenções direcionadas para públicos-alvo diferentes (adaptado de SENAD, 2010)14

O Que é?

Intervenção universal ou global – são programas destinados à população em geral, supostamente sem qualquer fator associado ao risco. Intervenção seletiva ou específica - são ações voltadas para populações com um ou mais fatores associados ao risco de uso de substâncias. Intervenção indicada - são intervenções voltadas para pessoas identificadas como usuárias (abuso ou dependência) ou com comportamentos de risco relacionados direta ou indiretamente ao uso de substâncias, como, por exemplo, alguns acidentes de trânsito.

Onde se Aplica?

Na comunidade, em ambiente escolar e nos meios de comunicação.

Grupos como filhos de dependentes químicos, jovens com início precoce do contato com SPAs.

Em programas que visem diminuir o consumo de SPAs, mas também a melhora de aspectos da vida do indivíduo, como, por exemplo, desempenho acadêmico e reinserção escolar.

A importância da classificação do tipo de prevenção fica mais nítida quando se planeja intervenções e políticas públicas. É impossível pensar em prevenção de forma desconectada dos processos decisórios políticos. A alocação de recursos está diretamente conectada ao processo político envolvido no estabelecimento de prioridades. Para tal, estudos de prevenção, bem como de custo-efetividade e diagnósticos epidemiológicos e situacionais do uso de SPAs, devem embasar a implementação de medidas preventivas.

Inicialmente, é importante perceber que a abrangência das intervenções caminha em sentido oposto ao da eficácia individual destas. Portanto, a escolha de estratégias populacionais comumente resulta em menos impacto para cada indivíduo beneficiado isoladamente. Ainda assim, é essa a melhor abordagem para a prevenção primária ou universal, que comumente constitui os programas de melhor custo-eficácia. Vale lembrar que programas de prevenção primária e promoção da saúde têm múltiplos alvos de profilaxia, reduzindo não apenas o impacto social do uso de SPAs, mas também outros agravos de relevância para as comunidades. De âmbito mais amplo ainda são as políticas de controle social relacionadas à entrada e oferta de SPAs no mercado. No caso das drogas lícitas, o controle evidencia diferença nas taxas de prevalência do uso de substâncias e também dos TUS. Aí se incluem as drogas de prescrição, cujo controle de receitas e aviamentos não pode ser negligenciado. Quando se considera o mercado de drogas ilícitas, o controle

estatutário reclama igual atenção. A restrição à entrada e venda de insumos específicos relacionados à produção de drogas sintéticas, assim como a identificação e dissolução de laboratórios clandestinos, representa resposta inteligente e eficaz no controle desse mercado.

Na prevenção secundária e terciária, as medidas ganham mais impacto individual, também requerendo mais esforço individual do cidadão. O custo-efetividade diminui, embora a visibilidade de resultados isolados seja maior. Tais medidas também devem fazer parte da decisão ética e responsável em relação à sociedade. Entretanto, seu maior impacto só se faz presente quando o manejo do uso problemático das SPAs encontra-se intimamente conectado com as medidas de base populacional. Os vários setores da sociedade precisam agir conjuntamente. Esse é o caso de sistemas bem-sucedidos em que, por exemplo, serviços de saúde e o Judiciário colaboram entre si no manejo da delinquência relacionada à drogadição (Figura 15).

Figura 15. Eficácia de políticas de drogas em resultados populacionais e individuais (adaptado de Strang, 2012)2

Maior Efeito Populacional

Serviços Sociais e de Saúde ao Usuário de drogas Maior Efeito Individual

Prevenção Secundária

Prevenção Primária

Controle da Entrada e Oferta de Substâncias

Modelos de Prevenção em diferentes etapas do desenvolvimento

Intervenções na gestação

Como o uso de SPAs na gestação é prejudicial ao binômio mãe-feto, medidas preventivas são prioritárias nas gestantes. A fase, de profundas transformações, pode tornar a mulher mais suscetível às intervenções.

Após fornecimento de tratamento integrado de pré-natal, TUS e eventuais transtornos psiquiátricos adicionais às gestantes, com foco também nos vínculos dos pais com a criança, resultados positivos foram observados no aprimoramento de habilidades parentais e no desenvolvimento, comportamento e respostas emocionais das crianças15,16 .

Programas de visitas domiciliares pré e pós-natais de rotina em gestantes com TUS não encontram sustentação em evidências até o momento17, embora alguns estudos sugiram que pode haver bom custo-benefício no bem-estar e custos médicos18,19 .

Os objetivos principais nessa etapa são o desenvolvimento de um vínculo seguro com os cuidadores, competências linguísticas apropriadas à idade, funções cognitivas e executivas, como o autocontrole, atitudes e habilidades pró-sociais. A aquisição desses objetivos é facilitada por um contexto familiar afetivo, responsável e provedor e por um ambiente comunitário solidário e favorável.

Possíveis riscos relacionados ao uso de substâncias ocorrem precocemente, ainda durante a gestação. A ingestão materna de álcool, nicotina ou drogas afeta negativamente os fetos em desenvolvimento, gerando dificuldades na aquisição de competências que podem trazer comportamentos negativos no futuro. Acessos de raiva, desobediência, atitudes disruptivas ou destrutivas podem se manifestar precocemente e devem ser adequadamente conduzidas, sob o risco de se tornarem problemáticos ao longo da vida. Ambientes familiares caóticos, inabilidades parentais, uso de drogas pelos pais ou outros transtornos psiquiátricos igualmente representam riscos.

Intervenções educacionais na primeira infância

A educação precoce promove o desenvolvimento de habilidades de linguagem, sociais e cognitivas de pré-escolares, contribuindo para promover inclusão social, saúde mental, autoeficácia acadêmica e para reduzir comportamentos de risco20. Intervenção seletiva no cenário da educação em crianças de comunidades carentes demonstrou redução do tabagismo, do uso de maconha e de outras drogas no futuro21 .

Infância

Nessa fase a família continua sendo o principal agente de socialização, entretanto, a convivência com colegas passa a ser mais intensiva. Assim, normas da comunidade e qualidade da educação adquirem cada vez mais importância, assim como as habilidades sociais, que serão importantes fatores de proteção. Os objetivos do desenvolvimento na infância incluem linguagem adequada para a idade, habilidades matemáticas, aquisição de autocontrole e comportamentos com objetivos definidos, progressiva capacidade de tomada de decisões e resolução de problemas. Transtornos mentais que se iniciam nessa fase (como transtorno de ansiedade, de controle de impulsos ou de conduta) podem prejudicar o desenvolvimento de vínculos saudáveis. Filhos de famílias desestruturadas podem começar a se associar a “más companhias”, acarretando alto risco de escolhas negativas, incluindo o uso de drogas e atividades ilegais. Programas eficazes na infância não são voltados especificamente para a questão das drogas, mas sim para o aprimoramento de habilidades e fortalecimento dos fatores de proteção2 .

Intervenções baseadas no aprimoramento de competências parentais

São programas que proporcionam o fortalecimento do vínculo familiar e podem ser usados também em outras etapas, como em famílias de pré-adolescentes. Incluem orientações de apoio aos pais sobre educação afetiva e segura, como assumir posições mais ativas na vida dos filhos, estabelecer regras para comportamentos aceitáveis, aplicar disci-

plina de maneira positiva e adequada e servirem de modelo para os filhos. Monitorar suas atividades, acompanhar de perto o tempo livre e supervisionar os padrões de amizades são atitudes que ajudam a criança a adquirir condições para tomar decisões informadas. Esses princípios têm demonstrado ser os fatores de proteção mais fortes contra o abuso de drogas e outros comportamentos de risco e se aplicam também a faixas etárias mais avançadas22 . Programas universais com trabalho focado nas famílias parecem ser os mais eficazes, proporcionando reduções no abuso de substâncias a longo prazo. Favorecem também melhor funcionamento familiar e ajustamento emocional e comportamental das crianças. Embora alguns estudos não tenham demonstrado resultados significativos, de maneira geral há evidências de custo-eficácia e já foram implementados em diversos países20,23-28 .

As características que parecem estar associadas a resultados positivos incluem intervenções realizadas em grupos de sessões, com organização que facilite a adesão dos pais (horários não comerciais), por profissionais treinados e com a participação ativa e envolvimento de toda a família nas atividades. Por outro lado, é importante ressaltar que algumas características não se associam a resultado algum e podem ser até mesmo negativas: utilizar como método apenas palestras, pessoal responsável malcapacitado, atividades focadas apenas na criança, subestimar a autoridade dos pais e fornecer informações sobre drogas para que os pais possam conversar com os filhos.

Intervenções baseadas no aprimoramento de habilidades sociais

São intervenções universais aplicadas na escola por professores capacitados. Visam ao desenvolvimento de habilidades para lidar com situações cotidianas difíceis de forma segura e saudável, competências sociais para o bem-estar mental e emocional, autocontrole, habilidades de dizer “não” e abordagem de normas e atitudes sociais. Os resultados têm demonstrado redução do uso de SPAs no futuro e contribuem para o fortalecimento de outros fatores de proteção, como compromisso com a escola, desempenho escolar, autoestima e habilidades de resistência20, 25, 26, 29-38. Os programas que demonstram ser eficazes costumam ser realizados a partir de sessões estruturadas subsequentes promovidas por profissionais treinados, por vezes ao longo de anos. A participação das crianças é ativa e interativa, com momentos de imersão. Palestras e informações específicas sobre substâncias não só não produzem resultados, como podem piorar a situação22 .

Pré-adolescência

Programas para pré-adolescentes apresentam resultados muito favoráveis, inclusive melhores do que aqueles aplicados em crianças mais jovens ou mais velhas22. A maioria das evidências é encontrada nos programas universais, que em alguns casos parecem favorecer também grupos de alto risco. Redução no uso de todas as SPAs e de comportamentos inapropriados, bem como diminuição do absenteísmo e evasão escolar, tem sido observada. Alguns programas proporcionam efeitos no uso de substâncias também a longo prazo. Os programas com resultados favoráveis são interativos, com 10 a 15 sessões semanais, aplicados a facilitadores treinados. Abordam habilidades pessoais e sociais e lidam com situações cotidianas, tomada de decisões, aumento de resistência, sobretudo quanto à pressão para o uso de SPAs, e discussão de normas e crenças sociais acerca das drogas

(incluindo desfazer expectativas equivocadas sobre uso e ampliar a percepção dos riscos e consequências imediatas do consumo).

Métodos de certa forma “populares” no nosso país não têm apresentado resultados ou podem até ser prejudiciais: estes incluem palestras, fornecimento de informações por policiais ou ex-usuários e entrega de informações sobre drogas que despertem medo. Sessões não estruturadas de diálogos, programas pautados apenas na construção de autoestima e educação emocional ou aqueles que abordam tomada de decisões baseada apenas em valores éticos ou morais também não têm apresentado resultados22 .

Adolescência

À medida que a idade avança, as medidas preventivas devem ganhar novos ambientes, como, por exemplo, trabalho, lazer e comunidade. As intervenções descritas nas seções anteriores também são válidas para os adolescentes e não serão aqui repetidas.

Intervenções breves

São sessões limitadas de identificação do problema, aconselhamento e encaminhamento para tratamento, quando necessário. Têm duração de 5 a 15 minutos e são aplicadas por profissionais da saúde ou educação treinados, geralmente valendo-se de técnicas motivacionais. São direcionadas a indivíduos com risco de uso de drogas, mas que não procuraram tratamento. Há evidências de custo-benefício e apresentam tamanho de efeito forte imediatamente após a intervenção e que pode se manter por períodos prolongados39-43 . Mesmo uma única sessão pode gerar resultados positivos e duradouros2. Um exemplo é a intervenção ASSIST44, da Organização Mundial de Saúde. Existem estudos que observam eficácia de intervenções realizadas on-line45,46 .

Exemplos de abordagens focadas no indivíduo estão sumarizados no Quadro 3.

Quadro 3. Intervenções focadas no indivíduo (adaptado de United Nations ESCAP, 2005)47

Problema específico

Mudanças de vida na adolescência (puberdade)

Intervenção sugerida

Informação, aconselhamento, apoio de pares, apoio familiar

Situações precárias (pobreza, violência, pressão por pares)

Problemas cotidianos (pressão por pares, atividades escolares, relacionamentos familiares)

Falta de suporte familiar

Falta de estratégias de enfrentamento Serviços de suporte e fornecimento de recursos, alimentação, recreação, educação informal, sobrevivência e treinamento de habilidades. Apoio comunitário. Treino de habilidades sociais, planejamento financeiro, orientação vocacional, esportes e teatro, aprender sobre responsabilidade, centros juvenis comunitários, estabelecimento de valores, informações sobre o uso de substâncias, tutorias.

Programas de adoção e abrigamento, centros juvenis comunitários, treino de habilidades sociais, tutorias e educação em saúde. Treino de resolução de problemas, autoestima e habilidades de comunicação, treinamento vocacional e de emprego, habilidades de sobrevivência, educação informal, fortalecimento do vínculo com os recursos comunitários, tutorias.

Escolas

Alguns programas universais capacitam professores na gestão de sala de aula, para aplicação de recursos não pedagógicos que ensinam aos alunos comportamentos prósociais, reduzindo comportamentos inapropriados, disruptivos ou agressivos. Eles proporcionam melhorias no ambiente da escola, favorecem habilidades acadêmicas e socioemocionais, fortalecendo esses fatores de proteção. Participação ativa dos alunos é um dos elementos necessários para a obtenção de bons resultados48 .

Dada a importância da frequência e vínculo escolar, obtenção de linguagem adequada e habilidades matemáticas, uma série de políticas tem sido experimentada em países de baixa e média renda, para reforçar a adesão e os resultados escolares. Construção de escolas, fornecimento de refeições no local e incentivos econômicos condicionados para a família têm demonstrado resultados satisfatórios. Entretanto, não há clareza do prazo de sustentabilidade desses resultados49,50 .

Na pré-adolescência e adolescência, é ainda mais importante que a escola adote políticas claras sobre as drogas. As análises de evidências obtêm bons resultados51-53 e os correlacionam com algumas características: estímulo à atitude escolar positiva (comprometimento e participação), participação ativa de todas as partes interessadas (alunos, professores, funcionários e pais), regras claras e aplicadas a todos, abordagem consistente e rápida das infrações com sanções positivas e não punitivas (aconselhamento, encaminhamento, tratamento e outros equipamentos de suporte psicossocial), reforço positivo ao cumprimento da política e redução da disponibilidade de nicotina, álcool e outras drogas.

Trabalho

Os TUS são frequentes entre trabalhadores e os expõem a riscos ocupacionais e de segurança, diminuição da produtividade, absenteísmo, alta rotatividade, significativos gastos com saúde, dificuldades nos relacionamentos com colegas de trabalho, entre outros. O estresse laborativo é um fator que aumenta o risco de DQ entre jovens adultos que fazem uso de drogas. Ações no local de trabalho podem prevenir o uso de nicotina e álcool53,54. Ações eficazes abarcam múltiplos componentes: políticas locais, testes de álcool e drogas inseridos em um programa abrangente, aconselhamento e encaminhamento para tratamento, preservando a confidencialidade e com caráter não punitivo. Cursos de gerenciamento de estresse e abordagem preventiva à DQ incorporados a outros programas relacionados à saúde e bem-estar associam-se a resultados positivos de prevenção.

