Revista Jornalismo e Cidadania Ed. 41

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1
e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | nº 41 | Março e Abril | 2021 JORNALISMO E CIDADANIA
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha

Professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas Doutor em Comunicação

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho Mestre em Comunicação / Mestre em Comunicação

Alunos Voluntários |

Júlia Monteiro Cardouzo

Thomaz Antonio Costa e Alvim Matheus Henrique dos Santos Ramos

Colaboradores |

Alfredo Vizeu

Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto

Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Anabela Gradim

Universidade da Beira Interior - Portugal

Ada Cristina Machado Silveira

Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho

Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

João Carlos Correia

Universidade da Beira Interior - Portugal

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

Ana Célia de Sá

Jornalista Doutoranda do PPGCOM/UFPE

Alexandre Zarate Maciel

Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFPE

Índice

Editorial | p.3

Milícias e Guerra Fria | p.4

Edward Said, o Racismo nos Estados Unidos e o caso Brasileiro | p.6

A Antropofagia como proposta anticolonial | p.8

Jornalismo e transmidiação | p.10

Princípios e movimentos determinantes da epidemia | p.12

Sem índios, sem floresta. E agora? | p.14

Livro-reportagem como TCC: para começar, muita leitura | p.16

Tratamento do Esgoto Urbano: soluções contextualizadas | p.18

A última grande revolução social do Século XIX | p.20

Desacoplamento e Nacionalismo: Caminho de uma Nova Guerra Fria? | p.22

Bolivia: the right continues to threaten democracy | p.24

Bolsonarismo, Ideologia, Psicologia, Política e temas afins | p.26

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Editorial

Por Heitor Rocha

Foram necessárias mais de 400 mil mortes de brasileiros para que a consciência nacional assumisse o seu direito de questionar a responsabilidade das autoridades na tragédia que vem se constituindo a pandemia da Covid 19 para a sociedade brasileira. Neste sentido, podemos saudar como motivo de esperança a iniciativa da Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as ações e omissões dos governantes diante da ameaça da Covid 19, o que parecia, até há pouco tempo, inimaginável, diante do espetáculo macabro cotidiano da besta líder da barbárie estimulando o povo à desobediência das medidas de prevenção contra a contaminação do vírus com aglomerações, negligência com o uso de máscaras, menosprezo e descrença pelas vacinas e falta de contratação de imunizantes, o que retardou o início da vacinação, como se estivesse acima da lei, como um monarca absolutista medieval. Assim, a CPI pode resgatar a plenitude republicana, exigindo dos representantes respeito pelos representados.

Desde o golpe de 2016, com a cumplicidade da grande mídia, foi implantado um regime de submissão acelerada do país aos interesses do capital financeiro, especialmente internacional, com um calendário de “reformas” conservadoras para ampliar a acumulação da riqueza dos donos do dinheiro, ao tempo em que era precarizado o trabalho e se expoliava o poder aquisitivo da esmagadora maioria da sociedade. Estatísticas recentes dão conta que cerca de 60% da população brasileira sofre “insegurança alimentar”. O que quer dizer isso? Senão que mais da metade dos brasileiros está passando FOME! Uma palavra muito agressiva que o véu da ideologia do “homem cordial”, insensível ao sofrimento desse contingente de seres humanos, classifica como desagradável.

Dada a condição crescentemente majoritária de pessoas na condição de vítimas dessa fome que vem se generalizando, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, recentemente, advertiu que esse não é um fenômeno natural, como a decorrente da má colheita na economia medieval, pois é a fome que é produzida pelo sistema econômico, que nega às pessoas o direito de comer. Por isso, advertiu: “Digo para os meus amigos do mercado financeiro: ‘Olha, vocês tomem cuidado porque da próxima vez a guilhotina não vai ser no rei, não. Vai ser no reinado do mercado financeiro. É o que está aparecendo no mundo inteiro: a disfuncionalidade, a crueldade do mercado financeiro”.

Para Belluzzo, essa situação é insustentável, com a

valorização da riqueza financeira enquanto a economia da produção e do emprego é encolhida devido a disfunção existente nos mercados financeiros. E reportou-se aos sites acadêmicos onde há uma crítica recorrente à financeirização, para diagnosticar que essa não é já anomalia do capitalismo, mas um problema que evidencia “o déficit de ação política das classes que deveriam estar incumbidas de enfrentar esse problema. Brasil não tem elite, só ricos primitivos”.

Atualmente, o economista vê o Brasil na contramão do mundo, pois, nos EUA, Biden vem realizando uma rápida campanha de vacinação em massa, ao mesmo tempo em que está tocando dois programas: um programa de sustentação da renda das famílias, de 1,9 trilhão de dólares; e outro de dois trilhões de dólares para investimento em infraestrutura, ciência, tecnologia, na reconstrução da infraestrutura norte-americana. O economista também destacou que, como em outros países do primeiro mundo, os EUA estão discutindo o aumento dos impostos sobre os ganhos de capital e das grandes fortunas; o que não vem sendo admitido no Brasil.

Outra novidade positiva é a decisão do Senado de quebrar as patentes das vacinas contra a Covid, que vêm possibilitando às empresas farmacêuticas bilhões de lucro com a doença. Segundo o professor e pesquisador Leonardo Foletto, “isso se deve em grande parte a um sistema, perverso em sua origem, que concentra a capacidade de produção na mão de poucos – sejam empresas ou Estados – o que intensifica e produz novas desigualdades na distribuição e consumo desses produtos”. O professor salienta ainda que a indústria farmacêutica recebe subsídios governamentais para desenvolver medicamentos e, em seguida, obtém lucros exorbitantes especulando sobre a vida e a morte das pessoas, em detrimento dos países pobres do terceiro mundo.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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Milícias e Guerra Fria

Há duas décadas, o deputado Bolsonaro acreditava que só uma guerra civil salvaria o Brasil. O agora presidente Bolsonaro, apesar de todos os seus esforços, não conseguiu ainda realizar esse capítulo do seu programa político. Ou antes, desse capítulo realizou apenas o que diz respeito às vítimas, às mortes dos civis, mais de 380 mil até o momento, a segunda maior catástrofe da história do Brasil, depois da escravatura. Nessa guerra, até agora, ninguém gritou “vitória”, ou, pelo menos, não publicamente: ignora-se o que um grupo seleto de empresários paulistas comemorou num recente jantar de apoio ao presidente.

De certa forma, é possível entender o presidente. Se, desde 1889, os militares brasileiros já levaram a cabo seis intervenções e tiveram, na maioria das ocasiões, de devolver o poder aos civis, é porque essas intervenções militares não resultam. Num dos seus rasgos estratégicos, o presidente considerou, então, que talvez uma guerra civil funcionasse.

Bolsonaro foi eleito na sequência da destituição da presidente Dilma Rousseff, devido a um conluio de que não se conhece ainda o cérebro: os candidatos — Sérgio Moro; Eduardo Cunha; um dos vários juízes do Supremo Tribunal Federal; o General Villas-Boas; ou mesmo a ex-embaixatriz dos EUA no Brasil Liliana Ayade (cuja presença como embaixatriz no Paraguai foi marcada por um golpe com um ar de família) — não parecem reunir as qualidades do “mandante”.

Apesar do fraco desempenho dos militares no governo do país, logo que eleito Bolsonaro solicitou-os para ocuparem os principais postos do seu governo. Não foi preciso insistir. Em curto espaço de tempo, entre 6 e 10 mil militares (os números não puderam ainda ser confirmados) ocuparam os principais cargos executivos do novo governo. Consumava-se, assim, a 7ª intervenção dos militares na história republicana do Brasil.

Com efeito, desde a carnificina que foi a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros foram à escola: primeiro, prussiana; depois, francesa; e, finalmente, americana. E convenceram-se de que os civis brasileiros são incapazes de governar o país. Era isso, pelo menos, o que lhes ensinava a doutrina que passaram a envergar, a que chamaram de “Segurança e desenvolvimento”, chegando, com isso, a enganar

alguns intelectuais.

Segurança significava, na realidade, apesar de alguns arrufos, logo debelados, subordinação à estratégia militar americana. Desenvolvimento significava entregar ao grande capital internacional a direção do potencial econômico brasileiro. Direção econômica que, quando caía nas mãos dos militares, significava inflação à la venezuelana, e favelas a perder de vista.

Mas, para os militares, ser incapaz de governar o país, entregá-lo aos civis, significava não conseguir evitar a invasão do país pelos russos ou cubanos, uma hipótese em voga no período da Guerra Fria; lutar contra certos tipos de corrupção e desagradar ao chamado capital nacional, estreitamente associado ao capitalismo internacional, até desaparecer por completo, como é praticamente o caso hoje.

O país voltava, assim, à estaca zero ou, como afirma o presidente: antes de construir, é preciso destruir; como se, para isso, fosse necessário ser eleito pelo povo, interessado em manter os poucos serviços que o Estado lhe presta. Obviamente, para destruir, basta montar umas milícias.

Devemos, em consequência, concluir que os militares, que, agora, querem se livrar do capitão sem se livrar do poder do capitão, mas que são incapazes de vencer uma eleição, acabarão, mais tarde ou mais cedo, por voltar às casernas. Só assim o país retomará a continuidade democrática, que não pode persistir enquanto o pesadelo da tutela militar pesar sobre ele, remetendo-o regularmente aos mesmos problemas desde a declaração da República. Qual seja o fosso social resultante de uma abolição da escravatura esbulhada, a integração dos descendentes dos escravos na cidadania, por menos que isso seja do gosto dos europeus que vieram apressadamente tomar o lugar dos negros na força de trabalho, ao longo do século XIX e parte do século XX, para “branquear o país”.

Garantes do imobilismo, os militares fazem parte do problema e não da solução. Se temos de 6 a 10 mil militares em funções de governo, é legítimo que se pergunte de onde saiu toda essa gente e que função exercia nas suas Armas. Ignora-se a existência de uma corporação de um país democrático que possa dispensar, em poucos meses, tal número de funcionários superiores para atuar em outros ser-

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Essa questão nos leva a perguntar se não seria a ociosidade um dos motivos para que os militares, desocupados, elucubrem e concluam que podem ser úteis ao país em outras funções. Os militares que enveredaram por carreiras no Executivo deveriam fazer esse exame de consciência a fim de que não se suspeite que eles se foram para o Executivo por interesse, a fim de gozar de mais regalias, as regalias que dizem querer eliminar.

Esse problema da existência de um quadro pletórico de oficiais superiores em países que saem de guerras é comum. É o caso de Portugal. Mas não é o caso do Brasil, que não conhece, felizmente, uma guerra há décadas. Em 2019, segundo o Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), o Brasil era o 11º país em valor de despesas militares, superando Israel ou a Turquia, países com problemas de segurança de outro calibre.

Ora este esse governo está empenhado em diminuir o peso do Estado. É comum em países empenhados em ações militares em várias frentes, como a França, que as Forças Armadas sofram cortes no orçamento ou privatizem parte dos seus serviços. Hoje, na França, não é raro que oficiais de carreira em funções administrativas respondam a civis concursados, reconhecidos pela sua competência em áreas específicas.

