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editorial faz parte da natureza humana sonhar Sonhos nos fazem ter contato com uma parte profunda existente em cada um de nós. Eles são o combustível que alimenta as nossas vidas, dando um breve sentido para tudo o que fazemos. Sonhar com lucidez é desenvolver uma sensibilidade capaz de controlar seus sonhos e agir voluntariamente sobre eles. Durante as aulas de Design Experimental, do curso de Design Estratégico do Istituto Europeo di Design em São Paulo, buscamos trabalhar com o design além da realidade imposta e estimulamos as pessoas a imaginarem e experimentarem lucidamente seus sonhos individuais e coletivos para que, assim, vejam no design uma plataforma poderosa, capaz de fazê-las especular novas possibilidades, criar novos repertórios e descolonizar imaginários. Ao longo dessa jornada nos deixamos guiar por inúmeros sonhos insólitos e nesse ínicio de ano fizemos o mesmo. Nos propusemos a nos religar com nossa ancestralidade, especificamente com nossa matriz afrobrasileria e imaginar diversos “e se…?” (junto com o exercicio de What If, proposto por Bruno Macedo, @brunorito.cc). Esse simples exercício nos levou por lugares inimaginados e expôs uma ferida social aberta, pois nos deparamos com nossos preconceitos estruturais arraigados e descobrimos que o futuro que sonhávamos havia sido colonizado por uma Wakanda que já existia. Percebemos então a necessidade de trilharmos novos caminhos e que para isso precisaríamos de guias e griots que nos ajudassem a encontrar um sonho original, um sonho de origem.
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Nos apressamos em rever nosso rumo e tomamos por cartografia as linhas traçadas por Ale Santos (@savagefiction) em seu conto #Cangoma e pedimos ajuda a Michel Cena7 (@michelcena7), Patrícia Abòrisá (@patricia_ aborisa), Carla Andrade (@carlandrade_), Ester Lopes (@esterlopes.s), Arlete Freitas (@arletedesignerfreitas) e Silmara Alves (@ssilmaralvess) para que nos conduzissem nessa miríade de símbolos, ritos e mitos ajudando-nos a decodificar e recodificar o que poderia ser uma expressão íntima de um futuro possível para a nossa cultura afrobrasileira.
Anderson Penha.
Esse canal de diálogo foi além do processo, foi transformador a todos que tocou e, como água, que pode conformar-se em diversos estados físicos, plasmou-se em um ambiente onírico de experiência, cujo objetivo é ajudar jovens negros e pardos a se reconectarem com seus ancestrais antes de travarem uma luta com a cruel e dura realidade já sonhada, fomentada e construída por outrem.
Eu, Anderson Penha, facilitador e cuidador de sonhos lúcidos coletivos, convido você a juntar-se a nós nesse caminho possível.
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Sankofa.
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APRESENTAÇÃO O QUE É AFROFUTURISMO? + AFROFUTURISMO NO BRASIL
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NINGUÉM VAI CONSEGUIR PARAR CANGOMA
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CONVIDADOS | DIÁLOGOS POSSÍVEIS
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JORNADA DA TURMA
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WHAT IF: CENÁRIOS FUTUROS CONSTRUÍDOS EM GRUPO
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CONSTRUÇÃO DO PAINEL SEMÂNTICO E CONSTATAÇÃO DA
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COLONIZAÇÃO DO IMAGINÁRIO CONFRONTAÇÃO COM O RACISMO ESTRUTURAL
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RELIGIOSIDADE: ZONA DE DESCONFORTO EXTRA
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COMPOSIÇÃO DE UM REPERTÓRIO AFRO DE MATRIZ BRASILEIRA
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EXPERIÊNCIA 1 | DESPERTAR DE AKIN
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EXPERIÊNCIA 2 | JORNADA DE AKIN, UM CAMINHO SEM VOLTA
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CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA NARRATIVA
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NOVO MOODBOARD
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NOVO DIORAMA
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NOVA EXPOSIÇÃO
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EPÍLOGO TRAGÉDIA ANUNCIADA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E REPORTAGENS
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Manto de Apresentação, Arthur Bispo do Rosário.
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O QUE É
afrofuturismo? O termo “Afrofuturismo” foi criado pelo crítico cultural americano Mark Dery. No ensaio Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose (Duke University Press, 1994), o autor discute por que são raros os escritores negros de ficção científica e as razões da ausência de personagens negros em ficções especulativas escritas por brancos. “A noção de ‘Afrofuturismo’ dá origem a uma contradição perturbadora: uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas na busca por traços legíveis de história, consegue imaginar futuros possíveis?”. O texto foi publicado dois anos após a onda de protestos que se espalhou pela Califórnia em consequência da absolvição, por um júri de maioria branca, dos quatro policiais brancos que espancaram violentamente o trabalhador da construção civil negro Rodney King. O espancamento de King, detido por dirigir em alta velocidade em Los Angeles, foi filmado por um cinegrafista amador e as imagens chocaram o mundo. Os conflitos decorrentes do resultado do julgamento, igualmente violentos (causaram 58 mortes), expuseram o nível de tensão racial nos Estados Unidos e o quanto a injustiça contra negros, especialmente num caso com provas tão incontestáveis, não podia mais ser tolerada. Naquele momento, imaginar futuros para a comunidade negra americana significava falar de resistência e sobrevivência, mas também de busca por raiz e identidade. No mesmo ensaio, o escritor Greg Tate afirma em sua entrevista: “Ficção científica (…) vem ainda do desejo humano básico de conhecer o desconhecido, e para muitos escritores negros, esse desejo de conhecer o desconhecido é direcionado para o autoconhecimento. Conhecer a si mesmo como pessoa negra — historicamente, espiritualmente e culturalmente — não é algo que é dado a você, institucionalmente; é uma jornada árdua que precisa ser empreendida pelo indivíduo.” Portrait of Glenn (1985), Jean-Michel Basquiat.
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Dery observa que o Afrofuturismo não está restrito ao campo da literatura. Sinais da tendência aparecem em manifestações artísticas tão variadas quanto o hip hop, a arte de Jean-Michel Basquiat, o álbum Future Shock, de Herbie Hancock (1983), e a vida e obra do pianista de jazz Sun Ra — no filme e no álbum Space is the Place (1972), o músico propõe uma utopia segundo a qual o único lugar seguro para a libertação, expansão e transcendência do povo negro seria o espaço sideral.
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Sun Ra.
Livro de 2013 de Womack.
Note-se que Dery cunhou um nome para algo que já existia, embora não no formato de um movimento organizado. Dali em diante, alguns autores de ficção, como Octavia Butler, passaram a receber, por parte de críticos literários e entusiastas, a denominação de afrofuturistas; outros, como Ytasha Womack, abraçaram abertamente o termo. Ytasha é autora de Afrofuturism: the World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture (Lawrence Hill Books, 2013), em cuja introdução afirma: “Afrofuturismo é uma intersecção de imaginação, tecnologia, futuro e libertação”. Vale ressaltar que o prefixo “afro” em “Afrofuturismo” se refere aos descendentes de escravos da diáspora africana e que o termo permaneceu circunscrito à cultura negra americana por um bom tempo, associado a diversos tipos de expressões criativas, do festival urbano Afropunk (que existe desde 2005) ao álbum Lemonade (2016), de Beyoncé.
produção majoritariamente negra, vencedora dos Oscars de direção de arte, figurino e trilha sonora original), o filme não escapou de críticas entre autores que se identificam com o Afrofuturismo. No artigo Afrofuturism: Decolonizing the Imagination, publicado na plataforma Medium e, anteriormente, na revista Esprit (fevereiro de 2019), o jornalista Nicolas Celnik cita a análise do acadêmico Christopher Lebron segundo a qual Pantera Negra pouco contribui para abalar as estruturas do racismo na medida em que coloca na posição de vilão um negro americano rebelado contra a supremacia branca. Outra ponderação trazida pelo texto está na forma como o Afrofuturismo mainstream reforça um ponto de vista exclusivamente americano. Entrevistado por Celnik, o escritor Reynaldo Anderson, autor de um manifesto para o Afrofuturismo 2.0, propõe a constituição de um movimento dentro de um recorte filosófico. “Movimentos podem definir paradigmas, conceitos”, diz. Depois disso, o passo seguinte na evolução do Afrofuturismo seria, segundo o próprio Anderson, incorporar as tendências emergentes Futurismo Africano e Etno-Futurismo, dominadas por artistas e pensadores da África e muito conectadas a mitos e raízes locais. Para desenhar o futuro, é preciso entender o passado.
O ano de 2018 marca o momento em que a estética afrofuturista chega com força total à cultura de massa, com o lançamento do filme Pantera Negra (Marvel Studios), dirigido por Ryan Coogler e baseado nos quadrinhos de Stan Lee e Jack Kirby. Se, por um lado, é impossível negar o efeito empoderador de um herói invencível, soberano de uma terra rica e paradisíaca e que tem à disposição tecnologias capazes de resolver qualquer problema (sem contar o elenco estelar e a equipe de
AFROFUTURISMO NO BRASIL Em março de 2016, o escritor de ficção Fábio Kabral publica na plataforma Medium o artigo Afrofuturismo, o Futuro é Negro, o Passado e o Presente Também. No texto, fala sobre a “sensação” que o tema estava causando em festivais de literatura, música e arte, mas ressalta que, para ele, Afrofuturismo extrapola o rótulo (criado por um autor branco para denominar histórias que mulheres e homens negros já contavam há muito tempo) e o hype em torno da “estética da moda”. “Nós podemos contar nossas histórias por nós mesmos, não dependemos que ninguém faça isso por nós — nem do lado que nos nega sempre a presença e tampouco do lado que deseja nossa presença como algo Capa do álbum de 2016 de Beyoncé.
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Capa do livro de 2017 de Fábio Kabral.
espetaculoso e exótico.” Considerado um dos expoentes da literatura afrofuturista no Brasil, autor de O Caçador Cibernético da Rua 13 (Malê, 2017), narrativa que se passa numa cidade com carros voadores e elementos da mitologia iorubá, Kabral enfatiza a necessidade de “compreender de onde você veio” em sua palestra no TEDxMauá 2019. “É fundamental para as pessoas negras entender que nós não descendemos simplesmente de escravos, nós descendemos dos pioneiros da humanidade. (…) Afrofuturismo é o resgate desse passado africano de tecnologia, ciência, filosofia e arte.”
Ciências Sociais e criadora do canal Afros e Afins no YouTube, em sua palestra no TEDxPetrópolis 2018, o Afrofuturismo é revolucionário porque mostra um futuro em que pessoas negras estão vivas. “Pensar em pessoas negras no futuro é pensar que jovens negros conseguiram desviar de 12 balas, ou que essas balas não foram atiradas, já que jovens negros têm 12 vezes mais chances de morrer que jovens brancos. (…) é pensar que a gente superou a desnutrição e a insegurança alimentar e que pessoas negras não são as que mais morrem de diabetes, hipertensão e obesidade no Brasil.” Nátaly abre sua fala com uma constatação triste: “o racismo me roubou a capacidade de sonhar.” No contexto afrofuturista, a literatura, a música, a moda, o design, o cinema, as artes plásticas e outras modalidades de arte se apresentam como possibilidades de resgate da capacidade de sonhar e desenhar perspectivas de futuro. Entre os nomes ligados a esse movimento no Brasil, além de Kabral e Nátaly, estão os escritores Lu Ain-Zalia e Ale Santos, as cantoras Ellen Oléria e Xênia França, o jazzista Jonathan Ferr, o cineasta Rogério de Moura (Bom Dia, Eternidade; 2006) e os artistas plásticos No Martins e Felipe Borges. Na próxima parte deste trabalho, será feita a análise do conto Cangoma, de Ale Santos, uma ficção ambientada num futuro marcado pela hipervigilância e opressão das periferias, no qual o autor escreve: “(…) não existia nada mais revolucionário ou rebelde do que se manter vivo e ter ambições em um mundo que te odeia, que te humilha e quer ver você enterrado na mesma cova da pobreza que seus ancentrais.”
