Revista Subversa Volume 6, nº4 - abril de 2017

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ISSN 239-5817 Vol. 6 | n.º 04 | ABRIL de 2017

FELIPPE REGAZIO LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO DOUGLAS SIQUEIRA VANDER VIEIRA GABRIEL DE ATAIDE LIMA HELDER S. ROCHA LOECY ROSA DAMÁSIO MAGNO MELLO JHENIFER SILVA LEANDRO RAGAZZI

Ilustração DANIELA SÁ


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 6 | n.º 04

© originalmente publicado em 01 de abril de 2017 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações DANIELA SÁ

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME seis | NÚMERO 04

DOUGLAS SIQUEIRA | LAMENTO | 06 FELIPPE REGAZIO | TRÊS POEMAS PARA CHAMAR DE COMEÇO, MEIO E FIM | 08 GABRIEL DE ATAIDE LIMA| O ANEL | 16 HELDER S. ROCHA | PRESENÇA DE C.L. | 18 JHENIFER SILVA| MODO DE DIZER PONTO COM | 21 LEANDRO RAGAZZI | PLEONEXIA | 23 LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO | AO ESPREGUIÇAR DO SOL | 29 LOECY ROSA DAMÁSIO | TONEL DE DANAIDES | 32 MAGNO MELLO| UMA CENA DE METRÔ| 36 VANDER VIEIRA | NÃO HÁ TRÂNSITO | 40 Entrevista: Júlio de Almeida E SEU ROMANCE “Vaicomdeus, SARL”| 43

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EDITORIAL Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir justamente com os seus poemas, prosternávamos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador. Mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie, nem sequer é licito que existam, e mandá-loíamos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra sobre a cabeça e de o coroado de grinaldas. PLATÃO. A República, Livro III, 398b.

Bem-vindos a este número, que possivelmente é o mais cor-derosa da história da Subversa. Parece que cai bem, neste primeiro de abril, dia em que se destaca a mentira e a enganação que acompanha a realidade, ombro a ombro, diariamente. Podemos até dizer que nesta data, curiosamente, falamos muito mais a verdade, à medida que a mentira é escancarada. Um dia para assumir que mentir faz parte. Pensando assim, no calendário da literatura não há outro dia senão o primeiro de abril. Não há outra forma de revelar a verdade senão através de sua face ficcional, existente em tudo. Não há literatura sem a expressão de uma forma única de escrever, ainda que toda a literatura seja também uma cópia infinita de mentiras anteriores. Como bem afirma o angolano Júlio de Almeida, em entrevista, “rir das próprias desgraças tem a vantagem de, sem escamotear o denunciar de erros e dificuldades em que se está envolvido, apresentá-los com a confiança de que serão ultrapassados”. Ou, ainda, a afirmação da portuense Daniela Sá, autora das ilustrações deste número, que desenha “quando não está a escravizar-se ou a ler”. É aí, justamente, onde parece estar a graça de tanta mentira.

Desejamos uma leitura cor-de-rosa a todos. As editoras.

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“um livro para reler”: DICA DE LEITURA

DOS colunistas

“UM, NENHUM E CEM MIL”, de Luigi Pirandello (ed. Cosac &Naify; trad. Maurício Santana Dias). “Nesse romance o escritor siciliano trabalha com maestria sua própria concepção de humor, problematizando as concepçções de identidade e individualidade. Uma narativa tragicômica realizada em primeira pessoa, capaz de levar o leitor ao mais profundo de si mesmo”.

BOMQUEIROZ [O LADRÃO DE CHAPÉUS]

“THE BIRTHDAY PARTY”, de Harold Pinter. É um clássico e é teatro e em Portugal quase não se lê teatro - desde já duas razões bastante legítimas para se reler este livro. Pessoalmente, ainda me recordo vivamente da experiência de leitura deste livro e do impacto não só do seu desfecho, mas também de todo o enredo da ação dramática. Recordo-me de perguntar "mas o que é isto?" Trata-se de um texto vibrante, perturbador, atualíssimo e de leitura obrigatória.

ZÉLIA MOREIRA [AUTOLUSOGRAFIAS]

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LAMENTO DOUGLAS SIQUEIRA | São Paulo, SP

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os sons dessa avenida de ondas dispersas e aflitas têm um pouco de canto de mar

se eu fechasse meus olhos equalizasse esse chorus poderia, imerso, imaginar

mas tem o reflexo do céu imóvel, cinza e escuro nesse asfalto frio e duro impossível de mergulhar

logo, todo o meu lamento tão afeito a se afogar procura outro tipo de morte e continua a lamentar

DOUGLAS SIQUEIRA é bacharel em Comunicação Social com habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É idealizador e escritor da página (autor ensandecido) desde 2013 e, além de escrever poemas, atua na área de Produção Audiovisual como professor e realizador. | DOUGLASOSSIQUEIRA@GMAIL.COM

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TRÊS POEMAS PARA CHAMAR DE COMEÇO, MEIO E FIM FELIPPE REGAZIO | São José dos Campos, SP.

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I - considerações à respeito das coisas maiores que o sol

gosto de como ela segura a minha mão quando caminhamos sem rumo pelas ruas, gosto quando vamos ao super mercado gosto de como ela briga comigo e diz que eu não sei falar direito e não sei usar as palavras e não sei olhar bem pro significado das coisas gosto de quando ela levanta a blusa pra mim no meio da cozinha e balança os peitos de como me aponta armas imaginárias e atira, de como ela me engana e de como ela acha mesmo que está me enganando, gosto da bunda dela e gosto daqueles enormes olhos que quando me encaram fazem Júpiter parecer apenas um pequeno planeta.

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II - resiliência baby

será que você não pode simplesmente abaixar a guarda uma mísera vez quando as coisas começarem a dar errado?

porque de um jeito ou de outro estamos tentando estamos dando o nosso melhor e mesmo assim os ônibus atrasam as passagens acabam os desencontros acontecem os saldos negativam as flores murcham e a vida

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bom, a vida continua lá cega e sem dó lançando milhares e milhares de dardos pra tudo enquanto é lado e ela nunca para e ela nunca estará a nosso favor e mesmo assim você continua linda e você sendo algo qu'eu quero ver, você ainda é um lugar que eu quero estar.