O corte no pessoal e a “terceirização de serviços” já ocorre em muitas empresas privadas e estatais brasileiras, com o incentivo do governo. Por que não poderiam essas estratégias ser testadas nas Forças Armadas, para mais se existe capacidade ociosa? As Forças Armadas poderiam, então, se ocupar estritamente das funções de defesa do território, por mais que convênios celebrados recentemente com os EUA prevejam que elas se ocupem prioritariamente da “segurança interna”. Evitariam também assistir ao espetáculo de um general da ativa incapaz de qualquer iniciativa e defesa da população diante de um inimigo impiedoso, como foi o caso em Manaus.

Alguns setores das Forças Armadas brasileiras parecem mentalmente paralisados nos tempos do Marechal Rondon. Mas o Brasil não é mais uma colônia remota, que heróis fardados tenham de “desbravar”. As competências exigidas hoje são outras, por mais que os generais de pijama do Clube Militar do Rio protestem, entre uma caipirinha e um chazinho. Hoje se necessita de gente com formação adequada e, se possível, com compromisso com a população local, e não com as suas carreiras ou ideologias caducas. Afinal até Jair Bolsonaro teve de sair do Exército para chegar a presidente.

Para salvar os brasileiros da pandemia que está devastando o país, para tornar o Brasil presente na

política mundial, com o seu peso evidente na questão do desmatamento e na questão climática, da gestão da água, da energia e da alimentação mundiais, é necessário evitar que o paradigma da democracia brasileira seja um eterno reencontro com os mesmos problemas do passado. Para que uma corporação pretenda reformar um país, é necessário que dê provas de que pode reformar a si mesma, no respeito à Constituição.

Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

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viços.

Edward Said, o Racismo nos Estados Unidos e o caso Brasileiro

Estava eu a reler um livro de um autor que me é muito caro, o palestino Edward Said (1935/2003), Cultura e Política, quando me deparei com um de seus curtos ensaios, “Reflexões sobre a Injustiça Americana”. Said, para quem não é do campo das ciências sociais, foi enviado pelos pais para estudar nos EUA em 1951, e fez seus estudos em duas prestigiosas universidades norte-americanas, Princeton e Harvard, esta última onde concluiu seu doutorado. A partir de 1963 foi contratado pela Universidade de Columbia, onde lecionou inglês e literatura comparada. Sua obra mais importante é Orientalismo, publicada em 1978 e traduzida em 36 línguas, considerada como um dos textos fundadores dos estudos pós-coloniais.

Pois bem, nas reflexões sobre a injustiça americana, Said trata dos negros americanos, que constituem vinte por cento da população americana. Com seu olhar aguçado, ele observa que, até os anos 1970, nenhum programa de literatura e história jamais deu a menor atenção à cultura negra, à escravidão ou às realizações dos negros. Mais ainda, Said fala de um ilustre professor de literatura em Harvard que afirmava: “Não há literatura negra”. E Said complementa: “Não havia estudantes negros quando estudei em Princeton e Harvard, nenhum professor negro”.

O parágrafo a seguir sintetiza a reflexão do pensador palestino: “Como um movimento vivo à injustiça americana, portanto, temos os números inflexíveis do sofrimento social norte-americano. Em termos relativos, e às vezes, mesmo absolutos, é de afro-americanos o maior número de desempregados, o maior número de evasões escolares, o maior número de sem teto, o maior número de analfabetos, o maior número de viciados em drogas”. Falta aqui espaço para trazer a reflexão por inteiro de Said e encaminho o leitor para o livro.

Foi lendo este livro o que me motivou a olhar para o caso brasileiro, para fazer breves considerações sobre a situação dos negros brasileiros.

Racismo no Brasil - Conforme dados do Atlas da Violência 2020, apresentados no mês de agosto, o levantamento mostra que a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%. Ao todo, os negros somam 75,9% dos brasileiros assassinados na década analisada, ainda conforme os números mostrados.

Os estados que concentraram as maiores taxas de homicídios contra pessoas negras estão nas regiões Norte e Nordeste, com destaque para Roraima (87,5 mortos para cada 100 mil habitantes), seguido por Rio Grande do Norte (71,6), Ceará (69,5), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3). Segundo

Dennis Pacheco, a violência policial é um dos fatores para a disparidade entre os mortos negros ou não. “A ideia do negro perigoso é uma ideia que muitas vezes existe em várias polícias no Brasil. O uso da força diferenciada entre negros e não negros ainda existe muito”, ressalta.

Em 2018, os homicídios foram a principal causa das mortes da juventude masculina brasileira, representando 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos, 52,3% daqueles entre 20 e 24 anos e 43,7% dos que estão entre 25 e 29 anos. Os negros são 75,7% das vítimas de assassinatos no país. Com relação às mulheres, no mesmo ano, 4.519 mulheres foram mortas no Brasil, o que significa que uma mulher morreu assassinada a cada duas horas no país - 68% delas são negras. A taxa é praticamente o dobro na comparação com não negras.

Para Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a única saída para a disparidade racial é a implementação de políticas voltadas especificamente para a população negra (Gimenes,2020).

De acordo com o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, em 2018, a taxa de analfabetismo entre a população negra era de 9,1%, cerca de cinco pontos percentuais superior à da população branca, de 3,9%. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), o percentual de jovens negros fora da escola chega a 19%, enquanto a de jovens brancos é de 12,5%.

Pesquisa do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE, 2018) apontou que dentre os 10% da população brasileira com os menores rendimentos, 75,2% são pretos ou pardos, enquanto os brancos correspondem a 5,5% dessa parcela.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN (2016), pela primeira vez na história, a população prisional brasileira superou a margem de 700 mil pessoas com a liberdade restringida, algo que, em relação ao total registrado no início da década de 90, simboliza um crescimento de 700%, sendo 64% dessa população prisional composta por pessoas negras. É plausível entender que as práticas violentas de encarceramento da população negra são uma forma de controle pelas polícias.

Edinaldo César Santos Júnior, coordenador executivo do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN) e juiz do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE), a partir de dados de 2017 do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), afirmou: “Por que será? Por que são pobres? Por que a maioria dos pobres é negra?” E arremata: “O encarceramento tem cor” (Agência CNJ de Notícias, 2020).

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O aprisionamento de pessoas negras é fruto de um racismo enraizado na sociedade brasileira que, por sua vez, também se faria presente nas agências de controle social formal. Segundo Flauzina (2008), há um racismo fincado no sistema penal e seu ostensivo tem como propósito controlar a população negra. Um relatório realizado pela Rede de Observatórios de Segurança (RAMOS et al., 2020) registrou que 75% das pessoas mortas pela polícia são negras. (Mendes, Bandeira Heloisa Danielle, Mendes,2020, p.13); (RAMOS, Silvia et al.2020).

Nós poderíamos aqui reproduzir outras tantas matérias e estatísticas que implicam na depreciação e violência contra as populações negras e morenas do Brasil, seja no tocante à educação, ao número de mortes, ao aprisionamento destas populações no Brasil, mas remeto aqui a dois livros clássicos da sociologia brasileira que não deixaram a questão passar despercebida. Me refiro a Octavio Ianni e Florestan Fernandes. O primeiro nos diz: “Gostaria de reiterar que a história do mundo moderno é uma história da racialização do mundo. O que foi o mercantilismo? O que foi o colonialismo que se estabelece com os impérios português e espanhol? O que foi o imperialismo? E o que está sendo agora o globalismo com esses movimentos que estão ocorrendo em escala mundial? São diferentes ciclos da história do mundo moderno, do capitalismo e da racialização do mundo” (Ianni, 2004).

Já Florestan, com amplo estudo sobre os negros na cidade de São Paulo, no início do século XX, inicia assim o primeiro capítulo de seu “A integração do Negro na Sociedade de classes”, tratando da transição do sistema de trabalho escravo para o sistema de trabalho livre: “Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva” (Fernandes, 1964, p. 29).

As elites no Brasil deixaram ao abandono, não apenas os negros, mas os indígenas e os pobres, em sua maioria composta de negros. Portanto, não se pode compreender o período colonial e o capitalismo em formação e os dias atuais sem a presença do racismo, que são uma e só coisa, de uma só raiz.

REFERÊNCIAS

Agência CNJ de Notícias (2020) “O encarceramento tem cor, diz especialista” 9 de julho de 2020, https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/ Acesso em 03 de abril de 2021.

Fernandes, Florestan (1964), A integração do Negro na Sociedade de Classes. Rio de Janeiro: Globo.

Flauzina, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5117/1/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf. Acesso em: 3 abril de 2021.

Gimenes, Erick (2020), “Segundo estudo, taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%”. In: Brasil de Fato, 27 de agosto.

Ianni, Octávio (1978), Escravidão e Racismo, São Paulo: Hucitec.

Ianni, Octávio (2004), “O preconceito Racial no Brasil”. In: Revista Estudos Avançados, 18 (50).

Mendes, Bandeira Heloisa Danielle, Rebeca Kesia Filgueira de Araujo, Anielly Raianny da Silva Duarte, Ani Helen da Silva Alves, Elaine Cristina Diniz da Silva e Larissa Freire da Silva (2020) “Sistema carcerário e racismo: por que a maioria dos presidiários são negros?” Revista Brasileira de Direito e Gestão Pública v. 8/ n. 3 (2020) Julho/Setembro.

Observatório de Educação (2020). “Desigualdade racial na educação brasileira: um Guia completo para entender e combater essa realidade”.

RAMOS, Silvia et al. Racismo, motor da violência: um ano da Rede de Observatórios da Segurança. Rio de Janeiro: Anabela Paiva, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC), 2020. Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/07/Racismo-motor-da-violencia-1.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.

Said, Edward W. (2007), “Reflexões sobre a Injustiça Americana”. In: Cultura e Política. São Paulo: Boi Tempo,p.79.

Marcos Costa Lima é Professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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A Antropofagia como proposta anticolonial

Por Rômulo Santos de Almeida

Algumas ideias possuem um surpreendente potencial de reinvenção ao longo do tempo e, muitas vezes, emergem como fonte para novas reflexões críticas. Entre elas, está a Antropofagia. Tal ideia foi uma das expressões do inconformismo artístico do final da década de 1920, anos após a Semana de Arte Moderna de 1922, quando é publicado, em maio de 1928, o Manifesto Antropófago, de autoria do poeta e escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Com uma linguagem bem-humorada, irônica e sarcástica, o Manifesto criticava, entre outras coisas, o indianismo xenófobo, as práticas de vida enlatada e a subserviência cultural do país em relação à Europa. Ao contrário da maioria das concepções literárias e artísticas em voga no contexto social em que viveu, Oswald de Andrade propunha, mais diretamente, a importância da ingestão e digestão cultural como ferramentas necessárias à superação de todos os recalques históricos. Nesse sentido, a Antropofagia talvez tenha sido o laboratório intelectual e vanguardista que melhor expressou as contradições da cultura brasileira, ao considerar a nossa realidade periférica e o nosso componente de invenção e criação. A discussão a seguir visa, portanto, explorar a pertinência da metáfora antropofágica, identificando nela uma proposta anticolonial, interessada na devoração crítica do “outro”.

