Primeira Impressão 59

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RECEITAS DE VIDA

pi pr | 59 | Julho de 2023 | imeira impressão

O TEMPERO DA NARRATIVA

Um dos propósitos de um editorial de revista é, justamente, apresentar o conteúdo da edição em questão. A esta função nos referimos, no jargão das redações, como “cardápio”. Nada mais ao gosto deste número 59 da Primeira Impressão, que tem como tema restaurantes e lancherias. Ou, mais precisamente, histórias das pessoas que criam, mantêm e frequentam esses estabelecimentos de vocação social por natureza, que muitas vezes se tornam, mais do que negócios privados, pontos de encontro de toda uma população. É o caso das Bancas de Novo Hamburgo e do Xis da Alemoa, em Sapucaia do Sul, instalados no coração de espaços públicos movimentados e ocupados por gentes de todos os tipos.

Do ponto de vista histórico, há aqueles que se confundem com a própria trajetória da cidade, como o Café Avenida, antigo palco de debates políticos e econômicos, também em Novo Hamburgo. Ou o Bar Alfredo, em Porto Alegre, que completa 70 anos com um pé no passado e um olhar ressabiado para o futuro. Outros, embora plenamente integrados à rotina urbana, buscam torná-la mais agradável, com o ambiente familiar do Qualitá, também na capital, ou a diversão proposta pelo Funny Feelings, em São Leopoldo. A persistência dos empreendedores, comum a tantos desses restaurantes e lancherias, é o que une casas tão diferentes como O Xis Porrada, de portas abertas à noite e o ano todo na litorânea Tramandaí, e o Schwarz Maria (“Maria Preta”), marca de uma vitória pessoal sobre o preconceito na pequena Santa Maria do Herval.

Este é o cardápio de mais uma edição da revista experimental produzida por alunos e alunas de Jornalismo da Unisinos, ao longo de um semestre, na disciplina de Jornalismo Literário. E aqui entra o tempero da receita: cada história mereceu uma apuração atenta e uma escrita elaborada, como deve ser com as melhores reportagens. Da escolha do tema à revisão das páginas, esta é uma revista preparada com um toque especial, pelas mãos de repórteres que têm a ousadia de experimentar e propor novos sabores à narrativa jornalística. n

ÍNDICE

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CAFÉ AVENIDA

Antigo ponto de encontro dos hamburguenses mudou de lugar e de cardápio, mas mantém a tradição

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SCHWARZ MARIA

Do Norte para o Sul, a migração de Maria derrubou barreiras, constituiu família e conquistou clientela

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EDITORIAL

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XIS DA ALEMOA

Debaixo da passarela do trem, lanches e histórias avançam madrugada adentro

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QUALITÁ

Um restaurante familiar acolhe a freguesia em meio à agitação central de Porto Alegre

24 FUNNY FEELINGS Criatividade e descontração compõem a receita de um lugar cheio de sonhos

30

O XIS PORRADA

No litoral, a persistência construiu uma lancheria para qualquer temporada

34 BAR ALFREDO

Um dos restaurantes mais tradicionais da capital chega, aos 70 anos, à encruzilhada da existência

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BANCAS DE NH

Território de todas as tribos, complexo comercial alimenta o cotidiano insone de Novo Hamburgo

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NADINE DILKIN

DO CAFEZINHO AO PRATO INTERNACIONAL

PONTO DE ENCONTRO MAIS FAMOSO DE NOVO HAMBURGO

POR DÉCADAS, O AVENIDA APRIMOROU A COZINHA E MANTEVE A HISTÓRIA PRESERVADA NAS PAREDES

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TEXTO E FOTOS DE GUSTAVO BAYS
REPRODUÇÃO / JORNAL NH1968

Nascido em 7 de fevereiro de 1969, em Porto Alegre, Luiz Felipe de Magalhães Soares tem nome de diplomata, como ele mesmo reconhece. O ousado gaúcho queria estudar Gastronomia e percebeu uma boa opção em Natal, Rio Grande do Norte, em um período de forte crescimento do setor de hotelaria no Nordeste, no fim da década de 1990.

“Eu tinha um buggy e surfava todo dia”, relembra Felipe Soares, sobre sua vida em Natal. Depois da formatura e de algumas experiências no comércio local, o gaúcho resolveu alugar um bar na paradisíaca Praia da Pipa. Trabalhando ali, Felipe conheceu um português que o convidou para surfar no seu país de origem. O convite foi aceito e a vida do gastrônomo começou a mudar bastante.

Já em solo português, jantando na casa do seu parceiro de surfe, Felipe ficou sabendo que a embaixatriz (esposa do embaixador) da Itália em Portugal precisava de um cozinheiro. Após o contato positivo, Felipe virou cozinheiro da embaixada da Itália em Lisboa. “Eu morava na própria embaixada e precisava ficar 24 horas à disposição”, detalha. Os momentos mais marcantes foram cozinhar para o primeiro-ministro de Portugal, António Guterres, atual secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), e para a delegação italiana de futebol que jogou a Eurocopa de 2004 em Portugal e viria a

ser campeã do mundo dois anos depois.

Após alguns anos, outro embaixador foi designado para a missão diplomática italiana em Lisboa. Emilio Barbarani assumiu o cargo e, para surpresa do chef de cozinha, não tinha esposa. Então, sem embaixatriz, coube a Felipe assumir o cargo de administrador da residência. “Meu trabalho era de empregado doméstico de luxo”, conta, aos risos. Ainda durante o mandato de Barbarani, a filha de Felipe nasceu em solo português. “Eu me perguntava onde iria batizá-la e o embaixador pediu para ser na pia da rainha, onde se batizavam os reis de Portugal.”

Dali, Felipe Soares se mudou para Roma e teve uma passagem como cozinheiro do presidente da parte de gás natural da empresa multinacional ENI. Mas, logo em seguida, voltou a trabalhar em Portugal, dessa vez para ser cozinheiro da família Espírito Santo, dona do banco Espírito Santo. O proprietário da residência tinha 27 carros de luxo, boa parte dos quais Felipe dirigia. “Era uma curtição.”

O homem de camiseta preta, estatura média, cabelos pretos penteados para o lado, relógio branco no pulso esquerdo, calça jeans e óculos preto com cordinha esticada no peito conta que certa vez foi enviado para trabalhar em uma casa de passeio da família Espírito Santo, onde se hospedavam alguns amigos. Chegando lá, ele descobriu que uma das amigas era a princesa

n Em 1968 (E), os hamburguenses se reuniam no Avenida para tomar café e conversar. Atualmente (D), recebe famílias na hora do almoço

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Charlotte de Mônaco. “Todos os meus patrões aparecem no Google”, comenta, rindo, enquanto pega seu celular com capa vermelha para mostrar.