Locais de entretenimento

São locais de alto risco para comportamentos prejudiciais, como uso abusivo de álcool e drogas, agressões e condução de veículos após intoxicação. Intervenções favoráveis incluem treinamento de gerentes e funcionários sobre a responsabilidade de vender ou servir bebidas alcoólicas a menores de idade ou clientes embriagados, gestão desses clientes,

mudanças de leis e políticas sobre venda ou em relação a beber e dirigir, entre outros55,56 .

Mídia

As campanhas de sensibilização por meio da mídia muitas vezes são a primeira ou única intervenção governamental, por serem visíveis e atingirem facilmente elevado número de pessoas. Estas podem reduzir a iniciação do tabaco, em conjunto com outros componentes preventivos. Entretanto, análises não encontraram resultados significativos para o álcool ou outras drogas. A ineficácia de táticas meramente educativas ou amedrontadoras representa um desafio para as abordagens via mídia2. Campanhas mal-elaboradas devem ser evitadas, pois podem até mesmo piorar a situação, despertar curiosidade de experimentação ou tornar os jovens resistentes ou indiferentes a outras intervenções29,57,58 . Além das campanhas específicas e da restrição à publicidade, é relevante o impacto indireto que a mídia exerce nas percepções, conceitos e comportamentos das pessoas acerca das drogas. É fundamental, portanto, que esses canais de comunicação adotem atitudes que não idealizem o uso de drogas.

Equipamentos de saúde

Abuso e dependência de SPAs são extremamente prevalentes na população geral e em particular entre pacientes que procuram serviços de saúde. O contato com um serviço de saúde é uma importante oportunidade para identificar esses casos. Todos os pacientes admitidos em qualquer nível de cuidado devem ser investigados para o uso de álcool, nicotina e outras drogas. O momento no qual o paciente procura um serviço com uma queixa clínica abre uma oportunidade para motivá-lo ao tratamento relacionado ao uso de substâncias. Apenas com a identificação correta do quadro subjacente relacionado ao uso de drogas é possível antecipar condutas mediante a possibilidade de síndromes de abstinência, abordar e aconselhar o paciente em relação ao uso de substâncias e encaminhá-lo para tratamento adequado após a alta, representando estratégias de prevenção secundária e terciária59 .

Evidências consistentes demonstram a efetividade de programas para a redução do consumo inadequado de substâncias aplicados em settings clínicos não especializados (atenção primária, hospitais gerais, salas de emergência, entre outros). O contato dos pacientes com esses serviços representa uma oportunidade para intervenções precoces em pacientes com uso abusivo de substâncias antes que consequências mais graves se desenvolvam e para intervenção e encaminhamento adequado de pacientes que já apresentam quadros de dependência instalados. Para tanto, deve haver triagem universal sobre o uso de SPAs em todos os pacientes, intervenções breves e encaminhamentos para tratamento em serviços adequados quando indicado. Todas as etapas da abordagem podem ser feitas por qualquer profissional de saúde treinado (médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, agentes de saúde) de forma eficaz2,60 . O Quadro 4 sugere intervenções para problemas específicos, em diferentes settings.

Quadro 4. Intervenções focadas em problemas específicos realizadas em diferentes settings (adaptado de United Nations ESCAP, 2005)47

Problema Específico

Falta de conhecimento nas famílias e comunidades sobre o uso de drogas. Falta de sistemas de suporte social.

Falta de controle de oferta de insumos de nicotina, álcool e outras drogas.

Medo da polícia e autoridades.

Falta de estratégias de enfrentamento

Intervenção Sugerida

Programas comunitários e em instituições religiosas de tomada de consciência e informativos. Reuniões com professores e pais. Campanhas de alerta em clínicas, albergues para jovens, acesso fwacilitado em serviços comunitários aos jovens, incluindo serviços de saúde. áreas recreativas reservadas a jovens no espaço público. Alerta sobre a necessidade de uma política de acesso e disponibilidade de substâncias. Encorajamento da restrição ao acesso a substâncias por parte de jovens. Sensibilizar a polícia e autoridades sobre as necessidades dos jovens, encorajar a realização de palestras em escolas e centros comunitários, sobre o papel da polícia, esclarecendo sua premissa de “amiga dos jovens”, e não pessoas a serem temidas por eles. Treinamento em resolução de problemas, autoestima, habilidades sociais, vocacional e de emprego, habilidades de sobrevivência e educação informal. Fortalecimento da ligação com recursos comunitários, tutorias.

Políticas do Álcool e Tabaco

A carga global de doenças e a prevalência de TUS e suas complicações associados ao álcool e ao tabaco são muito maiores do que das demais drogas. O uso na pré-adolescência, quando o cérebro ainda está em desenvolvimento, aumenta consideravelmente a probabilidade de desenvolver dependência a estas e a outras drogas na vida adulta. É por isso que os esforços para prevenir e reduzir o tabagismo e uso de álcool pelos jovens são relevantes para a elaboração de uma estratégia de prevenção de drogas universal, além de serem cruciais em qualquer política de saúde pública. Estratégias incluem aumento dos preços, proibição de publicidade, aumento da idade mínima para comercialização a menores, treinamento dos varejistas e fiscalização adequada22 .

Estratégias de prevenção que requerem investigação adicional

Prevenção do uso não médico de medicamentos controlados

O uso crônico de medicamentos que potencialmente causam dependência pode ser visto como um evento amplamente disseminado. Quando a dependência se desenvolve, ela é de certa forma “socialmente aceita” e cursa com algumas características diferenciadas e específicas em relação à dependência de outras drogas. Como exemplos, podem-se citar os benzodiazepínicos (tranquilizantes “faixa preta”), as anfetaminas (inibidores do apetite, “rebites”) e os opioides. Esse fenômeno pode ser compreendido como resultado de prescrições excessivas e recorrentes sem indicações clínicas precisas e sem esclarecimentos claros sobre seu potencial dependogênico. E também como um reflexo da medicalização da vida, da busca por soluções rápidas e imediatas, da dificuldade em mudar hábitos e comportamentos em busca de uma vida mais saudável, assim como da tendência e tolerância cultural ao compartilhamento social de medicamentos, sem indicação médica. O uso desses fármacos, com ou sem prescrição, pode ser instrumental (por exemplo, “para

dormir”, “para conseguir estudar melhor”, “para controlar uma dor”) ou recreativo e abusivo (em geral, em doses maiores, para obter efeitos psicotrópicos mais acentuados, como desinibição, “ficar acordado numa balada”, “conseguir dirigir a noite toda”, “anestesia emocional” para praticar crimes).

Ao longo do último século, o desenvolvimento de regimes de prescrições com exigências peculiares – como receituários específicos e notificações e melhor controle farmacêutico e da logística de distribuição – configuram tentativas de estabelecer maior grau de controle sobre a situação2. Entretanto, por si sós, não são medidas suficientes para conter plenamente o uso inadequado e excessivo dessas medicações. Fraudes de prescrições, roubo de receituários e carimbos, desvio institucional de medicamentos (estabelecimentos de saúde, asilos, prisões), venda no “mercado negro”, “doctor shopping” (consultas em múltiplos médicos para obtenção de prescrições duplicadas, relato de queixas que tenderiam a gerar aumento das doses prescritas) e obtenção junto a familiares e amigos - são alguns exemplos de fontes que sustentam o uso inadequado dessas medicações.

Uma vez que o aporte desses medicamentos requer prescrição, a melhor capacitação dos médicos ainda durante sua formação poderia ser uma forma de reduzir a circulação e disponibilidade deles para os casos em que não sejam indicados. Um exemplo seria o treinamento incisivo para basear a decisão clínica das prescrições em critérios positivos (critérios diagnósticos claros e bem-definidos, com metas estabelecidas, planejamento do tratamento e sua duração, uso de doses, prescrição de recursos adicionais não farmacológicos como adjuvantes, psicoeducação), e não em critérios negativos (para aliviar sintomas inespecíficos que não preenchem critérios de transtornos mentais propriamente ditos, para amenizar sofrimentos decorrentes de circunstâncias sociais crônicas, para responder ao paciente conforme suas expectativas de alívio imediato, para casos em que sabidamente não haverá benefício clínico – como no uso de hipnóticos em pacientes com insônia crônica). Capacitação para uso e recomendação de estratégias não farmacológicas (técnicas de relaxamento, comportamentais, aconselhamento, mudança de hábitos alimentares, exercícios físicos, higiene do sono, etc.) seria igualmente importante12 .

Ainda assim, mesmo com cuidados adequados e em contextos controlados, evoluções desfavoráveis podem acontecer. Nestes casos, quando existem indícios do desenvolvimento de dependência ou de complicações secundárias (quedas, acidentes, alterações do humor, entre outros), reconhecimento e medidas precoces são necessários. Para tanto, não apenas médicos, mas também outros profissionais, como farmacêuticos e enfermeiros, necessitam de capacitação12. Além disso, a abordagem dos generalistas especificamente voltadas para o tema, como intervenções durante as consultas de rotina ou o envio de cartas, pode reduzir o uso excessivo de benzodiazepínicos2 .

Estratégias que parecem interessantes, mas precisam de mais embasamento, incluem psicoeducação às famílias, melhor treinamento e aconselhamento legal aos médicos, aprimoramento logístico do sistema de farmácia e medidas práticas na comunidade para eliminar medicamentos controlados fora do prazo de validade ou que não estão mais sendo utilizados pelo paciente22 .

Esportes

Não há evidências de que os esportes por si sós contribuam para reduzir o uso de SPAs22 .

Revisão de literatura não encontrou análises aceitáveis ou boas ou estudos básicos sobre como prevenir o uso abusivo de SPAs nessa população. Esse grupo inclui, por exemplo, crianças e jovens fora da escola, meninos de rua, adotados e de orfanatos e crianças cumprindo medidas socioeducativas22 .

Conclusões

Baseado na compreensão de que a DQ é uma doença crônica, recidivante, que afeta o cérebro, causada por uma interação complexa entre as vulnerabilidades individuais com fatores do meio ambiente, pode-se compreender o quão complexa é sua prevenção. Não é possível, portanto, esperar resultados consistentes com intervenções isoladas, dirigidas a apenas uma vulnerabilidade, limitadas em seu campo de alcance e cronograma. Um sistema de prevenção eficaz deve ser articulado em diferentes níveis (nacional, estadual, municipal e local), amparado por um sistema de políticas púbicas e por um anteparo jurídico, com recursos financeiros e técnicos suficientes e adequados, mantido a longo prazo ou mesmo permanentemente.

As crianças e jovens devem ser apoiadas em todo seu desenvolvimento e particularmente em fases importantes de transições. As intervenções devem abranger toda a população e também, de maneira diferenciada, os indivíduos que se encontram em alto risco, com abordagem de fatores individuais e ambientais que geram vulnerabilidade e resistência. Os contextos para intervenção devem ser múltiplos, como nas famílias, comunidades, escolas, trabalho, mídia, lazer, serviços sociais e sistema de saúde.

Todo planejamento deve iniciar a partir de pesquisas diagnósticas que permitam compreensão ampla da realidade da situação, identificação de aspectos-alvo a serem trabalhados e definição de metas a curto, médio e longo prazo. As intervenções devem ser ordenadas a partir de evidências científicas que deem suporte à sua aplicabilidade e eficácia. Deve haver, concomitantemente, monitoramento contínuo da qualidade das intervenções e dos resultados obtidos, se possível com avaliações de custo-benefício, procedendo a ajustes e reformulações, quando necessário. Não só a redução da oferta e da demanda populacional e individual deve ser abarcada, mas também a prevenção de consequências sociais e de saúde, oferecimento de cuidados e tratamentos adequados aos dependentes e às eventuais complicações clínicas – com atuações nos níveis primário, secundário e terciário de prevenção. Deve haver incentivo à mobilização e participação comunitária. Tudo de maneira integrada a esforços maiores em todos os âmbitos e esferas, visando, em última análise, ao desenvolvimento seguro e saudável de nossas crianças e jovens.

Referências

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Abordagem da família no cenário de vulnerabilidades

Roberta Payá

O diálogo entre a terapia familiar e o tratamento de substâncias é atualmente mais bem considerado. Autores1-3 que vêm estudando sobre o tema enfatizam que para compreender a complexidade do impacto de uma substância é preciso buscar alternativas interventivas no contexto social ou familiar do usuário.

Abordar e incluir os familiares no processo de tratamento ou em intervenções preventivas vai além de uma reunião de grupo. Por isso que compreender a família como um sistema vivo e aberto e como o cenário para formação de vínculos de afeto, de cuidado, proteção e promoção de educação é pré-requisito para intervenções familiares.

Esse sistema é dinâmico, composto de forças interfamiliares e intrafamiliares. E a partir desse dinamismo a família constrói e reconstrói um estado de desequilíbrio mediante as mudanças sociais4 . Nos dias de hoje não existe um único modelo familiar, as famílias são definidas muito mais pelos laços afetivos do que por consanguinidade e as mudanças sociais trouxeram várias formas de convivência e configurações familiares. No campo de tratamento da dependência química considera-se o significado que o paciente dá à sua família, relativo à rede social.

Embora se tenha que considerar a subjetividade do construto de família, vale ressaltar o entendimento de Salvador Minuchin5 como sendo um grupo de pessoas conectadas por emoções e/ou sangue, que viveram juntas tempo suficiente para terem desenvolvido padrões de interação e histórias que justificam e explicam esses padrões de interação. Em suas interações padronizadas, os membros da família constroem uns aos outros – pertencimento e individualização. Dessa forma, a constituição familiar e a definição de família dependem de aspectos advindos dos movimentos históricos, do contexto cultural, gênero, religião, etnia e tempo. Aspectos que são modeladores de papéis e regras familiares e que afetam e influenciam diretamente cada indivíduo e seu sistema.

A seguir serão abordados aspectos do funcionamento familiar, codependência, fatores de risco familiar como vias a saber para a redução da vulnerabilidade familiar, bem como aspectos que potencializam a promoção de saúde no sistema familiar como fatores de proteção específicos, religião, crenças e mitos, a importância da rede social e resiliência familiar.

Aspectos que ampliam o cenário vulnerável

Funcionamento familiar

As intervenções familiares, de maneira geral, são conjuntos de procedimentos que envolvem uma equipe mínima capacitada para diagnosticar, orientar e tratar de diferentes formas tanto a pessoa que faz uso como o sistema como um todo.

Vários estudos evidenciam problemas no funcionamento familiar de dependência de drogas, entretanto, esses resultados não devem ser encarados de maneira linear e/ou casual, na tentativa de justificar uma “tipologia de família” com pessoas dependentes de drogas, reforçando um estigma de que as famílias são “sempre problemáticas e difíceis”.

A compreensão do funcionamento familiar deve estar respaldada na história intergeracional da família e no diagnóstico individual e familiar. A competência da família, sua resiliência, assim como as habilidades para lidar com o estresse, são fatores importantes de se

levar em consideração nas intervenções que envolvem os dependentes e seus familiares3 .

Quanto ao funcionamento da família, padrões de organização, crenças familiares e processos de comunicação são aspectos importantes a serem observados, sendo que as relações familiares são modificadas quando um de seus membros torna-se dependente de drogas6 .