Mas, afinal, o que é Antropofagia? É um rito, um modo de pensar ou uma visão de mundo, cujo ato simboliza uma operação metafísica de transformação do tabu em totem, do valor oposto em valor favorável, cabendo ao antropófago totemizar o tabu. Entretanto, conforme observou Nascimento (2011), não é possível dar à Antropofagia um tratamento estritamente conceitual e nem é cabível considerá-la uma simples corrente dentro do Modernismo. Essas duas negativas incluem uma terceira: provavelmente, não houve, não há nem haverá uma única definição de Antropofagia. Na acepção de Oliven (2011), Schwartz (2011) e Soares (2010), a despeito das diferentes interpretações, a proposta antropofágica objetivava saber da existência de uma modernidade brasileira caracterizada por ingerir e digerir, alegre e intuitivamente, o que vem de fora, mas com um claro propósito anticolonial enredado nesse procedimento.

O ato de deglutir o inimigo adquire novo significado, pois já não se trata de saciar a fome, mas de incorporar os atributos do outro para fazer uma síntese capaz de gerar a superação e libertação do jugo externo. Deglutir significa, para Oswald de Andrade, a necessidade de conhecer a realidade brasileira, mas sem perfazer os mesmos caminhos civilizatórios de antes. A Antropofagia advoga a pertinência de uma realidade social a ser compreendida de dentro para fora, sem compactuar, porém, com as correntes viciadas na cópia e imitação dos modelos estrangeiros. O estrangeiro/outro não deve ser copiado, e sim deglutido. Sua deglutição torna-se uma condição fundamental para a criação, que sempre é mediada pela dialética entre o local e o cosmopolita. Com isso, o ponto crítico da Antropofagia é a reavaliação de nossa relação com esse “outro”, criticando o seu estereótipo de “civilizado” e exigindo o fim da dependência cultural, econômica, política e social. As consequências dessa proposta devem implicar na libertação das categorias epistemológicas ocidentais, cujos valores colonialistas foram desistoricizados e legitimados como universais (FIGUEIREDO, 2011; VERONA, 1996).

Todas as abordagens sistêmicas da realidade são consideradas formas de consciência enlatada, trazidas ao Brasil pelo processo de colonização, que iniciou a cadeia de importação cultural que nos mantém presos ou dependentes dos países colonizadores (MORAES, 1978). Soares (2010, p. 14) afirma que a Antropofagia é a “expressão poética da superação da contradição dos países dependentes: uma vez que o artista vive a tensão entre o envolvimento e o distanciamento, a adesão e a negação crítica, a inocência e a ironia, a deglutição e a incorporação”. Passa-se a questionar a estrutura econômica e cultural implantada pelo colonizador; a sociedade patriarcal; a imitação não digerida da metrópole colonizadora e o indianismo em sua feição ufanista e romântica. Desse modo, o antropófago surge na periferia do sistema para alimentar-se do colonizador e dar sua contribuição local à diversidade das culturas (ALMINO, 2011; HELENA, 1986). Além disso, o deglutir antropofágico é pautado por um princípio de não exclusão, descrito no início do Manifesto Antropófago da seguinte maneira:

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Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

“Tupy or not tupy?”, that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (ANDRADE, 2012, p. 497).

A curta passagem acima condensa o preceito que norteará a investigação de Oswald de Andrade, cujo código legal possui um único artigo: “só me interessa o que não é meu”. Ao procurar responder à questão básica sobre “o que nos une”, a Antropofagia indica que o que nos une é o outro. Por isso mesmo, na ótica antropofágica, a cultura brasileira não é insular e voltada unicamente para o solo nacional nem, por outro lado, deve se inserir de forma secundária numa civilização universal centrada na Europa. Ainda que o Manifesto fosse demasiado otimista quanto à capacidade de assimilação do estômago nacional, precisamos do outro para devorá-lo, regenerando o nosso próprio tecido e produzindo o novo. Não se é brasileiro por oposição ao cosmopolita, mas se é brasileiro porque cosmopolita (ALMINO, 2011). A união entre nós e o “outro” não significa, entretanto, ausência de conflitos, pois a sua deglutição nem sempre é pacífica, sendo a luta algo intrínseco ao trabalho de absorção de culturas alheias. Em razão disso, a Antropofagia exige que a consideremos como a síntese de momentos revolucionários anteriores. Vejamos o trecho abaixo:

[...] Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós, a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

[...] Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará (ANDRADE, 2012, p. 499).

A “idade de ouro” descrita por Oswald de Andrade corresponde ao que ele denominou de “Matriarcado de Pindorama”, isto é, uma sociedade contraposta ao patriarcado, baseada na propriedade comum do solo, no direito materno e na ausência de Estado e classes sociais. Foi com essa concepção que o autor buscou fundamentar não apenas a “origem”, mas as possibilidades do florescimento de uma nova civilização, que congregasse o melhor

do nosso “primitivismo” e o melhor aproveitamento da técnica moderna. A tese central do autor é a de que, ao longo do processo histórico, existiu, no mundo, duas formações sociais: o matriarcado e o patriarcado. A primeira se caracterizaria pela presença de uma “cultura antropofágica”, ou seja, a “idade de ouro” das primeiras experiências humanas. A segunda, por sua vez, possuiria uma “cultura messiânica”, forjada nas estruturas de poder da modernidade ocidental, que, ao entrar em crise, deveria ser substituída pelo retorno ao matriarcado, acrescido das conquistas tecnológicas. Não obstante os paradoxos da Antropofagia, Oswald de Andrade estava interessado no “que há de negatividade, de ruptura com o contínuo da história, de descentramento, no projeto utópico inspirado pela América como lugar da alteridade que abala certezas, sugerindo alternativas, provocando a imaginação alheia” (FIGUEIREDO, 2011, p. 391). Por tais motivos, a Antropofagia pode ser um instrumento crítico na defesa de uma proposta anticolonial, sobretudo com a ascensão de autoritarismos no Brasil e na América Latina.

Rômulo Santos de Almeida é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFPE), Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/ UFPE) e graduado em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Jornalismo e transmidiação

Por Ana Célia de Sá | Coluna Comunicação na Web

Estruturar a produção de conteúdo on-line de maneira múltipla, associativa e complementar tem sido uma tendência na atualidade, potencializando os recursos digitais e as relações humanas constituídas na rede, em harmonia com princípios de cooperação entre os partícipes. Um caminho interessante para a construção de produtos informativos mais completos, interativos e participativos é a transmidiação, por meio da qual várias plataformas midiáticas e seus respectivos textos contribuem distintamente para a formação do produto.

Neste modelo, as mídias interagem para ampliar e aprofundar o conhecimento sobre uma história, envolvendo o público com diferentes graus de usufruto, a depender do interesse de cada pessoa. “Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões” (JENKINS, 2009, p.

138). Ainda segundo esse autor, a transmidiação cria diversos pontos de acesso para renovação da experiência, mas sem obrigar o consumidor a ingressar em cada um deles para compreender e envolver-se com o produto.

Inicialmente utilizada no entretenimento, a transmidiação chega ao jornalismo com ganhos para a qualificação informativa no ambiente participativo do ciberespaço. Fruto da cultura da convergência e da sociedade da informação, esta narrativa apoia-se na formatação de produtos cujos conteúdos são fragmentados e expandidos em diferentes plataformas midiáticas, mantendo uma relação entre eles, com fruições e mensagens diversas, de acordo com o caminho escolhido pelo público. Esta estruturação diferencia-se do crossmedia, em que um mesmo conteúdo é ajustado tecnicamente e distribuído em meios distintos.

O jornalismo transmídia articula diferentes meios, linguagens e narrativas complementares sobre uma temática principal. Renó e Flores (2018) sugerem o modelo do fluxograma algo -

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rítmico circular rizomático como arquitetura do enunciado informativo especialmente para o gênero reportagem. O conjunto narrativo é composto por um texto base para contextualização e por outros fragmentos informativos relacionados e interligados cognitivamente pelo tema principal, com diferentes pontos de acesso para o público e formas de usufruto interativas, dinâmicas e personalizadas. Embora o produto possua um roteiro, a decisão sobre a navegabilidade fica a critério do usuário. Assim, é importante apresentar informações suficientes para que ele compreenda a narrativa mesmo sem acompanhá-la por inteiro.

A produção jornalística transmidiática também é caracterizada pelo uso de dispositivos de comunicação móveis, preferencialmente smartphones. Eles estão em sintonia com as ideias de mobilidade e instantaneidade, essenciais na comunicação contemporânea. No experimento desenvolvido por Renó e Flores (2018), todos os conteúdos (como textos escritos, fotos e vídeos) foram produzidos com aparelhos celulares de modo rápido, fácil e direto. Embora os equipamentos tenham limitações técnicas, eles possuem qualidade estética aceitável e trazem agilidade para o trabalho dos jornalistas, o que torna indispensável o uso deles nesta atividade.

Quanto à circulação do produto jornalístico transmídia na internet, as plataformas de redes sociais e a blogosfera são fundamentais, pois apresentam-se como espaços digitais de sociabilidade em que os usuários interagem com o conteúdo e passam-no adiante por meio de suas conexões pessoais, convidando seus contatos para a leitura. Desta forma, a quantidade de pessoas com acesso ao produto e o número de comentários sobre o assunto são ampliados, permitindo uma expansão coletiva do conteúdo (RENÓ; FLORES, 2018).

A experiência de Renó e Flores (2018) não define por completo o formato ou a linguagem do jornalismo transmídia. O quadro é evolutivo e segue os passos das mudanças culturais, técnicas e tecnológicas da sociedade, tendo como foco as vivências interativas e participativas entre produtor e público no ciberespaço. Esta premissa, na verdade, é válida para toda a produção jornalística na internet, desde a composição factual da notícia até as narrativas multi e transmidiáticas.

Em tempos de interatividade, participação, fluidez e liberdade na rede, o jornalismo atualiza ou mesmo reinventa seus modelos para manter o profissionalismo e a qualidade da notícia on-line, algo importante no enfrentamento da crescente indústria da desinformação, que põe

em risco o entendimento sobre a verdade intersubjetiva baseada em fatos. A transmidiação encaixa-se no contexto atual e surge como uma narrativa digital ativa, cujo produto é dinâmico e mais aberto à ação personalizada do público.

REFERÊNCIAS:

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução de Susana Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

RENÓ, Denis; FLORES, Jesús. Periodismo Transmedia. Nueva edición actualizada. Aveiro: Ria Editorial, 2018. [e-book]. Disponível em: <https://adobeindd.com/view/publications/5dabf7da-b24e-48cf-b56f-cc7378b4b701/kemm/publication-web-resources/pdf/Periodismo_Transmedia.pdf>. Acesso em: 08 set. 2019.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

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Princípios e movimentos determinantes da epidemia

Para desvendar a realidade contemporânea, convém recorrer a princípios que orientem o desafio de vislumbrar quais são os elementos determinantes da epidemia que a humanidade enfrenta desde 2020, e que se inscreve como uma das principais crises sanitárias da história.

PRINCÍPIOS

O “pensamento liberal” é portador do princípio que constitui a violência fundadora do sistema capitalista. Ele reserva ao mercado o papel de provedor exclusivo de todos os elementos fundamentais à vida humana.

O ‘princípio do mercado autorregulado” aprofunda tal concepção. Além de provedor, o mercado deve ter a prerrogativa exclusiva de estabelecer em que condições os elementos fundamentais à vida humana serão oferecidos.