Depois da experiência na casa dos banqueiros, Felipe virou cozinheiro do músico espanhol José María Cano. “Fui morar na casa desse doido. Fiquei um ano lá. Festa todo dia. Era uma loucura”, define.

Nesse momento, ele teve uma nova proposta de emprego na Espanha: “Saio dos milionários e vou para os bilionários”. Em 2009, seu novo trabalho como cozinheiro foi na casa do segundo homem mais rico da Espanha na época, um dos membros da família Del Pino. “Põe no Google”, mostra novamente em seu celular. “Durante um ano e três meses que fiquei lá, nunca vi ele botar uma mão na maçaneta para abrir a porta”, lembra, para enfatizar o poder do sujeito. Porém, não foi fácil. “Del Pino me sugava, estava 24 horas à disposição do cara.”

Para finalizar sua passagem pela Europa, Felipe ainda trabalhou em Londres, mas, em dezembro de 2011, a distância da filha, que na época estava no Brasil, o fez retornar. De início, foi dono de padaria e trabalhou em um hotel, porém foi em 2015 que sua vida mudou.

Em um curto período desempregado, Felipe estava em casa e viu um anúncio no jornal Zero Hora. Um restaurante no centro de Novo Hamburgo estava à venda. Quando ligou, descobriu que se tratava do Café Avenida, o histórico café hamburguense.

Essa história começa muito antes. Em 15 de setembro de 1910, na cidade gaúcha de Montenegro, nascia Omar Antônio Guerreiro. Aos 20 anos, o jovem de pouca estatura e cabelos pretos curtos logo decidiu deixar a profissão de sapateiro para viver uma grande aventura: se voluntariou para lutar na Revolução de 1930. “A mãe dele quase teve um ataque do coração quando soube”, afirma a filha de Omar, Odete Guerreiro. Mas essa era a melhor chance de sair do ambiente de proteção da família, como o próprio disse em entrevista ao Jornal

VS na década de 1990: “Queria sair pelo mundo. Me sentia livre. Nem era getulista”.

Na época, a eleição nacional ficou reconhecida pelas diversas ações fraudulentas para que as oligarquias seguissem no poder. Mas, com Getúlio Vargas como líder da oposição, foi feita a Revolução de 1930, com o objetivo de depor o presidente Washington Luís. Em uma das primeiras batalhas, em Porto Alegre, o jovem soldado levou um tiro em sua coxa direita, mas conseguiu sair vivo do combate.

“Os antigetulistas nos atacaram de surpresa, fui ferido no meio da correria”, relatou Omar ao VS. Depois de outros combates entre os estados do Paraná e São Paulo, o retorno vitorioso

aconteceu no fim de 1930.

De volta a Montenegro, Omar se casou com uma moça chamada Laydes Wolff. Como as empresas de sapato estavam em alta na cidade de Novo Hamburgo, em 1937, os dois, junto de sua primeira filha, se mudaram em busca de melhores oportunidades de trabalho. De início, Omar dividia o trabalho em uma empresa de sapatos durante o dia com a função de garçom à noite. Em seguida, ele assumiu o serviço em um bar de Novo Hamburgo, onde conviveu de perto com imigrantes alemães no período de início da Segunda Guerra Mundial. Ali, Omar já percebeu que seu estabelecimento chamava a atenção pelos debates e reflexões políticas.

n O prédio de dois andares do Café Avenida era um dos mais altos do centro de Novo Hamburgo na década de 1940

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IMAGENS: ACERVO ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL DE NOVO HAMBURGO

Desde 1931, no centro da recém-emancipada cidade de Novo Hamburgo, na esquina entre a Avenida Pedro Adams Filho e a Rua General Neto, existia o Café Avenida, gerido por Eduardo Kraemer. Mas, “em 1941, a existência do Café foi adquirida pelos irmãos Omar e Oscar Guerreiro”, como definiu reportagem do Jornal NH de anos depois.

Oscar seguiu por algum período trabalhando ali, mas deixou o estabelecimento para que ficasse apenas aos cuidados do irmão. O local preservou durante todos os anos suas mesas de mármore, cadeiras de madeira e o eterno ventilador alemão que girava desde 1931 sem estragar. Omar abria o café às seis horas da manhã e só fechava à meia-noite. Nos primórdios vendia café e almoço, porém, a moda da época e a concorrência fizeram o estabelecimento se focar apenas nos cafés no decorrer dos anos.

O tempo foi passando e o público aumentando, entre mil e duas mil pessoas passavam por ali diariamente. Até uma lotérica foi aberta, o que sustentou a renda do café por várias décadas. “Aqui sempre se discutiu problemas de crimes, política e futebol. Tudo o que se possa imaginar é discutido nas mesas aqui no café”, contou Omar em umas

das diversas reportagens de que participou e estão guardadas em um álbum da família.

O local ficou conhecido pelos debates políticos. Dizia-se que as eleições locais eram decididas ali. A reportagem da Zero Hora de 1986 esteve no Avenida e entrevistou um cliente que afirmou passar três vezes por dia no café. “É o melhor local da cidade para conversar e tomar café. Em suas mesas nós conseguimos resolver todos os problemas do Brasil”, garantiu César Foscarini, com 33 anos na época. Na mesma matéria, Omar exaltou que só não abriu o café em três momentos: “Nos dias em que morreram Getúlio Vargas, minha mãe e meu irmão”.

A terceira filha entre os oito que Omar teve, Odete Guerreiro, com 81 anos atualmente, recorda que a rotina de trabalho do pai era intensa. “Meu pai saía de manhã e voltava sempre tarde de noite, às vezes passava em casa rapidamente durante o dia para nos ver. Ele nunca foi assaltado, os guardas eram amigos dele, os moradores de rua eram amigos dele, ele ajudava todo mundo.”

Omar nunca deixou os filhos trabalharem no café. Mesmo assim, eles frequentavam o local. “De manhã eu ia lá tomar café antes de ir

n Os clientes do novo Café Avenida podem almoçar nas mesas internas que ficam próximas ao buffet ou ao ar livre nas mesas externas

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Em suas mesas nós conseguimos resolver todos os problemas do Brasil”

n Foto do jovem Omar Guerreiro (E) ao lado de um retrato dele mais velho (D), nas mãos de sua filha Odete

para escola, depois pegava o ônibus na parada que ficava do outro lado da rua”, lembra Odete. Além disso, era raro encontrar mulheres por lá. “Era um lugar mais para homem, no fim que as mulheres começaram a frequentar”, completa.