Compreender a dinâmica familiar do dependente químico possibilita o entendimento que o sintoma exerce sobre seus membros e propicia um direcionamento de intervenção mais adequada de acordo com a dinâmica predominante na mesma. Com isso, identifica aspectos que favorecem e perpetuam a sintomatologia intrínseca no sistema familiar no qual o dependente está inserido, permite que novos caminhos possam ser traçados para reestruturação desse sistema e, consequentemente, contribui para melhor qualidade de vida de ambos. Ressalta-se que o sintoma que regula é o mesmo que denuncia a dificuldade da família no enfrentamento da crise7 . A dependência química pode emergir para resolver um conflito familiar, levando a família a uma estagnação em seu funcionamento. A problemática da dependência química contribui para a estabilidade do sistema familiar como sendo parte do seu funcionamento. Referindo-se ao filho dependente químico, Orth8 salienta que, quando o mesmo consegue tirar a droga do lugar privilegiado em que ocupa e usar dos próprios recursos para alcançar êxitos na vida, a família se desestabiliza, por ter, então, que se haver com suas próprias questões como casal. E este, ainda que inconscientemente, mata o filho nesse lugar, impedindo, dessa forma, seu progresso e a possível saída da drogadição.

Moreira9 observa que, em famílias nas quais há vários membros dependentes, existe alternância do “dependente identificado” onde o comportamento próprio desses circulam entre si. É característico dessas famílias manter um sistema fechado, impossibilitando seus membros de alcançarem autonomia. Limites muito rígidos e falta de confiança por parte da família levam, de acordo com estudos feitos com o dependente, a sentimentos de estigmatização, isolamento social, estresse, aumento de risco de recidiva e exacerbação do sintoma. Daí a importância de que a família, a partir da orientação, venha adquirir habilidades para mudar sua dinâmica, já que, por falta de informação ou flexibilidade para mudar, a prevalência da droga continua a comprometer o sistema familiar10 .

Codependência como parte do processo de vulnerabilidade

O comportamento codependente manifesta-se no familiar do dependente químico por meio do sofrimento, do adoecimento físico e psíquico. No desenvolver desse processo notam-se vários sentimentos como medo, culpa, controle, cuidado excessivo por parte do familiar que crê ser responsável pelas atitudes do membro usuário, inclusive por seu destino. Evidencia-se, assim, um equívoco da não percepção de que o cuidado diferencia-se da obsessão; o que seria um cuidar natural torna-se doentio e prejudicial a ambos.

A codependência expõe o familiar a uma série de sintomas como tristeza, ansiedade, baixa autoestima, cansaço físico e mental, comportamento letárgico e até mesmo pensamentos suicidas. É imprescindível, então, que se amplie o olhar da apreensão fragmentada do dependente, uma vez que a dependência é uma sintomatologia que reflete uma intricada rede de relações na qual o indivíduo se insere11 .

Não raras vezes, o mecanismo da negação contribui para a manutenção da condu-

ta adicta, sendo desencadeado pelo acobertamento de sentimentos, tais como vergonha, medo e culpa. E também, pela distorção do significado e da complexidade que o uso abusivo de drogas representa dentro e fora do contexto familiar.

De acordo com pesquisa realizada por Dias et al.12 na América Latina, estudos revelaram que a população reconhece como ineficientes os serviços de saúde no que concerne à prevenção e ao tratamento, tanto para o dependente quanto para a família. Esta se sente perdida e desamparada em sua codependência, embora haja sensibilização para que saia desse lugar e busque ajuda externa.

Pesquisa feita com participantes recrutados em um grupo de autoajuda “Amor Exigente”, na cidade de São Paulo, constatou que o tempo que o familiar leva para descobrir o envolvimento do membro com drogas é, em média, de 3,7 anos. Desses, 42% procuraram ajuda imediatamente e os outros 58% demoraram, em média, 2,6 anos para buscar apoio. Entre as razões mais indicadas para a demora está a crença de que o uso indevido da droga iria passar ou que poderiam lidar com a situação sem ajuda externa. Alguns relataram não saber onde buscar ajuda, antes de conhecer o grupo que tem por objetivo oferecer apoio às famílias com membros dependentes químicos13 .

Ter como lente de compreensão sobre a disfuncionalidade familiar pela codependência é uma das possibilidades.

Não se pode deixar de mencionar que, além das características que compõem a qualidade da relação entre familiar e usuário, estudos com visão diagnóstica do codependente compararam determinados comportamentos de acordo com a CID-10 e DSM 5.

Segundo a CID-10, a presença persistente de quatro dos primeiros critérios e ao menos três entre os demais determinariam o diagnóstico:

• Tendência excessiva de cuidar e/ou controlar alguém. • Tolerância com o outro. • Atração por pares emocionalmente instáveis. • Grande dificuldade em impor e respeitar limites. • Tendências a guardar rancores e a interpretar como traições as ações neutras. • Sentimento de estar sempre lesado nos direitos pessoais. • Oscilação frequente na autoimagem. • Sentimento de autopiedade. • Dificuldade de demonstrar e receber afetos. • Dificuldades sexuais. • Hipersensibilidade a criticas.

Segundo DSM 5, aspectos como o investimento contínuo da autoestima na capacidade de controlar a si mesmo e a “outros” diante de sérias consequências adversas; ansiedade e distorções de limite em relação a si próprio e ao “outro”; assumir a responsabilidade de satisfação das necessidades do “outro”, com a exclusão do conhecimento e satisfação das próprias necessidades; e envolvimentos em relacionamentos com personalidades perturbadas ou quimicamente dependentes ou com outro codependente e/ou impulsos por indivíduos desajustados expressariam os critérios diagnósticos.

Mas é fundamental ampliar a visão sobre o entrejogo das vulnerabilidades familiares. E também não esquecer que muito do que se apresenta na literatura é denominado como codependência. Em alguns casos esse termo até se apresenta de modo generalizado ou

até mesmo banalizado.

Por isso, deve-se compreender como uma das condições de enfrentamento do familiar. Entre outros comportamentos encontram-se diversos aspectos de gatilho familiar. E, para tal, serão abordados os fatores de risco desse contexto.

Fatores de Risco Familiares

Dados de pesquisa revelaram que existem alguns fatores que colocam as pessoas e grupos em mais vulnerabilidade, e essa maior propensão pode ser chamada de fator de risco4. Por outro lado, existem características pessoais ou sociais que diminuem a probabilidade de as pessoas consumirem ou abusarem de substâncias, no caso então seriam os fatores de proteção14 . Foquemos os fatores de risco do âmbito familiar para reflexão.

Segundo Santana e Ronzani15, a falta de apoio familiar representa um fator de risco em evidência para o uso ou abuso de alguma substância, assim como o monitoramento familiar indica ser um fator de proteção em potencial.

Payá e Figlie11; Merikangas et al.,16; Furtado 17; Loukas et al. 18 e outros descreveram o que se pode compreender como características comuns e fatores de risco presentes nas famílias mais vulneráveis para o comportamento de uso ou abuso. De modo geral, são eles no Quadro 1.

Quadro 1: Fatores de Risco Familiares como Sinais de Intervenção

• Presença de um membro ou mais usuário; • Presença de problemas psiquiátricos em um dos cuidadores; • Conflitos familiares; • Desorganização familiar; • Alta freqüência de crises ou repentinas; • Discussões e desentendimentos constantes; • Falta de suporte parental; • Educação autoritaria associada a pouco zelo e afetividade nas relações; • Atitudes permissivas dos pais perante o consumo; • Incapacidade dos pais de controlar os filhos; • Baixo suporte social; • Envolvimento dos pais com a policia; • Separação; • Perdas; • Doenças graves ou processos de internação e desamparo; • Baixo poder aquisitivo; • Baixo acompanhamento escolar por parte do cuidador; • Prejuízo cognitivo dos pais - criados com habilidades cognitivas pobres e um ambiente com falta de estímulo. • Fase do ciclo de vida familiar, por exemplo: a adolescencia pode ser bastante vulnerável; • Super envolvimento do filho nas questões do casal.

Os fatores familiares de risco devem ser detectados e abordados pelos profissionais sob a perspectiva da saúde coletiva, evitando visões deterministas, moralistas e/ou culpabilizadoras na família. Tais fatores podem ser trabalhados, quando identificados por diferentes áreas de atuação. No entanto, na fase infantil, a escola e locais como o posto de saúde, por exemplo, exercem papéis cruciais. Pois serão esses profissionais, muitas vezes, os primeiros a terem contato com os cuidadores ou então a perceberem a existência de um ou mais desses fatores.

A ordem em que os fatores são apresentados também não estabelece prevalência ou prioridade. O pensamento a ser mantido deve ser na combinação desses fatores em determinado momento de vida familiar.

• conflitos e desorganização familiares; • fases do ciclo familiar; • dependência de um ou mais de um membro e comorbidades.

Aspectos que favorecem as intervenções familiares

A partir da disfuncionalidade, codependência, fatores de risco e o cenário de desamparo que as famílias sofrem diante da escassez de ajuda e formas de auxilio, pensa-se agora sobre se alguns aspectos podem favorecer tipos de intervenções familiares.

A visão sistêmica da família

Pressupõe-se que a pessoa, apesar de sua complexidade, não está isolada do contexto sociofamiliar. Ao contrário, está conectada e interagindo com as outras pessoas que lhe são familiares. A família, apesar da diversidade cultural, social e afetiva, é o lugar onde as expectativas são construídas, transformadas ou repetidas, dependendo da qualidade das interações.

Nessa visão, o uso indevido de drogas pode ser concebido como um sintoma ou expressão de crise. Desse modo, o comportamento desviante de um filho adolescente, por exemplo, representa uma função dentro do sistema familiar 19-20. Para Ausloos21, o sintoma já era discutido como uma tentativa de o sistema mostrar mudança, sem que de fato alguma mudança ocorra. É um sinal de advertência de que não há soluções nas modalidades habituais de interação que o sistema apresenta.

Stanton e Todd22 e Stanton et al.23 reconhecem três fases distintas no decorrer do abuso de drogas. A primeira seria o uso de drogas legais, como no caso do álcool que ocupa um espaço importante nesse cenário por poder ser compreendida como um fenômeno social. A segunda estaria representada pela maconha, que é marcada pela grande influência dos pares, do grupo. E a terceira etapa seria atingida quando o adolescente passa a fazer uso de outras drogas ilegais, fase esta entendida pelos autores como sendo uma questão intimamente ligada a questões familiares, principalmente entre pais e adolescentes.

Particularmente sobre este último, é importante abrir um comentário, pois não se pode esquecer do quanto a substância crack pode de fato se opor a qualquer protocolo de entendimento familiar, já que atualmente tornou-se a substância mais desafiadora da nossa prática clínica e institucional e que com certa frequência “invade” diversas configurações e composições familiares, de qualquer condição econômico-social.

Mas de acordo com os autores que foram apresentados por Guimarães et al.24 a drogadição pode ser entendida como parte de um processo cíclico que envolve três ou mais indi-

víduos, normalmente o adolescente em situação de uso de drogas e seus pais. Essa relação triangular ocuparia uma função homeostática: reduzir a ansiedade do sistema quando esta alcança níveis muito elevados.

Miller e Wilbourne3 ressaltaram como melhor proposta de tratamento aquela que inclui algum componente social. E nesse âmbito a família pode ser uma peça-chave para o início do processo de mudança do usuário, para a redução de problemas da dependência e de problemas familiares e para a prevenção de outros membros que correm elevados riscos de desenvolver outros transtornos.

Edwards e Steinglass25 e Stanton e Shadish26 concluíram, por estudos de metanálise, que a terapia familiar contribui no engajamento do cliente e na manutenção desse engajamento em tratamento; proporciona a melhora de resultados quanto ao uso da substância relacionada e do funcionamento familiar; e permite a redução do impacto da dependência e seus danos (psicológicos e/ou físicos) nos membros familiares, incluindo filhos.

A família, assim como a rede social do membro dependente, exerce também papel de relevância.

Atualmente tem-se como aspecto bem-estabelecido a convivência direta do membro usuário com seus familiares. Na configuração da família brasileira, certamente essa realidade não é diferente. Os novos arranjos e composições familiares retratam acordos familiares em que cada vez mais, ora pelas necessidades econômicas e sociais ora por circunstâncias da história familiar, a permanência dos filhos dentro de casa estende-se. Isto leva o sistema como um todo a compor-se em várias pequenas famílias em momentos de vida diferentes. Tais configurações refletem uma arena de negociações de papéis, de intercâmbios de gerações, de sexo e culturas em que, muitas vezes, não há a efetivação das adaptações esperadas para uma convivência harmoniosa ou na promoção de relações interdependentes entre os membros surge o problema do abuso de substâncias.

Numa perspectiva sistêmica, a reconstrução da rede social tanto para a família como para o membro usuário de substâncias, poderá ser a via de fortalecimento do processo. A rede é, também, uma estratégia de gestão de riscos aos quais estão expostos os setores mais vulneráveis da sociedade, e neste caso o dos usuários de substâncias. Ela pode funcionar como um instrumento para o conjunto das políticas de controle e de ordenação social.

Famílias com mais vulnerabilidade ao abuso e dependência expressam um “debilitamento” da rede social e este alimenta um ciclo de modo que segredos, isolamento, indiferença e esquecimento das próprias raízes familiares se perpetuem. Nesse desencadeamento de laços afetivos e sociais, há o que Sudbrack27 referiu como sendo o desenraizamento de códigos que impedem as famílias de conhecerem com quem se pode contar, de quem se pode receber ajuda, com quem é possível juntar-se para resolver um problema comum.

A compreensão dessa perspectiva condiz com resultados encontrados em estudo comparativo entre 310 famílias com pais dependentes de álcool, famílias com membros dependentes de substâncias ilícitas e famílias sem dependência; famílias com problemas de dependência revelaram ter menos apoio de sua rede social quando comparadas com o grupo familiar sem dependência1 .

Alguns familiares e amigos naturalmente se distanciam devido ao uso.

Esposas, maridos ou parceiros tendem a se separar quando estão convencidos de que o membro da família usuário de substâncias não vai mudar, o que acarreta a quebra da rede

de amigos – e uma curiosidade observada é o fator de sexo presente no tempo de convívio, uma vez que esposas tendem a permanecer por mais tempo numa relação como membro de apoio, em comparação com os maridos de mulheres dependentes.

Ao longo do tempo, usuários transitam em outras redes de usuários e amigos não usuários tornam-se estranhos.

Dependentes de álcool tendem a formar rede com outros dependentes de álcool, assim como dependentes de drogas tendem a formar rede com outros dependentes de droga.

Mulheres, com certa frequência, são apresentadas às drogas pelos seus parceiros e, geralmente, maridos de mulheres dependentes de álcool têm elevado consumo alcoólico.

Usuários oriundos de famílias com mais facilidade para mudanças tendem a ter melhores desfechos.

Indivíduos com melhores condições de enfrentamento e reduzidas condições de estresse têm propensão a uma rede social maior.

A inabilidade de oferecer suporte por parte dos usuários tende a restringir o tamanho da rede social, logo, indica situação mais acentuada de isolamento. Explorar crenças e mitos familiares e a promoção de condutas assertivas devem ser frequentemente focados

Sob o aspecto familiar, para avaliar e tratar a dependência química “sistemicamente”, é necessário levar em conta as expectativas familiares. Reforçar a quebra de preconceitos e trabalhar com crenças moralistas e culpas quanto à questão da dependência proporciona o resgate da autonomia de cada um dos membros, buscando, principalmente, a mudança de padrões familiares estabelecidos. Além disso, os problemas com bebida alcoólica normalmente se desenvolvem gradualmente. Porém, eles podem ser exacerbados significativamente a partir do acúmulo de eventos estressantes ou pela identidade familiar construída ao longo das transições no ciclo de vida, pois ampliam o cenário de vulnerabilidade familiar.

