Educação Literária no 2.º Ciclo do Ensino Básico

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Isabel Sofia Calvário Correia Pedro Balaus Custódio

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EDUCAÇÃO LITERÁRIA NO 2.º CICLO DO ENSINO BÁSICO

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PROPOSTAS PARA ALUNOS SURDOS E OUVINTES


FICHA TÉCNICA

1.a Edição Lisboa, maio 2021

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capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

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título: Educação Literária no 2.º Ciclo do Ensino Básico – Propostas para alunos surdos e ouvintes autores: Isabel Sofia Calvário Correia; Pedro Balaus Custódio edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)

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isbn: 978-989-9028-22-7 depósito legal: 482117/21

© I sabel Sofia Calvário Correia; Pedro Balaus Custódio Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500


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ÍNDICE Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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CAPÍTULO I – Educação literária no ensino de português

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1. O Português L2 para alunos surdos: um desafio metodológico . . . . . . 1.1. O Programa de Português L2 para alunos surdos (PPL2AS) . . . 1.1.1. Domínios temáticos, Descritores de Desempenho e Conteúdos; Resultados esperados . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Leitura e Literatura: ler para ser bilingue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.1. Ler e fruir? Leitura no 2.º CEB . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.2. Educação literária e ensino da língua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.3. Educação Literária no Ensino de Português a Alunos Surdos: que recursos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Educação Literária – uma alternativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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L2 a alunos surdos: uma alternativa ou um paradoxo? . . . . . . . .

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CAPÍTULO II – Educação literária e leituras supletivas

no 2.º ciclo do ensino básico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

1. Notas breves sobre o currículo de Português no Ensino Básico . . . . . . 2. Os textos literários no 2.º ciclo do ensino básico – corpos adicionais de leitura? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. As sugestões de leitura incluídas em alguns manuais. O que falta fazer? 4. Algumas leituras supletivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. Conclusões breves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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PREFÁCIO

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Se A literatura, que é a arte casada com o pensamento, citando o génio literário de Pessoa, na pena de Bernardo Soares, a linguagem é pensamento, como afirmou Wittgenstein; mas é-o quando assume múltiplas formas, nomeadamente quando se plasma em linguagem literária. A literatura é feita de língua num expoente distinto, prazeroso e desafiante para nos fazer sonhar, sentir, raciocinar como seres pensantes. Sem literatura, não há enriquecimento vocabular, abertura de horizontes, entre tantas e múltiplas viagens que um texto literário potencia. Assim, literatura também é sinónimo de educação; logo, deve ser acessível a todos. O trabalho que agora se publica sugere obras literárias numa perspetiva plural: desde as escolhas para além das diretrizes programáticas, até à proposta de algo inusitado, paradoxal, como indicia o título do primeiro capítulo. Na realidade, a educação de surdos carece de uma abordagem aberta e transdisciplinar e esta obra tem o arrojo de propor isso mesmo. O ensino de Português como língua segunda é fundamental e está estatutariamente reconhecido, porém, está na altura de ser um ensino digno, sólido e em equidade. As crianças e jovens surdos não precisam do Português apenas como ferramenta de comunicação. A comunidade surda deve conhecer a riqueza literária do seu país, acedendo de forma plena à cultura nacional. Desta forma, é salutar propor o domínio da 7


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educação literária também para crianças surdas. Contudo, e como este livro o demonstra, é necessário ter em mente os ensejos das crianças e as suas expetativas, por isso, o acesso à literatura deve considerar a vertente bilingue e, até, ultrapassar as fronteiras nacionais. A criança surda precisa de aceder à linguagem literária para se tornar num jovem pensante e num adulto autónomo e capaz de ter fruição literária. Este livro aponta propostas interessantes e de revisão programática que urge levar a cabo. Para além disso, também se questiona a fruição literária para além de programas. espartanos, sugerindo-se outros horizontes complementares para todas as crianças se tornarem leitores capazes, mas sobretudo, leitores felizes. Considerar o devir dos tempos, propor estratégias de didática da leitura e da literatura inovadoras é, também, outro dos méritos dos autores desta obra. Enquanto cidadão surdo português, apraz-me ler propostas que respeitam a minha identidade de pessoa bilingue e que me propiciam momentos de reflexão sobre a educação de crianças, surdas e ouvintes, todas elas o futuro do meu país. Por essa razão, espero que esta obra seja a pedra angular de muitas reflexões e mudanças no ensino do Português, levando a que se repense que uma língua é mais do que uma ferramenta, é sobretudo um veículo de pensamento. A isso, chama-se literatura.

armando baltazar

Coordenador da Comissão Instaladora e primeiro Presidente da Federação Portuguesa das Associações de Surdos Fundador e atual Presidente do Conselho Fiscal da Associação de Surdos do Porto Medalha de Mérito Internacional de II Classe da Federação Mundial de Surdos 8


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capítulo i

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Educação literária no ensino de Português L2 a alunos surdos: uma alternativa ou um paradoxo?