A senhora de cabelos brancos curtos, blusa de lã rosa e calça de moletom está contente relembrando os momentos passados. “Nos finais de semana, as mulheres ficavam caminhando de um lado para o outro na calçada perto do café e os homens se encostavam na parede do lado de fora do estabelecimento.” Ao ser questionada se aquele era o ponto de paquera da cidade, Odete dá risada: “Era a diversão do final de semana, não tinha outra coisa para fazer na cidade”.

Nesse momento, em busca de mais memórias, Odete telefona para sua irmã, Saragani Guerreiro. As duas juntas passam as informações dos últimos momentos do tradicional café.

Mesmo com o passar das décadas, Omar seguiu com o mesmo imóvel alugado no centro. O prédio foi passando de geração em geração, sempre aumentando o valor do aluguel. Até que em

dezembro de 1994, mais de 50 anos depois, Omar precisou sair dali, o custo ficou insustentável. “Era um pouco antes do Natal, foi bem triste”, lembra Saragani. Ele ainda tentou se mudar para outro estabelecimento próximo, mas depois de alguns meses precisou sair. O lucro já não era mais o mesmo.

O prédio histórico do Café Avenida ainda pode ser visto no mesmo lugar no centro de Novo Hamburgo. A única diferença é que agora ele fica entre a Avenida Pedro Adams Filho e o Calçadão Osvaldo Cruz, já que a Rua General Neto foi transformada em calçada. No local, atualmente, funciona uma loja de operadora de celular.

O histórico Omar Guerreiro, fã de xadrez, vinho e Martinho da Vila, faleceu no fim de 2002, aos 92 anos. No mesmo período, o nome Café Avenida voltou ao mercado após pedido da empresária Joseane Allgayer, que não tem parentesco com Omar, mas foi liberada pela família a resgatar o nome do local. No novo ambiente, localizado na Rua Lima e Silva, ainda no Centro, quatros mesas e 16 cadeiras do antigo estabelecimento e diversas fotos pelas

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Em dezembro de 1994, mais de 50 anos depois de abrir o café, Omar precisou sair dali
ARQUIVO PESSOAL / ODETE GUERREIRO

paredes recordavam os clientes do eterno Café Avenida. Mas, além do tradicional café, também foram servidos buffet a quilo e lanches.

Em 2004, o novo estabelecimento, localizado na Rua Lima e Silva, foi adquirido pelas irmãs Heloisa Bender Klippel e Elisabeth Bender. “Trabalhávamos das 7h às 18h diariamente com buffet de café da manhã, almoço e lanches, além do tradicional cafezinho”, lembra Heloisa. Ela diz que o pessoal antigo seguiu frequentando o Avenida, era quase uma turma fixa. Porém, em 2015, as irmãs decidiram vender o negócio. Foi quando colocaram o anúncio no jornal. “A realidade é que a gente cansou, o horário de trabalho era muito puxado”, finaliza Heloisa.

Essa é hora em que Felipe Soares entra em ação. Após a compra do estabelecimento, transformou a cafeteria totalmente em restaurante, já que os costumes de consumo da população mudaram durante os anos. Depois da passagem pela Rua Lima e Silva, no Centro, o chef se mudou para o bairro Vila Rosa, em 2021. Desde então, atende clientes de segunda a sábado para almoço das 11h às 14h30. Em domingos, vende churrasco para levar.

Iniciado o expediente durante a semana, às 11h Felipe já instrui: “Liga o rádio e coloca na União”. Começam a tocar músicas populares brasileiras nas caixas de som espalhadas pelo restaurante. Felipe vai para o caixa e começa a receber com “bom dia” cada um dos clientes que aos poucos vão chegando. Ele está sempre ligado

no celular, possivelmente fazendo negócios.

Ao meio-dia o movimento fica bem intenso no Café Avenida. Os garçons andam bastante com suas camisetas pretas e calças jeans. Nesse momento, além de atender o caixa e responder ao celular, Felipe ajuda na pia lavando copos.

Quem se senta para comer ali é Leoni Mello. O homem alto de camisa social azul e cabelos pretos e grisalhos diz que tem o costume de frequentar o local há uns 10 anos. Mas de uns tempos para cá ele virou um cliente diário. “A comida é boa, o custo é favorável e a localização facilita”, analisa. A lembrança do antigo Café Avenida de Omar Guerreiro é viva na sua memória como “ponto de encontro de políticos e empresários de Novo Hamburgo”.

Às 13h o movimento já está bem mais baixo e tranquilo. Felipe diminui sua rotina frenética. Alguns clientes aproveitam para tomar o único café que restou do estabelecimento, o de cortesia que fica próximo ao caixa.

As mesas e cadeiras, por conta da idade, não são mais as mesmas do antigo negócio, o que resta são fotos espalhadas pelas paredes. O chef Felipe aproveita sua experiência internacional para adicionar pratos de diferentes países do mundo ao cardápio e tocar o restaurante em frente. Assim eles seguem, com o nome de café para fazer recordar os mágicos momentos vividos por muitos hamburguenses nas décadas passadas, e com uma avenida de novas histórias possíveis pela frente. n

n Felipe recebe mensagens e ligações a todo momento. Quando o caixa está livre, ele aproveita para respondê-las

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O INGREDIENTE DO DESTINO

MARIA SAIU DE CASA AOS 15 ANOS, NO INTERIOR DO TOCANTINS, PARA VENCER O PRECONCEITO EM UMA COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL

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n O bolinho de batata, feito pela própria Maria, não pode

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faltar no cardápio

Num verão escaldante no norte do país, Maria, de nove anos, resolve preparar um bolo para ela e seus sete irmãos. Sem planejar muito, começa a juntar ovos, açúcar e farinha num pote. “Não tem azeite”, descobre ela. Ao lado do fogão de barro, encostado num bule de café, ela pega um vidro de pimenta curtida em óleo. Derrama uma quantidade do líquido na mistura de bolo e coloca-o para assar. Jorge, o irmão do meio, pega o primeiro pedaço, dá uma mordida com muita vontade e logo grita “Não presta não! Não dá pra comer!”, e sai cuspindo o bolo. Os demais, curiosos, sem entender, provam o bolo e assopram para tirar o gosto apimentado da boca. Em meio a gargalhadas, Maria recorda dizendo: “Ninguém gostou do bolo, mas comemos tudo”.