Os referidos princípios organizaram o funcionamento da estrutura política, social e econômica no ocidente e foram elementos determinantes da Crise de 1929.

Uma época marcada por crise econômica, guerras mundiais e gripe espanhola levou a humanidade a buscar alternativas ao colapso conceitual e material observado no início do Século XX.

Entrou em cena o “princípio do socialismo”, com destaque para a Rússia em 1917, China em 1949 e Cuba em 1959, e também entrou em cena o “princípio do bem-estar social”, principalmente na Europa, após a II Guerra Mundial, e, como arremedo, no Brasil, na década de 1950.

A partir da década de 1970, o “pensamento liberal”, em uma versão rasa e radicalizada, em função da proeminência do capital financeiro, iniciou uma escalada e voltou a exercer o papel de pensamento dominante em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

O referido pensamento ganhou força no Brasil na década de 1990, adquirindo caráter dominante nos negócios, na política, na imprensa corporativa e na academia.

No Século XXI, após quatro décadas de orientação que combina o “pensamento liberal” com o ‘princípio do mercado autorregulado”, o mundo voltou a enfrentar uma crise econômica es -

trutural, em 2008.

Diferentemente do que ocorreu na primeira metade do Século XX, a Crise de 2008 não representou ameaça ao domínio do “princípio conservador liberal” nem interrompeu o “desmonte do Estado”, ou um arremedo dele, onde existia.

Foi dessa maneira que vários países se prepararam para recepcionar a epidemia, e é neles que a epidemia vem provocando maior número de óbitos e adoecimentos graves. As evidências sugerem ser possível classificar o “princípio conservador liberal” como um “princípio de extermínio”.

MOVIMENTOS

Em princípio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a hipótese de que a fase aguda da epidemia seria superada em 2021, e então o número de mortes e adoecimentos graves declinaria, mas uma combinação de elementos levou a Organização a abandonar tal hipótese:

- A vacinação não vem ocorrendo como desejada e necessária;

- A adoção de medidas de controle do contagio não vem acontecendo como desejada e necessária;

- O retardamento da vacinação e das medidas de controle do contágio favoreceu o surgimento de variantes de maior contágio e letalidade, que podem alterar a eficácia das vacinas;

- A capacidade instalada de produção de vacinas e de insumos necessários à produção de vacinas tem limites e cronograma de produção definidos, o que aponta para o “prognóstico de que não tem vacinas para todos”.

Agravam o quadro de falta e retardamento de acesso às vacinas os acordos entre países ricos e grandes corporações farmacêuticas, que estão levando países ricos a adquirir volume de vacinas até cinco vezes maior que o necessário, como é o caso dos Estados Unidos.

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Não é de hoje que podemos encontrar políticas de Relações internacionais bem definidas e antagônicas, e manifestações concretas que corroboram referidas políticas.

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Os Estados Unidos adotam o princípio de “Estados Unidos em primeiro lugar”, e sua política de aquisição de vacinas impede muitos países de ter acesso a elas.

Cuba e Venezuela adotam o princípio da “solidariedade e cooperação”, e constitui exemplo desse princípio o gesto da Venezuela de socorrer a população de Manaus com médicos e oxigênio, quando o sistema de saúde dessa cidade, recentemente, entrou em colapso.

A China adota o princípio da “cooperação com benefício mútuo”, e sua política de cooperação vem tendo importante papel no suprimento de insumos, no fornecimento de vacinas e na transferência de tecnologia que caracteriza uma política sanitária de escala mundial.

BRASIL

Embora a prerrogativa de definir, implantar e coordenar a política sanitária seja do Governo Federal, desde o golpe de 2016 e das eleições de 2018 o País vem sendo conduzido por uma “aliança conservadora liberal”, condução que tem o protagonismo dos atores principais da referida aliança:

- Detentores de Mandato;

- Ricos;

- Empresários;

- Forças Armadas;

- Imprensa Corporativa.

A parte mais visível dos movimentos da “aliança conservadora liberal” se expressa através do Estado, com destaque para a narrativa e as atitudes do presidente da República.

OS MOVIMENTOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA:

- Declara-se contra as medidas de controle do contágio e obstrui iniciativas dos governadores;

- Participa de aglomerações e não utiliza máscara;

- Recusa ofertas de vacinas e defende aquisição de imunizantes por empresas comerciais;

- Abandonou o Programa Nacional de Imunização (PNI);

- Apoia atitude do Ministério das Relações Exteriores de hostilizar a China, importante fonte de insumos e vacinas;

- Apoia atitude da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que retarda autorização de utilização de vacinas já autorizadas em outros países e pela própria OMS;

- Apoia a atitude do Ministério da Saúde, que não foi capaz de formular um Plano Nacional de Vacinação e um Plano Nacional de Suprimento

de Insumos Hospitalares. Sincronizando princípios e movimentos que promovem a epidemia, o Estado brasileiro se tornou uma ameaça ao povo brasileiro, à América Latina e ao mundo.

REFERÊNCIAS

- www.valor.com.br, 29/03/2021, pag. 6, Entrevista com Mariângela Simão, Diretora da OMS.

- 2000, Karl, Polanyi, A GRANDE TRANSFORMAÇÃO, As Origens da Nossa É poca.

- https://aterraeredonda.com.br/dois-anos-de-desgovern0-tres-vezes-destruicao/, Leda Maria Paulani.

Pedro Rafael Lapa é economista aposentado do Banco Central, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e foi diretor do Banco do Nordeste no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

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Sem índios, sem floresta. E agora?

Por Mônica de Lourdes Neves Santana

INTRODUÇÃO

Há muito sabemos que a apropriação da terra, em sua dimensão econômica e política, gera disputas, invejas e conflitos armados. Esse histórico se arrasta desde a época do sistema colonial, este, por sinal, um grande vetor da expansão comercial e militar europeia, que garantiu a ocupação, dominação e aquisição de grandes propriedades nas mãos dos senhores elitizados. Foi um confronto das forças internas e externas nas metrópoles, nas colônias, nos protetorados, nos entrepostos, nos enclaves e nas nações dependentes (IANNI, 2001, p. 29).

Subjacente ao interesse detentor do poder soberano, temos, na contramão, as minorias indígenas, marcadas por uma homogeneização cultural e religiosa, o que Rouland (2004) chama de fenômeno minoritário. Uma categoria que recebeu representações identitárias negativas e baseadas na dicotomia civilizado/selvagem, como a negação da humanidade, fazendo desses povos grupos invisíveis. Dito isso, apesar de oferecer um texto limitado, temos o objetivo de evidenciar o tratamento de respeito que os índios oferecem às questões ambientais, que são fundamentais em suas agendas, e, em seguida, elencar essas ações. Acreditamos ser importante entender essa relação benéfica que acontece ao longo dos anos para que possamos tomar medidas de aprendizado e amenizar os riscos que estão se acumulando. Assim, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, apesar de serem apenas 5% da população mundial (ONU 2019), os índios são gestores da floresta. O modo de vida desses povos pode nos ensinar como preservar, suprir e cultivar alimentos de maneira sustentável.

Em relação a essas minorias, os Estados nacionais pouco têm feito quanto às políticas e leis que combatam a exclusão e que tragam respostas aos males causados pelo avanço do poder do Estado. Convém ressaltar que, apesar da diversidade étnica e cultural, muitas vezes não reconhecida e silenciada, durante a construção dos direitos humanos, tais grupos foram locados à condição de figura jurídica da incapacidade civil, sendo necessária a tutela estatal a fim de protegê-los (PUÍG, 2006).

Segundo o Greenpeace (2019), existe uma pequena tribo denominada Karipunas, que habita o norte do Amapá, nas áreas de Galibi, Uaçá e Juminá, e, dentre eles, apenas oito resistiram e sobreviveram à aproxi-

mação com a sociedade urbana nos anos 70. Trocando em miúdos, foram quatro crianças e quatro adultos. E essa invasão continua! Os sobreviventes não conseguem mais colher castanhas. Já a tribo Awá foi devastada pelo programa Carajás, que, por sua vez, foi financiado pelo Banco Mundial. Um exemplo que serve de alerta. Sem índios, sem florestas e, então, quem irá cuidar de nossas matas? Segundo o advogado Oliveira (2011, p. 144), a aplicação dos direitos humanos dos indígenas deve levar em consideração a organização, o uso, as tradições e a natureza coletiva dos bens que formam seu patrimônio. Mas será que existe esse reconhecimento? E aí vem a pergunta que incomoda a muitos poderosos: O Brasil tem colocado em prática os compromissos que foram firmados internacionalmente? O Estado brasileiro tem protegido a Amazônia e seus legítimos moradores, os índios? Não é preciso pensar muito para termos as respostas.

O governo está cansado de saber que a Amazônia está sendo destruída, quase 20% já foi desmatada, e, em breve, a situação será irreversível, mas o governo mantém um discurso vazio (GREENPEACE, 2019). Difícil entender essa posição de alienação! O governo ignora alertas do Deter e elabora um pacote para regularizar as invasões de terras públicas. Para agravar o que já é grave, houve também a ampliação das invasões das terras indígenas bem como das áreas de proteção ambiental, com aumento expressivo da violência contra os povos indígenas. Todas as áreas que são desmatadas geram consequências em forma de cascata: desequilibram a disponibilidade de água doce, o clima, a alimentação e a vida.

Mediante esse cenário, a situação é tão grave que o governo brasileiro se mancou e criou um Grupo Interministerial para combater o desmatamento e identificar soluções para minimizar os efeitos. Enquanto a taxa de desmatamento cresce, a economia não. Os estados que lideraram o desmatamento no primeiro trimestre de 2020 foram o Mato Grosso, com 267,07 km², e o Pará, com 267,24 km², em destaque o município de Altamira (MENEGASI, 2020). Segundo o Jornal Nacional (2020), mais de 42.679 hectares foram destruídos em 2019, duas vezes o tamanho do Recife. Adicionado a isso, um estudo do Instituto Socioambiental concluiu que a destruição da Floresta Amazônica aumentou de forma a destruir 115 terras indígenas em 2019 (PRODES). Isso sem falar nos povos isolados, que vivem

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sem contato com a sociedade. O relatório vem acusando o governo de contribuir para o quadro emergencial, além de fragilizar as políticas de controle ambiental. Afetando-se as multas, aumenta-se o desmatamento e a violação dos direitos dos povos indígenas. O instituto também enfatiza a autorização do governo para mineração em terras indígenas (SILVA, 2018).

Enquanto isso, o lado bom é que pesquisas recentes mostram que os povos indígenas tiveram papel preponderante na biodiversidade encontrada na América do Sul, distribuída pelo cerrado, pelos pampas, pela Mata Atlântica, pela caatinga e pelo Pantanal. Exemplos disso são as castanheiras, a pupunha, o cacau, o babaçu, a mandioca e a araucária. Deveríamos aprender com os indígenas a desenvolver o manejo e utilizar os recursos sem danificar o ecossistema e ainda transformar o solo pobre em fértil. Eles são a chave para a conservação das florestas do mundo (RAYGORODETSKY, 2020).