III - o estranho teorema das nuvens hoje eu pensei em mil respostas

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pra te dar puta merda eu me dei mil respostas imaginárias e fiz café e mate e pão na chapa e macarrão e não dormi de novo eu pensei em mil respostas e em mil desculpas e em mil coisas nenhumas pra falar mas eu ando tão cansado eu pensei em mil teorias autores referencias links memórias impressões coisas bonitas e coisas perfeitas pra jogar na sua cara mas, merda eu ando mesmo muito cansado.

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eu deixei a televisão ligada enquanto cozinhava e fiquei escutando as notícias dos crimes e mortes e comerciais e ambição e lá fora tinha começado a nascer um dia terrívelmente incrível desses qu'eu não gosto porque eu prefiro o frio mas dessa vez não, dessa vez o dia tava irritantemente lindo e eu senti o gosto do tempero industrial e o cheiro do alho queimando na panela e aquela velha impressão de irreversibilidade que me assusta de uma forma infantil e, uau, gostar de você já não me serve mais pra nada e eu senti tanto por isso eu senti tanto pelas nuvens se afastando num estranho teorema de despedia e pelas notícias na televisão

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e por aquela manhã e por existir naquela mesma manhã de uma maneira tão estúpida e bruta que o mesmo dia poderia ter nascido limpo e belo exatamente do mesmo jeito mas sem mim, eu senti tanto que tenhamos nos amado tão mal. daqui umas semanas eu vou subir pro norte e ser covarde e lunático e egoísta como você disse eu vou respirar o ar da mantiqueira e choromingar por comida e criar calos nas mãos descarregando carga pra caminhoneiros qu'eu nunca mais vou ver eu vou cortar os pés em cacos de vidro e adoecer e me curar

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e fazer amigos que serão pra sempre estranhos e lembrar de você e de tudo mais pelo caminho gastando o mesmo chinelo velho até sentir que os meus motivos pra ter escrito tudo isso aqui já estarão longe o bastante pra caber em mim.

FELIPPE REGAZIO vive em São Paulo e escreve. Publicou Oceana, em 2013, pela editora Ponto da Cultura, Atentado Contra a Vida das Coisas Belas, em 2015, numa edição artesanal. Em 2016, foi menção honrosa pela USP com os poemas do livro Sonata em Mi Menor Para Porcos e Outros Quadrúpedes. Também organiza antologias alternativas e tem diversos trabalhos publicados em revistas, como Mallarmargens, SubVersa, Labirinto Literário, Revista Saúva, Libertinagem, O Emplastro, Revista Gueto, além de alguns jornais locais. | FELIPPE.MORAES@ZOHO.COM

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O ANEL GABRIEL DE ATAIDE LIMA | Adamantina, SP.

Dentro do meu coração uma estrela chora lágriminhas em forma de caracol.

Se eu soubesse do ouro teria nascido em Sevilha!

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Meu coração é um tesouro, menina.

Na tua mão pús-te um anel de prata (que era feito com as minhas lágrimas).

Mais se eu soubesse do ouro teria nascido em Sevilha!

GABRIEL DE ATAIDE LIMA (Adamantina, 1996) estuda e trabalha numa gráfica. É autor de diversos livros de poemas, como Quase Barroco-Novo, Fogo & Metal, Mithologÿa (poesia) e Às vezes: poesia. Seus poemas estão divulgados em seu blog, POEMAS E PENSAMENTOS MARGINAIS (https://gabrielkpoetamarginal.blogspot.com). Contribui com seus poemas em diversas revistas eletrônicas, como a Revista Subversa, a Revista Mallarmagens e a Revista Raimundo. É artísta plástico e teve sua apresentação de pinturas publicadas pela Revista Germina.

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PRESENÇA DE C.L. HELDER S. ROCHA| Vitória da Conquista, BA. / Curitiba, PR.

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De súbito fui arrebatado pelo desejo de ir ver o que não é, o que não tem forma, nem nome, nem existência. Pelo menos até ser visto, nomeado, compreendido. O rompante do instante foi tal que tudo ao redor perdera sua nitidez palpável, colorida e significante. Não foi uma barata que me fez largar a farda do útil e vestir a nudez das coisas inúteis. Fora apenas um estalo provocado por um trisco da cabeça de um fósforo sendo aceso. Um despertar para o dormido da vida. A necessidade de sentir fome mesmo estando saciado. - Mas isso é da Clarice! Ela havia decretado quando mal tinha acabado de ler o meu fragmento e eu prontamente concordei: - É sim. É da Clarice mesmo! Dias depois ela me procura nas escadas da faculdade para contar ofegante que tinha revisitado todos os textos ficcionais, crônicas, entrevistas da Clarice, mas que não havia nada, na mesma sequência, com a mesma combinação de palavras e expressões, iguais às que tinha encontrado no meu texto. Depois disso me perguntou: - Mas como? Não pode ser. Você me garantiu rapidamente e sem titubear que era tudo da Clarice. Eu entendia aquela aflição, pois senti a mesma coisa quando corri para o computador e comecei a rabiscar palavras e expressões que me imploravam para ganharem o lado de fora do meu ser, logo ao término da leitura que fiz de A paixão segundo G.H.. E respondi, buscando fazê-la compreender: - Não menti para você, pois é tudo da Clarice. Nada do que está ali agora era meu antes de escrever, nem mesmo naquele milionésimo de tempo que antecedeu ao ponto final que estabeleceu em definitivo o fim do texto, ou apenas a interrupção dele, ou da vida. Fora tudo