De acordo com essa ótica, Afrofuturismo significa conquistar soberania em relação à própria narrativa, por meio da exaltação dos antepassados, do resgate da história, da leitura crítica do presente e da possibilidade de visualizar futuros desejáveis. O Afrofuturismo no Brasil reflete questões próprias da comunidade negra num país de passado escravocrata, onde nunca houve uma tentativa de reparação do genocídio negro ou um projeto de acolhimento dos escravos libertos na sociedade, e as terríveis consequências políticas, econômicas, sociais e culturais disso tudo no presente. Segundo Nátaly Neri, estudante de
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Nátaly Neri.
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Cultura do pixo manda seus recados num prĂŠdio em SĂŁo Paulo.
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NINGUร M VAI CONSEGUIR
parar cangoma Clementina de Jesus.
Tava durumindo, Cangoma me chamou Tava durumindo, Cangoma me chamou Disse levanta povo, cativeiro jรก acabou Disse levanta povo, cativeiro jรก acabou (trecho do jongo tradicional Cangoma, gravado por Clementina de Jesus)
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Cangoma, na língua banto, é a festa dos tambores, o momento em que os escravos das etnias banto e iorubá se reuniam para cantar e dançar. Cangoma, no conto de mesmo nome, escrito por Ale Santos e publicado na coletânea Todo Mundo Tem uma Primeira Vez (Plataforma21, 2019), é o momento da destruição do sistema opressivo, o fim do cativeiro para prisioneiros condenados a servir de mão de obra barata aos “barões das criptomoedas”.
gras, do estudo e do trabalho para mudar de vida. Ele quer ser diferente de seu pai, Ozeias, a quem mal conheceu. Ozeias, um rebelado, foi preso durante uma manifestação na Área Central quando Bete, mãe de Akin, estava grávida. Akin não quer o destino do pai nem a vida clandestina dos Malungos. Não quer ser confundido com os integrantes do grupo, que passaram de hackers a amotinados. Tanto uma associação como a outra pode colocar seus sonhos em risco. Akin significa “homem valente, guerreiro, herói”, em iorubá. Ele é o escolhido para mudar a situação do distrito, mas ainda não sabe disso, e mesmo sem saber, reluta. O momento da revelação acontece durante o encontro entre Akin e Moss, mulher trans que lidera os Malungos, conhecida por ser um gênio da tecnologia. Essa cena marca o início do despertar de Akin e servirá como ponto de partida para a proposta deste trabalho: projetar uma experiência física (exposição) com base num recorte específico do conto Cangoma (a cena do encontro), reproduzido nas próximas páginas:
A história se passa entre a favela de Vila Clemente e a Área Central, num futuro em que a internet como conhecemos hoje se tornou obsoleta e deu lugar à MegaNet — mais avançada, com serviços melhores e inacessível para quem não pode comprar equipamentos caros. Para o povo do Distrito de Tamuiá, onde fica Vila Clemente, a MegaNet simboliza segregação, e a Inteligência Artificial Cérberus (o braço repressor da MegaNet), o sufoco constante da hipervigilância e da coerção. Entretanto, a comunidade encontra seus caminhos de resistência: um grupo de nerds conhecido como Malungos hackeia a internet abandonada pelo governo e ressuscita um servidor no meio do distrito, ao qual os moradores da periferia conseguem se conectar com seus celulares e computadores velhos. O garoto Akin é o único do local que tem um notebook com o sistema operacional Babel, que garante acesso à MegaNet. Estudioso, ele ganhou o dispositivo, e uma promessa de estágio, por ser o melhor aluno do programa educacional Projeto Tupiniquim. Akin acredita no poder da obediência às reArte de abertura do conto.
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Akin recebe um chamado, mas ainda não entende. As reações de seu corpo se sobrepõem.
Agora sim, ele compreende que houve um chamado e corre em direção a ele.
Seria no Brasil ou na África? Seria uma viagem no tempo?
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Akin identifica de onde partiu o rugido e percebe que ali existe um poder.
Moss revela seu papel como mentora de Akin.
A descoberta de que o leão é Moss gera fascínio e, ao mesmo tempo, decepção. Moss também é o link com as forças sobrenaturais que ajudarão Akin em sua jornada.
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Ilustração do Yemi Yung.
Akin acorda no meio da floresta e experimenta sensações nunca antes vividas. Seu corpo está mais ágil, mais forte e em total sintonia com a natureza. Ele é uma das feras reverenciadas por caçadores de diferentes etnias. O que parece uma aventura, no entanto, é de fato um ritual de reconexão do garoto com sua ancestralidade, proporcionado por Moss. “Algumas pessoas utilizam a fé como ponte entre o mundo dos vivos, o dos espíritos e o dos ancestrais. Malungos utilizam a tecnologia”, diz ela. A partir do momento em que Akin recebe o implante cervical, começa uma jornada de transformação em que ele terá de lidar com a ambiguidade de pertencer e, ao mesmo tempo, não pertencer à comunidade (ele é o “especial” do pedaço, o nerd com chances de cair fora) e acabará por reconhecer o lugar de luta de homens como seu pai e a importância de se conectar com suas origens. E por que essa reconexão é necessária? Para que Akin cumpra seu destino de herói e encontre dentro de si a força para agir na hora certa.
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Neste ponto, é importante entender o significado da palavra malungo. Na língua kikongo, malungo quer dizer “no barco”. Aqui no Brasil, virou a forma como se tratavam os escravos que vieram da África na mesma embarcação e também uma gíria para “camarada”, “companheiro”. Embora tenha saído do encontro com Moss afirmando que nunca se juntaria aos Malungos, Akin já era um deles. De volta à Vila Clemente, o personagem parece seguir na via conformista, quando, em sua casa, engole a raiva diante da fala cheia de desprezo de Fernando Minsky, o responsável pelo Projeto Tupiniquim. O leitor percebe que algo mudou no momento em que Akin, a caminho de seu primeiro dia de estágio, é parado pelo sargento Josué, a quem diz: “Você sempre nos caçou. No mato ou no morro, mas eu tô fechado para ti.” Akin e Josué já haviam se cruzado em vidas passadas? Essa fala corajosa parece sair da boca de Akin por inspiração dos ancestrais. Ao chegar à Área Central, Akin é vigiado, revistado, humilhado, ameaçado de morte e vira cobaia de uma experiência científica. No momento em que aconteria o reboot de seu cérebro, ele volta à floresta, reencontra Moss e, finalmente, entende seu papel de escolhido. Ele era o único no distrito com acesso à MegaNet, o único que poderia clicar no ícone Cangoma na tela do notebook e fazer rodar o programa que levaria Cérberus ao colapso. Seu ancestral, Nebiri, estava com ele. Akin termina o conto tendo cumprido seu papel de herói e disposto a procurar seu pai. O sobrenome de ambos, Imani, significa fé. O trecho escolhido para servir de base a este trabalho marca a passagem entre o mundo em que Akin vivia e um novo mundo. “É o ponto mais forte na narrativa como portal de transição entre dois momentos”, diz o professor Anderson Penha. “Além disso, envolve assuntos como religião, educação, tecnologia e política. Pensar o futuro de um ethos passa pela reflexão sobre esses temas estruturais da sociedade. O encontro entre Akin e Moss também está repleto de simbologias e permite explorar expressões bi e tridimensionais que são interessantes para a nossa proposta”, completa.
CONVIDADOS
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diálogos possíveis Além da leitura do conto Cangoma, as atividades iniciais de exploração do tema incluíram ouvir o episódio “Afrofuturismo” (#227), do podcast Mamilos, e assistir aos TEDs “O que é Afrofuturismo”, de Fábio Kabral, e “Afrofuturismo: a Necessidade de Novas Utopias”, de Nátaly Neri. Nessas produções, foi possível verificar que, mais do que um gênero de ficção científica, o Afrofuturismo é um movimento entrelaçado a questões como racismo, genocídio, sobrevivência, desigualdade, privilégio, opressão, lugar de fala e identidade. Em um grupo majoritariamente branco, numa escola de elite, situada num bairro de elite, os alunos não tinham vivência e conhecimento de causa para tratar dessas questões com a profundidade que elas exigem. Com o objetivo de atenuar essa falta de representatividade na sala e criar possibilidades de diálogo, já estava no planejamento do professor Anderson Penha convidar uma série de profissionais negros ligados ao universo das artes para expandir a conversa com a turma, abrir perspectivas e contribuir com ideias para o desenvolvimento do projeto. O artista visual Michel Cena7 acompanhou a turma em todas as aulas (e fora delas, com intervenções muito pertinentes no grupo de WhatsApp da disciplina) e se tornou um coorientador do trabalho. As demais convidadas (Arlete Freitas, Carla Andrade, Ester Lopes, Patricia Abòrisá e Silmara Alves) compareceram de forma esporádica, mas sempre com contribuições valiosas. Nas entrevistas a seguir, é possível conhecer um pouco da trajetória de cada um deles.
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Como você decidiu cursar design de interiores? De um jeito fora do comum. Sou bailarina e fui convidada a participar do Balé Popular Brasileiro, que representou o Brasil nos espetáculos da Olimpíada de Pequim, em 2008. Era um desafio enorme, fiz tudo para que desse certo. Acabei ficando por lá mais seis meses, trabalhando como dançarina, e foi uma grande experiência para mim. Durante esse tempo, consegui olhar mais para dentro de mim e refletir bastante. Pensava: ‘se eu já consegui chegar do outro lado do mundo, é sinal que tenho potencial para ir mais longe’. Não havia feito faculdade até aquele momento e queria muito fazer. Um dia, saí para caminhar sozinha e pedi que o universo me iluminasse e apontasse um caminho. Resolvi conversar com um amigo que estava no Brasil sobre isso e ele me disse que sabia de uma vaga de recepcionista no IED. Você voltou da China para tentar essa vaga?
arlete freitas (@arletedesignerfreitas)
Formada em Design de Interiores pelo Istituto Europeo di Design (IED), ocupa hoje o cargo de visual merchandising da instituição de ensino, o que envolve a criação de ambientes temporários para exposições e eventos. Durante as aulas em que a turma de Design Experimental discutiu sobre composição de cena e criação de uma experiência física, contribuiu com sugestões de materiais para a cenografia e de como ocupar os espaços de forma impactante.