Resiliência familiar

A resiliência caracteriza-se pela capacidade de o ser humano responder de forma positiva às demandas da vida cotidiana, apesar das adversidades que enfrenta ao longo de seu desenvolvimento. Trata-se de um conceito que comporta valioso potencial em termos de prevenção e promoção da saúde das populações. Segundo Silva28, autores que utilizam o conceito de família resiliente partilham da ideia de que essa característica se constrói numa rede de relações e de experiências vividas durante o ciclo vital. Ao longo das gerações, emerge então a capacidade da família reagir de forma positiva às situações potencialmente provocadoras de crises, superando essas dificuldades e promovendo sua adaptação de maneira produtiva ao próprio bem-estar.

De modo geral, esses autores ressaltam que tal conceito tem como foco a família como um todo, em vez de se restringir ao indivíduo dentro da família - mesmo que as facetas da resiliência individual sejam incorporadas à noção de família resiliente, como a ênfase em um processo desenvolvimental e não em um fenômeno estático e a importância do momento em que o sujeito e a família se encontram quando se deparam com a adversidade29-30 .

Outro aspecto importante a destacar é que o conceito de resiliência pressupõe circunstâncias de vida adversas quando o ser humano é confrontado a desafios, os quais colocam à prova sua capacidade de enfrentá-los. Nesse sentido, refere-se a um paradoxo, uma vez

que é justamente na vigência de situações adversas que o ser humano revela potencialidades extraordinárias. Nesse ponto de vista, resiliência traduz uma dimensão de positividade inserida nas reações dos sujeitos frente aos desafios que, inegavelmente, aportam uma perspectiva promissora em termos da saúde e do desenvolvimento humano, principalmente junto às populações que vivem em condições psicossociais desfavoráveis. No tocante ao contexto de abuso e dependência de alguma substância, a resiliência estaria representando um importante fator de proteção para a família, para a criança e para o usuário.

Investigar tal conceito em famílias com e sem alguma substância foi um dos objetivos de estudo nacional31 com 305 famílias entrevistas no serviço de prevenção já mencionado anteriormente. Resultados desse estudo revelaram que famílias que vivenciam a problemática do álcool são mais resilientes que famílias que não têm algum tipo de problema com a substância. Quanto mais resiliente a família for, menos vulnerável a criança ou adolescente estará para desenvolver algum tipo de problema emocional ou de comportamento. Conforme as dimensões da escala familiar de resiliência, foi possível observar que tanto as famílias com problemas da dependência do álcool como aquelas com problemas de substâncias psicoativas revelaram ter índices mais elevados de tensões familiares e desconforto familiar. Desta forma, foi possível compreender que o abuso de uma substância já remete o sistema familiar a mais instabilidade, o que cria um cenário de adversidade, logo, tornando-os mais resilientes. Desconforto e tensões familiares são importantes fatores de risco para o sistema, segundo a amostra estudada, mas como Walsh30 ressaltou, um sistema saudável não é isento de problemas, e sim aquele que tem potencial suficiente para encontrar alternativas que tragam soluções para os conflitos e que reduzam comportamentos nocivos. Considerar a resiliência familiar como um aspecto que desafia o impacto do uso e abuso de substâncias psicoativas reforça o enfoque nas habilidades familiares e nas competências dos sistemas familiares, indo contra medidas que focam os déficits ou que reforçam um sistema público como um todo que perpetua na institucionalização de crianças e de adolescentes, sistema este que contraditoriamente reforça a não competência familiar.

Religião

A religiosidade tem sido considerada um dos mais importantes fatores do ambiente familiar que favorece a redução do risco de uso ou abuso da dependência. Estudos longitudinais com adolescentes mostraram que a religiosidade pode ser um fator de proteção para o comportamento de beber demasiadamente e para o problema de abuso de outras substâncias.

Trata-se das práticas interventivas implicarem a questão da fé e das crenças como um meio protetor aos riscos inerentes do panorama social. Tal aspecto também pode fortalecer laços e vínculos entre os membros e famílias, ampliando o recuso de rede32-33 .

Tradições, rituais e hábitos culturais

A mesma relação que o adolescente tem com sua escola, a família tem com sua vizinhança e comunidade. Os desafios presentes são disponibilidade de substâncias, criminalidade, isolamento social, etc. Os fatores socioculturais podem tornar as pessoas vulneráveis ao desenvolvimento da dependência na medida em que algumas culturas apoiam níveis ainda mais elevados de consumo de bebida alcoólica ou toleram o uso de determinada

droga do que outras. Por exemplo, um nível elevado de consumo de bebida alcoólica é tolerado nos países nórdicos e não nos países orientais. Fatores no sistema social mais amplo, como os altos níveis de estresse e baixos níveis de apoio advindos de limitações básicas de saúde, educação de determinada região também podem tornar as pessoas mais vulneráveis ao desenvolvimento de problemas com bebida alcoólica. Principalmente se a distribuição e venda de alguma substância estiver associada a meio de sobrevivência.

Dessa forma, a combinação desses aspectos pode alimentar os fatores de proteção na família, sendo esses aspectos essenciais para segurança e saúde no desenvolvimento da criança e do adolescente, reduzindo as chances de vulnerabilidade. O quadro 2 sintetiza esses fatores:

Quadro 2: Fatores de Proteção Familiares como Recursos de Intervenção

• Experiência positiva paternal;

• Pai / mãe não dependente;

• Percepção das necessidades da criança;

• Condição econômica - social da família;

• Estabilização Familiar – ambiente harmônico, com diálogos...

• Relação com a comunidade – Suporte social;

• Convivência com membros não usuários;

• Participação em centros comunitários, escolas, posto de saúde...

• Resiliência Familiar;

• Perpetuação dos hábitos e rituais familiares;

• Religião;

• Definição de regras claras;

• Entendimento de que os pais compreendem os problemas dos filhos;

• Relação afetiva entre pais e filhos;

• Monitoramento dos pais em relação às atividades dos filhos.

Adaptado de Payá e Figlie 1; Merikangas et al.16; Furtado 17; Loukas et al.18.

Conclusão

O ponto-chave de toda discussão com famílias é reconhecer que seu trabalho traz benefícios e contribui positivamente para a mudança no padrão de abuso ou dependência de substâncias e para a qualidade de vida da família.

Os ganhos de qualquer intervenção familiar devem ser vistos no contexto de vida do paciente e de sua família, além de terem que ser analisados em um processo, o que significa que mudanças não serão imediatas, e sim construídas conforme a realidade de cada sistema familiar.

Sozinhas essas famílias não conseguem resolver uma questão que não é só delas, mas parte de uma sociedade que produz o desamparo em vários níveis. Por isso, torna-se imprescindível ampliar o entendimento do sistema familiar, perceber quais regras e valores

regem seu funcionamento. E reconhecer que a codependencia é uma das formas de lidar com a problemática, mas que não reduz a possibilidade de membros da família buscarem outras formas de enfrentamento.

Neste capítulo foi evidenciada a combinação dos fatores de risco inerentes às famílias. Importante reconhecê-los no âmbito escolar, nas unidades básicas de saúde e não obrigatoriamente em serviços especializados. Pois esses fatores, quando identificados, podem redirecionar o tipo de ajuda que a família requer.

Sobretudo, vale ressaltar que a vulnerabilidade familiar precisa ser compreendida entre suas relações internas, entre os membros, mas também nas conexões externas de que o sistema faz parte. Daí a relevância das condições protetoras da comunidade e do meio para suprimirem necessidades paralelas ao problema da dependência ou abuso de substâncias, assim como também potencializarem melhores condições de enfrentamento familiar.

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Como as comunidades terapêuticas abordam a questão da vulnerabilidade

Carolina Couto da Mata

Entende-se que as relações desiguais de poder possuem papel central nos processos de vulnerabilização experimentados por diferentes grupos sociais, ampliando o alcance das abordagens que se restringem à responsabilidade individual como determinante desses processos. Estar colocado em situação de desigualdade por motivos socioeconômicos, religiosos, de sexo, de raça, de idade, de saúde, de opção sexual, de etnia, de cor da pele, por deficiência física ou mental, pelo uso de substâncias psicoativas, entre outras, configuram situações que vulnerabilizam os sujeitos, em processos e práticas sociais e históricas1 .

Nesse sentido, pode-se dizer que a desigualdade econômica e a desigualdade de sexo têm, historicamente, vulnerabilizado os pobres e as mulheres; que a população LGBT é vulnerabilizada pelo preconceito sexual e pelas práticas homofóbicas; que a deficiência cognitiva e mental vulnerabiliza os sujeitos, por torná-los mais dependentes; que os pacientes que sofrem doenças contagiosas são vulnerabilizados pelo temor da contaminação que possam provocar; que os doentes crônicos são vulnerabilizados por serem dependentes de tratamentos contínuos e, muitas vezes, incapacitantes; e, igualmente, os sujeitos dependentes químicos, vulnerabilizados pelo “pânico moral”2 induzido por campanhas e matérias midiáticas.

Em todos esses casos, a situação de vulnerabilidade potencializa o perigo de serem desconsiderados, explorados, injustiçados, discriminados, excluídos, agredidos e segregados. Isso ocorre na medida em que, em uma sociedade segregacionista e violadora, tais grupos têm reduzidas suas capacidades de proteger seus interesses nas relações de poder. Por isso, faz-se necessária a criação de dispositivos institucionais de defesa, proteção e atenção, com vistas ao acolhimento, tratamento e garantia de seus direitos sociais, civis, políticos, econômicos e culturais - seus direitos humanos. Essa perspectiva é importante, pois retira tais grupos do campo assistencialista de tutela dessas pessoas - que reforça uma percepção de incapacidade pessoal, individual - e reconhece a capacidade criadora e de resistência desses sujeitos na busca de superação das condições de sua vulnerabilização. Considera, assim, tanto a dimensão relativa ao indivíduo e ao local social por ele ocupado, quanto os aspectos coletivos e contextuais que os tornam suscetíveis às violações. Tal concepção indica o conceito de vulnerabilidade, significando grupos ou indivíduos fragilizados jurídica ou politicamente na promoção, proteção ou garantia dos seus direitos de cidadania3. Nessa mesma perspectiva analítica, o conceito de vulnerabilidade social pode ser relacionado aos processos de exclusão, discriminação ou enfraquecimento dos grupos sociais4 e à sua capacidade de reação5 .

A Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade pauta sua atuação nessa perspectiva ampliada do conceito de vulnerabilidade, colocando o sujeito dependente químico no centro de relações e determinações que condicionam sua existência e a dependência, buscando ajudá-lo a compreender a situação na qual se encontra e a se apropriar de sua história de vida. Isto é, entende a vulnerabilidade dos sujeitos em uma perspectiva transdisciplinar e complexa, relacionada às determinações de ordem individual, coletiva, contextual, geográfica, política e econômica, ultrapassando abordagens que primam por análises de multifatorialidade. Nesse contexto, entende o risco presente nas situações de vulnerabilidade pelas rupturas que pode provocar, tanto das garantias individuais quanto dos vínculos sociais e familiares, sem desconsiderar seus impactos na integridade física e psíquica e na perda de autonomia.

Considera-se que a proposta de vida em comunidades terapêuticas (CT) pode ser um importante instrumento na abordagem da dependência química e dos processos de vul-

nerabilização que dela fazem parte. Para fundamentar esse ponto de vista, neste capítulo pretende-se apresentar os elementos essenciais do modelo de atenção denominado “comunidade terapêutica”, suas distorções e limites, bem como interrogar seus impactos no processo de vulnerabilização que sofrem os dependentes químicos e seus familiares. Inicia-se por uma breve discussão sobre as comunidades terapêuticas, seus fins, normatizações e distorções. Em seguida, apresenta-se um histórico do modelo de atenção das comunidades, seu método de tratamento e, finalmente, a experiência da Terra da Sobriedade.

As comunidades terapêuticas: usos e abusos

Entre os recursos atualmente disponíveis para o tratamento da dependência química, grande parte da população brasileira tem buscado ajuda nas comunidades terapêuticas.

O termo “comunidade terapêutica” tem sido utilizado na literatura especializada para se referir a uma abordagem que está centrada no uso de atividades e dos relacionamentos entre os dependentes e a equipe de funcionários, em um ambiente comunitário, residencial ou não, tecnicamente preparado para promover mudanças psicológicas e sociais6. O enfoque dessa abordagem está, assim, na interação contínua entre o sujeito e a comunidade, na convivência e na formação de vínculos entre os participantes, com o objetivo de favorecer a avaliação e a modificação do modo de vida.

No Brasil, desde junho de 2011, a Resolução da Diretoria Colegiada da Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) RDC n° 29a regulamenta o funcionamento das comunidades terapêuticas para dependentes químicos. Essa normativa orienta a organização do serviço, ao se referir às atividades terapêuticas a serem desenvolvidas, à formação do responsável técnico e demais membros da equipe de atendimento, ao tempo máximo e ao caráter voluntário da permanência no serviço e quanto aos mecanismos de encaminhamento para outros serviços de saúde, nos casos de intercorrências; estabelece a importância de critérios de elegibilidade para a admissão no tratamento e para o uso de medicamentos; enfoca os direitos dos admitidos e as responsabilidades do serviço, assim como orienta quanto à gestão da infraestrutura e das instalações físicas.

Há ainda a Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde, que institui a rede de atenção psicossocial (RAPS) para pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Este, por sua vez, prevê a participação das comunidades terapêuticas no oferecimento de cuidados contínuos de saúde de caráter residencial transitório, de forma articulada com a atenção básica e com os centros de atenção psicossocial (CAPS).

Tais normas estabeleceram um marco legal rumo à organização e regulamentação das comunidades terapêuticas que já atendiam dependentes químicos no Brasil desde a década de 70. Além disso, estabeleceram uma referência mínima para que esses serviços possam ser implantados e fiscalizados. Apesar disso, essas exigências não parecem ser suficientes para garantir o monitoramento e a fiscalização dos serviços; explica-se o porquê.

Historicamente, o movimento das comunidades terapêuticas no Brasil tem sido alvo de críticas por uma parcela dos grupos envolvidos com a reforma psiquiátrica brasileira. Isso porque muitos serviços que se autodenominam “comunidades terapêuticas” têm sido

implantados de maneira irregular no país, com práticas que contrariam a proposta original de CT e a legislação, constituindo-se muitas vezes em violações de direitos. A esse respeito, em 2011, o Conselho Federal de Psicologia divulgou documento no qual apresenta denúncia de práticas que violam os direitos humanos e desrespeitam as demais normativas jurídicas que regulamentam os serviços de saúde e de assistência social. A realidade apresentada configura situações de violência e opressão que contrariam os princípios de dignidade humana e evidencia a necessidade de fiscalização constante por parte do poder público, visando inibir e impedir o funcionamento de tais programas ditos de tratamento. A identificação dessas práticas com o modelo de comunidades terapêuticas demonstra o desconhecimento de parte da sociedade sobre a real proposta metodológica das CTs, sobre seu modo de funcionamento, bem como sobre seus resultados. De fato, essas práticas denunciadas são inassimiláveis e muitas comparações equivocadas e descontextualizadas historicamente, por desconhecimento do modelo de reabilitação proposto, têm prejudicado a articulação, o fortalecimento e o avanço na implantação de uma rede de atenção psicossocial, como a que é proposta pelo Ministério da Saúde.