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dela e acho que ainda é. Não sei como é isso, mas apenas dei continuidade. Naquele instante, de breve suspensão das impossibilidades mágicas da arte e da reflexão sobre a vida, ela não poderia mesmo compreender a minha explicação sobre coisas tão inexplicáveis. E, por isso, continuou buscando estabelecer pontes lógicas. - Mas, então, você quer me dizer que seus dedos e sua mente funcionaram como as de um médium que apenas psicografou o que o espírito da Clarice lhe ditou? - Não, não senti espírito algum me ditando algo, mas senti a sua presença tão forte como se estivesse ao meu lado e concordando com o que escrevia. É apenas um desdobramento daquela sensação que possui qualquer leitor sensível de sua obra, que sente que aquele texto que ela escreveu diz nada e tudo sobre ela, mas, também, sobre o personagem e narrador dela, e, ao mesmo tempo, diz pouco e muito sobre o leitor dela, sobre o íntimo de qualquer um no mundo que permita pensar sobre si naquele instante. Não sei como. Sei apenas que aquela síntese, não sintética, do ser particular e universal em forma de palavras e de seu encadeamento numa frase, num parágrafo, no livro todo e em toda a sua obra, representou para mim mais uma extensão do tempo que não vivo quando leio ficção, quer dizer, daquele tempo externo do cotidiano que abdico quando estou mergulhado nas páginas. Um tempo que dá continuidade, mas que não continua coisa alguma, que não é contínuo. Bem, por isso digo que o que te mostrei é dela, mas fui eu quem escrevi. É justamente nesse absurdo que está a resposta para a pergunta que me fez.

HELDER S. ROCHA nasceu em São Paulo, se considera um conquistense (Vitória da Conquista-BA) e vive em Curitiba. Pesquisa Literatura. Exercita a escrita de ensaios e textos ficcionais. Publica alguma coisa no site ‘Recanto das Letras’. E se prepara para lançar seu livro de contos. | HELDERSANTOSROCHA@GMAIL.COM

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MODO DE DIZER PONTO COM JHENIFER SILVA| Campinas, SP.

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um dos objetivos da palavra atentado é atentar para o que está posto é tentar fazer você enxergar diante do perigo de tentar transformar a palavra loucura em vida instantânea ou a palavra arrebite em alucinação à beira do precipício uma vida separa da morte quando gritamos então atentado corremos o risco de ser idiotas na borda de um precipício onde nada mais acontece que não seja ver as beiradas que não seja tentar ver as beiradas que não seja tentar ver a profundidade das beiradas sempre do mesmo lugar que daqui a pouco à beira do precipício que é a palavra atentado ser suficientemente desconfiado nunca o suficientemente sério para morrer o suficientemente necessário

JHENIFER SILVA (Mirassol, 1986) é nascida em Mirassol, no noroeste paulista, por isso fala erre retroflexo. Radicada em Barão Geraldo (Campinas) desde 2013, faz doutorado no Programa de Teoria e História Literária da Unicamp. Não é poeta, mas participou da antologia 6 poetas amanhã (2012), pela edições bergamini (Limeira), e tem poemas publicados na Revista de Poesia e Arte Contemporânea Mallarmargens e na Revista Beira. Inédita em livro, atualmente organiza seu caderno de anotações para acompanhar pássaros em dias provisórios. E-mail para contato: JHENIFERTHAIS@GMAIL.COM

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PLEONEXIA

LEANDRO RAGAZZI| Londrina, PR.

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Tenho comigo um pensamento embezerrado sobre a vida do cristão Cauila, um essezim zé ninguém que sempre me pareceu um pouco macambúzio. Sujeito jururu de fazer doer a dó da gente. De família cristã praticante, praticantemente Cauila sempre praticou ir à igreja, mas a igreja não estava praticamente nele. Mesmo não percebido na congregação, Cauila, a seu modo, era fiel ao domingo pela manhã, mas Cauila não era fiel ao dízimo, sempre achou incongruente aquela prática com seus princípios sovinísticos. − Num pago a cachaça de ninguém, muito menos a do Pastor. − Rezingava o forreta Cauila, mesmo tendo ouvido que seu pastor não bebia. Cauila era casado, e esse amor tem assunto. Dava uma estória de foieto, um cordel bem do biruta. A Beócia, sua esposa, macabra de fina, era mulher tinhosa, tinha cabelo sarará, sua pele era cor de machucado seco, esturricada, feito omelete queimado. Seus olhos, como ferida aberta, com remela gangrenada, na boca não se viam dentes, era o sorriso do medo em gengiva inflamada. Beócia era feia como um sangue na unha, mas Cauila, bonito como rato molhado, enxergava Beócia como uma fêmea no cio. Quando queria bolir, Cauila lavava as mãos. Banhar? Apenas quando não suportava mais a sua fetidez. Então chamava Beócia de “minha fraternura exposta”. No momento de copular o néctar em sua consorte, famigerava aos uivos. − Sou o execrável, comigo ninguém pode. − E com sua vara de Maria preta na mão aprecêiava de machucar Beócia. Ela por apego apanhava desgostosa. Aprendeu com sua mãe que mulher sofre calada por amor. Assim

que

terminava

o

agito,

crescia

uma

reiva

de

arrependimento dentro do peito de Cauila, e gritava nomeando Beócia de semiputrefata mulher. Tão injusto Cauila, Beócia dava tudo de tudo pra ele, tanto prazerava como apanhava.

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Ela de estranheza não morria, de arrependimento também nem, então de acostumamento sobrevivia aos dias noturnos. Vivendo e sobrevivendo, Cauila acreditava que a vida era uma rebordosa de desinfelicidade. Dos males que lhe acometiam, o que mais fazia sofrer era a cefaleia. Vinha e desvinha no compasso do constante, do tinindo da cabeça, recurvada de dor dentro da cachimônia. Mas nem em tempo de dor Cauila gastava sua chelpa com remédio. Corria para a plantação de Bordo no quintal de sua habitação. Bordo é ruim como suco de chorume, aquele líquido preto igual refrigerante. Toda vez que tomava fazia careta pelo sabor, não por gastar sua chelpa. Dizia Cauila – Bordo é bom pra tudo, até pra curar chulé. Mas Cauila escondia um arcano, um mistério de cum-quibus, um segredo. Cauila nunca deixou sua consorte descobrir onde ficava a peleja do trabalho. Ele sempre foi um sujeito cenhoso, distante de todo mundo. Nhô Gasturano era seu compadre e sempre tentava uma aproximação amigável. E foi apenas para Gasturano que Cauila contou o seu mistério segredado, por confiar demais. Cauila era muito rico, mas nunca Beócia, que era feia de dar susto em cão, soube. Ele juntou tanto coco, tanto dinheiro em sua porquinha, que ela já estava para explodir, quando teve uma brilhante ideia e decidiu confiar na terra. Procurou o seu compadre Nhô Gasturano e pediu-lhe ajuda. Juntos foram enterrar o tesouro num lugar bem escondido. Na verdade Cauila não dominava, mas era dominado pelo dinheiro. Isso cega todo homem que põe mais importância nos fúteis do que em Deus.