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1.  O Português L2 para alunos surdos: um desafio metodológico

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As diversas investigações que têm vindo a ser feitas, em termos internacionais e nacionais, mostram de forma inequívoca a relação bilateral entre consciência fonológica e decifração leitora. No caso português, o Plano Nacional do Ensino do Português (2005-2008) confirmou a importância do conhecimento explícito da oralidade para uma fluência leitora e escrita. Um treino precoce que leve as crianças a identificar, segmentar e manipular as unidades sonoras da língua prediz um futuro bom leitor e, consequentemente, ao compreender as relações não-unívocas entre fonema/grafema, um aluno capaz de uma ortografia escorreita. O Português, como língua opaca que é, precisa de um destro reconhecimento auditivo e uma afinada discriminação dos sons da língua para que o aluno seja capaz de transpor a forma sonora para a forma gráfica e vice-versa. Perante tal assunção teórica e didática, como ensinar uma língua oro-auditiva a quem não ouve? Se o reconhecimento fonográfico é imprescindível, como pretender que uma criança surda leia aquilo que não ouve e, em alguns casos, nunca ouviu? A resposta está longe de ser simples, porém, a nosso ver, não implica que seja impossível. Em primeiro lugar, e contrariamente aos pressupostos que norteiam hoje o ensino de uma língua segunda, o Português só será sig11


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nificativo para uma criança surda se o seu ensino for mediado pela Língua de Sinais Portuguesa (LSP)1. Afigura-se necessário, antes de partirmos para a justificação desta nossa proposta didática, apresentar alguns conceitos, tais como os de língua de sinais portuguesa e língua portuguesa para alunos surdos. A língua de sinais portuguesa é um sistema linguístico composto por signos arbitrários, pseudo-icónicos e convencionais, sendo veículo de comunicação e expressão cultural da comunidade surda portuguesa (Amaral & Coutinho, 1994; Correia, 2009). Este idioma é pleno e independente do Português, que não é a sua língua-mãe, com que apenas mantém relações típicas de uma língua minoritária em contacto com o idioma oficial e maioritário do país (Correia, Santana & Silva, 2020). A LSP tem relações de proximidade com a língua de sinais sueca, nomeadamente no seu alfabeto manual, uma vez que o ensino da lecto-escrita em Portugal começou em 1823 pelas mãos de um professor de surdos, de nacionalidade sueca, Per Aron Borg (Carvalho, 2007). Todavia, ela emergiu naturalmente da convenção entre crianças e jovens surdos que, na escola que frequentavam, combinavam com os professores os sinais que representavam conceitos. “A aprendizagem dos signaes dispunha de mais duas horas. Todas as 4a feiras e sábados entre as 11h00 e as 12h00 para proceder à regula1

Usamos ao logo deste texto a designação Língua de Sinais Portuguesa, recentemente proposta, (Custódio e Correia, 2019 ao invés de Língua Gestual Portuguesa, que é mais comum e que consta em documentos oficiais. A nossa opção assenta em critérios de história da língua portuguesa e terminologia, tendo sido explanada em artigo prévio. Para mais informações, consulte-se Custódio & Correia, 2019, pp. 59-72. 12


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rização de novos signaes. Tratava-se de signaes captados pelos discípulos e faziam referência ao novo vocabulário ministrado pelos mestres durante a semana.” (ANTT/MR/ Negócios Diversos/ “Negócios do Reino” mç. 1922)

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Como se pode inferir pelo acima exposto, o ensino da leitura e da escrita começou por ser mediado pela LSP, pois foi este o meio de contato possível entre mestre e discípulos. Esta abordagem designa-se método gestualista e, segundo fontes chegadas até aos nossos dias, foi proposto pelo Abade de L’Épée que, assim, instruía os alunos surdos no Instituto de Surdos de Paris. “Le seul but que je me proposai fut de leur apprendre à penser avec ordre, & à combiner leurs idées. Je crus pouvoir y réussir em me ser-