Um breve histórico sobre o modelo de atenção das comunidades terapêuticas

Desde o seu surgimento, o modelo das comunidades terapêuticas vem sendo adaptado a diferentes públicos (homens e mulheres adultos, mulheres com seus filhos, adolescentes, dependentes químicos com outros transtornos psiquiátricos), em diferentes ambientes (prisões, abrigos para pessoas em situação de rua, setores de hospitais, permanência-dia), sofrendo a influência do desenvolvimento das profissões e suas técnicas de atendimento (psicanálise francesa, prevenção da recaída, etc.) ao ampliar sua equipe de profissionais. Além disso, sua abordagem sofre a influência da cultura, do momento histórico e, consequentemente, da política de saúde, assistencial e educacional de cada país onde a CT está localizada. Todo esse contexto tem como resultado a heterogeneidade dos serviços prestados e a necessidade de consenso na definição dos elementos essenciais e dos princípios específicos desse modelo de atenção, para garantir sua efetividade. Historicamente, dois grandes campos do saber científico direcionaram a proposta clínica das CTs: a Psiquiatria social e a dependência química. No primeiro campo, as CTs, denominadas democráticas, têm sua origem no pós-guerra, na reabilitação de soldados por meio de grupos terapêuticos. Essa proposta foi desenvolvida por Maxwell Jones, psiquiatra do exército inglês, no Hospital Belmont (mais tarde chamado Henderson), na segunda metade da década de 1940. De Leon define essas comunidades do campo psiquiátrico como “unidades e instalações inovadoras destinadas ao tratamento psicológico e à guarda de pacientes psiquiátricos socialmente desviantes dentro (e fora) de ambientes hospitalares de tratamento de transtorno mentais”7 .

Como alternativa ao tratamento manicomial vigente na época, essa proposta questionava a desconsideração dos efeitos socializantes da cultura grupal para a terapêutica do modelo hospitalocêntrico, por compreender que esses efeitos possibilitariam uma vida social e de trabalho fora da própria instituição de tratamento8. O trabalho de Jones fundamentava-se nos seguintes pressupostos:

1) na comunicação de mão dupla em todos os níveis; 2) na tomada de decisão por todos os níveis, a partir do consenso;

3) na liderança compartilhada; e 4) na aprendizagem social a partir das interações no “aqui e agora”9 .

Outro diferencial do trabalho de Jones: cabia ao profissional ajudar o paciente a descobrir o conhecimento que ele adquiriu na experiência grupal, atuando como um facilitador no processo de aprendizagem social - contrariando a prática de transmitir um novo conhecimento de modo professoral7 . No segundo campo do saber científico, o da dependência química, De Leon afirma ser a CT um “programa de tratamento residencial, baseado na comunidade de dependentes de álcool e drogas”7. A CT é definida como um programa de tratamento, um conceito que sugere algo mais do que um espaço físico diferenciado onde um grupo de pessoas permanece por determinado período, como pode parecer para quem desconhece o modelo de reabilitação. O autor argumenta que, cronologicamente, as CTs da Psiquiatria Social antecedem - em 15 anos - aquelas voltadas para a dependência química na América do Norte, mas que não é possível determinar com clareza qual a influência de uma experiência sobre a outra. Considera, entretanto, que, gradualmente, houve uma aproximação entre os modelos e métodos da CT psiquiátrica e da CT para dependentes químicos7. No Quadro 1 são descritas as características da comunidade terapêutica psiquiátrica, a partir da proposta de Maxwell Jones.

Quadro 1 - Características da comunidade terapêutica psiquiátrica a partir da proposta de Maxwell Jones7

1. Considera-se a organização como um todo responsável pelo resultado terapêutico; 2. a organização social é útil para criar um ambiente que maximize os efeitos terapêuticos, em vez de constituir mero apoio administrativo ao tratamento; 3. um elemento nuclear é a democratização: o ambiente social proporciona oportunidades para que os pacientes participem ativamente dos assuntos da CT; 4. todos os relacionamentos são potencialmente terapêuticos; 5. a atmosfera qualitativa do ambiente social é terapêutica no sentido de estar fundada numa combinação equilibrada de aceitação, controle e tolerância com respeito a comportamentos irruptivos; 6. atribui-se um alto valor à comunicação; 7. o grupo se orienta para o trabalho produtivo e para o rápido retorno às atividades sociais; 8. usam-se técnicas educativas e a pressão do grupo para propósitos construtivos; 9. a autoridade difunde-se entre os funcionários responsáveis e os pacientes.

Tendo como referência o momento histórico no qual estava inserido, a proposta de comunidade terapêutica de Maxwell Jones trouxe inegáveis avanços para a assistência de sua época, inspirando outros movimentos mundialmente influentes, como a reforma psiquiátrica francesa e a italiana de Franco Basaglia, que também influenciou a reforma brasileira. Contudo, as novas configurações sociais e culturais, além das experiências clínicas ao longo dos anos, evidenciam que é preciso avançar teoricamente e melhorar continuamente as práticas clínicas.

As primeiras comunidades terapêuticas para dependentes químicos surgiram inicialmente na América do Norte e, posteriormente, na Europa, nas décadas de 60 e 70. Os primeiros programas de tratamento norte-americanos foram influenciados pelas experiências do Grupo Oxford, dos Alcoólicos Anônimos, do Modelo Minnesota e do Modelo de Sy-

nanon7. Com o desenvolvimento de outras abordagens de cuidado, esses modelos iniciais inspiradores da primeira geração de comunidades foram aperfeiçoados.

As comunidades terapêuticas norte-americanas

As CTs norte-americanas foram fundadas por dependentes químicos, ao assumirem papéis de liderança e administrarem alguns serviços. Pela própria experiência no tratamento, fundamentado na mútua-ajuda, e pelo reconhecimento de um saber-técnico desenvolvido empiricamente num contexto de reflexão e aprendizagem, alguns dependentes se qualificaram profissionalmente, encontrando no papel social de ajudador um caminho viável para a própria inserção social7. Por isso, ainda hoje, uma das características dos serviços é ter em suas equipes de ajudadores pacientes que já se trataram nesse modelo. As CTs contemporâneas, por sua vez, sob a influência de outros modelos de atenção e diante do aperfeiçoamento das técnicas dos profissionais de saúde, da assistência social e de outras áreas do saber, passaram a oferecer atividades dirigidas por especialistas, sejam eles ex-pacientes das próprias comunidades ou profissionais com outras experiências de vida.

Institucionalmente, a disseminação dos serviços para dependentes químicos no mundo, com o apoio dos governantes de cada país, resultou na criação das Comunidades Terapêuticas da América (TCA) - uma organização de programas norte-americanos de CTs, em 1975, e na Federação Europeia de Comunidades Terapêuticas em 19787. Desde então, os serviços estão organizados numa federação mundial subdividida em regionais que sediam os países membros. O Brasil é membro da Federação Latino-Americana de Comunidades Terapêuticas (FLACT), por intermédio da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), fundada em 16 de outubro de 1990, com sede em Campinas-SP. Existem, também, outras federações de CTs no Brasil, como a Federação de Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil (FETEB), fundada em janeiro de 1994; a Cruz Azul no Brasil; a Federação Nacional das Comunidades Terapêuticas Católicas (FNCTC) e Instituições Afins; e a Federação Norte e Nordeste de Comunidades Terapêuticas (FENNOTE) e a Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT).

A “vida em comunidade” como método de tratamento

A comunidade terapêutica como modelo de atenção considera que o transtorno mental e comportamental devido ao abuso de substâncias psicoativas traz impactos em diferentes áreas da vida do sujeito, colocando-o em um contexto de vulnerabilidade, uma vez que afeta “a pessoa inteira”7. Isso significa que, independentemente da substância consumida, traz consequências cognitivas, emocionais e psíquicas, impacta os relacionamentos interpessoais, provoca perdas financeiras, laborativas, entre outros tipos de agravos. As consequências físicas e orgânicas são consideradas um dos elementos desse cenário e precisam ser cuidadas, mas não são o foco principal do modelo nem seu único objetivo.

Outro aspecto destacado pelo modelo refere-se à complexidade das situações vividas pelos dependentes, às consequências psicossociais do uso abusivo, continuado e progressivo que devem receber atenção integral. Nesse caso, ressaltam-se os conflitos familiares com violência psicológica e física devido ao abuso de álcool, por exemplo; o furto e o roubo para sustentar o consumo abusivo de substâncias; o envolvimento com o tráfico de drogas para pagar dívidas do consumo abusivo ou da dependência; a prostituição como

meio para conseguir mais drogas, entre outras práticas que acarretam rupturas socioafetivas e outros danos como a prisão, ampliando o grau de sofrimento.

Assim é que a comunidade terapêutica é indicada para pessoas com dependência química moderada ou grave já inseridas em uma espiral de vulnerabilização – apresentando comprometimento da saúde, da vida familiar, laborativa e social - que podem se beneficiar de uma proposta de reabilitação psicossocial, quando o gerenciamento do uso de álcool e outras drogas e da doença já não é mais possível nem desejado pelo próprio paciente.

Nesse modelo de atenção, na tentativa de deslocar o sujeito dessa espiral, todas as atividades terapêuticas buscam favorecer ao sujeito a avaliação da maneira como ele administra suas próprias emoções, como interage e se comunica, como percebe e vive seu cotidiano a partir de suas condições materiais de vida e, recursivamente, como essas experiências afetam sua subjetividade e seu modo de vida.

Nas diferentes modalidades de atendimento e tratamento - permanência-dia ou residencial, em meio urbano ou rural, o objetivo é oferecer aos sujeitos novas oportunidades para ressignificarem a própria existência e para encontrarem e produzirem um novo sentido para a vida, por meio de atividades orientadas pela liberdade e criatividade. Assim se configura a abordagem terapêutica das comunidades: o “viver em comunidade”, que se faz em um setting ético e tecnicamente preparado para proporcionar outras experiências, diferentes das que o sujeito em dependência estava inserido e que o motivaram a procurar por ajuda.

Nessa proposta, o paciente assume um lugar ativo, de sujeito e protagonista das ações, em uma participação democrática na organização social da vida comunitária. Além de desenvolver sua responsabilidade e autonomia no enfrentamento de suas dificuldades pessoais - processo denominado como “autoajuda” - ele é estimulado a colaborar com os outros membros da CT – processo denominado como “mútua-ajuda”. Ao oferecer suporte aos demais no desenvolvimento das atividades propostas e no cuidado das próprias dificuldades e vulnerabilidades, busca-se promover a solidariedade, o sentimento de pertença e o vínculo entre esses sujeitos, ultrapassando os relacionamentos propostos dentro da CT, fomentando a formação de outras redes e a experiência de coesão social.

Ao participar ativamente da rotina de atividades, decidindo e compartilhando a responsabilidade pela manutenção da vida em comunidade e por todas as consequências que essa convivência proporciona, o sujeito cuida de si mesmo, reorganizando-se quanto aos procedimentos básicos e saudáveis para seu organismo (abstinência, autocuidado, sono, higiene, exercícios físicos, alimentação adequada, espiritualidade); cuida do “bem comum” e descobre intenções e habilidades (organização, limpeza e manutenção dos ambientes coletivos: quarto, banheiro, cozinha, casa, quintal, jardim, horta, etc.); e amplia sua atuação, participando dos programas educativos, produtivos, culturais, religiosos, esportivos e de lazer, disponíveis na CT e na sociedade em geral (atividades extramuros). Não se trata aqui de etapas, mas ações concomitantes e dinâmicas10 .

Nesse contexto comunitário, cada paciente pode aprender com os diferentes papéis sociais que desempenha, ao conviver em uma rede social que incentiva a comunicação, o enfrentamento dos problemas e dos conflitos e que busca o equilíbrio entre a necessidade individual e a coletiva. Essa abordagem exige que os programas de tratamento sejam flexíveis às necessidades, possibilidades e limitações de cada um, possibilitando a todos construírem alternativas que respeitem e valorizem a diversidade de respostas às situações de vulnerabilidades vividas, conferindo dinamicidade ao processo terapêutico.

Para que a terapêutica comunitária seja possível, durante o período de tratamento intensivo o sujeito é convidado a interromper o uso de substâncias psicoativas e das demais

atividades ligadas ao consumo de drogas, lançando mão de todo o suporte e acompanhamento terapêutico oferecido pelo serviço. A abstinência faz-se necessária para a avaliação precisa da extensão dos comprometimentos orgânicos e psíquicos decorrentes do consumo abusivo de álcool e outras drogas e para seu devido tratamento. Afinal, nesses casos graves, o transtorno mental e comportamental apresentado pelos dependentes não se resume àqueles envolvidos na administração do uso de substâncias psicoativas e de seus danos diretos, mas também ao sofrimento psíquico, às perdas cognitivas, à dificuldade de administrar os relacionamentos familiares, às perdas financeiras, educacionais e laborais e, considerando a complexidade dessa realidade, a todas as situações que alimentam e as que são consequências desse contexto de vulnerabilização.

Durante o tratamento, um dos aspectos que são trabalhados pelo sujeito é o papel ou o lugar, em sua história de vida, do consumo de substâncias e da experiência objetiva, subjetiva, familiar, social, cultural e política desse uso de álcool e outras drogas. Em uma perspectiva profissional e ética, caberá ao profissional que o atende alertá-lo e orientá-lo quanto aos riscos e possíveis consequências da retomada do uso de qualquer substância psicoativa, deixando ao sujeito a decisão de como será esse consumo em sua vida.

Essa proposta de interrupção do uso de substâncias durante o tratamento é polêmica, tendo sido considerada como vinculada ao proibicionismo em oposição à abordagem de redução de danos, proposta pelo Ministério da Saúde11. Há ainda os que afirmam, na tentativa de sustentar a efetividade da política de redução de danos, que a metodologia das CTs tem como pretensão “definir campos de normalidade e anormalidade” ou “desconsiderar os arranjos pessoais construídos pelos próprios sujeitos para lidar com seu uso (algumas vezes abusivos) de drogas”12 .

No entanto, a política de redução de danos não é contrária à abstinência. Respeitar a especificidade de cada caso implica considerar a história de vida de cada sujeito, acreditando em seu potencial de autonomia, de enfrentamento e reconhecendo seus limites. Cabe ao profissional de saúde, tecnicamente preparado, oferecer as informações e os instrumentos necessários para que o sujeito decida sobre a condução de sua vida - que não está restrita ao tempo de permanência na CT nem pode ter como premissa a posição de que cada um tem o direito de realizar seus desejos sem restrições ou consequências de diferentes naturezas – e desenvolva sua condição de saúde, que significa autonomia para viver, construir suas próprias normas13. Além disso, a vida comunitária é tecnicamente organizada para que essa experiência em coletividade promova a reflexão crítica de sua condição material de vida e instrumentalize esses sujeitos a serem ativos na vida social e política nos territórios dos quais eles fazem parte.

A restrição ao consumo de substâncias dentro da CT é necessária e um dos aspectos essenciais do método das CTs. Nos casos graves de envolvimento, como nos elegíveis para o tratamento com esse método, a experiência clínica mostra que a busca e o consumo podem se tornar prioritários em relação às demais atividades terapêuticas propostas, impedindo o envolvimento dos sujeitos com a vida comunitária e, consequentemente, prejudicando o alcance dos objetivos do tratamento voluntariamente buscado. Um ambiente protegido do consumo de substâncias psicoativas é um importante fator de segurança psicológica para que a comunidade possa alcançar o nível de agregação e vínculo entre seus membros7 .