Maria Pereira Barbosa, uma menina de pele negra, nasceu em 7 de maio de 1977, em Paranã, uma cidade pobre do Tocantins (na época, pertencente a Goiás). Ela, os pais, as três irmãs e os quatro irmãos moravam numa casa pequena, de chão batido, paredes de tijolos de barro e telhado de palha. À noite, dormiam todos juntos em duas camas trançadas com couro de boi ou em redes. “Não tem eletricidade até hoje, e o banho é no rio”, conta Maria. O primeiro vizinho morava a duas horas. Nenzico, seu pai, trabalhava muito. Em troca, ganhava o alimento para a família. “Nunca faltou comida, mas só tinha arroz, feijão e abóbora”, recorda Maria.

“Sempre gostei de cozinhar, para a família, desde a infância”, conta. Mas como eram uma família pobre, às vezes faltavam ingredientes. Quando não estava na cozinha, Maria estava lá fora no pátio, onde fazia os bolinhos de argila, com todo carinho, e deixava secar no sol.

n O ambiente é grande, com muitas opções no buffet. Na cozinha, Maria comanda, a filha ajuda e o esposo assume a chapa

O sentimento de abandono

Outra tarde de muito calor, debaixo da sombra de uma laranjeira. Sentadas, Maria e a mãe, Joana, uma mulher baixinha, séria, que não gosta de abraços. Maria, já com sentimento de abandono, é pega de surpresa pelas palavras de ordem da mãe: “Chegou sua vez de seguir seu caminho sozinha. Você vai morar e trabalhar de babá com outra família”. Nenzico não é muito favorável à ideia, tenta ajudar a filha para deixá-la em casa. Mas Joana, persistente, continua: “Tu vai ir junto com eles para Goiânia, vai obedecer, para ser alguém na vida”. Maria, com 15 anos, não tem opção, e precisa ir. Joana, hoje com 78 anos, ainda diz “quero um futuro melhor para meus filhos”.

Aos 18 anos, Maria conhece um rapaz em Goiânia, e, em meio a conversas, percebe que, onde ela estava, não teria um futuro melhor. No dia 7 de junho de 1995, ela e seu amigo embarcam em um ônibus e vão para o Rio Grande do Sul. “O pessoal do norte elogia muito os gaúchos, diz que são gente do bem”, conta Maria.

No dia 10 de junho de 1995, Maria chega a Santa Maria do Herval, uma cidade pequena onde a grande maioria é de cor branca e descendente de alemães. Desesperada, percebe que ela é diferente das outras pessoas.

No começo, passa por dificuldades em conseguir um trabalho. Ao pedir emprego em duas fábricas de calçados, a resposta que ela ganha é:

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TEXTO E FOTOS DE NADINE DILKIN

Chamada de Schwarz

“Não estamos contratando gente de fora!”. Mas Maria entende que o real motivo é o preconceito por ser negra. Ela não se deixa desanimar, e pede para falar diretamente com o gerente da fábrica Maide, conhecido como Pinduca. Dias depois, Pinduca chama Maria para uma entrevista.

“Eu vim de muito longe até a cidade, e preciso do emprego!”

“Vai na recepção da Maide, estamos contratando!”, diz Pinduca.

“Mas eu já fui lá, eles falaram que não estão pegando gente de fora”, retruca Maria. Pinduca balança a cabeça, desapontado, e fala:“Me dê uns dias, vou ver o que posso fazer por ti!”.

Dez dias depois, Maria recebe uma ligação. Era chamada para trabalhar na Maide. Foi lá que Maria recebeu o apelido: “Schwarz Maria” (Maria preta). Um apelido com um tom preconceituoso, mas que nunca alguém imaginou que um dia seria um nome bastante conhecido e parte de um sonho realizado. Maria trabalhou por 11 anos na fábrica. No dia 2 de abril de 2007, a fábrica fechou.

Servido em cima do fogão a lenha

Sérgio Kolling, pedreiro, está construindo uma parte da casa onde Maria mora com a filha, Mirian Schneider. Certo dia, Maria está fazendo

bolinho de chuva. Sérgio aparece na casa dela para receber o pagamento da obra. Maria, sempre querendo mostrar suas habilidades culinárias, oferece um bolinho a Sérgio, que aparentemente gosta, mas não fala nada. Dias depois, Sérgio, sem perder a oportunidade, aparece de novo na casa de Maria. “Vim aqui pois gostei do teu bolinho de chuva, queria comer de novo!”. E foi assim: através de um bolinho de chuva, Sérgio e Maria estão casados até hoje.

Em 2008, Maria realiza um dos sonhos dela, feliz e ao mesmo tempo em desespero. Enquanto cursava corte e costura, abre um negócio próprio. Uma malharia, onde vende as peças produzidas por ela mesma. “Época de inverno vendia de 80 a 100 kg de roupas”, conta Maria. A loja fica anexo ao restaurante, com o mesmo nome: Malharia Schwarz Maria e Restaurante, Pizzaria e Panquecaria Schwarz Maria. Meses depois, Maria e Sérgio

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Maria (“Maria Preta”) assim que chegou, ela transformou o apelido em marca

tomam uma decisão: fechar a malharia e seguir somente com o restaurante, pois a malharia não estava dando retorno. “Quando você abre um negócio próprio, não pensa nas dificuldades que pode passar, só pensa nas coisas boas”, diz Maria. Fica somente com o restaurante.

Hoje, o Schwarz Maria tem 24 mesas, capacidade para 100 pessoas sentadas, e serve almoço de segunda a domingo. Comidas servidas em cima de fogão a lenha, com várias opções tentadoras. Diversas saladas, lasanha, massa alho e óleo, arroz, batata, feijão, carne de panela, bifes, ovo frito, batata doce caramelada, batata frita, bolinho de arroz, bolinho de batata, entre outros. Além das sobremesas. Aos sábados à noite, acontece o rodízio de panquecas ou o rodízio de pizzas com acompanhamentos.

Em fevereiro de 2023, o restaurante ficou de cara nova. Além da pintura da cascata, na entrada, as paredes amarelas em tom claro recebem 10 frases motivacionais e reflexivas – “A mente cozinha e a alma tempera”, “Ame o que você faz”, “Barriga cheia coração contente” –, com desenhos de pessoas e pratos.

Clientes de outra cidade

Noite de temperatura amena, 6 de maio, dia de Rodízio de Pizzas, com acompanhamento de buffet e bifes na chapa. Onze minutos antes de começar o rodízio, às 19h49, entra uma turma de sete pessoas – quatro homens e três mulheres –, a maioria idosos. Viajaram cerca de 39 quilômetros de Kombi até o restaurante. Ida, de 74 anos, é a mais alegre. Está de

bengala, é um pouco corcunda, de cabelos escuros e curtos. Os sete se sentam em uma mesa, e o diálogo entre eles é em Hunsrik (dialeto alemão).