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vant de signes représentattifs assujetis à une Méthode dont je composai une espece de Grammaire.” (L’Épée,1784, p. 9)

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Esta metodologia foi contrariada em 1888 aquando o Congresso de Milão que legitimou o método oralista puro, ou seja, implicou a proibição do uso de uma língua de sinais em quaisquer contextos, nomeadamente o do ensino da leitura e da escrita que era o preconizado pelo já mencionado Abade de L’Éppée e seus seguidores. Não cabe neste capítulo discorrer sobre o prejuízo que tal metodologia implicou em termos de identidade linguística, liberdade de comunicação e desenvolvimento de milhares de surdos. Felizmente, anos mais tarde, no designado congresso de Vancouver determinou que não mais se usasse esta metodologia opressora, que proibia a livre expressão numa língua natural e plena obrigando a métodos de aprendizagem assentes na oralização pura e não na absorção de 13


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conhecimentos. Caminhava-se para o ensino bilingue, ou seja, o surdo deve aceder aos conceitos da língua oral do seu país através da sua língua de sinais natural. Avançando concretamente para o caso português, o reconhecimento da língua de sinais portuguesa, designada, como já dissemos em nota, estatutariamente por Língua Gestual Portuguesa, implica: “Proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades” (Constituição da República Portuguesa, artigo 74.º, alínea h). Quase uma década depois, constitui-se no nosso país, a rede de Escolas de Referência para o Ensino Bilingue que o Dec. Lei 3/20082 legitima, advogando o estatuto das aprendizagens das duas línguas:

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“A educação das crianças e jovens surdos deve ser feita em ambientes bilingues que possibilitem o domínio da LGP, o domínio do português escrito e, eventualmente, falado, competindo à escola contribuir para o crescimento linguístico dos alunos surdos, para a adequação do processo de acesso ao currículo e para a inclusão escolar e social.” (Dec.

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Lei 3/2008 de 7 de janeiro, art. 23.º, ponto 1).

Assim, o estudante surdo acede ao currículo através da língua de sinais portuguesa, regida por programas curriculares específicos3, e aprende português como língua segunda. Três anos mais tarde, 2

À data deste texto, está já em vigor outro articulado legal, o Dec. Lei 54/2018 de 7 de junho. Todavia, como ainda não estava aquando a elaboração do Programa de Português como Língua Segunda para Alunos Surdos, não o citamos. Acrescente-se que pugna também pelo ensino de ambas as línguas. 3 Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa para o Ensino Básico 14


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foram homologados os programas de Português L2 para alunos surdos em que nos deteremos.

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1.1.  O Programa de Português L2 para alunos surdos (PPL2AS)

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Este documento orientador surgiu em 2011 pois, como será evidente, as metodologias e documentos em vigor para o ensino de Português Língua Não Materna, por exemplo, a filhos de imigrantes a frequentar o ensino obrigatório em Portugal, não se afiguravam suficientes perante a especificidade de um público-alvo que não acede à vertente oral do idioma. Assim, o PPL2AS reconhece “o modelo de educação bilingue com base na equidade entre a Língua Gestual Portuguesa (LGP) e a Língua Portuguesa (LP) escrita, e na afirmação de um grupo minoritário, pressupondo também um modelo bicultural.” (PPL2AS, 2011, p. 4). Assente nesta base, o PPL2AS segue como referenciais (PPL2AS, pp. 12-13): • Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (2001); • Currículo Nacional para o Ensino Básico. Competências Essenciais (2001);

• A Língua Materna na Educação Básica – Competências Nucleares e Níveis de Desempenho (1997);

• Programas de Português do Ensino Básico (2009);

(2007) e Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa para o Ensino Secundário (2007) 15


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• Programa de Português do Ensino Secundário (2001); • Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa, Educação Pré-Escolar e Ensino Básico (2007); • Programa Nacional de Ensino do Português (iniciado em 2006); • Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa, Ensino Secun-

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dário (s/d)

• Orientações Programáticas de Português Língua Não Materna;