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Aquele Zé Ninguém mantinha uma soma escondida na terra, numa cova, e o único prazer que animava o sorumbático Cauila era pensar noite e dia... e dia e noite... no seu tesouro enterrado... dentro da porquinha... há dez cavucadas debaixo do solo. Passado algum tempo seu compadre Nhô Gasturano, precisando muito de um empréstimo para quitar uma divida de jogatina, decidiu pedir um arame emprestado a Cauila. − O compadre não vai me desabrigar. − Pensou Nhô Gasturano, crendo na bondade de Cauila. Cauila percebeu a intenção de Nhô Gasturano, antes mesmo de ele chegar até sua porta. Nhô Gasturano tava com cara de curumim travesso, moleque malcriado. Então Cauila se fingiu de doente no instante que podia, se escondeu debaixo da cama, deixou de sair de casa até por uma semana inteira. E Gasturano precisando de dinheiro. E Cauila nunca aparecia para ajudar. Mas como Deus é paciência, o contrário é o diabo, Gasturano esperava confiante. E Beócia sabia o que estava acontecendo? Ainda dizem que o Brasileiro é solidário. Bem que diz as Escrituras. “Quem mostra sua avareza provoca um vazio em torno de si, e será apontado com o dedo cuja avareza não tem limite”. É dando que se recebe, assim é que se deve ser! Passado mais algum tempo, aquele Zé Ninguém foi ver a sua porquinha gorda enterrada na cova. Nada encontrou a não ser o buraco. Aquilo sempre foi inimaginânime. Apavorado, soergueu os olhos e começou a emitir zurros, a rebusnar, a reazzurar. Ergueu as mãos ao céu, arrebatou os velos da

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cabeça, lamentou-se desesperadamente, e no pino de desespero chegou a se mijar de reiva, enquanto rexingava. − Ladrões, ladrões. Fui engabelado. Já estavam de olho no meu cobre. Dinheiro conseguido a duras fomes. Dinheirozinho-zinho-zinho que juntei com os maiores sacrifícios. Ah! Minha porquinha querida, o que serei eu sem você? Um outro, seu conhecido que passaolhava pelo local, ao ver aquele pobre homem aos berros se aproximou e interrogou. − Ééééé... O que acontece de advir com o Senhor? E Cauila contou tudo, tim tim por tim tim. Proseava que desconfiava de Nhô Gasturano, coisa que é muito natural. Cauila estava com calo no coração de tanta reiva. Tinha o coração peludo. Imaginou

contando

para

sua

consorte,

a

empeçonhada

arrancaria sua gengiva quando soubesse. O Outro disse para Cauila. − Então para que queria seu bronze, só para guardá-lo? Ora meu caro, ponha uma pedra aí que ela terá para você o mesmo valor. Só o uso faz a posse. O outro não disse de improviso, tinha lido aquele texto num livro. E eu que sou o Outro, que encontrou um Zé Ninguém chamado Cauila, esposo de Beócia, que resmungava sobre Nhô Gasturano pensei imaginado. − Que vantagem levam aqueles que acumulam grandes somas e não as usam? Então disse anunciado. − Cauila, esta noite pedirão a tua alma, o que tens preparado? Cauila olhou descabelado para mim, se aparvalhou todo. Continuei. − Aqueles que ajuntam para si tesouros e não são ricos para com Deus são como árvores sem fruto, precisam ser arrancados do solo. Aquele Zé Ninguém perdeu o comedimento junto às pernas de saracura e caiu soniferado com uma dor cefálica mais forte que o

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arrependimento, sentiu o abraço da besta, o odor da burrice, e ouviu a gargalhada da morte. − Esconjuro! Naquele momento, desvalido no chão, Cauila era o tropeção, era a unha encravada, era o escuro no buraco. Cauila era ninguém. Deu tudo por tudo. E Beócia, sua esposa, feia como o piolho estalado na unha, mas acreditada, se amofinou com o quente cadáver, feito abraço de jararaca-verde,

perdendo

a

hidratação,

chorando

lágrimas

de

peçonha pela vida inteira. Dizem que quando venta muito se pode ouvir os lamentos de Beócia.

Princípio: O que agir com avareza perturba a sua casa, mas o que odeia presentes viverá. (Provérbios 15:27)

LEANDRO RAGAZZI é professor de literatura no ensino médio, bacharelado em letras pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), pós graduado em arte e educação pelo ESAP (Instituto de estudos avançados de pós-graduação), e está fazendo uma complementação teológica na UNIFIL (Centro Universitário Filadélfia). Durante 10 anos trabalhou como dramaturgo, ator e diretor de teatro, tendo em seu currículo mais de 50 espetáculos profissionais.

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AO ESPREGUIÇAR DO SOL LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO| Monteiro, PB.