O objetivo dos relacionamentos entre os participantes na convivência em comunidade é criar uma cultura de mudança no modo de viver e de lidar com os problemas cotidianos, o que deve ser compreendido por eles. Para tal, é preciso que os sujeitos percebam a relação entre a maneira como expressam seus sentimentos e o próprio uso de substâncias psi-

coativas. Essa aprendizagem é possível quando o sujeito não está sob o efeito de drogas7 , o que reforça a importância de um ambiente acolhedor, favorecedor da fala e da escuta, da compreensão do outro, uma vez que os conflitos serão tratados de forma condizente com a cultura de paz e solidariedade proposta10 .

Tais premissas são estranhas aos sujeitos recém-admitidos nos serviços da comunidade, que precisam ser instruídos sobre o método utilizado e o que se espera. Fica a cargo dos membros veteranos e dos profissionais a responsabilidade de continuamente criar um ambiente de convivência fraterna e tolerante entre os participantes, livre do consumo de álcool e outras drogas, dialogando e intervindo nas situações que possam comprometer a convivência entre os sujeitos. Tal conduta tem como objetivo garantir o caráter terapêutico e a credibilidade da proposta da comunidade. Os profissionais também são considerados membros da CT e, portanto, espera-se que tenham comportamento coerente com as concepções de tratamento e de convivência. Atuam clinicamente como facilitadores do processo de criação comunitária de um ambiente de interação, escuta e aprendizagem através da experiência, do envolvimento e do crescimento individual e coletivo. Como o elemento terapêutico essencial do processo de mudança é a relação entre os dependentes, ou seja, é a COMUNIDADE, o profissional tem como objetivo promover e aperfeiçoar a aliança indivíduo-comunidade e mediar o processo de construção conjunta de uma ética da convivência, com a participação ativa dos sujeitos. Além de atuar como facilitadores do vínculo comunitário, a equipe clínica administra e cuida da qualidade do programa de tratamento, como autoridade última no gerenciamento clínico dos casos e das instalações7 . Participar ativamente na vida comunitária significa propor aos sujeitos que se envolvam em atividades voltadas “para a vida prática, para a produção de utilidades, para a rotina doméstica e para o autocuidado”14. O caráter terapêutico das atividades está na possibilidade de esses sujeitos serem ativos no preenchimento de um espaço de negociação entre as pessoas, onde se busca conciliar os direitos e os deveres como membros da CT14. O objetivo principal não está no produto, resultante do trabalho, ou nos serviços realizados, nem nas capacidades desenvolvidas. Além do seu caráter expressivo - por ser a atividade laborativa reveladora dos problemas pessoais – na participação ativa da vida comunitária, o paciente lida com as rotinas de outra forma e constrói alternativas para seus problemas. Por isso, considera-se que a CT oferece um cenário de aprendizagem pessoal e social e de enfrentamento de suas vulnerabilidades. As situações cotidianas promovem oportunidades experienciais ricas, desafiadoras e estimulantes para o autoconhecimento e o desenvolvimento de novas maneiras de lidar com as dificuldades emocionais e de relacionamento7,9,10 .

A organização social da vida comunitária é um aspecto fundamental do serviço. A divisão de trabalho entre os membros da comunidade e as responsabilidades correlatas às funções se dá pelo tempo de tratamento, de assimilação da proposta do programa e pelas características pessoais, ocupacionais e clínicas de cada caso. Geralmente divide-se o processo de tratamento em fases ou estágios que refletem: a maneira como cada paciente entende, aceita, participa e valoriza as atividades da CT e a forma como desenvolve o próprio programa de tratamento; o nível de compromisso com a proposta e de confiança que exibe; o grau de liderança e de facilitação do processo de tratamento de outros dependentes; e a espontaneidade do relacionamento que estabelece com a equipe clínica. A determinação do tempo necessário para que o indivíduo alcance os resultados esperados tem sido um grande desafio, diante da gravidade do comprometimento biopsicossocial

apresentado por aqueles que têm buscado ajuda.

O modelo e a metodologia das CTs propõem o respeito à diversidade cultural, política, de sexo, social, racial e religiosa como uma de suas principais diretrizes. A aceitação voluntária do tratamento pelos homens e mulheres que buscam por ajuda está prevista nas normativas jurídicas que regem seu funcionamento. O cuidado integral do sujeito e não dos sintomas da intoxicação ou da desintoxicação isoladamente e a possibilidade de participação ativa do ajudado na terapêutica, como “sujeito” de suas escolhas, ativo no processo de entendimento dos diferentes fatores que influenciam seu modo de vida e no enfrentamento de suas dificuldades e vulnerabilidades são igualmente diretrizes importantes do método.

Discorda-se de que as CTs sejam “ilhas isoladas do resto do mundo, nas quais os conflitos da sociedade são esquecidos” 15. As dificuldades e problemas de diferentes naturezas enfrentados nas CTs não diferem dos que acontecem em outros contextos e práticas sociais. Os processos propostos para o trato dessas situações também não são diferentes daqueles desenvolvidos pela humanidade para lidar de maneira digna com as adversidades – diálogo, cooperação mútua, compromisso com o bem comum, respeito e acolhimento das dificuldades e diferenças, entre outros. Os conflitos sociais vividos na comunidade e seus entrelaçamentos intersubjetivos são o conteúdo da terapêutica. Todas as contradições e ambiguidades da vida social e da condição humana fazem parte dessa realidade e muitas vezes são a matéria-prima para a construção de outras possibilidades de vida. Justamente por se tratar de um espaço temporário de tratamento, a CT tem como um de seus objetivos levar o sujeito a realizar uma reavaliação do seu modo de vida ao ser atuante na construção de uma experiência de fraternidade e solidariedade, sustentada numa perspectiva ética de cooperação mútua para a superação dos dilemas inerentes a qualquer vida comunitária, dentro ou fora da comunidade terapêutica.

Apesar da riqueza das experiências resultantes da utilização da comunidade como instrumento terapêutico, sintetizadas no Quadro 2, a CT não considera que sua metodologia atenda à necessidade de todos os casos de dependência química. Diante de uma realidade complexa como a que atualmente se enfrenta e considerando todo o contexto histórico, cultural, econômico, político, além das particularidades de cada um dos envolvidos com a dependência química e suas consequências, seria ingênuo propor uma única saída. Isso exige que o projeto terapêutico e o lugar da CT na rede assistencial sejam reavaliados continuamente.

Quadro 2 – Síntese das principais particularidades da abordagem da comunidade terapêutica7,16

• Tem como enfoque o cuidado de diferentes aspectos da vida, afetados pela dependência química: saúde em geral, psicológicos, interpessoais, sociais e existenciais. • A terapêutica se dá em um ambiente organizado para a realização de atividades coletivas, para a comunicação constante entre todos, gerando um sentimento de pertencimento a uma rede de apoio comunitário. Estimula-se a compreensão do processo de adoecimento e suas consequências para si mesmo e para outras pessoas e a responsabilização pelo autocuidado, pelo desenvolvimento emocional e pela cooperação mútua entre os membros da comunidade no enfrentamento das dificuldades. • O programa de tratamento é organizado em fases que consideram o processo de desenvolvimento das mudanças pretendidas ao longo de um tempo planejado para a intervenção. • A vida comunitária é organizada em funções rotineiras a serem desempenhadas por cada membro, de acordo com o nível de comprometimento psicossocial e experiência de vida de cada dependente e com o entendimento que ele demonstra do programa de tratamento. Essa compreensão depende do tempo de envolvimento do paciente com o tratamento. • Os funcionários e profissionais são membros da CT e são facilitadores da aliança do dependente com a comunidade. • Os dependentes participam ativamente da terapêutica, cuidando e ocupando-se de si mesmo e da vida em coletividade. • O planejamento, o encaminhamento e o acompanhamento da adesão do paciente a uma rede de assistência, de acordo com suas necessidades biopsicossociais, que favoreçam sua inclusão e integração familiar, educacional, profissional e social.

A comunidade terapêutica da Terra da Sobriedade: relato de uma experiência

O tratamento de dependentes químicos e de seus familiares no modelo de CT é uma das ações desenvolvidas pela Terra da Sobriedade. Como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), essa instituição foi constituída em 31 de agosto de 2002. Além do tratamento, oferece atividades de cunho preventivo ao uso de álcool e outras drogas e de integração social: realiza semanalmente reuniões comunitárias de mútua ajuda, para usuários, familiares, crianças e adolescentes; oferece formação continuada para seus voluntários e multiplicadores; realiza palestras, cursos e eventos comunitários; desenvolve seminários clínicos e administrativos, além de construir parcerias comunitárias para o desenvolvimento de políticas públicas de atenção à causa. Todas as ações acontecem nas mesmas instalações físicas onde se dão as atividades de tratamento e pretendem favorecer a consciência dos significados que o uso e abuso de álcool e outras drogas possuem na história de cada um dos envolvidos e na nossa cultura contemporânea. As ações da instituição são mantidas por doações e parcerias com pessoas físicas, empresas e com os governos municipal, estadual e federal. Especificamente no que se refere ao tratamento, a Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade atende dependentes químicos de ambos os gêneros, a partir dos 18 anos de idade. É um serviço aberto e urbano – localizado na região norte de Belo Horizonte - que oferece hospedagem (assistência 24 horas) masculina e permanência-dia (um ou dois turnos) para ambos os sexos, 13 e 15 vagas, respectivamente. Sua equipe clínica é multidisciplinar, formada por assistente social, psicóloga, terapeutas ocupacionais, enfermeira,

monitores, professor de ciclismo e músico. Os casos que precisam de acompanhamento médico, odontológico ou de outra especialidade não oferecida na instituição são encaminhados para a rede pública de saúde ou para outros serviços, conforme a possibilidade do paciente e de sua família.

O projeto terapêutico é individualizado e prevê o aumento gradativo das responsabilidades de cada paciente, partindo daquelas relativas aos cuidados com a vida na CT e seguindo em direção ao desenvolvimento de atividades que dizem respeito ao ser cidadão. As atividades do cronograma semanal proposto no programa de tratamento incluem: espiritualidade; atividade física e esportiva; terapia ocupacional grupal e individual; participação diária, efetiva e rotativa na rotina de manutenção da CT; oficina de cinema comentado e de música; educação para saúde; atendimento social; atividades pedagógicas e didático-científicas; grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Amor-Exigente); assembleia da CT e orientações familiares. O Quadro 3 descreve a dinâmica de tratamento proposta quanto aos seus objetivos e quanto à metodologia utilizada. Quadro 3: Dinâmica de tratamento da Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade10

Objetivos

Busca de conscientização da dependência química

Ambientação do recém-chegado à comunidade terapêutica Desintoxicação

Metodologia

Intervenção, educação para saúde, grupos de mútua ajuda e consultas ambulatoriais.

Acolhimento, apresentação do espaço físico e das acomodações da Terra da Sobriedade, dos líderes e colaboradores. Avaliação clínica. Alimentação balanceada, exercício físico sistemático, organização dos hábitos e retirada do meio facilitador ou propiciador do uso de SPA.

Ressensibilização e integração

Conscientização das perdas vividas no processo de dependência; conscientização do tempo necessário para refazer processos de maturação que foram atrofiados pelo uso da droga; reflexão dos conteúdos da personalidade, principalmente aqueles relacionados à finitude da vida, à dependência ou apego às coisas e às pessoas, à compreensão da dualidade do ser humano e à necessidade de transcendência

Descoberta de intenções, habilidades e vocações

Integração e inclusão social A partir da convivência, da participação diária e paulatina nas atividades de vida pessoais e comunitárias, ou seja, do cronograma de atividades da Comunidade da Terra da Sobriedade.

Terapêutica dinâmica. Privilegia-se a Terapia Ocupacional como modo terapêutico de eleição para o tratamento dos adictos, por atuar na elaboração dos conteúdos simbólicos, expressos concretamente, pela manipulação de materiais - naturais e artificiais. A partir da ação, busca-se, com o paciente, ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade como ideia e processo, fundamentada no movimento originário do homem em face do mundo: criador e criado.

A partir das experiências de vida diária, atividades de manutenção da comunidade, oficinas terapêuticas, produtivas e de orientação vocacional. Manutenção do vínculo com a família de origem e estruturação de novos. Utilização de programas culturais, religiosos, esportivos, etc., para a descoberta de novas formas de divertimento, trabalho, estudo e entretenimentos. Adesão em um grupo de mútua ajuda, nos moldes de Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, Amor-Exigente ou similares. Engajamento numa atividade de produção de bens, com remuneração, de acordo com o interesse do paciente.

Quanto ao tratamento, seja no regime de hospedagem, permanência-dia ou ambulatorial, desde a admissão o paciente é convidado a planejar e a realizar um projeto pessoal, que deverá ser definido por ele a partir do seu desejo. Para a elaboração desse projeto, o

paciente é orientado, inicialmente, a propor a realização de uma atividade na CT. Gradativamente, ele é incentivado a ampliar sua proposta para fora do serviço, ou seja, para que seu projeto inclua atividades que serão realizadas em outros contextos sociais (escolas, empresas, igrejas, praças, parques, na casa de familiares e amigos, etc.).

As atividades a serem realizadas na CT, as funções e as responsabilidades de cada um são escolhidas por cada paciente a partir do seu interesse e de suas possibilidades físicas e mentais. As necessidades da CT e os projetos pessoais são discutidos nas reuniões diárias e nas assembleias semanais10 .

Semanalmente, as atividades de manutenção da CT são escolhidas pelos pacientes em reuniões coordenadas pela equipe. A organização e a hierarquia das funções são definidas também pelos pacientes, não tendo qualquer relação direta ou obrigatória com o tempo de tratamento. Tudo isso se dá a partir da descoberta que o paciente faz de seus interesses e habilidades, pois quando está na CT assume a responsabilidade pela manutenção da vida em comunidade, conforme discutido anteriormente10 .

Ainda, nas assembleias semanais é que todos os membros da comunidade - pacientes, equipe clínica e administrativa e demais funcionários – discutem os temas relevantes ao funcionamento da vida comunitária, sejam eles relativos à convivência entre os indivíduos, ao planejamento das atividades externas de cada paciente, ao funcionamento administrativo do serviço que implique a participação coletiva ou à filosofia do modelo de tratamento. Todos os problemas da comunidade, de qualquer natureza, são tratados no coletivo. Nas assembleias, os pacientes recém-admitidos apresentam-se e dizem qual o objetivo de sua estadia na CT, assumindo formalmente um compromisso com os demais. As recaídas no uso de drogas ou o não cumprimento de qualquer outra regra básica - no que se refere aos atos de violência, por exemplo, assim como as evasões, os desligamentos e a alta, também são avaliados, discutidos e/ou planejados nas assembleias10. A proposta é que todos os membros da comunidade se sintam participantes ativos desse processo, contribuintes e beneficiários do seu progresso. Dessa forma, mais do que um usuário do serviço, o sujeito é protagonista nas ações terapêuticas. O tempo de permanência voluntária na CT é flexível, pretendendo-se sempre o menor prazo possível, determinado segundo cada caso, variando de acordo com o nível de adesão e manutenção no tratamento, considerando o comprometimento biológico, psíquico, social e legal e o suporte familiar à reabilitação e à reintegração social. O acompanhamento pós-alta se dá por período mínimo de um ano nos grupos de mútua-ajuda, no ambulatório e nos eventos festivos.