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Não exatamente, mas dei sorte: voltei a São Paulo, fiz a entrevista e passei. Dentro do IED, surgiram outras oportunidades, até que em 2013 recebi uma bolsa integral para cursar a graduação em Design de Interiores. A minha família é indígena, sempre gostei do formato das casas dos índios. A casa da minha avó, no Vale do Ribeira, era de taipa, mas eu achava que essa arquitetura ainda podia melhorar em termos de estética. E meu pai é mestre de obras. Sempre o ajudei, aprendi com ele, peguei gosto. Queria cursar Arquitetura, porém era muito caro. O Design de Interiores apareceu na minha vida e foi incrível, então acho que tinha que ser assim. Qual sua maior realização na nova profissão? É entrar na casa das pessoas e sugerir mudanças que as façam felizes. Isso me faz bem. Acho importante buscar a essência dos moradores, o olhar deles. Dar ideias do que pode melhorar, mas sempre deixar a casa do jeito que eles queriam. Tem algo da experiência de bailarina que você traz para seu trabalho hoje? Tiro ideias do espaço do palco. Lá em Pequim era tudo grandioso, e os materiais, sofisticados. Dançava num palco que parecia o da Madonna. Eles
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trabalham muito bem a iluminação. Aqui no Brasil, é tudo mais artesanal. Somos ricos de matérias primas, por isso temos esse lado mais manual. Que profissionais são referência para você? Admiro os Irmãos Campana e o designer Marcelo Rosenbaum — ele desenvolve um trabalho incrível com comunidades quilombolas. E tem a mulher que me fez ficar apaixonada pelo futurismo: a arquiteta (iraniana) Zaha Hadid. Também sou cantora e gosto muito de Tom Jobim. Assisti recentemente ao filme Raça, sobre o atleta americano Jesse Owens e fiquei muito tocada com a história dele. Você acha que a sua trajetória inspira outras pessoas? Sim, principalmente mulheres, acho que elas ficam mais corajosas para ir atrás do que querem. Quando volto para a minha cidade natal, São Roque, procuro incentivar minhas amigas de infância a criar alguma coisa, pode ser um artesanato ou um móvel para elas. Uma das conquistas dos movimentos negros nos últimos tempos é o aumento da representatividade nas produções artísticas. O que você acha disso? Significa muito. Não só ver artistas como Thaís Araújo e Lázaro Ramos na TV e modelos na SP Fashion Week, mas empresários, arquitetos, designers. Estamos invadindo espaços e chegando a um patamar muito bacana de representatividade. O que é Afrofuturismo para você e por que é importante falar desse assunto no Brasil? Acho que é entender melhor as nossas origens, buscar saber de onde viemos. Todo mundo deveria perguntar para os pais e avós como foi a vida para eles e o que eles sabem sobre os antepassados deles. Quando estudava em São Roque, cheguei a viajar com a escola para lugares onde negros ficaram presos. Não foi legal, senti na pele quanto sofrimento existe naquele espaço. Temos que buscar melhorar, a mudança é o que vamos deixar para nossos filhos.
Lounge criado no IED durante o Design Weekend 2018.
Pode nos contar sobre manifestações de racismo que ficam diluídas no dia a dia, mas que, para você, são evidentes? Começa com a forma como as pessoas olham para você, e aqui no Brasil, infelizmente, isso acontece praticamente todos os dias. Na China, durante todo o tempo que fiquei lá, lembro de ter passado por apenas uma situação assim. Tem também as frases que as pessoas falam sem perceber que estão sendo racistas. Ao contar que sou formada em Design de Interiores, já ouvi um ‘nossa, como você conseguiu?’ Por que não poderia conseguir? Esse tipo de comentá-rio não deveria nem ser feito. Hoje me sinto mais forte e preparada para não abaixar a cabeça e não me vitimizar. Por que aceitou o convite para acompanhar e orientar nossa turma? Gosto de criar, de dar ideias. Falar de espaços e materialidade é a minha vivência. Durante as aulas, senti um engajamento muito grande da sala, me deu vontade de ficar com vocês e colocar a mão na massa. Em quais projetos você está envolvida hoje e quais são seus planos para o futuro? Estou desenvolvendo o projeto de interiores de um bar no bairro da Pompeia chamado Pompeu e Pompeia. Além das cenografias para o IED, faço estandes de feiras e apartamentos. Para o futuro, quero me realizar no Design de Interiores, trabalhar com artes cênicas, na criação de palcos e cenários e, quem sabe ainda, cursar Arquitetura.
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O que é o Clube Negrita e de que forma você participa dele? É um clube de leitura voltado para a literatura negra. Conheci a Bruna Tamires, a fundadora, em 2014 ou 2015, por meio do (artista plástico e poeta) Michel Cena7. Como os encontros acontecem em São Paulo e eu moro em São Bernardo do Campo, acompanhava apenas pela internet. A Bruna soube que eu era produtora de um grupo de rap, o Tramando Ideia, e disse que seria legal fazermos alguma coisa juntas. Em 2019, os ciclos aconteceram no Clube Sesc Paulista e ela começou a prospectar outros projetos para eu participar. Deu certo e me tornei produtora do clube também. A ideia agora é expandir a atuação para os quatro eixos de São Paulo (Norte, Sul, Leste, Oeste) e também para fora da capital. Por que é importante ler as obras indicadas pelo clube em público, coletivamente? Apesar do momento atual (quarentena devido ao coronavírus), a finalidade do clube é a relação presencial, fora da internet, e assim transformar a literatura numa ferramenta de conexão. Sempre tive muito estímulo para ler em casa — minha mãe lia um livro por dia. Mas essa não é a realidade de todos. A Bruna teve a ideia de fazer da leitura um projeto de mudança. Havia poucos clubes dedicados à literatura negra. Esse número aumentou graças à movimentação dela.
carla andrade (@carlandrade_)
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Estudante de Relações Públicas, é estagiária em um agência de comunicação, na qual faz parte do grupo de diversidade. Também é produtora do Clube Negrita e do conjunto Tramando Ideia Rap, escreve poesia e participa assiduamente do Sarau do Fórum, que acontece uma vez por mês no projeto Meninos e Meninas de Rua, em São Bernando do Campo. Desde os 14 anos, dança hip hop. No desenvolvimento deste projeto, estimulou a turma a buscar uma identidade brasileira e contribuiu com sugestões de leitura.
A escrita, para você, também é um modo de construir identidade? Sim. Meu primeiro poema foi de amor. O segundo foi devido à transição capilar. Apareceu muita gente para dizer que preferia meu cabelo liso e senti a necessidade de escrever a respeito. Quando leio o que escrevi é como se eu estivesse conversando comigo. Isso ajuda a entender meus sentimentos. Quais escritores e escritoras negros brasileiros são referência para você? Admiro muito Michel Cena7, Felipe Choco, que é rapper, escritor e historiador, Luz Ribeiro, Mel Duarte, Cuti Silva, doutor em literatura que escreve sobre literatura erótica negra e colaborou com os Cadernos Negros, da Editora Quilombhoje, nos anos 1970. Também gosto da Ryane Leão, da Jéssica Ferreira, minha amiga, que escreveu Pés na Terra e Cabeça na Lua — ela é do
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ABC e organiza saraus também. Fora do Brasil, gosto muito da Chimamanda Ngozi Adichie. Ela mostra como é ser uma mulher nigeriana fora da África. No Sarau do Fórum, com Mel Duarte.
Que livro você indicaria para quem deseja ampliar conhecimento sobre a cultura negra brasileira?
Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves, mexeu demais comigo. Mistura muito bem registros históricos e ficção para contar a história de Luísa Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama, desde a saída da África como escrava num navio até a chegada em Salvador, sua fuga para São Luís do Maranhão, que é uma capital negra, e depois para o Rio de Janeiro. Fui entender o significado do Cais do Valongo, mais de 500 mil de escravos desembarcaram, e da Pedra do Sal, único lugar onde os negros podiam ser eles mesmos. A história está viva nesse livro. Um efeito recente da atuação dos movimentos negros é o aumento da representatividade em produções artísticas. Como está a representatividade na literatura? Muito maior. Acho que a grande novidade é a valorização de intelectuais negros, como a Djamila Ribeiro. Com a ajuda da internet, que é um lugar seguro para a gente falar, muitas barreiras foram quebrads. Sem internet a Ryane Leão não conseguiria tanto espaço ou eu não conheceria a Chimamanda. Estar em rede facilita nossa conexão. O que é Afrofuturismo para você? Entender o passado, de onde eu vim. Que sou mulher brasileira, não africana, e por isso tenho minhas especificidades. Fazer o máximo como pessoa e cidadã para mudar as coisas e falar o que nunca escutaram. Acredito muito no significado do sankofa (ideograma de pássaro que olha para trás): ‘conhecer o
passado para compreender o presente e conseguir mudar o futuro’. Tenho até um tatuado. No Brasil, vejo o Afrofuturismo como um movimento de jovens em busca de reconexão. De que formas o racismo brasileiro é mais efetivo e difícil de ser combatido? Nós, brasileiros, temos uma dívida histórica que precisa ser entendida como uma causa importante. Pessoas como eu não têm acesso a todos os lugares. Trabalhei numa consultoria de RH com inclusão e diversidade e as empresas não entendiam que, para contratar funcionários negros, não podiam continuar procurando nas mesmas faculdades ‘top 3’. Os negros não estudam nessas instituições porque vêm de outro background, e isso não significa falta de capacidade. O difícil é mudar essa forma de pensar. Pode nos contar sobre manifestações de racismo que ficam diluídas no dia a dia, mas que, para você, são evidentes? Uma vez fiz um projeto que previa parcerias com influenciadores digitais para uma campanha de um cliente da agência e tratei de incluir influenciadores negros. Pesquisei bastante e só indiquei influenciadores alinhados com a proposta. Quando o projeto voltou do cliente, vi que ele queria contratar os mesmos de sempre, brancos, de classe média. Se a preocupação com inclusão não existe, o ciclo não se quebra. E outras coisas. Uma vizinha do meu prédio perguntou se eu trabalhava ali. E eu sou moradora, sabe? Em que momento da vida você percebeu que existia uma luta que era sua? A primeira porta foi o hip hop. Conheci pessoas de outras realidades e fui entender o que era uma favela e como os moradores ali não têm acesso a um monte de coisas. Depois vieram os cursos de cultura, filosofia e psicologia que fiz no projeto Contando Histórias, da Fundação Criança, que é ligada à prefeitura de São Bernardo. No paralelo, trabalhava na biblioteca infantil. Depois veio o Sarau do Fórum. Na minha jornada, percebi a necessidade de ser uma comunicadora negra, o que me levou às Relações Públicas. Tem muita gente brilhante no ABC que só precisa de visibilidade e acredito que meu trabalho possa ajudar.
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Como você começou a dançar? Comecei na igreja, como muita gente da periferia, mas depois de um tempo vi que aquele espaço não comportava o que eu tinha para expressar. Pesquisei e encontrei oficinas de dança clássica em São Bernardo do Campo. Era um pouco difícil para mim porque o balé clássico exige um corpo branco, esguio - embora isso venha mudando ultimamente. Minha formação foi bem truncada, pois várias vezes abandonei os cursos por falta de dinheiro para a mensalidade. Além disso, havia uma questão de gênero complicada. Venho de uma família de músicos, mas majoritariamente masculina e muito rigorosa. Para ir à biblioteca ou fazer as aulas de dança, no início, saía escondida. Até hoje levar meu pai para ver uma apresentação minha é uma luta e quando perguntam o que faço, ele e meus irmãos respondem: ‘ela é professora’, soterrando meu fazer artístico na dança. Quando você fez a transição do balé para as danças brasileiras?
Foto: Andressa Santos.
ester lopes (@esterlopes.s)
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Artista da dança, instrutora de pilates e arte-educadora em São Bernardo do Campo, é um das fundadoras do grupo de dança e teatro As Caracutás. Seu trabalho se baseia em pesquisas sobre as danças contemporâneas e tradicionais brasileiras. Nas aulas em que veio observar e discutir as referências de Afrofuturismo trazidas pela turma, mostrou que ainda prevaleciam conceitos estereotipados sobre a África e apontou a importância de se pensar a pluralidade do negro no Brasil e de uma pesquisa mais profunda sobre nossas raízes.