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Inácio caminhava levando uma enxada nas costas e um saco em uma das mãos. Era noite. A lua e as estrelas iluminavam-lhe a passagem. Àquela hora não costumava passar gente por ali. Em sítio dorme-se com as galinhas. A cada passo, a chinela arrastando e levantando poeira, ele pensava mais fortemente no desejo que o consumia. Ele não sabia lidar com essas coisas de sentimento. Fora criado no meio do mato. Falava pouco. Não tinha estudo. Por onde andava ficava pelos cantos, feito bicho acuado. O chapéu sempre baixo, cobrindo-lhe os olhos. Quem o via não o mirava por muito tempo, com medo não só da sua figura obtusa como do facão sempre à cintura. Razão pela qual tinha fama de ser cabra valente. Não podia ser diferente, capataz que se preze anda armado. Apesar da casca dura que o revestia, Inácio era todo amor, desde que conheceu Josefa. Tentou falar com a moça diversas vezes, mas sem sucesso. Faltava-lhe a voz, fugia-lhe o ar. O máximo que conseguia era acenar de cima do cavalo ao passar pela barragem onde ela lavava roupas. Ele ficava furibundo por causa disso. “Frouxo! Tu é um frouxo mesmo, besta!”, xingava-se com raiva. E mais envenenado ficou quando viu, pela manhã, outro conversando com a sua “Zefinha”. O sangue subiu-lhe ligeiro e quente. Pegou no cabo do facão por instinto. “Maldito!”, praguejava em voz baixa, longe do casal. Pronto. Isso foi suficiente para que ele saísse noite adentro com uma enxada nos ombros e um saco nas mãos. Durante o trajeto falava sozinho: “De hoje não passa!”, “Eu cegue se não fizer isso hoje!” Quando avistou a casa de Josefa, silenciosa e calma em seu sono, estremeceu, mas não desistiu. A casa era rodeada por samambaias, suculentas, coroas de frade, espadas de São Jorge e outros tantos de plantas. Era um verdadeiro oásis no meio daquele tempo seco e poeirento. Josefa morava sozinha e adorava aquelas companhias fotossintéticas. “Ela ia ver só!”, pensava, enquanto tirava as chinelas dos pés. A ira fazia-o ser rápido, sem deixar de ser silencioso. Num piscar de olhos abriu doze covinhas, formando um

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pequeno retângulo, bem em frente à janela do quarto de Josefa. Aos poucos foi concluindo o serviço. No dia seguinte daria um belo susto em todo mundo. “Quero mesmo ver se o desgraçado ainda vai procurar por ela!”, ruminava sua angústia. O suor pingava-lhe da testa, mas estava feliz com o trabalho. Contemplou-o admirado e aliviado. Suas mãos ardiam, arranhadas. O sangue brotou de uma delas ao retirar um espinho encravado. Apesar do cansaço, acreditava que tudo o que fez valeria à pena. Estava feliz e vingado. Juntou tudo o que trouxera e partiu de volta para casa, mas não sem antes deixar um pedaço de madeira no local com um nome garatujado com carvão: Inácio. Não era covarde, assumia a autoria dos seus feitos. Não dava a ninguém o privilégio da dúvida. Antes mesmo de o sol começar a se espreguiçar, Josefa abriu a janela do quarto. Levantava cedo. Varria o terreiro, tomava um café com bolachas, fazia o almoço, arrumava a casa e seguia para a barragem, onde exercia sua profissão: lavadeira. Ela deu um pulo e benzeu-se, quando finalmente abriu as janelas. Um pequeno roseiral vermelho erguia-se diante dela. Correu para o lugar, curiosa. Leu a placa de madeira e sorriu. O sol finalmente nasceu.

LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO é advogada, ávida por literatura, razão pela qual nunca dispensa a companhia de um bom livro. Vive em Monteiro, interior da Paraíba. Publicou o livro A vírgula e outros pontos (Penalux, 2016), participou da antologia O demônio de cada um (Penalux, 2016), além de já ter publicado em diversos periódicos especializados. | LIZZIANEAZEVEDO@HOTMAIL.COM

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TONEL DE DANAÍDES LOECY ROSA DAMÁSIO |Porto Alegre, RS.

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Porque havia um tonel de Danaides no confim da casa; e não se sabia quem o havia posto lá. Era verdade que à sua chegada o tonel já estava lá e que, apesar do incômodo de sua presença, combinava com a casa. Mas não devia haver um tonel de Danaides em casa; em qualquer que fosse o cômodo; bem o sabia. Não que fosse feio _ negativa que não lhe atribui as características do belo; mas se ao menos contivesse as águas celestiais da mais duradoura tempestade... Pois a sede não cessava. Talvez por causa do tonel. Não; não devia ter um tonel de Danaides em casa, mas não lhe pertencia; não absolutamente. E teria de cavar o confim para desenraizá-lo; mas, se assim o fizesse, a cavação soterraria a casa. O tonel era irremovível. Tinha de aceitar: havia um tonel de Danaides no confim da casa. Algo na afirmação era inaceitável. Talvez porque insistia que a casa não devia ter um tonel; simplesmente porque ambos ocupavam um espaço comum; e a casa, por mais que tivesse mais cômodos, por mais que houvesse um esforço sobre-humano para expandi-la, continuava limitada por essa ilimitude _ não aparente _ que o tonel irrompia; porque esta era a natureza de seu ofício: esburacar a fonte; e isto lhe parecia injusto, mas teve de confessar que a casa ficaria em ruínas sem o tonel; e já devia estar arruinado quem o deixou lá. Se inclinasse a cabeça às bordas do tonel e se desequilibrasse, haveria o nunca, porque não voltaria para casa; sabia disto, tanto quanto os peixes sabem que devem fugir das garças, jamais saltando à superfície para tomar ar; não, deviam mergulhar e permanecer em mergulho. Simplesmente sabia. Sim, havia um tonel em casa e não podia refutá-lo. O fato era: tinha sede e não podia inclinar-se sobre o tonel. Lá, e ali, em alguma aduela daquela concavidade, podia ouvir as fontes escoarem inesgotáveis; apesar de não _ nunca _ entorná-las no tonel. Mas a sede não lhe incomodava; não tanto quanto o tonel; ainda que julgasse a casa portadora de um tipo raro, e único, de singularidade, se avistada em relação às pluralidades do lugar: intrigava-lhe não poder mudar o