Em um estudo sobre a natureza, o cientista Daniel Nepstad descreveu as terras indígenas como sendo o melhor obstáculo contra o desmatamento da Amazônia, e o diretor do Survival International Stephen Corry disse que os especialistas, até os mais céticos, finalmente reconhecem que defender os direitos dos povos indígenas em suas terras será a melhor maneira de garantir a preservação da floresta.

É da floresta que os índios obtêm o que precisam para sua vida, como o material para a caça, alimentos, remédios, utensílios. Não são ambiciosos, compartilham o habitat com outros animais e aprendem, desde cedo, o valor da terra, da mata. Os índios valorizam e respeitam a mãe terra mesmo não sendo ecologistas. Eles têm consciência da sua dependência. Na cultura local, a natureza representa o apoio da vida interligada.

Os povos indígenas estão ajudando nessa luta da seguinte forma: 1) as técnicas agrícolas adaptadas ao clima ajudam a evitar a erosão; 2) conservam e restauram os recursos naturais: no caso da Amazônia, o ecossistema melhora com a presença deles; 3) os alimentos podem expandir as nossas dietas; 4) supervisionam a biodiversidade. Como vivem de forma sustentável, eles ajudam a preservar a biodiversidade de plantas e animais.

Finalmente, o que quero chamar atenção neste artigo é que vivemos um momento dramático na história do Brasil, que necessita de boa vontade política. O capitalismo em que vivemos gera o individualismo e a cegueira sobre a catástrofe avisada que se aproxima a destruição total de nossas matas.

REFERÊNCIAS

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

GREENPEACE Brasil (2019). Sem floresta, sem vida! Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/sem-floresta-sem-vida/.

MENEGASI, Duda. Desmatamento na Amazônia atinge nível recorde no primeiro trimestre de 2020. Disponível em: https://www.oeco.org. br/noticias/desmatamento-na-amazonia-atinge-nivel-recorde-no-primeiro-trimestre-de-2020/.

OLIVEIRA, Paulo Celso de. Os povos indígenas e o direito internacional dos direitos humanos. 2011.

ONU News. Perspectiva global - Reportagens humanas. Disponível em: https://news.un.org/ pt/story/2019/08/1683741.

PUÍG, Salvador Marti. Sobre la emergencia y el impacto de los movimientos indígenas em las arenas políticas de América Latina. Algunas claves interpretativas desde lo local y lo global. Barcelona: Fundación CIDOB, 2004.

RAYGORODETSKY, Gleb. Populações indígenas defendem a biodiversidade do planeta, mas estão em perigo. National Geographic. Nov. 2020.

ROULAND, Norbert. Direito das minorias e dos povos autóctones. Brasília: UnB, 2004

SILVA, Elizângela C. de A. Povos indígenas e o direito à terra na realidade brasileira. Serviço Social. São Paulo, nº 133, p. 480-500. Set./dez. 2018.

Terras indígenas protegem a floresta. Terras indígenas no Brasil. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/.

Aumenta o desmatamento em terras indígenas, diz estudo. Jornal Nacional 02/03/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/02/aumenta-o-desmatamento-em-terras-indigenas-diz-estudo.ghtml. Mônica de Lourdes Neves Santana é professora doutora em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba. Atualmente, faz seu pós-doutorado com o Prof. Marcos Costa Lima, em Ciência Política, pela Universidade Federal de Pernambuco.

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Livro-reportagem como TCC: para começar, muita leitura

Nesta e nas próximas duas edições da coluna Prosa Real vamos organizar uma série de recomendações, dicas e reflexões sobre o livro-reportagem como um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). A intenção é ser o mais didático possível, tratando de todos os aspectos necessários para um estudante de jornalismo lançar-se nesse desafio, que proporciona vários benefícios de aprendizado, mas também múltiplos dilemas. Em primeiro lugar, é preciso alertar que a decisão de fazer um livro como produto é algo que deve ser amadurecido desde meados do curso, já que o processo costuma ser mais demorado do que o de uma monografia. Tenha em mente que, ao preparar um livro-reportagem como projeto experimental, você estará treinando várias modalidades do jornalismo: pesquisa documental, entrevistas variadas e em profundidade, edição criativa de grandes massas de texto, seleção de imagens e narração. Portanto, sua experiência em disciplinas como Técnicas de Reportagem, Redação Jornalística e mesmo no jornal-laboratório será essencial

para aguçar o espírito de repórter. Para fazer um bom livro-reportagem você precisará, em primeiro lugar, ler obras deste tipo. Comece com os clássicos consagrados do gênero, aqueles que conjugam apuração de excelência com texto atraente e sedutor, além de terem encampado temas de compromisso social e ético. Recomenda-se, por exemplo, a leitura de A sangue frio, de Truman Capote, uma aula de apuração jornalística e de como narrar uma história de um crime real e suas consequências, com muito suspense. Ou obras de um dos maiores jornalistas vivos, Gay Talese, mestre das investigações minuciosas e em desvendar grandes panoramas, como a sexualidade norte-americana, em A mulher do próximo. Entre os autores nacionais, relatos como Olga e Chatô, de Fernando Moraes, são exemplos primorosos de como engendrar biografias que também trazem vastos panoramas históricos de épocas importantes da história brasileira. Ou aqueles livros com cunho de denúncia social, como Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex, e os mergulhos do arguto repórter Caco Barcellos no universo da polícia que mata, em Rota 66. Ao ler essas obras, o estudante pode adotar uma postura de estudo mais profundo, percebendo como o escritor apurou as suas informações, como encadeia os discursos apurados e os documentos desvendados em uma narrativa atraente, além dos métodos para estruturar os capítulos e todas as partes do livro-reportagem.

Pensando no tema: abrangência, contextualização e perenidade

Pensar em um tema que renda uma reportagem de fôlego, que não perca a atualidade dentro de alguns meses, permita acesso a vários entrevistados e também a uma pesquisa documental sólida, é o ponto de partida essencial para elaborar um livro-reportagem como TCC. Primeiro é preciso ter em mente que tipo de livro-reportagem você pretende elaborar. Na obra Páginas Ampliadas, o professor e pesquisador do campo do livro-reportagem Edvaldo Pereira Lima, classifica várias modalidades. As mais comuns são o perfil biográfico e a biografia, quando se escolhe um personagem central de relevância e narra-se a sua trajetória ou parte dela, bem como o pano de fundo social, cultural e político por ele vivenciado. Também pode-se optar por um livro-reportagem mais próximo do olhar jor-

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nalístico sobre a história, investigando e narrando um determinado acontecimento de impacto e com certa distância no tempo. Outra opção é dos livros de cunho mais humanístico, que tragam, por exemplo, depoimentos de grupos de pessoas que vivenciam alguma problemática, como jovens com depressão, ou gravidez na adolescência. Ou mais calcados na observação geográfica e social, focando em determinado espaço da cidade que sofreu modificações ao longo do tempo ou foi palco de manifestações e transformações urbanas cruciais. Também pode-se optar pela radiografia de algum movimento cultural, como a história das nações de maracatu ou a trajetória do bumba meu boi no Maranhão. É crucial que, ao pensar no tema do seu livro-reportagem, o estudante tenha em mente que a sua própria cidade pode guardar várias histórias e personagens de grande interesse, que talvez não tenham sido narrados pelo jornalismo factual tradicional e mereçam tratamento em livro. O importante é que o tema seja amplo o suficiente para ser explorado em uma grande reportagem de, no mínimo, 50 páginas, que seja de certa forma atemporal, na medida do possível, tenha relevância social e, um detalhe importante: desperte a paixão do repórter para cada vez se surpreender e se empolgar com novas descobertas que encontrará no caminho.

Roteiro: preparando um sumário comentado

Os procedimentos variam em cada universidade, mas com certeza o estudante terá que elaborar em algum momento um projeto de pesquisa para embasar a sua proposta de livro-reportagem como projeto experimental de fim de curso de jornalismo. Esta é a hora de aproveitar para traçar todos os rumos que a sua pesquisa irá tomar. Em primeiro lugar, é preciso pensar na contextualização do seu tema, explicando, já no corpo do projeto, tudo o que já foi apresentado ao público sobre determinado personagem escolhido para uma biografia ou assunto pensado para um livro-reportagem. Busque, então, responder às perguntas: de que forma um livro-reportagem pode ajudar a lançar novas luzes sobre esse determinado tema ou personagem? Que técnicas de reportagem e narração jornalística utilizarei em todo o processo? Quais serão as possíveis fontes documentais que eu consultarei? E a lista prévia de entrevistados que atenderiam quais demandas de informação? Por fim, mas como medida crucial, vale a pena pensar como o livro seria dividido em capítulos, que aspectos serão tratados em cada parte, o chamado sumário comentado. Assim estará traçado o roteiro para se lançar na aventura da produção. No próximo número, trataremos da importância da pesquisa documental, das formas de entrevista e também sobre a organização de todo o material coletado.

REFERÊNCIAS:

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. São Paulo: Record, 1992.

CAPOTE, Truman. A sangue frio. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: livro-reportagem como extensão do jornalismo. 4. Ed. São Paulo: Manole, 2009.

MORAIS, Fernando. Olga: a vida de Olga Benário Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

________. Chatô: o rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

TALESE, Gay. A mulher do próximo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Tratamento do Esgoto Urbano: soluções contextualizadas

Da relevância do problema

A ocupação de alagados urbanos e a poluição dos cursos d’água nas cidades se associam à emergência e reemergência de doenças infectocontagiosas e parasitárias. Estes fatos levam à redução da biodiversidade, inclusive, com a diminuição dos predadores de vetores de doenças (insetos, parasitas, bactérias, vírus), assim como outras alterações ambientais que induzem à proliferação destes vetores. Além disso, há a invasão de espécies nocivas e mudanças genéticas induzidas pelo homem (human-induced genetic change) com o uso de pesticidas e antibióticos, segundo a Organização Mundial de Saúde (BRIDGEWATER, 2011).

O que vem ocorrendo já no nível global são os efeitos negativos do excesso do estoque de nitrogênio, o “excesso de coisa boa” que as plantas não absorvem com a produção de esgotos urbanos e os resíduos de animais na pecuária (o que, segundo pesquisas da ONU, é responsável por parcela significativa das emissões de Gases de Efeito Estufa - GEE). Assim, tal excesso contribui para o efeito estufa e menor biodiversidade, pois poucas plantas se adaptam ao excesso de nutrientes. Abre-se, por outro lado, a porta para espécies oportunistas e doenças humanas por excesso de nitrato na água, mesmo quando há tratamento de esgotos, como na contaminação por meio de fossas individuais sobre lençóis freáticos, caso da cidade de Natal - RN que tem estes lençóis como fonte principal de abastecimento de água. O fósforo também é importante componente do desenvolvimento das plantas, elemento este que tende à escassez. Contudo, a poluição aérea com o transporte e a indústria interfere na ciclagem do enxofre, que provoca chuva ácida, comprometendo os solos, a vida lacustre e o óxido de nitrogênio na atmosfera gera o “smog” fotoquímico (neblina com fumaça), permitindo a entrada de raios ultravioleta, prejudiciais aos olhos e aos pulmões. A queima de combustíveis fósseis também interfere negativamente na ciclagem do carbono, como é mais conhecida, determinando uma presença excessiva de dióxido de carbono na atmosfera, o que se associa ao aumento da emissão de outros gases, como o metano, que tem efeito potencial maior sobre o aquecimento global.