O ambiente é silencioso, tem duas televisões ligadas em noticiário, em volume baixo. Aos poucos chega mais gente. Na cozinha, Maria, com seu avental e touca de pano florido, dá as coordenadas, mas sempre carismática, alegrando o pessoal em volta. “Posso colocar o arroz?”, pergunta Mirian, a filha de 23 anos, que também ajuda no restaurante nos finais de semana. Maria responde: “Pode!”. A garçonete Angela de Moura, 43, serve as bebidas. Maria fica no preparo das pizzas. E Sérgio, 59, de pele clara e mais reservado, também de avental e touca branca, fica responsável pela chapa – cuida dos bifes, de frango e de gado, com opção de queijo. Maria dá uma última checada no buffet. Mirian dá um sinal de positivo para Angela, mostrando que está liberado.

Mariane Weber, 45, com movimentos ágeis, serve as pizzas, começando pela de calabresa, passando mesa por mesa e anunciando o sabor. Não demora muito, Mariane começa a servir os doces. Ela para do lado de Ida e oferece: “Pizza de abacaxi com chocolate branco”. Ida aceita um pedaço com

n As paredes são repletas de frases reflexivas. Entre elas, porém, destaca-se o pequeno texto em que Maria conta, orgulhosa, a própria história

um aceno de cabeça. Mariane prontamente lhe serve. “Awer soo en kroos xtik!” (“Mas um pedaço tão grande!”) Mariane fica sem jeito, dá um sorriso de canto e segue para a próxima mesa.

A receita mais pedida

Numa sexta do mês de abril, às 11h27min, a cozinha já está a todo vapor. Maria prepara o que é mais pedido no restaurante: bolinho de batata. Confere o moedor e pede para Sérgio ligar a máquina na tomada, “Tenho medo de colocar essas coisas”, diz ela. Com as batatas já descascadas, coloca-as no moedor. Embaixo dele saem as finas tiras de batata que caem numa bacia. Feito isso, Maria acrescenta a farinha, os ovos, o sal e o “amor” (como é chamado o tempero que ela não revela). “O segredo é não contar a quantidade.” Com as mãos mesmo, ela mistura tudo. “Se a massa ficar seca, pode colocar água. Só não pode ficar com bolinhas de farinha”, diz, e separa as tirinhas de batatas embolotadas. Já com o óleo quente, e ainda com as mãos, Maria

esmaga uma porção com os dedos, ficando bem fininha, e coloca no óleo. “Aí você escolhe se quer mais branquinho ou mais douradinho”, fala Maria enquanto tira os bolinhos e serve no buffet.

Nas mesas ouve-se os clientes elogiando o bolinho. Um senhor alto, acompanhado do pai, coloca um bolinho no prato dele e lhe diz. “Prova esse bolinho. É muito bom!”

Uma mulher, baixinha de cabelo loiro, com um pote de sobremesa, ao voltar para a mesa observa as paredes, lê com atenção. Embaixo de uma das televisões, há uma história de vida contada por Maria. Um texto muito inspirador, com 210 palavras, que encerra com: “Desde então estou muito feliz, por me expressar através da comida!”. n

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Quando você abre um negócio próprio, não pensa nas dificuldades que pode passar, só pensa nas coisas boas”

OU COMER AQUI? É PRA LEVAR

CLIENTES SE AMONTOAM EM FRENTE AO CAIXA PARA PEDIR OS LANCHES DO XIS DA ALEMOA, NO CENTRO DE SAPUCAIA DO SUL

Faz 17 graus, mas, dentro da cozinha do Xis e Hot Dog da Alemoa, todas as quatro funcionárias estão de camiseta curta, um uniforme da lancheria. As três mesas de pedra estão lotadas, os clientes sentam em bancos frios de azulejo. No caixa, quatro pessoas aguardam para fazerem os pedidos. “Nome?”,

pergunta a funcionária depois de escutar as pessoas da fila.

O clima é descontraído. Depois de me apresentar, escuto: “Só não tira foto minha porque hoje eu não alisei o cabelo”. Quem brinca é Katia Andrade Conrado, a funcionária do caixa. Além do Xis da Alemoa, mais duas lancherias estão abertas naquele horário: a Top Lanches, na entrada, e a Hot Dog

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TEXTO E FOTOS DE LISANDRA STEFFEN n No balcão, clientes e funcionários dividem espaço com pedidos, bandejas e copos Stanley

Darling, ao fundo. A praça de alimentação é composta por uma série de trailers de comida (food trucks, para ser gourmet), que formam quase um labirinto logo abaixo da passarela da Estação Sapucaia.

Além dos clientes das três lancherias, pessoas em situação de rua também circulam pelo local. Entram pelo corredor iluminado, percorrem galerias escuras - outros estabelecimentos que não estão abertos naquele horário - e saem do outro lado da passarela. Conhecem aquelas esquinas.

Diana Albuquerque Duarte nos aborda já nos primeiros minutos. Ela pede moedas a todas as pessoas que estão ali. Mas a curiosidade faz que ela fique mais tempo ao meu lado. “Escreve aí: a bicha de Sapucaia. Todo mundo me conhece”, se apresenta, enquanto abraça o cobertor que usa para dormir à noite. Ela posa para fotos, quer aparecer “no jornal”. “Famosa, ai que feliz! Valeu mais que moeda”, se despede, com um sorriso, enquanto corre para o balcão da Alemoa e pede para uma das funcionárias guardar um exemplar da revista para ela.

Ao terminar o lanche, devolva a bandeja no balcão

Diana segue a jornada de pedir moedas, desta vez, em outros estabelecimentos. Ao sair, cruza com uma mulher de legging escura, casaco branco e óculos. Ela interage com Katia: “Tenho uma encomenda”. “Qual o nome?”, pergunta Katia. E, logo, o pedido se transforma em nome: “Liliana”.

Além das pessoas que resolvem comer ali mesmo, os carros não param de chegar para buscar lanches – como foi o caso de Liliana. Nesse horário, não há mais ônibus passando, por isso, a parada, sempre lotada durante o dia, serve como um grande estacionamento para os clientes do Xis e Hot Dog da Alemoa. A lancheria também oferece tele-entrega, mas o motoboy é tão rápido que quase não o vejo.

Katia, além de atender os pedidos feitos no balcão, também cuida de dois números de Whatsapp: um para tele-entrega e outro para telebusca. A noite dela é cheia. São poucos os minutos em que não há ninguém para ser atendido. Ela também se preocupa com o estado das mesas. “Até os bancos têm milho e ervilha”, comenta no pequeno espaço de tempo que consegue sair do caixa para passar um pano nas mesas que ficaram vazias – mas que logo serão ocupadas por novos clientes.