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tonel de posição. Qualquer que fosse o mais recente cômodo construído devia, por razões matemáticas, contornar o tonel. Não havia corredor na casa livre do cruzamento com o tonel. Mesmo os cômodos dos andares superiores tiveram, num cálculo preciso, suas edificações baseadas no tonel. Não; não se devia ter um tonel de Danaides em casa; bem o sabia; tanto quanto não devia ter uma região movediça no deserto. Mas à sua chegada o tonel já estava lá. E a casa tinha as proporções grafadas no tonel; mas as medidas extrapolavam as leis do confim. A solidez do tonel lhe atribuía a forma externa de um googólgono; o que, naturalmente, resultava imaginar que o abstrato lhe conferisse o disforme interno de um googolplex. Era melhor não pensar naqueles números; ao menos não em termos matemáticos redutores; afinal, a princípio, bem podia ser que o tonel de Danaides já estivesse lá, antes que o arquiteto pudesse calcular as dimensões da casa; mas isto lhe parecia improvável; ainda que a presença do tonel impedisse que probabilidades fossem negadas de prontidão. Não; melhor não pensar naqueles números. Mas, ainda que _ apenas talvez _ o tonel não tivesse qualquer senso, culpava-lhe pela desorientação a que se refere à disposição das janelas e portas da casa; e tudo mais que estivesse lá dentro. Não havia um elemento que se dispusesse à ordem: a não ser que a caoticidade pudesse ser considerada uma ordem. Mas o que tinha de ver com isso, afinal: a casa que se resolvesse; já havia sido construída antes de sua chegada; e ainda estaria construída depois de sua partida. Não; nada tinha de ver com isso. Podia _ e deveria _ vedar o tonel; a sede que se acostumasse a se sentir. Recobriria o tonel que cobria o confim a descoberto; isto amenizaria o desconforto para com os números _ inumeráveis números! _ grafados no tonel. Era verdade que pensava em desconstruir a casa; só não acreditava que o faria realmente; não lhe pertencia: não absolutamente. O que lhe indicava que a casa, o tonel, os números, tudo podia comprimir-se à equidade do zero ou à nulidade do invisível;

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era a abstratude _ esta particularidade que a solidez do tonel resguardava, da forma que os buracos espaciais estruturam as galáxias _ a diferença a que se assemelhava; pois bem podia ser que a sede fosse excessiva àquela falta que o tonel ocultava pelo ofício de revelar; e esta mesma diferença lhe assegurava a possibilidade de haver toneis naquele tonel: um para unidades absurdas de fontes inesgotáveis no confim da casa. Não; não devia haver um tonel de Danaides.

LOECY ROSA DAMÁSIO é formada em Letras pela PUCRS. Foi aluna do escritor e professor de Escrita Criativa Charles Kiefer pela Oficina Literária Charles Kiefer e Editora Ltda. Ex-integrante do grupo musical RimaQ’Age, vencedor de dois prêmios em Campinas-SP. Administra o site: loecydamasio.wixsite.com/libreto.

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UMA CENA DE METRÔ MAGNO MELLO | Rio de Janeiro, RJ.

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Lá estava eu naquele dia num vagão de metrô em São Paulo. O trecho era curto, apenas quatro estações, da Trianon-Masp até Sumaré. Vinha de uma exposição do expressionismo alemão no Masp e ia a uma sessão de psicanálise, tudo delícia embora tudo tão denso – lembrei-me de doce de leite em pasta guardado no congelador. Já comeu? Prove! Então, era esta a minha situação psíquica: eu, muito à vontade em meu próprio corpo, relaxado, mas com olhos atentos, que é o que acontece quando se sai de uma boa exposição. Cheguei ao metrô, entrei no vagão que devia ter uns vinte e cinco passageiros, encontrei um lugar para me sentar e sentindo-me da cabeça aos pés em estado quase meditativo passei a observar sem qualquer pudor a troca inconsciente de informações não verbais entre as pessoas. Se a ideia lhe parece esquisita, explico melhor. Quando pessoas se juntam em determinado espaço, seja por qual for o motivo, cria-se uma evolução complexa, divertida e quase imperceptível entre elas, o que talvez não seja nenhuma novidade. A novidade, porém, fica por conta desse sempre inédito balé de causa e efeito. E foi o que vi naquele momento, deliciando-me com minha curiosidade invasiva, mas tomando cuidado para me manter o mais neutro possível na situação, a fim de não romper o fluxo, do qual eu também fazia parte, claro. Pois bem, havia uma garota muito bonita e, como era de se esperar, a maioria dos homens a observava de vez em quando, inclusive eu, quase sem querer. Mas entre os homens havia dois que a olhavam com maior insistência: um, mais jovem, lá pelos dezenove anos de idade, e o outro, por volta dos quarenta. E parecia que, psiquicamente, disputavam-na. O mais jovem a olhava de cima a baixo, enquanto o mais velho observava o mais jovem e logo depois também se voltava para a moça, forçando um pouco seus olhos em direção aos dela, certamente na esperança de que ela retribuísse a

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sedução. Tudo em movimentos rápidos e sutis. Já poderia configurar assédio moral? A despeito do crescente policiamento do politicamente correto, a questão às vezes não é tão simples. No entanto, uma senhora já fazia ligeiro ar de desaprovação em direção ao mais velho. Um rapaz ao lado percebia a expressão da senhorinha e parecia rir por dentro, o que levou outro a se ajeitar no assento e tossir levemente. Quando esse tossiu, quatro passageiros espalhados pelo vagão também tossiram, quase ao mesmo tempo. E como estamos falando de simultaneidade, outros dois passaram a mão pela cabeça no exato instante em que um senhor esfregou as mãos nas próprias pernas, como se estivesse enxugando o suor de suas palmas. O balé continuava em efeito cascata. Uma mulher beirando os trinta anos, um pouco acima do peso, a cinco metros da cena, passava rapidamente a vista sobre nossa garota bonita, com um ar de... não sei bem o que. Um senhor coçou o nariz e imediatamente uma jovem de óculos vermelhos repetiu o gesto, e, da mesma forma, uma menina de uns quinze anos, enquanto tossidas secas se espalhavam pelo ambiente. O rapaz mais novo pareceu perder o interesse pela conquista, já demonstrando ele também certo ar de desaprovação em relação ao mais velho, que ainda tentava arrancar à força um olhar de reciprocidade da moça bonita. Agora, acredito que sim: já se configurava assédio moral. Nesse momento as pessoas se mexiam mais do que nunca, ajeitavam-se no assento, passavam a mão em seus corpos e tossiam mais e mais vezes, dando todos os sinais de estarem incomodadas com a situação. Já se iam duas estações. Até que o mais velho se preparou para saltar na estação Clínicas, uma antes do meu ponto final. Quando o homem finalmente deixou o vagão e a porta se fechou, deu-se um acelerado entreolhar geral e muitos se voltaram para a moça que fora assediada, lançando-lhe pequenos olhares e