• Dicionário Terminológico (2008) – http://dt.dgidc.min–edu.pt/

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Pelos documentos norteadores em que assenta, depreende-se que é filosofia deste Programa combinar diversas abordagens, desde o ensino do Português como língua materna, ao nivelamento de competências típicas do ensino de uma língua segunda ou estrangeira plasmados no recurso ao QERCL. Na realidade, a introdução que precede esta escolha carece de clareza e revela algumas imprecisões, pelo que, ao percorrer o documento não é límpida a forma como se usam estes diversos documentos que têm finalidades distintas e percursos não idênticos. Afirma-se o evidente preterir do domínio da oralidade, sugerindo-se que “a língua gestual substitui a oralidade” (PPL2AS, p. 13). Esta afirmação, a nosso ver, carece de rigor pois estamos a falar de duas modalidades distintas, a oralidade e a visuomotricidade que concretizam dois idiomas distintos. Assim, se é certo que seria pouco avisado insistir na oralidade no ensino a alunos surdos, talvez fosse interessante que estes percebessem que a escrita é uma representação da fala e não, como também se diz neste Programa, uma representação da LGP (PPL2AS, p. 17). Não defendemos o ensino explícito da oralidade, mas sim a explanação da sua função e o seu equivalente à gestualidade como 16


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representação de significados. Para além disso, e também contrariamente ao que se diz no Programa (p.17), as línguas de sinais têm um sistema de escrita4, o signwriting, que as representa graficamente, tal como é explanado no Programa Curricular de LGP para o ensino Básico e no Programa Curricular de LGP para o Ensino Secundário, dois documentos citados como base referencial do Programa de PL2. Para além disso, e como é sabido, um surdo não é mudo, pode recorrer à oralidade, se para isso foi ensinado e se assim o desejar e, evidentemente, vê o mundo em seu redor a fazer uso da fala. Negar à partida a explicação deste fenómeno pode, parece-nos, induzir a confusões e interrogações desnecessárias por parte do aprendiz surdo. Ao definir as Competências Específicas, pode ler-se que se recuperam “noções explicitadas no CNEB [Currículo Nacional para o Ensino Básico] e no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas” (PPL2AS, p. 13) para definir leitura, escrita e competência linguística. No que concerne a leitura, dá-se relevância à imagem visual afirmando-se “a imagem visual (…) faz parte da identidade e da cultura surda. A imagem visual desencadeia a curiosidade e o interesse, mantém a atenção, pelo que à função de motivação se associam as de compreensão, de meta-memória, de memorização e de desenvolvimento cognitivo e linguístico.” (PPL2AS, p. 14)

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Na realidade, há diversas propostas de representação gráfica para as línguas visuais, porém, a que tem maior expressividade cremos ser o Signwriting. 17


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No nosso entender, a afirmação acima é demasiado assertiva tentando, cremos, particularizar algo que é de maior abrangência. É sabida a importância da imagem em termos de literacia emergente, coesão e coerência do discurso, havendo, sobretudo vocacionado para idades precoces, o recurso a livros que apenas assentam nos suporte visual, fomentando a liberdade criativa e construção narrativa, ou que dela fazem uso para que a criança compreenda a história e, através da imagem, a reconstrua. Desta forma, a imagem é importante per se, independentemente de a criança ser surda ou ouvinte. A nosso ver, o facto de a LSP ser uma língua visual, não se confunde com imagens, outro suporte. O que caracteriza a identidade e cultura surdas é a interpretação linguística-cultural de imagens que se materializa em significantes linguísticos, daí os designados gestos/sinais icónicos, ou seja, significantes que se baseiam na forma, tamanho e especificidade do objeto extralinguístico (Amaral & Coutinho, 1994; Correia 2009). A leitura visual do mundo caracteriza a comunidade surda, porém, tal não se plasma em ilustrações de obras literárias. Para além disso, se a leitura de imagens é um forte motivador para a construção narrativa e o fruir leitor no Pré-escolar e no 1.ºCEB, cremos que tal deixa de ser válido a partir do 2.ºCEB, altura em que o aluno pode construir a sua imagem mental e visual a partir da representação gráfica. Parece-nos que este é o grande desafio e a ele voltaremos noutra secção. A definição de escrita centra-se no processo de fixação gráfica – da oralidade preterida, como acima vimos – e em noções de composição de texto. Tal abordagem não se afasta da tradicional e parece-nos adequada. Da mesma forma, ao definir-se competência linguística, que na realidade é conhecimento explícito da língua, 18


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menciona-se a competência ortográfica e de regras gramaticais e estruturais, enfatizando-se, como é lógico, a nosso ver, a compreensão e expressão fluídas como último propósito. Após esta definição, segue-se um parágrafo que contraria no nosso entender, o que foi acima exposto. Indica-se que a consciência fonológica não faz parte dos domínios do Programa, por razões evidentes, porém, pretende-se plasmar relações de contraste através da escrita:

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“Num programa de LP escrita as oposições fonológicas parecem não ter sentido. Contudo, oposições distintivas do mesmo tipo ocorrem

quer na linguagem gestual (sic) quer numa língua escrita, como réplicas das oposições do plano fónico com reflexo no plano morfológico

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e no plano semântico. A variação do primeiro grafema em sequências como dente, gente, sente, lente, mente, quente; ou ainda cama, chama, dama, fama, gama, lama traduzem oposições com valor distintivo tanto no plano fónico (fonemas), quanto no plano grafemático (grafemas). Esta variação das unidades mínimas com impacto no plano semântico verifica-se do mesmo modo na linguagem gestual

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(sic). Basta considerar a versatilidade das oposições dos polegares aos restantes dedos das mãos para constatar o potencial de formas com variações mínimas e com reflexos nas formas e significações das unidades e sequências de maior dimensão.” (PPL2AS, pp.14-15)

Esta extensa citação merece-nos alguns cometários. Em primeiro lugar, apenas em tom de nota, não se compreende o uso repetido da expressão “linguagem gestual” quando é sabido que tal designação é incorreta e afeta particularmente o brio da comunidade surda numa língua plena e não num sistema de comunicação. 19


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Em segundo lugar, parece-nos perigosíssimo transpor oposições do plano fonológico para o plano grafemático. Se nos exemplos dados acima o fonema tem uma correspondência, como aplicar relações específicas da oralidade, em exemplos como cinto/sinto; sede/sede; cela/sela, entre outros. Retomemos a definição de consciência fonológica. Ao falarmos de consciência fonológica, referimo-nos à capacidade de explicitamente identificar e manipular as unidades do oral. Se pensarmos na unidade palavra, a capacidade que a criança tem de a isolar num contínuo de fala e a capacidade que tem de identificar unidades fonológicas no seu interior é entendida como expressão da sua consciência fonológica (Freitas, Alves e Costa, 2007, p. 9, sublinhado nosso)

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Assim, concordamos que se apresentem padrões ortográficos e relações ortográficas através da exposição de palavras, preferencialmente inseridas em frases, acompanhadas ou não de imagens, e sempre com a clarificação do seu significado, preferencialmente através da tradução para LSP. Por último, não é sólida a explanação e os exemplos dados sobre a consciência fonológica/querológica aplicada às línguas visuais (Prata, Santos, Correia, 2020). O polegar, ou melhor, a seleção do polegar é um dos elementos que compõem o querema configuração de mãos e, tal como outra seleção de dedos, contribui para a boa formação do parâmetro que com outros estabelece relações de oposição (Sandler & Lillo Martin, 2006). Todavia, todas as unidades mínimas das línguas visuais são discretas e estabelecem relações de oposição e contraste, o polegar faz parte de uma delas, pelo que nos parece confusa esta comparação. 20


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Em suma, num Programa que se assume como orientador para o ensino do Português escrito, retomar elementos da oralidade numa tentativa pouco rigorosa de a plasmar de forma transparente na escrita, parece-nos arriscado. Talvez fosse mais prudente apelar para o que enunciamos no início desta nossa reflexão, ou seja, metodologias contrastivas, mas que respeitem a individualidade de cada uma das línguas. Mais abaixo concretizaremos esta nossa hipótese. Detenhamo-nos ainda nos domínios temáticos e descritores de desempenho.

1.1.1.  Domínios temáticos, Descritores de Desempenho e Conteúdos; Resultados esperados

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Assumindo uma perspetiva mista que anunciou desde a introdução, o Programa sugere domínios temáticos optando por “uma metodologia próxima da seguida pelas línguas estrangeiras, uma vez que permite cobrir, de forma progressivamente mais complexa, diferentes áreas que implicam usos da língua (PPL2AS, p. 15). Algumas páginas adiante, apresentam-se tabelas com os domínios temáticos, comuns ao 1.º; 2.º e 3.º CEBs: “Eu e a família; Eu e os outros; Eu e o mundo” (PPL2AS, pp.23-25). O Ensino Secundário gravita o domínio “Identidade”; “Globalização, sociedade de consumo e publicidade”; “A herança do passado na construção do presente”; Cidadania e multiculturalismo”; “Cultura, Arte e Sociedade” (PPL2AS, pp-26-28). Os descritores de desempenho surgem adiante, especificando objetivos segundo cada ciclo e ano. Antes disso, aparecem os resultados esperados organizados em pares apenas no 1.º ciclo: 1.º e 2.º anos; 3.º e 4.º anos. O 2.º, o 3.º CEB 21


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