Considerações Finais

O modelo de comunidade terapêutica tem sido considerado, por seus críticos, contrário à política pública de álcool e outras drogas brasileiras, fundamentada na redução de danos. Apesar da participação das CTs na RAPS proposta pelo Ministério da Saúde, as diretrizes estabelecem que essa parceria se dá entre o poder público e os serviços não governamentais, reforçando essa pretensa distância entre a política pública de álcool e outras drogas do país e o modelo proposto pelas CTs, mantendo-se, dessa forma, o modelo comunitário de tratamento numa posição marginal. Além disso, a definição da RAPS não reconhece o caráter terapêutico das CTs nem a capacidade do modelo comunitário de promover mudanças psicológicas e sociais, restringindo seu enfoque ao abrigamento protegido, o que

parece um equívoco.

É preciso disposição para um diálogo franco que, por considerar sua complexidade, amplie e aprofunde o debate sobre a temática do abuso de álcool e outras drogas, suas consequências e suas múltiplas abordagens, se a pretensão é avançar na organização de serviços comprometidos com o cuidado integral dessa população. Um dos grandes desafios para as CTs é capacitar sua equipe de ajudadores para atuarem em um modelo comunitário de tratamento. Muitos dos profissionais “tradicionais” não foram formados para usarem tecnicamente a convivência com os sujeitos nos mais diversos contextos da CT de forma terapêutica. O modelo comunitário de tratamento lhes propõe que ultrapassem a pretensa proteção do setting dos consultórios e que desenvolvam atividades no refeitório, na cozinha, na sala de estar, na lavanderia, no jardim, na horta, no cinema, no clube, na escola, na empresa, na igreja e nas praças, ensinando os sujeitos a usarem a “comunidade como método” de mudança do seu modo de vida. Além disso, é preciso que os profissionais compreendam que, apesar de intensa e rica em experiências significativas, a permanência do sujeito na CT é provisória e suas experiências nesse âmbito são artificiais, não como se “artificial” fosse sinônimo de uma experiência “não verdadeira”, mas no sentido de serem tecnicamente preparadas para serem terapêuticas. Dessa forma, a experiência de estudo dentro da CT, apesar de válida e muito útil ao sujeito, não equivale à experiência natural de estudo na Faculdade, por exemplo. A similitude do contexto da comunidade com o espaço doméstico não substitui a residência na própria casa e a convivência com os próprios familiares. A experiência da vida em uma CT, além de provisória, não tem a pretensão nem o objetivo de substituir ou responder às demandas do curso natural da vida social cotidiana.

O modelo de CT está centrado na relação sujeito-comunidade. Diferentemente do que era feito nos manicômios, a proposta não é de “ambientoterapia”, ou seja, de uma mudança externa no ambiente que provoque mudanças internas nos sujeitos. A terapêutica não está resumida ao cumprimento de determinados procedimentos de recuperação, atendendo ao programa de tratamento e às expectativas de um regimento interno do serviço, por um determinado período de tempo, desconsiderando a necessidade e a demanda dos sujeitos.

Essa lógica da produção capitalista, que organiza o tempo do trabalho na nossa sociedade e determina o cumprimento de determinadas prescrições, não pode ser a referência para o uso da experiência de uma vida comunitária que se pretende terapêutica. A lógica do tempo regida pelo capital não permite o respeito à dinamicidade e à variação do processo de constituição da vida comunitária. Afinal, quanto tempo e quais experiências um sujeito precisa ter para avaliar, ressignificar e modificar o seu modo de vida? O que o modelo comunitário de tratamento pretende é que esse processo de longo prazo tenha início na CT e não que ele seja o resultado das intervenções propostas, contrariando a expectativa social de que o tempo dedicado ao tratamento é o responsável por “recuperar o sujeito de sua dependência química”, para que ele, enfim, retorne à sociedade.

A Terra da Sobriedade tem adotado um marco referencial diverso e mesmo oposto às diferentes modalidades de CTs ilegalmente disseminadas no país. Enfrenta grandes desafios, entre os quais resistir às tentativas de sucateamento de sua proposta de tratamento, pelo fato de as fontes financiadoras terem como referência outras abordagens mais generalizantes. Os resultados conseguidos ao longo de sua história demonstram que a perspectiva metodológica adotada pela Terra no acolhimento e tratamento da dependência química pode ser considerada importante instrumento de ajuda aos sujeitos dependentes e a seus

familiares. Sua proposta pretende ajudá-los a romper com o ciclo de vulnerabilizações que o abuso de álcool e demais substâncias psicoativas pode mergulhá-los, levando-os a construir posições mais autônomas na vida cotidiana. Além disso, a Terra da Sobriedade preserva a existência de uma proposta de tratamento verdadeiramente comunitária que, ao que parece, está se perdendo.

Referências

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Terapia comunitária integrativa: saúde comunitária na prevenção e atenção ao uso e abuso de drogas

Adalberto de Paula Barreto Doralice Oliveira Gomes

A temática do uso de drogas e as questões implicadas nesse assunto é alvo da atenção de vários atores sociais, constituindo-se em um desafio para governos e sociedades, pois diz respeito a um universo múltiplo, no qual coabitam posicionamentos diversos.

Há registro do uso de drogas nas mais diferentes culturas ao longo da história. Trata-se de um tema constante, que acompanha a evolução da própria humanidade, estando seu uso presente há milhares de anos1 . O uso de drogas possui diferentes significados e finalidades ao longo da história, desde a cura de doenças, o alcance da transcendência e do êxtase religioso, a associação a delitos, o confronto com regras e limitações, entre muitos outros2 . A classificação em lícitas e ilícitas não possibilita uma relação direta com uso devido ou prejudicial de uma substância, em que as drogas lícitas poderiam ser compreendidas como necessariamente seguras3. Pesquisas nacionais e internacionais revelam o uso abusivo do álcool como problema de saúde pública, com repercussões na vida pessoal, familiar e social4. Trata-se, portanto, de uma droga lícita e de fácil acesso.

Há usos de drogas que não ocasionam problemas, sendo, em alguns casos, necessário o consumo, como é o caso dos medicamentos psicotrópicos prescritos. Todavia, qualquer utilização de drogas implica risco, independentemente de serem lícitas ou ilícitas5 .

Diante da multiplicidade de questões que se apresentam sobre o uso de drogas, o desafio que surge é: como lidar com o uso das drogas considerando as questões pessoais, familiares, culturais, econômicas, legais e sociais que estão presentes nesse fenômeno e que são inter-relacionadas?

Abordar o uso de drogas implica apreciar uma questão polêmica. No presente capítulo parte-se da premissa de que é impossível conceber uma sociedade sem uso de qualquer droga. Fundamental analisar: qual droga? Em que contexto social, político, econômico, cultural esse uso está sendo feito? Por quem? Com qual finalidade?

Refletir sobre o uso de drogas requer uma visão abrangente que contemple da melhor forma possível a complexidade do fenômeno. Nesse sentido, Claude Olievenstein propôs a tríade sujeito-substância-ambiente6. Essa tríade numa leitura encontrada em Albertani (2006) pode ser mais bem visualizada como vértices de um triângulo em que em um deles está a pessoa, em outro o contexto e noutro a droga. Os vértices do triângulo contribuem para reflexões numa perspectiva ampla, por meio da qual se busca inter-relacionar os diferentes aspectos envolvidos. Há uma inter-relação de fatores para que ocorra o uso de determinada droga, num sistema em que um fator influencia e é influenciado pelos outros6 . Existe uma cultura alarmista presente em mídias diversas que podem influenciar o olhar da sociedade ao tratar do uso das substâncias numa perspectiva distorcida e tendenciosa1. Essa perspectiva está presente em expressões como: Drogas matam! Diga não às drogas! Essas expressões estão equivocadas? Depende. Fundamental responder às seguintes questões. Qual droga? Quem faz uso? Em qual contexto? Com qual finalidade?5 .

O consumo pode ocorrer num âmbito controlado e limitado, a exemplo de celebrações e uso medicamentoso. No entanto, problemas os mais diversos podem surgir nos casos de consumo prolongado ou em quantidades excessiva, mesmo numa única ocasião. Esses problemas podem impactar tanto no cenário social, como no da saúde física ou mental, a exemplo de episódios de violências, acidentes de trânsito, intoxicações, prática do sexo sem uso de preservativo, entre outros7 .

Há diferentes tipos de uso, seja pela droga em si, frequência, quantidade, contextos, motivações. Os usos podem ser classificados em: uso experimental (contato inicial com

a substância, com poucos episódios de uso, havendo interrupção no consumo); uso recreativo (uso ocasional, presente em circunstâncias sociais, tendo os riscos ampliados caso haja continuidade e o aumento de intensidade); uso médico (o uso da droga obedece à prescrição e acompanhamento médico, sendo o uso indevido se ocorrer sem prescrição e acompanhamento médico); uso ritual (consumo em cerimônias religiosas ou sociais, com significado contextual); uso indevido/abusivo (apresenta consequências prejudiciais ao usuário de ordem orgânica, psicológica ou social); dependência (o usuário perde o controle do uso, há necessidade do aumento da quantidade da droga consumida, forte desejo de consumo)8 .

O uso de drogas está envolto num universo de preconceitos, ditos, não ditos, que impactam sobremaneira a visão dos profissionais sobre o fenômeno e orientará suas práticas e, principalmente, sua relação com o usuário de determinada substância. Faz-se primordial que o profissional conheça suas próprias posturas, revisite-as, questione-as para, a partir daí, estabelecer o que é essencial quando o foco é a busca da melhoria da qualidade de vida e da relação das pessoas consigo e com os outros. Nessa etapa introdutória do capítulo objetivou-se suscitar uma reflexão sobre o uso de drogas, pois está presente em diversas culturas e classes sociais, seja em panoramas vulneráveis e de risco social ou em comunidades com melhores condições de vida. Pode-se vislumbrar um círculo vicioso no qual dificuldades relacionadas ao acesso ao mercado de trabalho, condições precárias nas áreas de saúde, educação, habitação e segurança pública e entraves no acesso a políticas públicas sociais favorecem o aumento do consumo de drogas. Ao passo que o aumento no consumo pode ocasionar problemas na vida das pessoas, famílias, comunidades e países4 .

Drogas: prevenção, tratamento e reinserção social

Há diversos tipos de drogas, uso, motivações, contextos a serem considerados frente a esta questão. Diante disso, as intervenções podem ocorrer no âmbito da prevenção, tratamento e reinserção social.

Atuar na prevenção ao uso de drogas implica fazer algo para evitar, impedir, retardar, reduzir ou minimizar o uso, abuso ou a dependência e os prejuízos relacionados. Nesse sentido, a literatura especializada orienta para intervenções em níveis3,9 .

Prevenção universal: dirige-se à população em geral, a todos, independentemente de serem usuários ou não de drogas.

Prevenção seletiva: nos grupos em que há fatores de risco para o abuso de alguma droga ações de prevenção seletiva são utilizadas, pois o planejamento será focado no grupo específico. Por exemplo, ações de prevenção com filhos de alcoolistas.

Prevenção indicada: direcionada para usuários que já sinalizem abuso ou problemas de comportamento relacionado a esse consumo.

O tratamento é indicado para pessoas com uso problemático de drogas. Há diversas modalidades de tratamento, desde abordagens médicas, psicológicas, grupos de ajuda mútua, atendimentos ambulatoriais, internações e intervenções comunitárias. As pessoas se beneficiam diferentemente das modalidades de tratamento, ou seja, as abordagens possuem limitações e requerem, em geral, uma combinação entre elas10 .

A reinserção social é considerada um componente do tratamento e visa à superação do modo de vida instalado pelo uso problemático. Trata-se de disponibilizar apoio tanto

ao usuário como às pessoas da sua rede de convívio, pois estas exercem importante papel nesse percurso de superação11 .

Possibilidade de atuação: visão da saúde comunitária

Neste capítulo propõe-se a pensar a questão do uso de drogas a partir de uma visão da saúde comunitária, compreendida como atividades realizadas na e com a comunidade em prol da saúde das pessoas a partir da mobilização de diferentes segmentos de uma comunidade. De forma coletiva, as pessoas refletem sobre suas vidas, expressam necessidades e conhecimentos desenvolvidos no lidar com as demandas de seu cotidiano. A abordagem de saúde comunitária desafia os profissionais a realizarem, também, trabalhos em espaços não institucionais, com um olhar para as competências e potencialidades das comunidades12 . O trabalho comunitário contribui para a criação e o fortalecimento de redes sociais, pois possibilita a aproximação entre as pessoas da comunidade por meio das trocas de experiências, de aprendizados e da construção de soluções coletivas. Nessa abordagem, o foco está na promoção da saúde, extrapolando a questão específica das drogas12 .

Terapia comunitária integrativa: saúde e trabalho social comunitários

A terapia comunitária integrativa (TCI) é uma abordagem de atenção à saúde comunitária, criada pelo Prof. Dr. Adalberto Barreto da Universidade Federal do Ceará em 1987, no Pirambu, bairro de periferia do município de Fortaleza-CE. Surgiu em um contexto pontual e ganhou capilaridade por meio da constituição de uma rede integrada de 35 polos de formação em TCI em todas as regiões do país, com aproximadamente 33.000 terapeutas comunitários capacitados no Brasil13. A TCI incentiva, por meio de encontros comunitários, a partilha de experiências de vida, possibilitando que as dificuldades vivenciadas possam ser compartilhadas, bem como as estratégias de superação que foram desenvolvidas. Considera que qualquer pessoa, independentemente da sua condição social, econômica e cultural, possui recursos e saberes úteis a si e aos outros14 .

A TCI é um recurso que promove a formação de redes sociais solidárias de apoio para lidar com o sofrimento e mobilizar os recursos e as competências das pessoas nos níveis individual, familiar e comunitário15 .

A TCI favorece o estabelecimento de uma relação de cuidado e de acolhimento entre as pessoas, na medida em que elas podem se relacionar num contexto de ajuda mútua, num espaço que assegura a fala e a escuta respeitosa. A TCI não é uma terapia individual em um espaço coletivo, e sim um espaço de acolhimento comunitário do sofrimento apresentado por um indivíduo e escolhido pelo grupo16 .

A essência dessa abordagem terapêutica está presente na etimologia das palavras terapia, comunidade e integrativa. Terapia, do grego therapeia, significa acolher, ser caloroso, servir. Nesse sentido, a TCI é um espaço de acolhimento, de cuidado e atenção para com o outro; e neste caso quem é terapêutico é a comunidade. É ela que acolhe de maneira calorosa. Comunidade tem como um de seus sentidos o que há de comum entre as pessoas, suas questões afins: desemprego, abuso de drogas, exclusão...; e integrativa refere-se à integração de saberes e culturas que ampliem e reforcem as redes solidárias de promoção da saúde e da cidadania14 .