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mínimas expressões faciais de comiseração. O mais novo, porém, exagerou

um

pouco

em

sua

demonstração

de

solidariedade,

arriscando um último olhar mais demorado, como se o fato de o outro ter feito o que fez desse ao rapaz um caráter de boa pessoa ou, no mínimo, de melhor opção. Logo, porém, ele percebeu seu gesto duvidoso. E, mais ainda, que ela não iria olhar de volta, de jeito nenhum. No final, pareceu-me que o assediante mais velho deu aos outros homens presentes o mesmo tipo de indulgência dada ao mais novo: pelo menos daquele jeito eles não eram. Será que não? Claro que sobre esses últimos detalhes são apenas elucubrações o que faço. Mas quanto à existência do fluxo de ações e reações quase imperceptíveis entre pessoas, num universo de imprevisibilidades, não há o que discutir. Penso agora num conceito de Isaac Linger: “o que todos os artistas têm em comum é uma curiosidade incomum sobre o caráter e o comportamento humanos (...) que é um modo especial de ver o mundo”. Mas, há como não ser especial o olhar de uma pessoa com sua

história

única,

sua

configuração

única

de

informações,

conhecimentos, imagens, sensações, sinapses e tudo mais que permeia o indivíduo? Pois, sendo artista ou não, este mundo é mesmo muito interessante, só não vê quem não quer ou anda muito ocupado com coisas menos importantes que viver.

MAGNO MELLO é compositor, escritor, educador e livre pesquisador, com mais de 110 músicas gravadas por diferentes artistas. Em 2010 recebeu o Prêmio Interações Estéticas, MinC/Funarte, pelo estudo de Poética Musical. Em abril de 2016 publicou o primeiro romance, "Trustália - uma quase distopia", pela Chiado. Venceu o concurso nacional Maratona Literária, da Editora Oito e Meio. Publicou o livro "Velhos Poemas Escritos Agora", em dezembro de 2016, no Rio de Janeiro.

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NÃO HÁ TRÂNSITO VANDER VIEIRA| Vitória, ES.

Não há trânsito. As pessoas estão paradas e emparedadas em seus carros-casa à espera do carnaval do ano que vem. Não há bifurcação, enredo ou olhadela nem frestas no asfalto, tampouco um lance de dados. Existe rua, gente, rancor e os carros. Os carros já ganharam

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seus prédios multifacetados de oito mil lugares ao lado da marquise da praça central – onde jazem os mendigos e as crianças de famílias arrebentadas. Esses rebentos, dentro em breve, serão os detentos das prisões medievais mantidas por um sistema idiocrata, esse que não mata na barriga, mata na calçada, mata Cláudia, mata Herzog, mata Jango, ocultando a cada dia os seus cadáveres, preferencialmente os de pele negra ou parda. Essa gente tão bem educada faz carros-casa, carros-banco e empreita-carros, faz quitutes e outros artefatos gourmetizados se esquecendo, entretanto, do chão da terra, do chão da fábrica, dos sem-reboco que compõem nossas cidades, os mesmos que você e eu, a cada dia, não vemos: os sem-face.

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Destarte, não há trânsito não há trincheiras abertas que nos permitam ir e vir, não há terra demarcada nem reforma agrária, e em casa, à despeito de sua vocação contestatória, se trancam as bichas e os travestis com medo das lâmpadas e das navalhas – sobretudo das navalhas que cortam laços sem derramar sangue. E sem trânsito, sem passos, sem voz e sangue, chegará o dia do apocalipse. Nós, sedentos em se tornar gente tão bem educada, em ter carro, em ser máquina, não seremos mais pés, não teremos morada.

VANDER VIEIRA é poeta, mineiro do interior e tem 27 anos. É filho do Luiz e da Eunice e tio da Maitê. Vive em Vitória, ES desde 2009. Publicou em 2015 seu primeiro livro, "Descaminho", pela editora Multifoco). Também já foi publicado por diversas revistas literárias, como a Subversa, Samizdat, Diversos Afins e Mallarmargens. | VANDERVIEIRA22@GMAIL.COM

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Entrevista: Júlio de Almeida [comandante Juju] e seu romance “Vaicomdeus, SARL”

Júlio de Almeida, mais conhecido como Comandante Juju, participou ativamente na luta pela descolonização de Angola. É co-signatário das FAPLA e mais tarde, entre 1975 e 1976 exercendo a função de Comissário político se ocupa do Departamento de Orientação Ideológica, onde era responsável pelos comunicados diários sobre a situação político-militar do país. Entre os anos de 1984 e 2014, foi professor de Engenharia na Universidade Agostinho Neto. "Vaicomdeus, SARL" é o seu primeiro romance publicado recentemente em Portugal. Combinando uma curta e intensa história de amor com algum humor, perpassam na obra quarenta anos da História de Angola. A Subversa teve o prazer de entrevistar o autor que conta um pouco mais sobre alguns detalhes da obra.

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SUB | Durante o lançamento, o senhor comentou que alguns episódios tinham sido "vividos de verdade". Como é reviver esses episódios através da literatura? JÚLIO | A literatura permite-nos reeditar algumas das experiências e vivências que fomos tendo ao longo da vida. Na tarefa de pormos por escrito episódios outrora vividos, somos levados a um esforço de compreensão do que aconteceu e, se disso formos capazes, fazer com que o leitor comungue desses episódios. Não se trata só de escrever o que se passou ou como aconteceu. É preciso que a forma de o fazer seja “aceite” por quem lê. Isto quer dizer que a escolha dos episódios não é aleatória, mas sim que prossegue determinado objectivo. Para quem escreve só será gratificante recordar factos e situações passados, “vividos de verdade”, se os objectivos que se pretendeu alcançar puderem ser obtidos através do interesse e envolvimento do leitor.