Um dia, percebi que já estava dançando profissionalmente e enviei meu portfólio para diversos lugares. Entre 2011 e 2015, fiz parte de uma companhia de São Bernardo que era para pessoas mais velhas. Entender como o corpo de uma certa idade se movimenta me ensinou muito. Enquanto isso, conheci danças indianas, africanas, e comecei a pesquisar as de raiz brasileira. Percebi o quanto elas tinham relação com aquilo que eu queria dizer. Hoje meu trabalho é um híbrido de dança contemporânea e tradicional brasileira. Como surgiu o seu grupo, As Caracutás? Quais são os projetos atuais de vocês? O grupo surgiu em 2017 com o projeto Caracutando, um encontro semanal para trocar ideia sobre a arte na periferia. Na parte artística, somos eu e a Monica Soares. Divulgamos o encontro no Instagram e no Facebook e fomos chamadas a fazer uma performance na Galeria Crua, no centro de São Paulo. Com base nessa performance, desenvolvemos um espetáculo chamado Tecendo Diálogos. No ano passado, a peça recebeu o apoio do Programa VAI, da secretaria municipal de cultura de São Paulo, estamos no processo para apresentá-la pós-pandemia. Fizemos vídeos com mulheres da região do Parque São Rafael e imediações, narrando suas histórias, mesclamos com
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memórias de nossas mães e avós e, daí, surgiram os diálogos. No espetáculo, que une dança e teatro, interpretamos dez mulheres.
para o corpo porque o corpo importa e ele chega antes. Se for um corpo, um ser empoderado, vai passar a mensagem que a pessoa quer.
Como é fazer parte de um grupo artístico na periferia? Quais são as maiores dificuldades e as maiores alegrais?
Que artistas negros de teatro são referência para você?
A maior dificuldade é conciliar as coisas. Como nem a Monica nem eu conseguimos nos sustentar só com a parte artística, nós temos outros trabalhos. Sou arte-educadora e ela, pedagoga. A cultura popular brasileira tem a figura do artista brincante, que é múltiplo, toca, canta, dança, pensa no texto, cuida do figurino. Essas somos nós. Tenho a impressão de que, na periferia, a aula de arte não é vista pelos pais das crianças como algo essencial. Então já percebi que tenho o papel de dizer para os meus alunos: ‘olha, o que você está fazendo aqui é importante sim.’ No ano passado, levei duas salas do quarto ano pela primeira vez ao Museu Afro. Na ida, apenas dois alunos se declaravam negros. Na volta, 80% da turma se dizia negra. Isso significa que eles perceberam que existe a possibilidade de ser negro para além da escravidão que é ensinada nos livros. Fiz a mediação mostrando que um pilão, uma roupa de dança, uma máscara ritual eram tecnologias, pois eles entendem tecnologia como algo digital. Pensando no resultado dessa visita, vejo como é importante ser artista-educadora na periferia. O que despertou em você a vontade de trabalhar com crianças e adolescentes? Fiz uma faculdade focada em artes cênicas e não me sentia com capacidade para dar aula. Aí apareceu um concurso e eu estava precisando de um trabalho que me desse alguma segurança financeira. Fiz a prova virada, tinha acabado de sair de uma performance que durava seis horas e achei que não tinha passado. Um mês e meio depois, descobri que havia entrado e pensei: ‘bom, agora tenho que ir em frente’. Então, no começo, não foi por desejo de ajudar as crianças. Não é um trabalho fácil, tem toda a preparação para cada aula, são dez turmas que somam 300 alunos, alguns com necessidades especiais. Mas hoje sei que faço a diferença na vida deles. Vejo meninas de dez anos que já alisavam o cabelo e, por minha causa, decidiram assumir o crespo. Elas têm poucas referências negras positivas e, por isso, procuro mostrar a pluralidade da essência negra. Isso também é dar aula. Todo o meu trabalho converge
Da velha escola, Abdias do Nascimento, Ruth de Souza, Maria Carolina de Jesus. Fico emocionada quando falo de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra a dançar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Entre os contemporâneos, tem o grupo de teatro As Capulanas, a Silvana de Jesus, que é uma mestra maravilhosa, Mestre Joana de Maracatu, Luciane Ramos. A cada aula que faço com a Luciane, penso: ‘nossa, é possível ser artista múltipla e pesquisadora’. O que é Afrofuturismo para você e por que é importante falar sobre isso no Brasil? Neste momento de Covid-19, entendo que Afrofuturismo é se manter vivo. Quando eu soube do vírus, pensei: ‘cara, quando isso chegar na periferia nós estamos ferrados’. Sei que o Afrofuturismo é uma estética com o propósito de imaginar um futuro possível para os negros. Só que o povo preto já vive na distopia. Como uma mãe vai fazer isolamento em casa se o filho dela está pedindo leite? Não dá! E como eu posso fazer arte se primeiro preciso pensar em sobreviver? Acho que a importância de falar disso é poder colocar para o outro: ‘olha, essa questão não é só minha, ela é sua também’, porque não adianta nada eu refletir sobre a minha negritude se a pessoa branca não pensar nos privilégios dela. Seguiremos cada qual na sua bolha.
Ester e Monica em Tecendo Diálogos. Foto: Andressa Santos.
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Em que momento da vida você percebeu que seu caminho de expressão seria por meio da arte? Como você começou a produzir? Tenho uma memória de passar pela cidade e ver muita pichação. Minha família morou em Heliópolis, na Av. Alencar, e lá tinha esse registro de ‘pixo’, e muito cedo, com 11 ou 12 anos, fui rabiscar umas coisas. Tanto é que arrumei um problema na família. (risos) Peguei uma graxa líquida com a minha prima, e saímos escrevendo nos prédios do condomínio onde a gente morava. Tive essa curiosidade e, com o tempo, fui apurando. Acho que no início acontece o chamado interior, depois vêm o aprimoramento e a dedição. O que surgiu primeiro, as artes plásticas ou a poesia? Surgiram juntas. Sempre tive a necessidade de simular meu pensamento por meio da literatura. Lembro dos livros didáticos de português da escola, quando havia um texto e no rodapé, em destaque, as palavras difíceis, que não se usa cotidianamente, tipo ‘tresloucado’. Anotava essas palavras e pensava: ‘vou escrever um texto com isso em casa’. Tenho textos desde 1999, mas poesia mesmo só fui fazer depois de 2010, com o surgimento do Sarau do Fórum, pois aí passei a participar de uma rede que envolve essa atividade.
michel cena7 (@michelcena7)
Artista plástico e poeta, nasceu em São Paulo mas hoje vive e atua em São Bernando do Campo, onde há dez anos é um dos motores do Sarau do Fórum. Acompanhou a turma da primeira à última aula da disciplina e, durante essa jornada, compartilhou vivências e opiniões a respeito das formas como o racismo se sistematiza na sociedade e dos movimentos para combatê-lo. Além disso, ofereceu orientações importantes sobre como apurar artisticamente os trabalhos.
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Qual o significado dos elementos recorrentes nas suas obras? As flores, os rostos, as máscaras? Dediquei quase um ano para desenvolver cada elemento desses. Os rostos e as máscaras acho que são retalhos de uma personalidade, uma tentativa de reconstruir o imaginário e dar uma história a quem não tem história. Criar um espelho para se entender no mundo. As flores nascem como uma quebra desses rostos, que eram muito rígidos. Elas trazem o convite para olhar para o cotidiano de forma renovada. O nome que dou para elas é “utopias póstumas”. Não consigo pensar nada simples, sempre viajo. (risos) Com elas, comecei também a quebrar o código de usar um muro quadrado, esperado. Tinha que ser num muro que pegou fogo e tá zoado, numa viela, num teto. Então caiu a ficha que, se você quer quebrar um código, você precisa buscar um suporte novo e sair do convencional.
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Detalhe do mural Ba-Boom, de Michel Cena7.
Quais artistas plásticos negros brasileiros são referência para você? Gosto muito do Nunca, sempre gostei, desde a época em que ele fazia uma coisa jogadona com rolinho, gosto do Onesto... Alice Lara, uma amiga querida que faz um trabalho muito legal de pintura. Tem a Rosana Paulina, que é uma grande mestra, Sonia Gomes... Ah, cara, tem muita gente. Quando se trata de Brasil, fica difícil não falar na arte de pessoas negras, a maioria das coisas produzidas são produzidas por mãos negras, né? E em outras áreas, como música, literatura, teatro, cinema? No cinema tem o Geo Oliveira, na música tem a Juçara Marçal, de quem sou praticamente devoto. Atualmente você tem o Moisés Patrício, que é um artista plástico incrível, o Jaime Lauriano, que é um cara muito embasado. E se a gente for falar de literatura, quando olha para o movimento que os saraus fizeram nos ultimos 15 anos, e que os slams têm feito, então a gente descobre uma gama de produtoras e produtores incríveis. Depois de mostras como Histórias Afro-Atlânticas, no MASP e no Tomie Ohtake, e Ex-África, no CCBB, que pretendiam dar maior visibilidade à produção de artistas negros, você viu mudanças de cenário? Os museus começaram a perceber que eles precisam mudar de postura, que há· uma tragédia colocada historicamente que negligencia uma população que produziu e produz muita arte. Pensando em instituições, em curadorias, isso vai se popularizar mesmo e vai mudar. Porém, ao se tratar de mercado, acho que a hegemonia não muda. Quem mantém o mercado funcionando é quem tem muita grana. Essa grana teria de circular em outros espaços e acho que essa solução não virá das instituições, mas as instituições olharem para isso é muito importante.
O que é Afrofuturismo para você? Tenho dificuldade em falar o que as coisas são para mim, principalmente quando se trata de coisas já estabelecidas. Mas, pelo que entendi dos documentos que acessei e com as pessoas com quem eu troquei, Afrofuturismo é um movimento que perspectiva, sobretudo por meio da literatura, construir um imaginário das pessoas oriundas da diáspora africana para pensar o mundo presente e o futuro. Mas ele sobretudo nasce do fato absurdo de que o racismo não permite que se pense a vida na sua plenitude porque você é uma pessoa negra e não tem direito à vida. Ele é uma resposta criativa à dor do racismo. De que formas o racismo brasileiro é mais efetivo e difícil de ser combatido? O que me incomoda bastante na vida é que ao mesmo tempo em que você tem acesso às coisas, você não tem. Você pode ir ao lugar X, mas se você for, vai passar por uma situação de constrangimento. Essa forma de racismo no Brasil é muito perversa. Tenho recebido no WhatsApp vídeos denunciando atrocidades que a polícia vem cometendo na periferia num momento em que a mídia está cobrindo outra coisa. Percebe-se que esse movimento da polícia de São Paulo, que é higienista pra caramba, vai se aplicar de forma mais forte nos próximos meses. Também acho que a forma como a Covid-19 vai se espalhar nas periferias no próximo mês, em favelas grandes, como Paraisópolis ou Heliópolis, será muito complicada, teremos uma letalidade imensa. Já que estamos falando de futuro, conte um pouco de sua atuação como educador. Em 2006, a Angela Barbudi, professora da Belas Artes, levou uma turma de alunos para trabalhar numa galeria. Mal sabia eu que ela estava ensinando para a gente um modo de sobreviver como artista. De 2006 a 2013, tive uma atuação muito forte como arte-educador em vários projetos, na Pinacoteca, no Memorial da América Latina, na Fundação Casa e em diversas ONGs que trabalham com liberdade assistida e jovens em vulnerabilidade. Foi muito importante para mim porque me deu essa potência de fazer algo em que sempre acreditei.