A prevenção de muitas doenças e o tratamento das mesmas dependem da diversidade de espécies. Além disto, os ecossistemas dependem desta diversidade para se adaptarem às mudanças de toda sorte, pois a maior

biodiversidade eleva a resiliência (ou a capacidade regenerativa das espécies).

Neste contexto, a questão da gestão dos recursos hídricos toca necessidades básicas de saúde, tanto humana como dos ecossistêmicas. A poluição hídrica em nossas bacias hidrográficas ocorre em muitos trechos, desde nascentes, tributários a estuários (berçários de muitas espécies), dando origem a diversas doenças, epidemias conhecidas e como ambiente, como já colocado, para o surgimento de novos agentes patológicos e novas doenças.

A poluição das águas urbanas gera ambientes responsáveis por altas taxas de mortalidade, principalmente infantil, além do baixo rendimento escolar, como apontam pesquisas recentes. Isso porque algumas populações em contato direto ou indireto com águas urbanas poluídas por carência de esgotamento e tratamento sanitário, coleta e destinação adequada de lixo doméstico, podem viver sob o efeito de doenças crônicas.

Como aponta Harvey (1996), considerando o fato de que as diretrizes de políticas internacionais no controle dos GEE são definidas por países centrais, estas se dirigem mais para o transporte, reforçando a negligência global da gestão adequada das águas nos países periféricos, especialmente nas cidades, responsáveis pelo despejo de grandes cargas poluidoras sobre cursos d’água, estuários, praias, matando corais e algas (grandes produtoras de oxigênio para a atmosfera).

Observações de pesquisa

Em muitas cidades no nordeste brasileiro, os esgotos domésticos (que representam a grande maioria das cargas poluidoras dos rios, riachos e córregos) muitas vezes saem diretamente das moradias para os cursos d’água. Isto quando não, indiretamente, passando por várzeas ou via sistemas de drenagem de águas pluviais.

A questão de aplicar soluções convencionais para conduzir tais efluentes a uma estação de tratamento, mesmo de pequeno porte, implicaria em operações não-convencionais de coleta e recalque destes esgotos. É quando nos perguntamos se tais efluentes não poderiam ser tratados localmente, ainda que por soluções coletivas, em face à exiguidade ou inadequação de grande parte dos terrenos sem área para infiltração ou quando sobre lençóis freáticos pouco profundos?

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Orientações para desenvolvimento tecnológico

Três soluções foram encontradas na literatura que nos pareceram merecer atenção: primeiro, são os biodigestores coletivos de pequeno porte, no lugar de fossas individuais, inclusive, por produzirem gás de cozinha para parte das moradias que “alimentam” tais equipamentos com seus esgotos. Há ainda adubo orgânico como subproduto, mas não se encontrou informação sobre os efluentes de saída; segundo, são as fossas coletivas flutuantes que podem ser diretamente colocadas no leito de rios, reduzindo sobremaneira a Demanda Biológica de Oxigênio (DBO) de seus efluentes de saída; terceiro, os tratamentos de esgotos por plantas, que podem ser dispostas em várzeas, ao longo de margens de córregos, ou nos próprios leitos de rios utilizando-se malhas têxteis de contenção.

Verificou-se que plantas podem reduzir adequadamente a DBO de esgotos domésticos antes do lançamento em cursos d’água e isto por informações de décadas atrás. Todas estas requerem manutenção e educação sanitária continuada, para evitar o mal uso destes equipamentos como o comum lançamento de lixo urbano em elementos de drenagem.

Uma combinação destas estratégias pode gerar outras soluções para melhor adequação a contextos intraurbanos específicos, como em ocupações informais e desordenadas, associadas a outras infraestruturas como pavimentação e drenagem. O papel do design urbano, a biologia e a engenharia de cunho social aí se complementam. Entretanto, o estudo de casos de projetos ditos “pilotos” nesta linha, outrora tidos como modelos de referência, sofreram degradações após anos de descontinuidade na manutenção e assistência social. Algumas experiências chegaram a ponto de gerar situações sanitárias tão graves ou piores do que antes da implementação de tais projetos.

Da gestão de inovações

O acima exposto nos leva a pensar na insuficiência, inadequação e descontinuidade nas políticas de saneamento por várias razões. Primeiro, por uma incapacidade associada a paradigmas de soluções técnicas limitadas, onde os contextos reais devem se adequar às soluções aceitas, independentemente de suas características e não o inverso, fazendo com que muitas destas não se adequem e não funcionem. Segundo, as descontinuidades advêm muitas vezes de nossa dificuldade de distinguir políticas de governo daquelas de estado. No caso de tal infraestrutura, caberia aos governos gerar as condições para o aperfeiçoamento e continuidade da provisão e manutenção.

Seguindo esta reflexão, seria condição para o alcance dos objetivos sanitários a pesquisa e desenvolvimento socialmente engajada, associada a programas de educa-

ção sanitária e de participação comunitária para a escolha e a manutenção dos equipamentos infraestruturais em pauta.

REFERÊNCIAS

BRIDGEWATER, Peter. Water Service in Urban Landscapes in Urban Ecology: Patterns, Processes, and Applications, Oxford University Press, Oxford-UK, 2011.

HARVEY, David. Justice, Nature and the Geography of Difference. Oxford, UK: Blackwell, 1996.

Antônio Jucá é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais.

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A última grande revolução social do Século XIX

Estamos comemorando este ano 150 anos da Comuna de Paris (1871). O EPMARX-UFPE estará realizando um grande seminário, a partir deste mês, para saudar e debater esse evento memorável. A mim, coube fazer o resgate histórico. Quando estudante da pós-graduação, na Universidade Estadual de Campinas, tinha a oportunidade de realizar um seminário sobre a “Comuna”. Há ocorrências históricas que se tornam emblemáticas e míticas. A luta dos “comunards” franceses é uma dessas. Reverenciada por Marx e Lenin, a Comuna de Paris tornou-se a fonte de um imaginário político autogestionário e socialista, a inspirar socialistas do mundo inteiro. Objeto de disputas retóricas e historiográficas entre anarquistas, socialistas e marxistas, a Comuna continua a suscitar polêmicas e sugestivas opiniões, entre os mais diversos militantes sociais.

Podíamos começar discutindo as interpretações clássicas que ajudaram a criar esse imaginário político revolucionário e socialista.

Quando eclodiu o movimento, que assinala o fim do ciclo expansionista e militar do governo de Luiz Bonaparte, Marx era o secretário da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores. A hegemonia política da Comuna estava nas mãos dos anarquistas proudhonianos e de socialistas parlamentares como Louis Blanc. Quando as tropas militares do primeiro ministro Thiers esmagaram, a ferro e a fogo, o movimento, Marx se imbuiu de produzir um relato edificante que perpetuasse a lembrança da luta dos “comunards” franceses. Essa obra é o que se conhece pelo opúsculo “Guerra civil em França”. Um texto laudatório e favorável, exaltando a coragem e a dedicação dos militantes. A obra, feita em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, levaria a uma contenda retórica e política entre os marxistas e anarquistas, alimentada pelo rancor de Marx contra Bakunin, em razão do atraso na tradução de O Capital para a língua russa. Pior, a publicação do posfácio de Engels, mais tarde, comparava a Comuna com o que deveria ser a “ditadura do proletariado”. Essa disputa retórica e política entre anarquistas e marxistas conduziu ao fim da Primeira Associação Internacional dos trabalhadores e a separação definitiva entre co -

munistas e anarquistas. Muitos anos depois, descobriu-se no Museu de História Social de Amsterdam, onde está o que sobrou da Comuna de Paris, os manuscritos redigidos por Marx sobre a experiência comunard francesa. Esse texto é muito diferente do que Marx havia escrito, como secretário da AIT. É preciso dizer que o seu objetivo era muito distinto: aqui se tratava de fazer uma “autopsia” da estrutura e a política da Comuna, sob a hegemonia dos libertários e socialistas. Já no primeiro escrito, não. Era um epitáfio elogioso. Nesses manuscritos, Marx faz críticas aos militantes sociais, repara as hesitações da liderança em usar o Banco de França como trunfo para deter o massacre. Fala também do caráter pluriclassista da organização política da Comuna e debita tudo isso na conta da influência anarquista da direção do movimento e sua falta de centralização para tomada de decisões rápidas. Lenin não deixaria por menos. Em sua obra: “as duas táticas da social democracia na revolução burguesa”, ele critica a confusão entre democracia radical pequeno-burguesa e socialismo, o que teria contribuído para a derrota do movimento.

Apesar de tudo isso, a experiência histórica e política da Comuna de Paris só ajudou a alimentar e reforçar o imaginário autogestionário e socialista no pensamento social moderno e contemporâneo. A expressão “álgebra social”, empregada por um ensaísta brasileiro, para designar o significado histórico do movimento, procurou salvar a longevidade revolucionária do movimento francês, ao sugerir que ele pudesse ser preenchido pelos comunistas subsequentes com outros conteúdos ideológicos mais bem definidos doutrinariamente. De toda maneira, desenvolver essa expressão algébrica da revolução social exigiria ou extirpar os ressaibos anarquistas ou radicaliza-los, no sentido de uma revolução democratizante no interior de socialismo auto gestionário, nunca num regime autoritário, burocrático ou militar. Transformar essa álgebra numa “Ditadura do proletariado” exigiria abjurar de uma vez a concepção blanquista e autoritária do socialismo em favor de uma democracia de base, auto-organizada, parecida com os modelos

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das sociedades ácratas, defendidos pelos anarquistas. A experiência e tradição bolchevique não combinavam com isso. Nem a centralização das modernas forças produtivas capitalistas. Ou, como disse Weber, a racionalidade instrumental e burocrática da empresa e do Estado modernos.

O desafio da experiência “comunard” francesa à imaginação socialista de nossa época é como conjugar socialismo e autonomia, socialismo e liberdade, socialismo e respeito às diferenças, num mundo cada vez mais complexo.

Michel Zaidan Filho nasceu em Garanhuns, Pernambuco, em 1951. Graduou-se em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco em 1974, obteve o título de Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1982 e o título de Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) em 1986. É professor titular aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Desacoplamento e Nacionalismo: Caminho de uma Nova Guerra Fria?

Existe uma retórica que persiste na ideia de que o mundo perpassa por uma nova Guerra Fria, na qual o avassalador crescimento da China substituiu a antiga potência da URSS nas disputas de poder e de desconfiança mútua em face da hegemonia estadunidense. Além disso, há teóricos que especulam sobre a inevitabilidade de um futuro conflito bélico entre as duas nações em alusão histórica à Guerra do Peloponeso, em que a emergente cidade de Esparta passou a desafiar os ditames do status-quo de Atenas, o que gerou o derramamento de sangue narrado por Tucídides.