SUB | Pepetela, no prefácio que fez à obra, diz: " Uma característica importante deste livro parece ser o falar de coisas sérias, dramáticas mesmo, mas sem perder nunca a qualidade estratégica número um para a sobrevivência do angolano, a capacidade de rir das próprias desgraças ". Essa capacidade é fulcralpara o senhor na literatura? JÚLIO | Eu entendo a literatura de ficção como resultado da interacção de dois vectores: reflexão e divertimento. Como muito bem refere Pepetela, rir das próprias desgraças tem a vantagem de, sem escamotear o denunciar de erros e dificuldades em que se está envolvido, apresentá-los com a confiança de que serão ultrapassados. E o humor é isso mesmo: é rir, apesar disso.

SUB | O senhor também comentou durante o lançamento que não queria escrever um livro de História, masde histórias que podem não ser reais, mas são verdadeiras. Pode explicar?

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JÚLIO | Fazer História é tentar narrar os acontecimentos, juntando tantos factos e suas justificações de modo a que o que se narra se pareça o mais possível com o que realmente aconteceu. Contar estórias, por outro lado, é criar situações de vida que respeitam o contexto histórico em que se desenvolvem, isto é que sejam verdadeiras mesmo que não tenham sido reais. Assim como uma caricatura não é uma fotografia ou uma anedota não é uma tese de mestrado, estas “formas de arte” permitem criar situações e/ou personagens que, ressaltados alguns traços fundamentais (verdadeiros) apresentam maior força do que as suas “formas reais”.

SUB | O livro foi publicado em Angola em 2001 e agora, passados 16 anos em Portugal, que a distância temporal tem alguma influência na recepção e entendimento da obra? JÚLIO | Quanto ao entendimento da obra acho que o facto de ter sido editada há já 15 anos pela primeira vez, isto não traz consigo nenhum elemento negativo: os aspectos históricos são o que eram e a ficção e o romance que apresenta são perenes e o contexto em que evoluem as personagens ainda hoje são actuais. Por outro lado, as apresentações, críticas e observações que a obra tem merecido indicam para uma boa recepção da mesma. O futuro dirá melhor.

SUB | O livro mostra a decepção dos protagonistas Eugênio e Cecília, que estiveram presentes na luta pela independência, com os rumos do país. Essa decepção pode ser resumida com a frase presente no livro: "Não foi nada disso que nós combinamos" ? JÚLIO | Sim. Essa frase resume bem o facto de muitas das expectativas carregadas durante os tempos da luta de libertação não só não terem sido alcançadas apesar dos esforços dispendidos (isto é, desconseguimos de as realizar) mas vai mais além, acusando um dos interlocutores de estar a fazer o que “não foi combinado”.

SUB | Cecília cria uma Holding de agências funerárias, tendo ao início adquirido parte de uma empresa estatal. Desde quando a morte se tornou um negócio lucrativo em Angola? JÚLIO | Depois de Caim ter morto Abel, o que fizeram Adão, Eva e o próprio Caim ao corpo defunto do infeliz Abel? A Bíblia não se pronuncia sobre isso. Diferentes sociedades humanas deram e dão

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tratamento diferenciado aos seus “mortos”. Não foi a Morte que se tornou um negócio. O culto das actividades funerárias é tão antigo quanto a própria humanidade e tem sobrevivido a todos os sistemas de sociedade havidos e certamente a haver. O facto de uma Unidade Económica Estatal se ter visto transformar numa SARL mantendo o seu objecto de trabalho (agência funerária) é simbólico para a mudança dos tempos, para a passagem da economia centralizada para a economia de mercado. Em qualquer delas é imprescindível tratar dos mortos.

SUB | Cecília e Eugênio são de duas gerações diferentes e, mesmo estando perto um do outro, nunca se encontraram durante o período de luta pela libertação. Após passados tantos anos, encontram-se e vivem um amor curto e intenso. Poderia ser de outra forma? JÚLIO | Poderia. Bastaria que eu o tivesse querido assim! Mas então não haveria romance, não haveria este livro sequer. Talvez um outro. Tal como atrás a Morte, o Amor é outro tema permanente das sociedades humanas. E acontece no espaço e no tempo finitos que a cada um dos seres humanos é dado viver. E não nos acontece, fora desses limites. O acaso impediu que tivesse havido uma mais longa caminhada comum dos dois personagens do romance. E o acaso permitiu que ainda assim se encontrassem por um breve momento em que se entregaram totalmente um ao outro. Valorizei não a duração do amor, mas sim a sua intensidade. “Il n´y a pas d´amours heureux”. Portanto, não poderia ser de outra forma.

SUB | Cecília e Sissy, dois nomes para a mesma mulher. Quem é Cecília e quem é Sissy? JÍLIO | Cecília é a jovem que, tal como Eugénio, também viveu e sonhou naquela etapa da história nacional que é descrita no primeiro andamento do livro: “Os Vivos”. Também sente que gostaria de ter dado continuidade a esse projecto e de, nessa fase, ter encontrado Eugénio. É isso que a torna inicialmente curiosa e depois se transforma no breve e intenso romance que entre ambos se estabelece. E é por Cecília que Eugénio se enamora. Sissy é a mulher da real-politik, a que se adapta ao novo rumo do país, isto é, está disposta a fazer concessões à ética que a nova ordem exige e que vive em permanente conflito com a sua personalidade original e que, finalmente, se propõe afastar-se e regressar às origens, abraçando um moderado optimismo e alguma esperança que integra o último andamento do livro: “Renascidos”.

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SUB | Encontramos durante a leitura alguns nomes de pessoas que viveram a História de Angola, principalmente na luta pela libertação do país. É uma forma de homenageá-los? JÚLIO | Sim. É fundamentalmente isso. E é também uma forma de afirmar que só sonhando, só com a utopia, nos conseguimos aproximar, da forma que nos for possível, da concretização desses sonhos.

SUB | Qual mensagem pode ser enviada por quem viveu o "outro tempo" de Angola para os que são jovens do país nascidos no século XXI? JÚLIO | Uma mensagem de esperança e um voto de confiança de que as novas gerações, ou melhor, de que uma minoria inteligente e dedicada, pertencente às novas gerações, terá a oportunidade e a responsabilidade de manter vivos e tentar realizar alguns dos valores universais que durante algum tempo nos guiaram e nos transformaram em actores das grandes mudanças havidas na vida nacional no decurso da segunda metade do século XX.

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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