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Como a arte entrou na sua vida? Desde criança, gosto de desenhar, sempre participava dos concursos da escola. Lembro de ter ganhado um, no pré, desenhando a baleia Free Willy. (risos) Mas esse lado também vem do meu pai, que era artista plástico. Ele se chamava Osnir Fugazza e pintava realismo e algumas obras impressionistas. Infelizmente, não conseguia se sustentar com a arte. Com ele aprendi a técnica de usar as tintas e até hoje estou sempre produzindo telas. Já minha mãe, Maria Salustiano, é uma influência mais artesanal, tátil. Meu trabalho na luthieria de pandeiros é uma forma de unir as duas coisas. Como a cultura brasileira está inserida no seu trabalho? Sou capoeirista e candomblecista e, por isso, a cultura popular faz parte do meu dia a dia. Acho a capoeira uma arte completa, pois envolve música, dança e espiritualidade. Ela é uma grande influência na minha forma de produzir. Fiz uma campanha para a Frente Nacional Contra o Genocídio Negro quando a morte da Marielle Franco completou um mês. Eram os ‘trinta dias sem respostas’ — e agora já se passaram dois anos. Além de desenhar a Marielle, tentei entender quais seriam os símbolos da luta dela e usei isso na ilustração. Trabalhar com símbolos é uma característica da cultura brasileira.
patricia abòrisá (@patricia_aborisa)
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Artista gráfica e diretora de arte, trabalhou em agências de comunicação e hoje atua de forma independente. Um de seus projetos principais no momento é a luthieria de pandeiros — ela confecciona e, depois, ilustra os instrumentos. Símbolos da cultura popular e sua ligação com a capoeira e o candomblé aparecem com força em suas criações. Na aula de Design Experimental da qual participou, Patricia falou sobre a discriminação que as religiões de matriz africana ainda sofrem e como a falta de conhecimento histórico alimenta o racismo.
Quais artistas negros brasileiros inspiram você? Edson Ikê, Nina Silva e Jeff Mendença. Gosto muito do trabalho deles. O seu sobrenome, Abòrisá, significa ‘aquele que cultua ou adora os orixás’ em iorubá. É muito significativo que você se apresente assim ao mundo. Em que momento isso aconteceu? Meu pai era descendente de italianos e espanhóis, e minha mãe é filha de um moçambicano e de uma indígena. Nessa mistura de culturas, você sabe quais serão as apagadas. A adoção desse sobrenome coincidiu com o momento, em 2014, em que alguns amigos e eu montamos um coletivo de artistas chamado Grupo Abòrisá. Fazíamos espetáculos de contação de histórias com dança afro. Sempre havia uma pesquisa muito grande por trás de cada produção e compartilhávamos esses aprendizados em rodas de conversa.
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As religiões de matriz africana têm muitas vertentes no Brasil, e isso está relacionado à diversidade de origens dos escravos trazidos para cá. Mas, nas escolas, essa diversidade não é abordada. Por que você acha que isso acontece?
traria identidade e força. Precisa existir uma máquina que pare o genocídio, e rápido. No Brasil, isso bate na falta de conhecimento histórico, de que 500 anos atrás houve invasão e extermínio por aqui. O grande problema do Afrofuturo é o Afropassado: a galera não sabe, ou esqueceu, ou não quer saber.
Primeiro, a gente precisa lembrar que muita gente nem teve acesso a essa História bonitinha ensinada na escola. Outro dia, um amigo meu, que já viajou o mundo inteiro para apresentações de capoeira, ficou revoltado porque descobriu que Portugal invadiu o Brasil. Ele só estudou até a terceira série e soube disso agora, quando assistiu a um documentário que indiquei. O brasileiro tem pouca memória. As três nações mais conhecidas que chegaram aqui foram Ketu, Angola e Jeje, da qual faço parte. Essa captura e mistura de pessoas de diferentes origens foi proposital porque tirava a possibilidade de resistência. Como você vai se organizar se não fala a língua do outro que está na mesma situação? E houve a separação das famílias. Hoje sabemos que o banzo, a dor extrema dessa separação, é o que conhecemos como depressão.
Em que momento você percebeu que existia uma luta que era sua?
Quais são as principais conquistas dos movimentos negros nos últimos anos? Um detalhe que muda tudo é a forma como as pessoas nos veem. Na TV hoje, há negros em papéis de advogados, médicos, professores, num lugar de patrão e não de empregado. Muita gente não gosta de falar de representatividade porque acha superficial, mas precisamos lembrar que isso muda o imaginário do povo e que o imagético sempre reflete a ética. Minha sobrinha foi ao posto de saúde outro dia e voltou empolgada porque o fisioterapeuta que iria tratar dela era negro. Vejo muita ocupação de cargos públicos, presença em faculdades. Agora surgiu outra problemática, que é a TV vendendo militância. Depois de uma luta, sempre aparece outra.
Foi bem dolorido. Vou confessar que, quando era criança, eu contava vantagem de ser a pessoa com a pele mais clara da minha família. Dizia com o maior orgulho: ‘puxei meu pai’. Só que um dia, na escola, na quarta série, estava falando disso e um colega comentou: ‘mas seu cabelo é duro’. A sala inteira riu, o apelido pegou e ninguém parou aquilo, pois não se falava em racismo ou bullying na época. Acabei batendo num amigo que me chamou de ‘cabelo duro’ e fui parar na diretoria. Minha mãe quis saber por que eu havia feito isso e foi aí que tivemos uma grande conversa sobre cor de pele e porque estava escrito ‘parda’ na minha certidão de nascimento. Minha mãe é minha grande referência: entrou no Hospital das Clínicas em 1980 para fazer limpeza e chegou a se pós-graduar em administração hospitalar pela USP. Foi sindicalista e capoeirista por muitos anos também.
Ilustração Ogunhê, de Patricia Abòrisá.
O que é Afrofuturismo para você e por que é importante falar disso no Brasil? Afrofuturismo para mim é pensar em sobrevivência, em vidas negras vivas, senão a gente cai no #vidasnegrasimportam, hashtag que aparece quando pessoas já morreram. Se fosse para inventar uma experiência científica mirabolante, faria uma máquina de injetar memória nas pessoas. Assim elas saberiam qual a etnia delas, de onde elas vieram, o que aconteceu com a família delas, e isso
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Você estudou Design de Comunicação na Alemanha. Como isso aconteceu? Tenho um tio que é ator e vive em Hamburgo há muito anos. Quando eu estava com 18 anos, uma das minhas primas, filha dele, me ligou e perguntou o que eu acharia de passar um tempo trabalhando como babá na casa de amigos dela. Eu poderia estudar, aprender outra língua, passear… Na época, estava sem emprego e estudando para o vestibular. Achei interessante e iniciei o trâmite para o visto. Três meses depois, quando o visto saiu, a família já havia contratado outra babá, mas meu tio falou para eu ir mesmo assim. Quando cheguei lá, ele disse que eu precisava fazer de tudo para aproveitar a oportunidade e aprender. Você não falava alemão? Nem uma palavra. Mas fiquei tão agoniada de não conseguir me comunicar que logo estava matriculada em três cursos diferentes de alemão para imigrantes. Seis meses depois, me comunicava bem, havia arrumado emprego de babá em outra família e poderia dar entrada no visto de estudante, o que me obrigava a entrar numa faculdade num prazo determinado. Foi aí que comecei a pesquisar cursos ligados a arte e descobri o Design de Comunicação na HTK Hamburg, onde me formei em 2004. Nem sabia que iria estudar o que mais amo na vida. Como você entrou para a área de cinema?
silmara alves (@ssilmaralvess)
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Formada em Design de Comunicação e Cinema, se especializou em direção de arte para produções audiovisuais. Também trabalha no IED-SP, onde é a responsável pelo relacionamento corporativo desde o início de 2019. Paralelamente, desenvolve diversos projetos, como roteiros de vídeos para campanhas e construção de identidade visual para marcas. Em sua participação numa das aulas de Design Experimental, reforçou a necessidade de construir experiências em que cada objeto de cena transmitisse as sensações planejadas pela turma.
Quando voltei ao Brasil, achei que tinha tudo para encontrar meu emprego dos sonhos. Mas as pessoas não entendiam que faculdade era essa que eu tinha feito, não havia algo similar para comparar por aqui. Isso começou a me inquietar e decidi buscar outra formação. Entrei no curso de Cinema da Anhembi Morumbi que, na época, dava dupla certificação, como roteirista e produtor cinematrográfico. O conteúdo de direção de arte, o mais aguardado para mim, era dado em um semestre. Achei que poderia me aprofundar mais no tema e comecei a fazer cursos extras. Meu TCC foi assumir a direção de arte do curta Lembranças de Maura. Aí ficou mais fácil explicar o que você fazia? Sim. O diretor de arte é um prestador de serviços, que trabalha por projeto e com o apoio de uma equipe. Na época da faculdade, meus colegas e eu ríamos porque pegamos o vício de observar pessoas na rua e construir personagens
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dentro da nossa cabeça. Carrego essa mania até hoje. Quando sou contratada para criar uma cenografia, preciso fazer um mergulho nos personagens e na narrativa. O formato dos ambientes, o figurino, cada cor, cada objeto de cena precisa ter uma intenção, um porquê. Nenhuma escolha estética é aleatória. Quais produções até agora foram mais especiais para você? Fiz dois trabalhos com a Ovo Frito Filmes, com direção geral de Mirrah Iañez, que têm muito valor para mim. O primeiro foi o curta-metragem documental Para Belo Monte. Criamos e filmamos tudo em quatro dias, dentro de um festival de curta-metragens que tinha como tema a água. Estava na época do leilão da Usina de Belo Monte e queríamos falar sobre a população indígena afetada pela construção da hidrelétrica. Como não podíamos sair de São Paulo, resolvemos procurar a aldeia indígena do Pico do Jaraguá e eles abraçaram a ideia de enviar uma mensagem para as tribos de lá. O segundo é uma ficção de 15 minutos chamada Bumba Bumba, que fala sobre moradores de rua. A produção levou seis meses e trouxe um grande desafio porque o filme é preto e branco. Acertar na escolha de cores para que os tons de cinza das cenas comunicassem as sensações que a direção queria transmitir foi um processo maravilhoso. O que é Afrofuturismo para você? Ouvi falar de Afrofuturismo pela primeira vez quando estava na faculdade de cinema. O professor de Teoria do Cinema Mundial, Mauricio Reinaldo Gonçalves, me contou que o cineasta Jeferson De havia escrito, em 2000, um manifesto chamado Dogma Feijoada. O nome fazia uma brincadeira com o Dogma 1995, dos diretores Lars von Trier e Thomas Vinterberg, e o texto exigia mais produções com realizadores e protagonistas negros e o fim dos personagens estereotipados. Por que só doméstica ou cobrador de ônibus? Depois fui descobrir que, em 2005, Jeferson lançou um livro sobre o assunto em que faz uma análise da presença negra na filmografia brasileira, antiga e contemporânea. Esse livro é uma grande defesa do resgate da ancestralidade. Que informações do passado podemos trazer para o presente e, com elas, construir o futuro? Após esse contato com o Dogma Feijoada, passei a ver sinais de Afrofuturismo em várias obras. O filme Besouro, de 2009, é afrofuturista
Cena Bumba Bumba.
total: uma narrativa de realismo fantástico em que um capoerista aprende um golpe voador. O manifesto surtiu efeito? Acredito que sim. Tem um dado importante sobre a Berlinale, o festival de cinema que acontece em Berlim todo mês de fevereiro. Neste último, o Brasil bateu o próprio recorde de produções selecionadas, foram 19 filmes, entre curtas e longas metragens, num evento de visibilidade absurda. Todos esses representantes brasileiros tinham a diversidade ou a aceitação como narrativa. Não significa que os produtores e diretores fossem todos negros, ou homossexuais ou trans. Para mim, a leitura desse conjunto de obras é clara: nossa sociedade quer falar sobre esses temas, são vozes aprisionadas que precisam gritar. Isso a despeito da forma como o poder brasileiro pensa ou age. Queira ele ou não, o Brasil é essa diversidade. Que artistas negros ligados à sua área inspiram você? Jeferson De é minha fonte primordial. Na velha guarda, Grande Otelo, esse gigante. Antonio e Camila Pitanga e, fora do cinema, amo a cantora moçambicana Cesária Évora, Seu Jorge, Musa Michelle Mattiuzzi, Elza Soares, Karol Conká, Iza e Nação Zumbi.