Os objetivos da terapia comunitária integrativa são:

• reforçar a autoestima individual e coletiva; • valorizar o papel da família e da rede de relações que ela estabelece com seu meio; • suscitar, em cada pessoa, família ou grupo social seu sentimento de união e identificação com seus valores culturais; • promover e valorizar as instituições e práticas culturais tradicionais que são detentoras do saber fazer e guardiãs da identidade cultural; • estimular a participação como requisito fundamental para dinamizar as relações sociais, promovendo a conscientização e estimulando o grupo, por meio do diálogo e da reflexão, a tomar iniciativas e ser agente de sua transformação; • contribuir com o indivíduo, família e rede de relações para que possam descobrir seus valores, suas potencialidades, favorecendo sua autonomia; • favorecer o desenvolvimento comunitário, prevenindo e combatendo as situações de exclusão dos indivíduos e das famílias por meio da restauração e fortalecimento dos vínculos sociais e de encaminhamentos socioeconômico-educacionais; • tornar possível a comunicação entre as diferentes formas de “saber popular” e “saber científico”; • intervir nos determinantes sociais da saúde, em especial na redução do estresse e ampliação do apoio social; • criar espaços de partilha dos sofrimentos, digerindo uma ansiedade paralisante que traz riscos para a saúde dessas populações; e • promover a saúde em espaços coletivos.

Bases teóricas da TCI

A TCI possui cinco bases teóricas que a alicerçam: pensamento sistêmico, teoria da comunicação, antropologia cultural, resiliência e pedagogia de Paulo Freire14 .

Na TCI, o pensamento sistêmico possibilita compreender o indivíduo e a comunidade numa rede de relações e, com isso, a ampliação do foco ao incluir o contexto e sua dinamicidade. Conscientes da rede em que estamos inseridos, compreendendo a relação de interdependência que existe entre as várias partes desse todo, fica mais fácil compreender os mecanismos de autorregulação, proteção e crescimento, dos quais somos todos corresponsáveis14 .

A TCI tem na teoria da comunicação humana outra base teórica, por meio da qual se compreende que os comportamentos, individuais e/ou coletivos, os atos verbais e não verbais têm valor de comunicação com múltiplas possibilidades de significados e sentidos17 .

Pela comunicação, a troca de experiências e a formação de vínculos podem ocorrer e, com isso, favorecer a criação e o fortalecimento das redes sociais de apoio. Na TCI, a comunicação é um dos elementos essenciais, pois a base do encontro é a comunicação estabelecida entre as pessoas, o que oportuniza àqueles que expuseram suas vivências de sofrimento e/ou de superação vislumbrar novas leituras e posturas diante de sua experiência18 . A valorização da cultura configura-se como um dos elementos estruturantes da TCI e, para tanto, baseia-se na ciência da antropologia cultural. Para essa ciência, as pessoas são resultantes de suas crenças, costumes, mitos, valores, rituais, religião, língua e do que fazem a partir de sua história de vida. Há um referencial histórico e sociocultural na construção da identidade individual e coletiva. A partir da cultura desenvolvem-se habilidades e competências para pensar, avaliar, discernir valores e fazer opções no cotidiano. Com base

na identidade individual e coletiva, as pessoas podem se afirmar, se aceitar, assumir uma identidade como cidadãos, romper com relações de dominação e exclusão social pautadas em culturas que desvalorizam outras. A diversidade cultural é rica de fonte de saberes, sendo um recurso a ser reconhecido, valorizado e mobilizado na busca de resolução de problemas coerentes com as necessidades e realidades culturais das comunidades19 .

A resiliência é outro importante conceito na compreensão teórica da TCI. Na Física, esse conceito é utilizado para descrever materiais que se dilatam e contraem a depender das condições ambientais, em especial da temperatura. Ao transpor esse conceito para as ciências humanas, a resiliência é associada à capacidade de superação de adversidades, relacionada ao aprendizado de repertórios no contexto individual ou coletivo para lidar com situações adversas20 .

A TCI tem, igualmente, como referência a pedagogia de Paulo Freire, na medida em que reconhece as contribuições da experiência de vida para o processo educativo. A TCI e a pedagogia de Paulo Freire partilham de princípios comuns, como a autonomia das pessoas, a horizontalidade do saber, a educação como prática libertadora e a incompletude do ser humano. Como autônomas, as pessoas são autoras de suas histórias e detêm a capacidade de reconduzi-las, ou seja, de escrevê-las e reescrevê-las, inclusive numa perspectiva emancipatória. A horizontalidade do saber reconhece, valida e valoriza os saberes que cada um possui e desenvolve ao longo de sua vida21. A qualidade libertadora da prática educativa refere-se ao apropriar-se da própria experiência de vida, numa perspectiva de autoconhecimento e postura proativa, com escolhas e posicionamentos e não como vítimas das circunstâncias.

A TCI e o método de abordagem

A prática da TCI é realizada num encontro em que as pessoas se acomodam numa configuração de roda. Trata-se de um encontro coordenado por um terapeuta comunitário e um coterapeuta, pessoas habilitadas por uma formação específica em TCI para desempenhar essa função, que ficarão responsáveis por conduzir ou facilitar o encontro22 .

Uma roda de TCI tem característica de um ritual e possui um ciclo que inicia e termina em si, em cada encontro. A TCI possui uma metodologia bem-definida, sendo conduzida em etapas e seguindo regras de convivência que possibilitam que o encontro ocorra de forma respeitosa e com seu potencial promotor de saúde e fomentador de redes sociais solidárias otimizado. As etapas de uma roda de TCI são: acolhimento, escolha do tema, contextualização, problematização, ritual de conotação positiva e avaliação13,14,23 .

No acolhimento, os terapeutas buscam contribuir para que todos os participantes estejam bem-acomodados, sentados em círculo, de modo que seja possível uma escuta respeitosa e mais entrosamento do grupo. Nessa etapa, o coterapeuta explica o que é a TCI, apresenta as regras, comemoram-se os aniversários e as datas importantes para os participantes13,14,23 .

As regras na TCI são estabelecidas para que haja um ambiente de cuidado mútuo. São quatro as regras básicas: uma pessoa fala por vez e as demais devem escutar com atenção; deve-se falar na primeira pessoa do singular (eu) e a partir da própria experiência de vida; não são permitidos aconselhamentos e discursos, sermões ou julgamentos; e podem ser propostos recursos culturais durante os encontros, tais como músicas, poesias, ditados populares relacionados ao tema abordado13,14,23 .

Após o acolhimento, tem-se o momento da escolha do tema, quando os participantes

apresentam algo que esteja gerando sofrimento ou outro assunto que queiram compartilhar, e o tema é democraticamente escolhido. Em seguida, o proponente do tema expõe sua vivência com mais detalhamento e o grupo pode fazer-lhe perguntas que contribuam para ampliar sua compreensão. Essa etapa é chamada de contextualização13,14,23 . A contextualização finaliza no momento em que o terapeuta agradece ao protagonista por apresentar seu sofrimento e o solicita para ficar em silêncio escutando o que será partilhado nessa próxima etapa. Nesse momento o terapeuta apresenta ao grupo uma questão gerada com o aprofundamento do tema escolhido. A pergunta básica é “quem já viveu uma situação parecida e o que fez para superá-la?”. Nessa etapa da problematização, os participantes falam de suas vivências relacionadas ao tema do encontro13,14,23 .

A etapa seguinte constitui-se do momento em que os participantes compartilham os aprendizados pela participação na roda, a partir da escuta das histórias de vida. É a etapa da conotação positiva. Após a conotação positiva, o grupo se despede e os terapeutas fazem a avaliação da terapia13,14,23 .

Pelo exposto, viu-se que a realização das etapas da TCI possui uma simplicidade inerente à proposta inclusiva da mesma. Todavia, cabe ressaltar que a descrição da TCI não abarca o quão impactante, acolhedora e terapêutica é a abordagem24. Ao final do capítulo apresenta-se uma roda de terapia comunitária integrativa a fim de facilitar a compreensão das etapas apresentadas. A simplicidade, um dos méritos da TCI, não pode ser compreendida como simplista. A TCI possui arcabouço teórico e requer conhecimentos para a prática e manejo de grupos. O terapeuta irá facilitar o encontro e cabe a ele estruturar a condução do encontro, pressupondo que o terapeuta tenha sensibilidade para a escuta e atenção para com todos os participantes. A TCI não é um modelo para uso indiscriminado, sendo necessárias a capacitação e a supervisão para a sua execução16 .

A formação de terapeutas comunitários para aplicar a TCI

As formações em TCI no Brasil são realizadas pelos 35 polos de formação em terapia comunitária integrativa existentes no país. Os polos de formação são pessoas jurídicas, organizações não governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), empresas privadas, órgãos públicos federais, estaduais ou municipais. Possuem corpo docente especializado para o desenvolvimento de capacitações e intervisões em terapia comunitária integrativa e estão vinculados à Associação Brasileira de Terapia Comunitária25 . Para fazer a formação em TCI, é necessário estar de acordo com um perfil. Os critérios de seleção para a formação em TCI são18:

• Idade acima de 21 anos; • ser escolhido dentro de sua área de abrangência territorial ou institucional; • ter conhecimento sobre a rede de apoio de sua comunidade; • ter interesse e disposição para trabalho em equipe; • ser alguém engajado em trabalhos comunitários; • estar consciente de que o trabalho realizado não traz alguma remuneração financeira; • ter disponibilidade mental/emocional para participar de práticas vivenciais durante o curso; • disponibilidade para participar das aulas do curso, conforme o formato de desenvolvimento da programação; e

O curso de formação em terapia comunitária integrativa é organizado em turmas, as quais podem ser particulares, ou seja, custeadas diretamente pelos próprios alunos ou financiadas pelo poder público ou pela iniciativa privada13 .

O curso em TCI possui carga horária mínima de 240 horas/aula, assim distribuídas13: 80h/a de intervisão ao longo da formação; 100h/a teórico-vivenciais (50h/a para teoria, 50h/a para vivências terapêuticas); e 60h/a de estágio prático, correspondendo à condução de 30 rodas de TCI (2h/a para a roda e apreciação).

As intervisões são realizadas com um grupo de cursistas e uma dupla de terapeutas mais experientes. São momentos de encontro entre formadores em TCI e os cursistas para esclarecimento de dúvidas e trocas de experiências entre os terapeutas em formação. A terminologia intervisão assinala uma diferenciação da supervisão tradicional, haja vista que constitui uma busca de horizontalidade pela escuta e respeito ao saber do outro. Nos encontros, busca-se criar uma rede de ajuda mútua entre os cursistas, aprofundar conteúdos teóricos de necessidade do grupo e ser um espaço de cuidar de quem cuida13 . Os alunos que cumprem com todas as exigências recebem certificação de curso de extensão universitária pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará ou pelo polo formador13 .

Terapeuta comunitário

O principal aspecto do perfil do terapeuta comunitário é ser alguém envolvido e comprometido com a comunidade, não sendo requerida educação formal, o que permite, inclusive, que pessoas com baixa escolaridade façam a formação14,18 .

A função do terapeuta comunitário não é resolver problemas, e sim favorecer o diálogo respeitoso e a criação de uma rede social de apoio pela valorização do saber produzido pela experiência de vida. Cabe ao terapeuta estimular questionamentos, discussões para que o grupo seja um agente terapêutico14 .

Os valores da TCI

A TCI, embora tenha esboço definido com eixos teóricos, é muito mais uma postura do que uma técnica a ser aplicada. Na formação em TCI, prioriza-se o trabalho exaustivo das histórias de vida de cada um, para que os cursistas possam incorporar os valores indispensáveis para quem quer ser terapeuta comunitário. A TCI é um espaço de desenvolvimento emocional para o próprio terapeuta. • Ser acolhedor: o terapeuta comunitário é um agente de acolhimento na comunidade e isso requer alguém que saiba se acolher, aceitar-se como é, estar aberto às diferenças, aos valores tradicionais e modernos e estar atento à linguagem corporal e às emoções de cada um. Cabe ao terapeuta ser uma presença acolhedora, autêntica, simples e disponível. • Ser simples: resgatar a simplicidade de linguagem e de postura e se livrar do lugar do especialista que sabe, para aceitar aprender com o outro. A simplicidade permite abandonar a postura de poder sobre os outros para poder ser com os outros, permite resgatar o essencial. É preciso o reencontro com a criança interior que há em cada um, esse mestre interno, resgatar a sabedoria tradicional dos antepassados. • Valorizar as emoções: as emoções são o ponto de partida para a construção das iden-

tificações que vão tecer as redes de apoio social. Trata-se de identificar, nomear a sensação presente no corpo. Uma vez que essas sensações são identificadas, elas podem ser pensadas, gerando consciência e possibilitando as mudanças. É pelas emoções que as pessoas se unem, descobrem que são iguais e vivenciam sua humanidade independentemente das diferenças. • Ser ousado: na TCI o animador pode falar também de seus sofrimentos. Para chegar lá deve se permitir falar em público e ser ele mesmo, sabendo que a TCI é um espaço de acolhimento e não julgamento. A responsabilidade do animador/facilitador é garantir um ambiente acolhedor que deixe as pessoas à vontade para se permitirem desvelar o que estava silenciado. • Gerar dúvidas nas certezas: toda certeza é uma prisão. Compete ao terapeuta comunitário, por meio de perguntas, semear a dúvida na certeza, perguntas que abram perspectivas das diferentes opções de encarar a realidade. O terapeuta comunitário deve se esforçar para ser um especialista em fazer perguntas que geram dúvidas, num clima de confiança e serenidade. • A horizontalidade: a experiência de uma pessoa não é mais importante do que a de outra, é apenas diferente. Não existe um saber superior ao do outro, mas um saber a compartilhar, pois todos são aprendizes. O que existe é um saber coletivo. A horizontalidade remete ao valor humildade. É ter consciência de suas competências e de seus limites, aceitando a competência dos outros como complementares. •Ver o outro como um recurso: o outro, por sua singularidade, é propulsor de mudanças, de crescimento e de resiliência. A fim de que cada um possa se beneficiar dos recursos de todos, é fundamental acolher as diferenças.

A TCI na atenção ao uso de drogas

A TCI é uma abordagem que amplia a rede de recursos comunitários por meio de ações de prevenção e promoção da saúde, em encontros nos quais são disponibilizados às comunidades espaços de partilha de sofrimentos e superações dos desafios do cotidiano, o que lhes possibilita encontrar alternativas para lidarem com os problemas relacionados ao uso de drogas26 .

Outro destaque para a TCI está em seu caráter inclusivo. De maneira geral, as rodas de terapia comunitária integrativa estão disponíveis para as populações com baixo poder aquisitivo e em contextos vulneráveis ao uso de drogas. Nas rodas, as questões relacionadas ao uso de drogas podem ser compreendidas e trabalhadas no contexto da vida das pessoas, contemplando as dimensões emocionais, sociais, econômicas e políticas. Na comunidade, essas dimensões estão entrelaçadas e são trabalhadas no coletivo, podendo beneficiar o indivíduo e a coletividade27 .

Os benefícios obtidos pela participação em grupo de apoio comunitário como a TCI em relação ao uso de drogas estão, sobremaneira, na possibilidade de as pessoas refletirem e ampliarem seu conhecimento sobre si mesmas, suas dificuldades e potencialidades, bem como dos recursos comunitários que dispõem em diferentes dimensões da vida, como no trabalho, na família, na comunidade, entre os amigos e consigo mesmas27 .

Nas rodas de TCI, são acolhidos usuários, não usuários, familiares, dependentes e não dependentes, o que torna o âmbito rico em possibilidades de trocas de experiências de vida e, consequentemente, de apoio social para a prevenção, apoio ao tratamento e reinserção social, pois disponibiliza aos usuários e famílias espaço para a criação de vínculos positivos e para encaminhamentos26 .

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