O balcão do xis é comprido, maior do que os outros dois estabelecimentos. A palavra “caixa” fica no canto esquerdo, em led vermelho – esse é o lugar de Katia, que trabalha ali há cerca de sete anos. No restante do balcão, encontramos avisos para os clientes e vários prendedores azuis – é ali que ficam os pedidos, que mais tarde viram nomes.

“LEONARDO!”

Na sequência, “É pra levar ou comer aqui?”. E, depois de um diálogo inaudível, Leonardo sai com uma sacola para casa.

Do outro lado da avenida, a Fruteira da Bel também está aberta. É de lá a única música que se escuta em toda a rua. Na Alemoa, apenas o barulho da chapa, que trabalha sem parar, e de nomes sendo gritados. Para um município que parece ter sido pensado

para ser uma cidade-dormitório, o Xis da Alemoa é uma opção que não deixa a cidade dormir.

Cristianinho, o Severino

Cristiano Chagas passa várias vezes na frente da lancheria. Pede moedas para os clientes. Tenta vender torrones. Recolhe sacos de lixo. Até que para. Ele, que observa diariamente o movimento da Alemoa, quer saber o que eu faço ali, com um bloco e uma câmera na mão. É ele quem me apresenta as funcionárias. “Esse é o melhor trio!

A Katia é temperamental, a Tati é explosiva e essa aqui é centrada.” “Essa aqui” é Lisiane dos Santos Xavier. Cristiano esquece de apresentar Ivonete Scheffer, a funcionária mais nova dali, que começou há apenas um ano e meio. Lisiane e

n A praça de alimentação fica embaixo da passarela do trem e reúne diversos estabelecimentos de comida rápida

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Ivonete não falam tanto, estão sempre ocupadas realizando os pedidos que não param de chegar.

Cristianinho, como prefere ser chamado, é o “Severino”. Em troca de lanches, auxilia as funcionárias da Alemoa buscando troco nos outros estabelecimentos ou até pintando o local. Além disso, Cristianinho controla “a gurizada, pra não incomodar”. Hoje com 36 anos, está em situação de rua desde os 18. Ele também representa as pessoas em situação de rua no CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas) da cidade. Participa de reuniões e comenta sobre a criação de uma espécie de albergue no município. “Muita gente não entende, acha que a gente é vagabundo, mas tem outras coisas que fazem a gente ficar na rua”, explica.

“Até eu fui entrevistado”, conta sorrindo enquanto pega uma vassoura e sai para varrer a calçada.

“ED!”

Tatiele Freitas segura um copo de plástico na mão. Contém café. Ela chama mais uma vez: “Ed!”. Um homem de calça cargo camuflada, coturno e um colete preto, onde se lê “combate corpo a corpo”, aparece. Pega o café e vai para um corredor vazio. Ed é o segurança contratado para fazer a ronda do local. Ele chega três minutos antes das dez da noite e circula por todos os corredores.

“A segurança é mais pela briga da madrugada, o pessoal chega bêbado e se passa”, conta Katia. Exatamente 55 minutos depois de Ed chegar, acontece a primeira briga: dois cachorros se estranham na calçada. Alguns rosnados e uma batida de pé depois e tudo volta ao normal.

Tatiele também entrega um copo de café para a funcionária da lancheria do lado. “Aqui não tem concorrência de valor, todos os preços são iguais. Se precisar alterar alguma coisa, os donos dos três estabelecimentos se juntam e decidem… Mas a Alemoa é a que mais vende”, confessa Katia.

É fácil de comprovar que Katia está certa. Os clientes se amontoam no corredor, esperando ouvir seus nomes. “Eu brinco que elas [as

colegas] têm Alzheimer, porque eu lembro do nome e dos pedidos da maioria do pessoal que vem aqui”, conta Tatiele. Enquanto as colegas de trabalho têm mais dificuldade em transformar pedidos em nomes, Tatiele conta que os clientes abrem um grande sorriso quando são reconhecidos por ela. Tati, que é responsável pela prensa e montagem dos lanches, trabalha aqui há 10 anos. Ficou quatro anos longe daquele balcão, mas, há cinco, voltou.

“Eu comecei com a Tia Alemoa, na madrugada, aprendi tudo com ela.” Tatiele, além de ser a funcionária mais antiga presente, também tem um bordão. Entre um pedido e outro, quando nomes não estão sendo gritados do balcão, é possível ouvi-lo vindo de dentro da cozinha: “Ai, senhor dos anéis”.

A Tia Alemoa abriu a lancheria há cerca de trinta anos. Ela morreu há alguns anos e quem seguiu com o negócio foi o filho, Luciano Bortolotti. “Os patrões são bons, por isso são os mesmos funcionários há anos”, explica Katia. Além dos donos, são dez funcionários, no total, que se dividem nos diversos horários de atendimento. O Xis e Hot Dog da Alemoa funciona todos

n Tatiele é responsável pela prensa e montagem dos lanches, mas, no tempo vago, publica vídeos no Tik Tok. Diana (ao centro), “a bicha de Sapucaia”, vaga pelas ruas do centro da cidade pedindo por moedas e encarando olhares preconceituosos. Cristianinho ajuda as funcionárias em troca de comida

os dias das nove da manhã até meia-noite e meia. No entanto, nas sextas-feiras e aos sábados, fica aberto 24 horas.

O senso de comunidade permanece no local de trabalho. Todos os funcionários são próximos e se ajudam. Dentro da cozinha, sempre tem alguém rindo. “Elas riem de mim porque eu faço TikTok”, conta Tatiele. Os vídeos de dublagem são feitos com a filha e são motivo de descontração entre as colegas.

Tatiele, segundo as colegas, é a que mais gosta de “dobrar”. Ou seja, que junta dois turnos e fica responsável pela prensa, também, na madrugada. “Eu sou mãe solteira, tenho dois filhos pequenos. No final de semana que eles ficam com o pai, eu dobro”, conta.

Nomes, casamentos e lanches

Entre os clientes fiéis, há aqueles que frequentam a lancheria desde criança. Agora, depois de, pelo menos, três décadas, os papéis se invertem e são eles, hoje adultos, que trazem os filhos para o local. Não existe um tipo específico de público na Alemoa. Eles atendem desde o rico até o humilde.

Passado das dez da noite, porém, todos parecem estar com o mesmo tipo de roupa: calça e moletom. Um homem se destaca na multidão: está de camisa preta e sapatênis. Ele espera pelo pedido. “ANDRÉ!”