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Favela no Brasil.
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what if: cenários futuros construídos em grupo
Análise da rodada 3 do What If.
Para estimular a turma de Design Experimental a imaginar cenários futuros de forma coletiva, a sala toda foi convocada a participar do What If, um jogo criado pela Rito, empresa que desenvolve experiências imersivas de aprendizagem. Jogado dentro de um grupo de WhatsApp, tem por objetivo inspirar a geração de hipóteses com base na combinação de dois sinais. “Na nossa visão, sinal é um acontecimento com potencial de grande impacto, mas para o qual ninguém está prestando muita atenção ainda. Quem percebe antes consegue se preparar melhor para as mudanças que virão dali”, diz Bruno Macedo, um dos sócios da Rito, que aplicou e moderou o jogo. Bruno também foi o responsável por selecionar sinais relacionados ao tema do Afrofuturismo para as três rodadas realizadas com a turma. Segundo as regras, cada participante deveria elaborar ao menos uma hipótese de futuro inspirada pelos sinais lançados e enviá-la ao grupo de WhatsApp do jogo. Quem não mandasse nenhuma, era eliminado da rodada seguinte. Não havia limite máximo de número de hipóteses. Todas as formulações deveriam começar com a expressão “E se….” Ao longo de cada rodada (que durava 24 horas), a ideia era suspender o julgamento e soltar a criatividade. Apenas hipóteses podiam ser postadas, nada de críticas ou réplicas.
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RODADA
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RODADA
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Sinal 1: Em uma parceria com o grupo RZO, inteligência artificial criou música inédita do falecido rapper Sabotage, sendo alimentada com textos e letras de músicas escritas pelo rapper.
Sinal 1: Monumentos e personagens negros colocados nas ruas com realidade aumentada como ação de reivindicação do seu espaço no imaginário popular.
Sinal 2: Batalhas de rap crescem com streaming no YouTube e emergem como forma de disseminação das memórias ancestrais, cultura pop, transformação social e protesto sem violência.
Sinal 2: Iniciativa de educação cria franquia de entretenimento que utiliza heroína negra para estimular crianças africanas a aprenderem a ler e escrever a partir de uma figura representativa.
HIPÓTESES GERADAS:
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HIPÓTESES GERADAS:
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EXEMPLOS DE HIPÓTESES QUE SURGIRAM:
EXEMPLOS DE HIPÓTESES QUE SURGIRAM:
“E se as inteligências artificiais programadas para fazer rap começassem a vencer todas as batalhas, tirando, assim, a voz e o espaço dos artistas?”
“E se a realidade aumentada pudesse projetar orixás nos santos católicos conforme o sincretismo religioso e permitisse a apropriação e o uso compartilhado de igrejas católicas por religiões de matriz afrobrasileira?”
“E se para entrar na universidade os alunos tivessem que participar de batalhas de rap sobre os assuntos que pretendem estudar e uma inteligência artificial escolhesse os melhores?” “E se a inteligência artificial fosse péssima em atividades criativas, mas excelente na execução de processos, e assim liberasse o ser humano para explorar seu potencial criativo enquanto as máquinas se ocupassem de outras tarefas?”
“E se um game de heróis orixás fosse produzido e pudesse ser jogado por crianças no meio da rua em seu bairro?” “E se toda a história da África fosse apresentada às crianças em realidade aumentada (construções, pirâmides, saberes) e todo mundo crescesse com a ideia de que os povos negros realizaram feitos gigantes?”
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Sinal 1: Bitnation é um movimento de código aberto para pessoas se tornarem cidadãs de qualquer nação — ou até mesmo criar a sua própria nação — apenas com um aplicativo de smartphone. Sinal 2: Finlândia desenvolve uma identidade digital única para refugiados operada em blockchain. O cartão MONI funciona como uma conta bancária que permite comprar, pagar contas e até mesmo receber depósitos diretos dos empregadores, oferecendo inclusão financeira. Todas as transações são registradas em um banco de dados público, virtualmente incorruptível.
HIPÓTESES GERADAS:
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EXEMPLOS DE HIPÓTESES QUE SURGIRAM: “E se depois da unificação do mundo por meio da Bitnation surgisse um novo idioma universal?” Ilustração do Yemi Yung.
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“E se existisse um sistema monetário em que as pessoas ganhassem ou perdessem créditos conforme suas atitudes com os outros?” “E se as criptomoedas levassem à extinção do dinheiro físico e do sistema bancário tradicional, e isso acentuasse ainda mais a exclusão de quem não tem acesso a internet, smartphone, computador?”
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Após a geração de hipóteses, a turma recebeu a tarefa de produzir uma análise e transpor essa interpretação para uma representação gráfica. Os alunos decidiram então classificar as hipóteses quanto ao tipo de futuro (possível, preferível, provável e improvável), identificar os temas principais e secundários (tecnologia, política, economia, educação, religião, comportamento, sociedade) e tabular essas ocorrências com o objetivo de criar gráficos e uma nuvem semântica para cada rodada. O What If, fora ser um ótimo exercício de imaginação de cenários futuros, foi importante para sinalizar para a turma a ligação entre o Afrofuturismo e o campo dos ritos e da ancestralidade, assunto que ressurgiria nas conversas com os convidados das aulas e que também está presente no trecho do conto Cangoma trabalhado pelos alunos. As hipóteses surgidas na rodada 2 que propõem o uso compartilhado de igrejas católicas por religiões de matriz africana e um game com heróis orixás foram bastante significativas, pois mostram que a combinação de tecnologia com ancestralidade tem potencial para produzir experiências cheias de simbolismo. Ilustração do Yemi Yung.
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CONSTRUÇÃO DO
painel semântico e constatação da colonização do imaginário No início do projeto, a turma se mostrou pouca familiarizada com o termo Afrofuturismo e, para os alunos que tinham algum conhecimento anterior sobre o assunto, a palavra estava fortemente associada à estética do filme Pantera Negra. Quando a sala recebeu a tarefa de montar um moodboard com suas referências imagéticas para o projeto, ficou claro que o imaginário dos alunos estava povoado de estereótipos. O exercício foi individual e o intuito era fomentar a reflexão e a discussão sobre o tema, bem como revelar de que forma o Afrofuturismo poderia ser traduzido em imagens. A maioria dos painéis apresentou fotos ou ilustrações de homens e mulheres africanos utilizando artefatos tecnológicos; padrões étnicos; personagens de ficção; personagens míticos e muitas alusões à produção da Marvel. Outra figura que se destacou entre as imagens foi o jazzista americano Sun Ra, considerado o precursor, entre as décadas de 1950 e 1960, do que é chamado hoje de Afrofuturismo. Expostos no chão da sala para que todos pudessem visualizar as composições de maneira organizada e analítica, os painéis mostravam muitas semelhanças, um indicativo de que as fontes de pesquisa foram pouco abrangentes. Nesse dia, estavam presentes os convidados Carla Andrade, Michel Cena7 e Patricia Abòrisá. Na hora de fazer sua análise, Patricia observou que a escolha das imagens demonstrava que os alunos não tinham muita conexão com o tema e não haviam conseguido trazê-lo para um contexto brasileiro. Ela também comentou a respeito da ausência de elementos da natureza, como terra, água, vegetação e sol, que são muito presentes nas culturas de matriz africana. “Vejo os elementos da natureza, e o seu manuseio, como um dos maiores poderes do povo negro. Por meio da transformação desses elementos, encontramos cura, conexão com a nossa ancestralidade e também brasilidade”. Na sequência, Carla apontou a utilização exagerada de cores como roxo, azul e tons neon, também desconectadas da cultura brasileira. Michel endossou os pareceres e fez outras considerações sobre a estética
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dos painéis, como falta de acabamento, harmonia, composição e curadoria cuidadosa de imagens. Por último, o professor Anderson Penha reiterou todos os comentários anteriores e acrescentou provocações sobre o imaginário coletivo e fontes de pesquisa. O predomínio de referências estrangeiras como Pantera Negra denotava que a pesquisa não havia sido aprofundada. Para comprovar, mostrou resultados de busca por Afrofuturismo no Google. Um questionamento que também emergiu foi sobre o conceito de tecnologia. Nas imagens, objetos como naves espaciais, armas ultratecnológicas e armaduras de metal estiveram bastante presentes. Não por acaso, eles estão associados a um ideal branco e americano de tecnologia e futuro cristalizado em obras clássicas da ficção científica, como 2001 - Uma Odisseia no Espaço e Guerra nas Estrelas. Outro estereótipo revelado foi acerca do continente africano. As imagens retratavam a África de forma tribal, primitiva e como “um só lugar”, desconsiderando o fato de que o continente tem 54 países, que carregam suas próprias identidades, culturas, costumes, religiões e políticas. Após todas essas análises, foi possível chegar à conclusão de que a visão do grupo estava repleta de clichês nascidos de uma construção branca identitária e da influência exercida pela cultura americana.
Atriz Danai Gurira em Pantera Negra.
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CONFRONTAÇÃO COM O
racismo estrutural O uso massivo de imagens sem conexão com a cultura negra brasileira e a ausência de referências à natureza (como Carla bem pontuou: “a natureza também é uma tecnologia”) levantou a discussão sobre quais são as narrativas dominantes a respeito dos negros brasileiros. Embora o Brasil seja um país cuja população negra representa em torno de 108,9 milhões de habitantes1, ou seja, ela é a maioria no país, ainda assim há pouquíssima representatividade negra em espaços de poder, de educação, no mercado de trabalho e na tecnologia, Machado de Assis. entre outros. Essa é uma das marcas do racismo estrutural, que limita o acesso a direitos básicos e até ao direito de existir, já que pessoas negras têm 2,7 mais chances de serem vítimas de assassinato do que pessoas brancas, segundo o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil2, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019.
Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil | Agência Lupa IBGE: população negra é principal vítima de homicídio no Brasil
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Além das estatísticas que revelam o quanto o racismo é presente no Brasil, os estereótipos perduram no imaginário porque, entre os direitos básicos usurpados da população negra, está o direito de registrar e passar adiante as próprias narrativas. Existem muitos relatos sobre a escravidão e suas mazelas, mas pouco se fala sobre a história de luta e resistência. Da maneira como a História do Brasil é ensinada, parece que a escravidão não foi um processo de intensa violência e que os negros “aceitaram” essa condição de forma submissa. Entre as muitas marcas que o racismo deixou na sociedade brasileira, a falta de símbolos e representações de pessoas negras além da figura do escravo é uma das mais cruéis. Personagens brilhantes como Machado de Assis e Teodoro Sampaio muitas vezes não são reconhecidos como negros. Outras figuras fortes, como Dandara dos Palmares e Carolina Maria de Jesus, só agora começam a alcançar alguma visibilidade. O contexto da sala de aula foi uma microesfera do que é a sociedade brasileira, na qual a maioria das pessoas que ocupam espaços de conhecimento são brancas e de classe média. E são essas mesmas pessoas que criam as narrativas que permeiam o imaginário popular, em um processo que mantém as estruturas sociais intactas e no qual o racismo é perpetuado. Dandara dos Palmares.
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RELIGIOSIDADE:
zona de desconforto extra Talvez a aula mais tensa de toda a disciplina tenha sido aquela em que foi debatido o tema religião. Segundo o dito popular, “religião não se discute” — o assunto é evitado justamente por permear camadas muito profundas na formação de um indivíduo e de um corpo social. No entanto, ele já havia aparecido no jogo What If e tornou a surgir quando a convidada Patricia Abòrisá mencionou notícias recentes sobre a vandalização de terreiros de umbanda e candomblé. “Não se trata apenas de intolerância religiosa, mas de racismo, já que só as religiões de matriz africana sofrem esse tipo de ataque”, afirmou. Patricia também destacou a atuação racista da igreja católica na criação de uma narrativa de desumanização do negro. Essa construção foi uma das bases morais para justificar a escravidão no Brasil, pois a população negra era considerada “pecadora, menos evoluída e, portanto, inferior”; nessa relação de inferioridade, não havia a consideração de que os negros eram dignos de benevolência da parte de Deus, diferentemente dos indígenas, que receberam esforços de catequização. Nesse momento, o professor Anderson Penha pontuou que enxergava uma essência humanista nas religiões cristãs. Diante desse posicionamento, houve divergências entre alguns alunos e principalmente da parte dos convidados, pois o contra-argumento foi que a religião não é necessariamente benéfica em sua essência e que ela, enquanto instituição política, pode ser tão nociva quanto qualquer outra estrutura de poder. A abordagem desse tema gerou bastante desconforto na sala. Seja por parte de quem teve dificuldade de ver as instituições religiosas sob uma perspectiva política e como instrumento de opressão, seja por quem se sentiu incomodado diante de mais expressões do racismo estrutural. O desconforto fez parte do processo, pois refletir e desconstruir um ethos (padrões de comportamento provenientes de uma tradição) não é uma tarefa simples. É complexo e demanda que as pessoas se autopercebam e façam uma análise crítica sobre si mesmas; só então é possível abrir o caminho para o conhecimento e a mudança.
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Imagem do livro Candomblé, do fotógrafo José Medeiros de Melo.
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COMPOSIÇÃO DE UM
repertório afro de matriz brasileira Depois que os painéis semânticos revelaram que a pesquisa de referências da turma ainda precisava de aprimoramento, o professor Anderson Penha propôs um novo exercício: a criação de dioramas em grupo, reproduzindo um experimento de composição de cena que ele havia vivenciado no workshop de direção de arte ministrado pelo estilista Jum Nakao. A sala deveria recriar o momento do encontro entre Akin e Moss, do conto Cangoma, num cenário feito de papel pluma com três níveis de profundidade. Mais importante do que garantir o material de papelaria necessário, porém, era assegurar o aprofundamento da pesquisa. Desta vez, os alunos teriam de procurar suas fontes na cultura afro brasileira. Nesse ponto da aula, Michel Cena7 explicou a simbologia do ideograma sankofa, a figura do pássaro que olha para trás: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. A ancestralidade, portanto, era um elemento importante a ser buscado. A construção de um repertório sobre Afrofuturismo de matriz brasileira passa por entender que aqui chegaram povos africanos de origens diversas: Angola, Congo, Moçambique e da região do Golfo de Benim, entre Gana e Nigéria1. Essas nações são o berço de elementos culturais que evoluíram no Brasil, como capoeira, candomblé, acarajé, vatapá, caruru, feijão preto, festividades, linguagem e música, embora, devido ao sincretismo, nem sempre seja possível fazer a associação direta com os países citados. Diante dessa gama de manifestações, compreende-se que a cultura afro resistiu e também foi influenciada pelos indígenas e europeus, dando, assim, origem a novas expressões. É nesse pano de fundo que o afro brasileiro surge, se constrói e se estabelece como cultura; que não é só negra, mas é essencialmente brasileira.
“
Uma discussão que me marcou nas aulas foi sobre como era impossível criar uma estética afrofuturista brasileira sem levar em conta nossa miscigenação histórica. O maracatu me veio à mente como uma das manifestações mais ricas nessa mistura da cultura negra, indígena e branca e pensei que o caboclo de lança seria uma ótima personificação da Moss e seu estilo guerreiro. Para compor o cenário, imaginei transformar tudo numa guerrilha de favela. Então, misturei referências do maracatu, da quebrada e de artistas contemporâneos, como Cemfreio, Edgar e André Firmiano.
”
Bruno Lindolfo
Maracatu.
Na nova pesquisa de imagens para a composição dos dioramas, os alunos seguiram sugestões de fontes dadas pelos convidados ou trilharam caminhos próprios. Nas próximas páginas, alguns depoimentos da sala: Era da Escravidão
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“
Mulheres Ngqoko, África do Sul.
Por indicação da Carla Andrade, iniciei a leitura de Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e me apaixonei pela prosa da autora. No texto, procuro observar vários pontos levantados ao longo das aulas, como o simbolismo dos elementos da natureza, os rituais e as questões do corpo negro, especialmente da mulher.
”
Lúcia Gurovitz
“Comecei a pesquisar músicas, movimentos artísticos, visitei o ateliê do Michel Cena7 e fui também ao Museu Afro Brasil, cheio de referências que me ajudaram a mergulhar no contexto afro brasileiro. No museu, as referências às religiões de matrizes africanas chamaram a minha atenção. Essas manifestações carregam muitos elementos culturais presentes na realidade brasileira.” Ciro Koshiyama Capa do livro Um Defeito de Cor.
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“Vinha de uma trajetória de desenvolvimento individual, a partir da experiência com os orixás cultuados na umbanda. Foi quando percebi que o que eu sabia precisava ser ampliado e aprofundado em outras esferas, integrando ao espírito o corpo e a mente. Ao corpo, uni o início da formação em dança afrobrasileira, podendo experimentar na materialidade, a origem. E à mente, o início de um processo de investigação psíquica com base nos arquétipos, que sinto que existirá por muito tempo.”
No dia do exercício, cada aluno trouxe seu material de criação (imagens impressas). A sala foi dividida em seis equipes, e dentro de cada grupo, os integrantes compartilharam sua pesquisa com os demais integrantes para chegar a um consenso a respeito dos elementos que comporiam o diorama. Michel orientou a turma ao longo do processo, dando sugestões de como distribuir e equilibrar formas e cores dentro da espacialidade do cenário. Ao final da aula, Anderson pediu que a sala elegesse os dois dioramos favoritos e se dividisse novamente, desta vez em dois grupos, para passar à fase seguinte — a criação de duas experiências físicas com base nas cenas eleitas. Havia ainda um desafio extra, colocado desde o primeiro dia de aula da disciplina: ambos os grupos deveriam explorar o gelo como materialidade em algum momento de suas narrativas. Criação dos dioramas na sala de aula.
Roberta de Barros Barreto
Ilustração de Iemanjá.
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EXPERIÊNCIA 1
o despertar de akin
Luís Gama.
Túnel com informações históricas sobre realizações da cultura negra nos campos das artes e das ciências, dispostas numa linha do tempo. Na passagem para a sala seguinte, os visitantes atravessam um portal de gelo seco. Aqualtune.
Terra de Oxóssi.
Ritual tátil inspirado na cultura iorubá, traz o fogo de Ogun, a água de Oxum, o ar de Iansã e a relação da terra com Oxóssi. Enquanto toca e sente os elementos, o visitante ouve um texto sobre essas simbologias.
Fogo de Ogun.
O diorama do grupo 1 traz a representação de um portal. Ao passar por ele, Akin, “guerreiro” em iorubá, viverá seu momento de despertar e a libertação de seus medos. A representação de Akin tem as costas marcadas por símbolos que traduzem a sua origem e olha para a frente como único caminho a seguir. A tradução dessa estética em uma jornada partiu de duas ideias principais: o resgate da ancestralidade, por meio da conexão com as forças da natureza, e a intenção de proporcionar ao visitante um ritual de passagem. A narrativa se desenvolveu como uma exposição guiada com três momentos:
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Vídeos de exaltação.
Experiência imersiva de exaltação da cultura negra com manifestações contemporâneas e propostas de futuro. Nesse ponto, o visitante é convidado a se questionar: como você escolhe caminhar a partir de agora? Imersão cultural.
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EXPERIÊNCIA 2
a jornada de akin, um caminho sem volta
Espaço fechado.
Denominado “O Sufoco”, este espaço é dedicado a mostrar as mazelas do racismo e o histórico de luta, dor e resistência do povo negro por meio de imagens, performance feita por atores e reproduções audiovisuais. Polícia na favela. Estudo de figurinos.
Caboclo de Lança do Maracatu.
Em “A Captura”, uma intérprete de Moss coloca no pescoço dos participantes um escapulário de gelo, que representa o sincretismo religioso brasileiro e faz alusão ao dispositivo eletrônico que foi inserido na cervical de Akin.
Aqualtune.
No espaço “O Despertar”, há projeções de pessoas representativas para o movimento negro, como Zumbi e Dandara dos Palmares. Essa passagem representa a conscientização de Akin sobre sua história de luta e resistência. O diorama traz imagens que remetem a favelas, arte de rua, cristais como simbologia espiritual, um menino com óculos de realidade aumentada, pronto para imergir numa dimensão paralela, além de elementos da natureza. A partir dessa imagética, o grupo construiu uma jornada com o passado, o presente e o futuro de Akin.
Estudo para artefato luminoso. Perspectiva ilustrada sala O Encontro.
Na narrativa, Akin representa o povo negro. O passado é de luta e sofrimento, o presente lhe permite criar e sonhar, embora também haja dificuldades, e o futuro é poderoso: as desigualdades foram superadas e o povo negro se levanta com protagonismo e potência criativa. São quatro momentos: “Atirar flechas curvas”, Bros.
Na sala “O Encontro”, acontece uma exposição com o objetivo de trazer a estética da arte de rua, da periferia, da natureza e da tecnologia. Elementos sonoros, como o rap, luzes e aromas ajudam a construir uma experiência multissensorial.
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Imagem da sĂŠrie Digital Mirrors, do fotĂłgrafo Gary Sikhosana.
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Detalhe de gravura de Gilvan Samico.
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NOVO
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moodboard
Novo moodboard.
A equipe que, dentro da turma, ficou responsável pela condução artística do projeto, compôs um novo painel semântico para inspirar a experiência a ser construída. Desta vez, com o entendimento de uma paleta de cores brasileira e com representações de personagens, objetos, cenas e trabalhos de artistas da nossa cultura.