Entretanto, essas narrativas são perigosas e passíveis de gerar uma escalada de medidas desarrazoadas por ambas as partes, no sentido em que são realizadas leituras hiperbólicas da realidade. A história recente tem exemplos inexoráveis dessas interpretações conspiratórias das capacidades dos adversários e da conjuntura, a exemplo da Guerra do Vietnã, da infinita insurgência militar dos EUA no Afeganistão, do massacre de civis na Praça de Tiananmen, do irascível ataque do drone MQ-reaper no Iraque, que matou o general iraniano Soleimani e outras autoridades locais, dentre tantos outros fatos cujas consequências foram desastrosas para a moral e ética da humanidade. Nessa perspectiva, a análise dos rumos das tensões das relações sino-americanas exige cautela e sobriedade, sobretudo no momento da expansão das fake news e da desinformação que se alastram na atual Era Digital.

No que concerne a tecnologias emergentes contemporâneas que permeiam nossa vida, as disputas pela superioridade no desenvolvimento e mercado de inteligência artificial, redes de telecomunicações da quinta geração (5G), computadores quânticos, robótica, dentre outros, desencadearam uma série de políticas de fechamento e barreiras na exportação e importação da cadeia tecnológica, impulsionadas pelo governo Trump para conter a expansão chinesa e proteger o mercado americano.

A título ilustrativo, cita-se o veto às empresas de telecomunicações ZTE e Huawei na Austrália, Reino Unido e nos EUA sob a justificativa de que a sua arquitetura é falha no quesito de segurança cibernética, o que significa mais facilidade para ataques nas redes devido às suas vulnerabilidades e

falta de resiliência. Essas barreiras fundamentam o fenômeno atual de desacoplamento ou dissociação (tradução literal do inglês decoupling) tecnológica, em especial no tocante a áreas que afetam a segurança nacional, como é o caso das tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) e das redes do espaço cibernético.

Para o autor Joseph Nye (2020), esse protecionismo exagerado de cadeias de suprimentos de tecnologia tem consequências deletérias para ambos os países, a exemplo de minar a possibilidade de cooperação que avance as inovações científicas, de modo que as negociações bilaterais e multilaterais devem ser estimuladas, principalmente entre aliados.

Nessa esteira de políticas de fechamento e de corrida e competição pela superioridade tecnológica global, Jeffrey Ding (2019) sugere que as políticas ambiciosas e planos nacionais da China para tornar-se líder na produção e desenvolvimento de tecnologias emergentes até 2030, como a de inteligência artificial, revelam uma série de ações coordenadas que podem ser denominadas de tecnonacionalismo.

Para definir o fenômeno, o autor divide o seu conceito em três grandes blocos, quais sejam: o da crença de uma competição tecnológica, na qual a segurança e poder das tecnologias são o motor das disputas interestatais contemporâneas; a crença da tecnoindependência, a qual representa o mecanismo que salvaguarda a autonomia e o poder dessas inovações; e, por último, a crença tecnonacional, cuja premissa se baseia na primazia do interesse estatal quanto à governança e tomadas de decisão sobre o seu desenvolvimento. Nesse contexto, argumenta-se que o tecnonacionalismo representa uma linha de pensamento mercantilista que vincula a inovação tecnológica e as capacidades diretamente à segurança nacional, à prosperidade econômica e à estabilidade social de uma nação (CAPRI, 2019). O Estado, portanto, deve intervir e proteger-se contra atores oportunistas ou hostis, estatais e não-estatais.

Nesse sentido, os planejamentos de desenvolvimento de tecnologia autóctone orquestrados pelo governo chinês parecem demonstrar que a potência emergente busca o seu lugar de fala que merece

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diante de seu poder acumulado. Além disso, a retórica do tecnonacionalismo de Ding (2019) é útil para ilustrar como o sistema chinês considera essas tecnologias emergentes como meio fundamental para a prosperidade do país.

Outrossim, nota-se que o fenômeno do desacoplamento e tecnonacionalismos tem um efeito fundamental na atração de talentos e estratégias de obtenção de insumos estratégicos por meio de alianças e barganhas de poder no sistema internacional, o que implica dificuldades para países como o Brasil, que tem uma ligação histórica de dependência com os EUA, mas a China é o seu principal parceiro comercial. Diante dessa conjuntura, é salutar afirmar que ambas as potências têm a perder diante da persistência de tentativas de desconexão em detrimento da cooperação e apoio no multilateralismo, principalmente em relação a nações que não possuem uma indústria sólida e expressiva de inovação global.

Assim, tanto os EUA terão que se renovar em termos de recuperação da legitimidade internacional e de unidade doméstica, quanto a China deve dialogar com o mundo na busca de estandardizações que minimizem os riscos que essas tecnologias de ponta trazem para a humanidade, como questões sem precedentes de invasão da privacidade, vigilância estatal e autonomia de armas militares letais.

Em arremate, destaca-se que esses fenômenos não indicam a tendência de separação completa e isolamento de produção e comercialização de ativos estratégicos por ambas as potências, em referência clara ao período da indústria de defesa na Guerra Fria. Em verdade, a complexidade dos insumos que fazem parte da cadeia de valor e de suprimentos é demasiado interdependente, de modo que as políticas e discursos calorosos dos entusiastas do desacoplamento, como o ex-presidente dos EUA, provocam uma expansão do ambiente de desconfiança, polaridade e perdas econômicas significativas para o mundo, bem como a ampliação de noções distorcidas dos interesses nacionais. Isso afasta as possibilidades que a efervescência competitiva da inovação pode trazer em termos de qualidade de vida e o compartilhamento de conhecimento nas relações internacionais.

REFERÊNCIAS

CAPRI, A. Techno-Nationalism: What Is It And How Will It Change Global Commerce? Forbes. Disponível em:<https://www.forbes.com/sites/alexcapri/2019/12/20/techno-nationalism-what-is-it-and-how-will-it-change-global-commerce/>.

DING, J. Re-deciphering China’s AI dream. Centre of Effective Altruism. 18 dez. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1mExA_xdgnA>.

GUTERRES. A. “We need to avoid Cold War between China and US”. BBC News. 3 setembro de 2020. Disponível em <https://www.bbc.com/news/ av/world-53997750> Acesso em 7 de janeiro de 2021.

NYE, J. Power and Interdependence with China. The Washington Quarterly, v. 43, n. 1, p. 7–21, 2020.

Nathália Bittencourt é doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Bolivia: the right continues to threaten democracy

Por Francisco Domínguez

The people of Bolivia were able to both resist a full year of repression by the de facto racist regime of Jeanine Añez and force elections. On 18 October 2020 they obtained a massive electoral victory, thus creating condition for the recovery of democracy. As is well known, Añez “interim government” was installed by a US-led coup d’état engineered by OAS General Secretary, Luis Almagro in November 2019.

The Europeans did also actively work to bring about the ousting of Evo Morales and the MAS-IPSP government. Information provided by the website Declassified UK, revealed that the UK government saw the de facto regime as an opportunity to open Bolivia’s lithium deposits to UK companies thus making the UK embassy in La Paz a strategic ally of Añez. It would appear that the UK and Añez signed millionaire contracts barely two weeks after the coup and days after the Senkata massacre.

Leon de la Torre, European Union ambassador in Bolivia, also played a pivotal role. In interview to Página Siete (a Bolivian newspaper) de la Torre declared that in the 2019 election the EU mission of electoral experts had closely collaborated with the OAS mission and that “Our observations [about the supposed electoral fraud] coincided to a large extent with those of the OAS.” He went on to say “in the last years, due to the fact that a political party had the absolute majority” democratic consensus was not deemed necessary (i.e., the problem was the MAS-IPSP’s strong electoral support). He also declared he expected from the 2020 election a “more conventional political equilibrium.” This is gross interference in the internal affairs of a sovereign country.

Predictably, the international corporate media best to whitewashed the actions of the de facto regime and at worst supported and welcome the golpe. The UK’s “progressive” The Guardian, for example, went as far as to editorialise that the coup had been Evo’s own fault for trying to perpetuate himself in power.

The sheer size of Bolivia’s right wing’s electoral defeat in October 2020 surprised everyone: the MAS-IPSP won with 55% of the votes cast, thus electing Luis Arce as president; right-wing Carlos Mesa got 28%, and extreme right-wing Luis Camacho only 14%. The MAS-IPSP won in 6 out of the country’s 9 departments (with 68% in La Paz; 65% in Cochabamba; 62% in Oruro; 57% in Potosí; 49% in Chuquisaca; and 46%

in Pando; departments where 7 out of Bolivia’s population of 11 million live). And, MAS-IPSP candidates obtained 75 out of the 130 seats of Bolivia’s Congress, and 21 out of 36 in the Senate; Arce also won in 314 municipalities, the extreme right in 21, and the right wing in 18.

This electoral victory occurred against the background of a year of brutal persecution of the MAS-IPSP leaders, including Evo, who (charged with terrorism) had to flee into exile in Mexico. Añez unleashed a wave of repression against the country’s social movements, involving illegal imprisonment, harassment, torture; racist violence, especially against indigenous women perpetrated by fascist paramilitary thugs; and three massacres (Sacaba, Senkata and La Paz), about which the International Human Rights Clinic’s report (with the eloquent title “They shot us like animals’) registered 36 people dead and over 500 injured.

The purpose was to intimidate opposition to her harsh neo-liberal programme of cuts, lay offs of public sector workers, privatisations and so forth aimed at demolish what had been developed in 14 years of Morales government, no small task given the MSAS-IPSP’s impressive achievements:

• Bolivia’s GDP: US$10bn (2005), US$40bn (20130, over 400% increase): an annual average of 4,6%, highest in the region; from 2006 Bolivia had a fiscal surplus for the first time in its history; by 2018 it had US$8,946 million in international reserves.

• Extreme poverty: from 38% in 2006 to 16% in 2018 (a historic low)

• Infant mortality down by 56%;

• Bonuses (for the elderly, primary and secondary school pupils, pregnant women) benefited 5,5 million people (over 50% of the population)

• Domestic savings for 2006-2018 increased: US$4,361 million to US$27,123 million.

• External debt down from 61% of GDP in 2004 to 23% in 2018

• Health centres from 2,870 to 3902, plus 49 well equipped with latest medical technology new hospitals (public health is free of charge)

• With Cuban collaboration, Operation Miracle conducted over 3 million ophthalmological visits and 742,000 surgeries leading many Bolivians to having their eye sight restored (Añez expelled the Cuban doc-

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tors) – budget for health: 2,5 million Bolivianos (national currency) in 2005 to 18, 805 million in 2018

• Illiteracy, with Cuba’s Yo Si Puedo method, eradicated by 2014.

• Between 2014-18 the nine-lines metro-cable in La Paz (completed in 2014), had transported 174 million passengers

• By 2020 drinking water reaches 9,7 million people

• About 1 million hectares of land were redistributed to peasant families.

• Between 2005 to 2018 proportion of women in parliament: from 18% to 51%

• Decades of neoliberalism built 1,098 km of motorways; between 2006-18 4,796 km added to existing motorways

• Everything financed by the renationalization of the energy industry (Bolivia is rich in gas but also has oil; and it is very rich in minerals, especially lithium)

• Bolivia placed in space the Tupac Katari satellite, renationalised telecommunications granting Internet access free of charge, as a fundamental right, to millions of Bolivians

• For the first time in 500 years, 36 indigenous nations were recognised special cultural and ancestral land rights (enshrined in the Constitution of the Plurinational State).

• In 2018 the World Human Development Report classified Bolivia for the first time a “high human development country.”