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“Ai, senhor dos anéis”

Ele não é cliente fixo. Ao pegar o lanche, as funcionárias entregam um cartão e explicam o horário de atendimento, além de ofertarem os outros tipos de comida que servem.

“Bebida? Maionese extra?”, Katia, com certeza, já perdeu as contas de quantas vezes fez essas perguntas nas últimas horas.

São dez e quinze da noite quando alguém pede o primeiro latão de cerveja. O homem é alto, usa o capacete da moto na cabeça e veste um corta vento preto. Ele espera o pedido virar seu nome. Depois, vai embora. Os clientes que ficam para comer, naquele momento, são todos compostos por famílias. Há, pelo menos, uma criança em cada mesa.

Em uma das madrugadas, um dos clientes chegou com uma marca roxa no pescoço. Ao ouvir a brincadeira de uma das funcionárias, o homem ficou nervoso. “Onde, moça? Eu sou casado!”, dizia assustado. Katia e Tatiele relembram rindo. Com certeza, já salvaram casamentos.

Mas não só de relacionamentos em crise vivem os clientes da lancheria. Há alguns anos, uma

ex-funcionária sempre reclamava de um freguês para os chefes. Tatiele conta que um sempre implicava com o outro. No final, acabaram casados.

Para levar até no avião

O carro-chefe do Xis e Hot Dog da Alemoa é o xis bagunça: frango, calabresa, coração, bacon, vários tipos de carne. Milho, ervilha, alface. Molho de alho, pimenta, catchup e mostarda. Maionese (por mais três reais, ganhe uma porção extra). Queijo e orégano, se quiser. Ainda assim, outros pedidos fazem parte da rotina da madrugada. É o caso de outro cliente, que chega no caixa parecendo familiarizado com as conversas de Katia: “Me dá um cachorrinho sem tomate”, diz. A funcionária já responde com uma novidade: “Não vai mais tomate”. Sem se abater com a mudança, o cliente fica feliz. “Que bom, já posso pedir completo”, finaliza. Ele aguarda o “cachorrinho sem tomate” se transformar em “MICHEL!” - o nome saindo com naturalidade da garganta das funcionárias que nunca perdem o fôlego. Michel fica na primeira mesa de pedra e come ali mesmo, ao lado de um cachorro preto e branco que circula pelo local.

Os clientes vêm de longe. Sapucaia, Esteio, São Leopoldo, Canoas, Cachoeirinha. O diferencial, segundo Katia,

é a maionese. O sabor é tão bom que elas também oferecem a porção extra, em um recipiente separado. A receita? Fica o mistério para atrair a clientela. A fama do Xis da Alemoa ultrapassa, inclusive, as fronteiras do estado. “Hoje mesmo um senhor comprou e pediu pra embalar. Eles vêm de longe, pedem pra gente embalar bem fechadinho, pra levar no avião.”

Diana atravessa a avenida, ainda procura um local para dormir. Um casal dança na parada de ônibus. A Floricultura Bety, do outro lado da rua, está aberta, mesmo depois da uma da manhã. A música ainda toca na Fruteira da Bel. Cristianinho me chama, um cigarro em cada orelha. Ele carrega uma sacola cheia de comida, uma de cada estabelecimento aberto: um xis, um churrasquinho na caixa, uma porção de batatas. Seu turno de trabalho acabou, se despede. Somente os cachorros dormem. O Xis e Hot Dog da Alemoa segue firme, pronto para receber novos clientes e contar novas histórias. n

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Eles vêm de longe, pedem pra gente embalar, bem fechadinho, pra levar no avião”

EM FAMÍLIAALMOÇO

AAvenida Voluntários da Pátria, no Centro Histórico de Porto Alegre, é conhecida por ser um lugar caótico.

Lá tem lojas de departamento, ferragem, joalheria, empórios, floricultura, sapateiro, supermercado e qualquer outro estabelecimento que você possa imaginar. A cacofonia começa às cinco da manhã, após uma madrugada silenciosa e vazia. O barulho é um misto de buzinas, conversas, risadas, músicas vindo de lojas e de vendedores ambulantes. Mas o mais característico são os funcionários que ficam na beira da rua, gritando a plenos pulmões para que o cidadão que estiver passando pela longa avenida preste atenção no que ele ou ela está vendendo. Ali é possível comprar calcinha por R$ 5,99 e cueca por R$ 7,99. Vender ou adquirir ouro e comprar um chip de qualquer operadora.

Na longa avenida que começa na Rua Marechal Floriano Peixoto, em frente à Praça Pereira Parobé, e termina na Rua Ricardo Seibel de Freitas Lima, existe à venda uma das coisas mais importantes para a vida do trabalhador durante o dia: comida. Café, almoço e jantar, tem tudo lá.

Vinícius Martins, 25 anos, atendente de e-commerce em uma empresa situada a duas quadras da avenida, vem todas as manhãs de Gravataí até Porto Alegre para trabalhar. Robusto, alto e sempre com o cabelinho na régua, costuma tirar soneca no ônibus, que leva um bom tempo até a capital. Vinícius já sente a barriga roncar antes de colocar os pés no escritório. Sem tempo para o café da manhã, por precisar se deslocar tão cedo e chegar ao serviço na hora, a primeira refeição é sempre o almoço, que tem disponível do meio-dia até a uma hora da tarde. Um período precioso para ele. Na empresa, Vinícius é conhecido pelo recorde de ter comido 12 bifes à milanesa em um só dia. Se ele pudesse, almoçaria às 10 horas da manhã.

Assim como a maioria dos funcionários que trabalham no Centro Histórico, Vinícius passa re-

NO RESTAURANTE QUALITÁ, É POSSÍVEL TER UMA REFEIÇÃO DE DOMINGO TODOS OS DIAS DA SEMANA, PODENDO ESCOLHER BUFFET

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LIVRE OU A QUILO
TEXTO E FOTOS DE MILLA BEATRIZ LIMA

gularmente pela Voluntários da Pátria, às vezes escutando um trap nos fones, mas muitas outras vezes emprestando seus ouvidos para os comerciantes. Existem os que passam por lá para comprar, os que estão apenas querendo chegar ao outro lado e, no caso de Vinícius, com seu cigarro na mão – que acendeu no momento que botou os pés para fora do prédio comercial –, indo em direção ao Qualitá, restaurante que se encontra na agitada avenida.