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NOVO DIORAMA
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Criada por meio da sobreposição de layers, a nova representação de Akin tem, ao fundo, o ambiente urbano, noturno, com iluminação a laser e um símbolo de Ogum grafitado na parede à direita. Na camada seguinte, foi inserida uma moldura de vegetação tropical, com o mesmo tipo de folhagem utilizada em ilustrações características da Tropicália. Já as flores evocam a ritualística das religiões de matriz afro. Por fim, o guerreiro, com seus ornamentos e lanças, é uma imagem que busca transmitir força e altivez.
layer 3: o guerreiro layer 1: a cidade
layer 2: a natureza
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NOVA
exposição como foi feita a fusão das duas experiências O grupo responsável pela junção das narrativas se reuniu e reavaliou as duas experiências anteriores ponto por ponto. As duas tinham semelhanças entre si e se baseavam em momentos de inspiração, ritual e desfecho. Ficou decidido que a experiência 1 apresentava uma estrutura narrativa mais completa e serviria de alicerce para a nova proposta. A ela, seriam acrescentados elementos significativos da experiência 2 e, depois, aconteceria um refinamento relacionado aos comentários que professor e convidados fizeram no dia do encerramento da disciplina. Dessa forma, a nova estrutura ficou dividida em quatro momentos/salas:
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consciência Trata-se de um túnel com exposição de fatos históricos (a linha do tempo da experiência 1), só que num formato mais imersivo e interativo, em que o conteúdo audiovisual convida o visitante e mostrar sua presença e avançar.
Sala do ritual. Corredor de entrada.
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despertar do guerreiro Sala do ritual.
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ritual de origem Aqui, foi mantida a proposta do ritual de despertar da experiência 1, com quatro altares que relacionam elementos da natureza a seus orixás correspondentes. O visitante passa pelos altares de forma alternada, numa ordem determinada, guiado pelo áudio da sala. A diferença é que, no altar da água, o visitante receberá o escapulário de gelo que estava presente na experiência 2. Agora, o objeto, que derretará no pescoço do participante, ganha a simbologia do esvaziamento necessário para que o despertar e a transformação interior aconteçam.
Sala de exposição.
exaltação cultural Sete painéis audiovisuais mostram a força da presença negra na cultura brasileira, apresentando-a num patamar de prestígio, igualdade e pertencimento. O conteúdo dessa sala também ganha um caráter histórico, uma vez que a ideia é cobrir desde as origens na África até o Afrofuturismo. Esse momento de reverência cultural existia nas duas experiências anteriores e ganhou um novo formato, mais factível do que o videomapping considerado originalmente.
Sala da exaltação cultural.
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legado Sala de exposição com obras de arte de seis artistas negros contemporâneos. Nesse ponto, o visitante aproxima das obras o dispositivo que resta no escapulário após o derretimento do gelo e, com isso, consegue ler mensagens ocultas, projetadas nos quadros. A ideia é ressaltar o legado que ficará para o futuro e provocar com novos questionamentos.
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de que forma a nova experiência se conecta com o conto cangoma Assim como aconteceu com Akin durante o encontro com Moss, a experiência propõe um rito de passagem, no qual tecnologia e ancestralidade se encontram. O visitante terá à disposição conteúdos sobre história, cultura e grandes feitos do povo negro para ampliar seu repertório e inspirar uma nova visão. O ritual sensorial dos quatro altares, que propõe o contato tátil com elementos da natureza, se relaciona com a imersão de Akin na floresta e a descoberta dos ancestrais. Já o escapulário de gelo é o equivalente ao implante colocado na nuca de Akin pelos Malungos: um artefacto tecnológico a princípio incômodo, mas que, ao final, revelará seu propósito transformador. A ideia é que o visitante vivencie as quatro salas e chegue ao final com mais elementos para seguir adiante: conhecimento sobre o passado, entendimento do presente e perspectivas de futuro.
Um ritual de passagem que une reflexão e conexão.
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de que forma a nova experiência atende aos tópicos levantados no jogo what if
política e economia No conteúdo histórico das salas da Consciência e da Exaltação Cultural.
comportamento Propõe a interação do visitante, a presença e a entrega a um ritual.
religião No ritual dos quatro altares e na sala da Exaltação Cultural
cultura Exalta os saberes do povo negro no passado, no presente e como legado para imaginar o futuro.
meio ambiente
tecnologia Nos conteúdos audiovisuais e no escapulário/artefato que revela as mensagens projetadas nas obras de arte.
De forma indireta, no ritual de conexão com os elementos da natureza.
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Ilustração do Yemi Yung.
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TRAGÉDIA
anunciada Quando as aulas da disciplina de Design Experimental começaram, em dezembro de 2019, o cenário da pandemia causada pelo coronavírus ainda não estava no radar da turma. No entanto, a conclusão do curso aconteceu já dentro do período de quarentena e trouxe um sentido de urgência ainda maior para diversos temas tratados ao longo do projeto. Como as desigualdades sociais e os problemas estruturais das cidades nunca foram devidamente enfrentados, colocando a população periférica em situação de alta vulnerabilidade, o Brasil se vê diante de uma tragédia previsível e sem precedentes. Assim como no conto Cangoma, vivemos em cidades desiguais, em que as medidas de isolamento e higiene necessárias para a contenção do contágio da Covid-19 se tornam impraticáveis para uma grande parcela dos habitantes. Como lavar as mãos se cerca de 4 milhões de brasileiros moram em casas sem banheiro? Como se isolar se 3,22 milhões de pessoas vivem em coabitações, isto é, dividindo a mesma casa com mais de uma família? Como fazer home office se o trabalho informal é a fonte de rendimento de mais de 40% da população trabalhadora do país? Com o fechamento das escolas, crianças da periferia ficaram sem merenda, uma importante fonte de alimentação para elas; ao fazerem todas as refeições em casa, a pressão sobre o orçamento familiar aumenta ainda mais. Quando se faz o cruzamento entre os números da desigualdade social e da população negra, transparecem os efeitos do racismo estrutural e da falta histórica de políticas de inclusão, que deveriam ter sido colocadas em prática desde os primeiros momentos pós-abolição da escravidão. Em 2015, negros e pardos representavam 54% da população brasileira, mas sua participação no grupo dos 10% mais pobres era muito maior: 75%. Pretos ou pardos estavam 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos.
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No Brasil, atualmente, cerca de 13 milhões de habitantes moram em favelas. É consenso entre as lideranças locais das maiores comunidades de São Paulo e Rio de Janeiro que as medidas propostas pelos governos estaduais e pelo Ministério da Saúde para conter a pandemia ignoram as periferias. As comunidades possuem grande densidade populacional, moradias pequenas e com muitas pessoas. São, em média, oito indivíduos compartilhando o mesmo espaço e não há como isolar os idosos. Se um pegar, os outros também vão adoecer. Além disso, a falta de água encanada e acesso a sabão e álcool gel prejudicam o controle da disseminação do vírus. Diante desse cenário, as ações de contenção mais efetivas até agora surgiram dentro das próprias lideranças comunitárias e de ONGs a elas ligadas, como campanhas de arrecadação e distribuição de dinheiro, alimentos, água, máscaras e kits de higiene. Essas mesmas lideranças cobram dos governos medidas como programas de renda mínima, isenção de pagamentos das contas de água, luz e gás e locais para o isolamento de doentes menos graves. O Estado falha no atendimento às populações em situação mais fragilizada, na criação de um programa de testes extensivo (capaz de detectar os doentes precocemente e, com isso, aumentar as chances de conter o contágio e oferecer tratamento no tempo certo) e no fornecimento de números confiáveis sobre a doença. A curva de contágio ainda está em ascensão e, devido à subnotificação, não se sabe ao certo o número de doentes e mortos até agora. Para as populações mais vulneráveis, o futuro, no momento, é uma grande angústia.
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“Este contexto da Covid-19 me traz uma sensação de descontinuidade. Li, no ano passado, uma reportagem muito legal sobre o aumento do número de alunos negros nas universidades. Mas agora, quais estudantes têm condições de fazer ensino à distância? Vai surgir uma lacuna na educação novamente. Para mim, esse processo de descontinuidade é resquício da escravidão. Tenho a sensação de que o negro está sempre sendo tolhido, quebrado, sempre tem de se reinventar,” Ester Lopes
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REFERÊNCIAS
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bibliográficas CELNIK, Nicolas. Afrofuturism: Decolonizing the Imagination. Paris: Esprit, fevereiro de 2019. DERY, Mark. Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: Flame Wars. Durham: Duke University Press, 1994. p. 179-221. KABRAL, Fábio. Afrofuturismo, o Futuro é Negro, o Passado e o Presente Também. Medium, março de 2016. SANTOS, Ale. Cangoma. In: Todo mundo tem uma primeira vez. São Paulo: Plataforma 21, 2019. p. 175-206. WOMACK, Ytasha. Afrofuturism: the World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.
reportagens A era da escravidão. Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/a-erada-escravidao/
Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencianegra-numeros-brasil/ IBGE: População negra é principal vítima de homicídio no Brasil. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/ibge-populacao-negra-e-principal-vitimade-homicidio-no-brasil/ Mais de 4 milhões de brasileiros não têm banheiro. Disponível em: https:// exame.abril.com.br/brasil/mais-de-4-milhoes-de-brasileiros-nao-tem-banheiro/ Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/rendimento-despesa-econsumo/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html Registros de intolerância religiosa aumentam 22% no estado de SP. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/21/registros-deintolerancia-religiosa-aumentam-22percent-no-estado-de-sp.ghtml Trabalho informal avança para 41% da população ocupada e atinge novo recorde, diz IGBE (G1). Disponível em: https://g1.globo.com/economia/ noticia/2019/08/30/trabalho-informal-avanca-para-413percent-dapopulacao-ocupada-e-atinge-nivel-recorde-diz-ibge.ghtml
Coronavírus: sem ação dos governos, periferias se organizam como podem. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/03/ coronavirus-periferias-favelas-ocupacoes/
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expediente Istituto Europeo di Design (IED) Supervisor Acadêmico Geral: Stefano Carta Vasconcellos Design Estratégico e Inovacão Coordenador: Francisco Albuquerque Design Experimental Professor: Anderson Penha DESPERTAR DO GUERREIRO Coordenação das Equipes Camila Almeida, Ciro Koshiyama, Diego Fernandes, Hanna Amback, Lúcia Gurovitz Arte Alessandro Camargo, Bárbara Wolff Dick, Bruno Lindolfo, Diego Fernandes, Frederico Zarnauskas, Helen Souza. Design do Book: Thaysa Torres Cenografia Camila Almeida, Denise Ramos, Helen Souza, Júlia Rollemberg, Luiza Abubakir, Pedro Coivo, Roberta de Barros Barreto Texto Caroline Hoth, Ciro Koshiyama, Danielle Eger, Flavia Hanczek, Hanna Amback, Lúcia Gurovitz, Pedro Coivo, Renato Casseb, Roberta de Barros Barreto, Thaiza Falcone Produção Ciro Koshiyama, Flavia Hanczek, Johana Abreu, Silvia Maule Demais Colaboradores Daniele Pereira, Enrico Movizzo, Rafael Buchalla, Renato Gaviolli Agradecimentos Arlete Freitas, Bruno Macedo, Carla Andrade, Ester Lopes, Michel Cena7, Patricia Abòrisá, Silmara Alves
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