• Evo affirmed national sovereignty by eliminating foreign (US) interference with the expulsion of the DEA, USAID, CIA and even the US ambassador.

• And much, much, more.

President Arce restored full diplomatic relations with Cuba, Venezuela and Iran, sending shockwaves to right wing forces from Patagonia to the Klondike.

Arce’s economic measures, consistent with the MAS-IPSP policies, have put people first. Among the many measures there are: a Bonus Against Hunger of 1,000 Bolivianos (US$150) aimed at the most vulnerable (disabled, pregnant women, the elderly, the poorest, etc.) that will benefit about 4 million people; a reduction of tax on credit card payments from 13% to 8% returning the difference to users; return VAT to low income people; plus a tax on large fortunes, their assets (real and non real estate), and income.

Arce announced his intention to enter into negotiations with multilateral bodies to obtain credit but without economic or political strings attached, including both a moratorium and the condoning the country’s debt and the interests. He will seek to strengthen domestic demand so as to reactivate economic activity via subsidies to the poorest and other segments of

society. And he will avoid devaluation of the national currency so as to encourage economic growth and foment import substitution among other policies.

He will continue with the industrialization of lithium and iron, coupled with a programme towards food sovereignty, promotion of domestic tourism, export of electricity and the industrialization of gas, by keeping these activities under state control and ownership.

State expenditure on health and education will be increased to 10 and 11 percent, respectively. Public investment is to be increased to bring about a rate of economic growth of 4,8% for 2021. Arce has re-launched to complete all public works (suspended by Añez), as another plank for domestic economic reactivation. The MAS-IPSP majority in parliament has passed legislation to ensure the implementation of these measures. And, Arce returned the unnecessary IMF loan contracted by Añez in 2020.

The deeply racist Bolivian oligarchy has been threatening with violence and with another coup d’état. The arrest and trial of Añez and of several prominent members of the coup accomplices have intensified these threats.

Arce has continued the recuperation of Bolivia’s democracy by ensuring not only free and fair elections for the country’s 336 mayoralties that took place on 7th March 2021, but also by guaranteeing the full participation of all the parties that had taken part in the coup and had been members of the Añez regime. The results were again, amazing. The MAS-IPSP won in 240 of the 336 mayoralties, 71% of the votes cast (it won 227 in the 2015 election).

In Bolivia, the recuperation of democracy is vital for continued socio-economic progress. This victory has substantially altered the continental relation of forces in favour of progressive politics and therefore, must be given all the support it may need in the period ahead. The recovery of democracy will not be easy: given the world economic crisis the pandemic brought about, reactionary forces both domestically and externally, will do everything they can to sabotage it. They will need all our solidarity.

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Francisco Dominguez é Professor da Universidade de Middlesex / Inglaterra.

Bolsonarismo, Ideologia, Psicologia, Política e temas afins

Rubens Pinto Lyra ocupa uma posição ímpar no marxismo brasileiro. Por conta de determinadas características de sua produção intelectual, de sua inserção institucional e até mesmo de um recorte geracional, pode ser considerado como um dos expoentes do marxismo acadêmico, tardiamente implantado no Brasil.

O marxismo acadêmico brasileiro surge propriamente na década de 1960, tendo por marco inaugural a tese de livre-docência de José Arthur Giannotti, Alienação do trabalho objetivo (1960) – publicada em livro, em 1966, com o título Origens da dialética do trabalho – e os artigos da mesma época de Ruy Fausto, reunidos apenas em 1983 no volume Marx: lógica e política. O marxismo filosófico uspiano se consolida na sequência, com as teses de José Chasin e Emir Sader, alunos de Giannotti e Ruy Fausto. Em comum, o esforço de promover uma reconstituição do pensamento de Karl Marx a partir da leitura “rigorosa” de suas obras, projeto semelhante e coetâneo ao empreendimento capitaneado, na França, por Louis Althusser, que resultou na edição de Lire Le Capital (Maspero, 1965).

A ideia pressuposta era de que a divulgação e a própria ação política marxista – postas em parênteses –fossem antecedidas pela elucidação dos fundamentos metodológicos e lógicos do materialismo histórico, etapa considerada imprescindível para evitar o dogmatismo das versões impostas pelos partidos comunistas e os equívocos históricos dos regimes socialistas então existentes. O marxismo uspiano, embora não raramente apresentado como uma aclimatação local do marxismo ocidental, contém escassos elementos característicos dessa linhagem, afora a mencionada tentativa comum de estabelecer os fundamentos filosóficos da obra de Marx. Nele, não encontramos a preocupação com o tema da “cultura”, central para os autores dessa corrente. Tampouco os esforços, não menos imprescindíveis, para a compreensão do presente histórico e a promoção da crítica da ideologia específica de cada forma e regime de acumulação, isto é, de cada fase do capitalismo.

A associação de autores brasileiros com o denominado “marxismo ocidental” torna-se mais pertinente, no entanto, quando referida àqueles que concederam primazia à cultura, na maioria das vezes por conta de deglutições do pensamento do jovem Lukács e de Antonio Gramsci. É o caso do grupo reunido, no Rio

de Janeiro, em torno da revista Civilização Brasileira, no qual se destacam Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto; do trio Bento Prado Jr., Roberto Schwarz e Paulo Arantes, trafegando no circuito Paris-Maria Antônia; e, no exílio francês, Rubens Pinto Lyra.

O percurso intelectual de Lyra pode ser descrito como uma série de movimentos, aparentemente dispersos, mas, na verdade, estreitamente entrecruzados, que o aproximam cada vez mais das coordenadas formais e do repertório conceitual característico do marxismo ocidental. Na década de 1970, como resultado de sua pós-graduação na França, Rubens Pinto Lyra publica dois livros sobre a história do movimento comunista e socialista. De volta ao Brasil, já professor da Universidade Federal da Paraíba, escreveu ininterruptamente, nos últimos 40 anos, sobre questões de conjuntura e de ciência política; de teoria e filosofia do direito; de comunicação e jornalismo, de história e sociologia; de economia e psicologia; de educação e de religião.

Essa exuberância e a espantosa multiplicidade de áreas do conhecimento, visitadas com a competência e o rigor do especialista, configuram um perfil intelectual que transcende a divisão universitária do saber. Trata-se de uma demanda inerente ao marxismo, potencializada pelos marxistas ocidentais, em sua busca do conhecimento da “totalidade”. A exigência de uma compreensão não compartimentada decorre da própria organização, sistêmica, do modo de produção capitalista, que não se deixa apreender sem a tessitura de uma extensa rede conceitual. Como bem resumiu Jürgen Habermas, o “materialismo histórico” é também, sobretudo, um “materialismo interdisciplinar”. Neste livro, significativamente intitulado Ideologia, psicologia e política explicam o bolsonarismo, essas linhas de força convergem, cristalizando numa peça unitária e múltipla resultados de décadas de investigação que surgem para o leitor, no entanto, com o encanto e o frescor de uma aparição súbita. A renovação do marxismo, ensaiada por Rubens Pinto Lyra, faz-se perceptível em recorrentes instâncias de autorreflexão, momentos em que o texto se debruça sobre si, meditando e expondo seus pressupostos teóricos. Não se trata, porém, da procura pelos fundamentos originários da obra de Marx, como se deu na alçada do marxismo acadêmico uspiano. Trata-se, antes – nas

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pegadas de Marxismo e filosofia, de Karl Korsch, e de História e consciência de classe, de Georg Lukács –, de proceder a uma reconstituição histórica, na chave de um balanço comparativo, dos acertos e equívocos teóricos e práticos de concepções, interpretações, partidos, correntes e movimentos autodeclarados marxistas.

Esse procedimento pode ser encontrado em grande parte dos comentários dedicados a assuntos específicos que compõem os cinco blocos do livro. Desdobra-se, de forma explícita e com maior desenvoltura, contudo, no longo artigo que aborda a crítica de Karl Kautsky a Lênin e ao bolchevismo. Salienta-se nele a singularidade do marxismo de Lyra, que, para além de demonstrar a atualidade e advogar em favor de um autor esquecido e “renegado”, não teme abraçar, sem rodeios, a defesa da opção pelas “reformas”.

Em sintonia com os preceitos do “marxismo ocidental”, o objetivo central do livro, salientado inúmeras vezes pelo autor, é compreender o presente histórico. O fenômeno aí destacado – simultaneamente ponto de partida e de chegada da investigação – é o “bolsonarismo”, apreendido não como uma onda momentânea, conjuntural, mas como o resultado de processos de longa duração enraizados na sociedade. A ascensão de Jair M. Bolsonaro à Presidência da República não é encarada como um acidente, uma excrescência ou uma exceção; é explicada como expressão de uma tendência recorrente de regressão autoritária, inerente ao processo de acumulação do capital.

Rubens Pinto Lyra, como bom marxista, não prescinde das determinações econômicas na interpretação da ressurgência mundial de movimentos neofascistas. Detalha cuidadosamente a hegemonia neoliberal, o poder das grandes corporações e a predominância do capital financeirizado no âmbito do capitalismo mundializado. Insurge-se, porém, contra o economicismo, recorrendo à distinção destacada por Marx e Engels em A ideologia alemã: o “modo de produção” desdobra-se em um “modo de vida”. Marx, anos depois, retomou esse ponto em Para a crítica da economia política, com outra terminologia, ressaltando que o condicionamento econômico, a base, se manifesta sob o manto da ideologia – de forma abstrata, mas nem por isso menos efetiva – nos amplos domínios da superestrutura: na política, no direito, na filosofia, na religião, etc. Não é, assim, por acaso que o autor inseriu, logo no início do livro, um conjunto de quatro artigos que abordam a questão da “ideologia”. Nesse grupo, destaca-se Ideologia: conceito e aspectos essenciais, em que Lyra reconstitui – de forma didática – a discussão sobre esse termo e apresenta uma interpretação própria e original do conceito. Elucida as conexões do termo “ideologia” com as noções gramscianas de “senso-comum” e de “hegemonia” e ressalta o teor político dessa categoria, expressão em última instância da luta

de classes.

O livro desenvolve-se, a partir daí, como incisiva crítica da ideologia contemporânea, em suas diferentes formulações e esferas de abrangência. Não escapa ao seu crivo o liberalismo, o neoliberalismo e o neoconservadorismo, presentes em campos tão diversos como a política, o direito, o Estado, a comunicação, a educação e a religião. A explicação do bolsonarismo exige, porém, um passo a mais: a investigação dos efeitos da ideologia na subjetividade, no âmago da formação psicológica dos indivíduos. Uma parcela do voto e principalmente a adesão aos movimentos neofascistas destoam do padrão “decisão racional motivada por interesses materiais”.

A perda da autonomia individual, a fixação num ideário regressivo e conservador, decorre de fatores psicossociais, da presença, ressaltada pela psicanálise, de forças irracionais e inconscientes na determinação do comportamento humano. Nessa direção, Lyra mobiliza, de forma criativa, o arsenal conceitual desenvolvido por Erich Fromm. Por último, uma análise erudita e refinada do pensamento de Maquiavel deixa ainda mais claro porque “a política explica o bolsonarismo”, ao mesmo tempo em que esboça as premissas de uma prática emancipatória, de uma autêntica ação transformadora.

Ricardo Musse é Doutor em Filosofia e Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 27

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