Seguindo a tradição da Voluntários, o restaurante também tem um funcionário em pé à frente da porta, convidando qualquer um que passe para subir as escadas até o segundo andar e desfrutar de um bom almoço, buffet ou a quilo. Marcos Santos, sempre com o característico uniforme do res-

taurante e seus óculos que passam simpatia, tem uma urgência menor que os demais que fazem o mesmo trabalho. Com apreço, convida sem alarde, e muitas pessoas acabam subindo. Marcos pode ser considerado o rosto do Qualitá. Responsável por divulgar no gogó as delícias que aguardam as pessoas no segundo andar, faz o trabalho de passar a segurança que nem todos costumam sentir em meio a uma avenida com alguns perigos. Além de recepcionar e cativar clientes, vira um guardião da pequena entrada do Qualitá, utilizando o grande quadro com o menu do dia como seu escudo, cheio de itens que se tornam argumentos do porquê alguém deve almoçar ali. “Ele acaba se tornando uma referência e imagem do estabelecimento,

passando segurança ao cliente que não conhece o restaurante.” Alexandre Salvi, proprietário do lugar, garante que Marcos tem o poder de vender o lugar da maneira mais adequada. Pelas multidões que tomam as mesas, Marcos é bom no que faz.

Vinícius toca a bituca de cigarro no lixo de ferro e sobe a passos largos, repetindo o ritual mais de uma vez por semana, sempre ansioso. “O horário de almoço é a melhor hora do dia, é quando saio para a rua, tomo um ar, relaxo um pouco e como bem para voltar pro trabalho. Quanto mais perto da hora do almoço, mais feliz eu fico”, ilustra Vini – como é chamado pelos colegas.

Como se fosse possível se teletransportar, a avenida é esquecida a partir do sétimo ou oitavo degrau. O cheiro da comida fica perceptível e o barulho não é mais possível de ser ouvido. Em menos de 30 segundos o caos vira tranquilidade, e as portas do Qualitá são abertas, fazendo Vinicíus dar de cara para um longo buffet equipado também com uma chapa para os grelhados – seus favoritos –, um buffet de sobremesa, dezenas de mesas espalhadas e inúmeros funcionários muito bem uniformizados e prontos para mais um dia de servir os trabalhadores e moradores do Centro Histórico. Lasanhas, massas, saladas, frituras, carnes, pizzas, risotos, tortas, frutos do mar, molhos, doces e até mesmo sushi é servido, compondo um almoço para todo e qualquer gosto. O atendente de e-commerce já pega logo um prato e se serve.

Para além da comida, outro aspecto que captura os olhos de quem entra no restaurante é a grande faixa adornada por plantas, onde a frase “Cozinhando com amor desde 1998” é iluminada com luzes led amarelas. O restaurante Qualitá carrega raízes familiares e tem 24 anos. Isso Vinícius e qualquer outro que entre lá e leia o cartaz vai ficar sabendo, porém, a história tem muito mais nuances.

Hoje em dia, quem narra a trajetória do lugar é Alexandre. Com seus cabelos encaracolados e uma camisa social bem passadinha, mostra capricho ao lado de sua esposa, Katiane Valandro, loira e sorridente. Os dois costumam se revezar no caixa, sempre cumprimentando Vinícius quando chega a hora de pagar. Eles podem ser vistos em qualquer lugar do restaurante, pela quantidade de pessoas que sempre tomam os assentos, nunca conseguem parar. É o tipo de estabelecimento que está sempre lotado, mas ao mesmo tempo, extremamente confortável.

Um dos restaurantes favoritos de Vini foi idealizado pela família Salvi, que já possuía um comércio. Eles deixaram a cidade de Carlos Barbosa – localizada na Serra Gaúcha, a 100km de Porto Alegre – em 1998, para uma oportunidade melhor na Capital do Estado. Afinal, a vida que os cinco irmãos estavam levando com seus pais, trabalhando de domingo a domingo, sem poder descansar no final de semana, e sem ver o resultado do esforço que faziam, não estava dando conta de sustentar todos.

Havia chegado o momento de se arriscar, plantar uma quantidade inexplicável de sementes, regá-las e ficar de olho para que os frutos fossem colhidos aos montes posteriormente.

Em novembro de 1998, o Qualitá nascia, sendo inaugurado com muito orgulho pela família: Alexandre, seus irmãos e seus pais. A batalha foi

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intensa e o sucesso da comida e o atendimento familiar ficou tão popular que logo eles conseguiram abrir mais dois restaurantes.

Era importante para eles que tudo ficasse em família, portanto, os novos restaurantes passaram a ser administrados pelos irmãos mais velhos, Marcos e Isabel. O primeiro ficou nas mãos dos mais novos da família: Alexandre, Adriano e Sandra. “Foram bons tempos, mas de muita dificuldade e adaptação”, conta Alexandre, nostálgico. O proprietário narra uma história instável. Vindos de uma cidade do interior, todos eram acostumados com uma rotina mais simples e tranquila.

Atualmente, além do Qualitá em Porto Alegre, existem outras duas unidades em Caxias do Sul, comandadas por Adriano e sua esposa, Ariane. Mas o aspecto familiar nunca foi abandonado, afinal, o estabelecimento não conta só com seus irmãos de sangue.

Todos os funcionários do restaurante fazem parte da grande história do local. Sidnei é garçom do Qualitá há 17 anos e serve Vinícius toda hora, sempre perguntando se quer um suco do dia, que é apenas um real. Às vezes o atendente de e-commerce toma para economizar no vale-refeição da empresa, mas quase sempre, devido ao desconto que o Qualitá permite para ele, se entrega para uma Coca-Cola para acompanhar seu almoço. “Minhas comidas favoritas de lá são a lasanha e qualquer carne”, conta.

Juliane é cozinheira do estabelecimento há 14 anos e, junto com Eloi Terezinha, Adriana e Caroline, responsável por cozinhar as delícias seis dias por semana no Qualitá, que durante o período da manhã é marcado por uma correria extrema. “Costumo dizer a eles que são minha segunda família, pois passo mais tempo com eles do que com minha própria”, Alexandre conta aos risos. Ele diz fazer o possível para que os funcionários transmitam isso em suas funções.

Ao meio-dia, o restaurante pode proporcionar um momento tranquilo. Porém, para chegar a este patamar existe muito trabalho da parte da equipe do Qualitá. O dia dessa “família” começa às 8h da manhã em ponto, quando todos se

juntam e tomam um grande café da manhã. Neste momento, é possível pegar a equipe em uma rotina, batendo papo, rindo e se preparando para os desafios do dia. Mas não há excesso de tempo para confraternização. Quando o café da manhã termina, a coisa fica séria. A rotina começa com o recebimento de mercadoria, cálculos exatos de quanto será utilizado de cada alimento. O som do descascar de legumes fica frenético e a cozinha começa a esquentar com a preparação de múltiplos pratos diferenciados. O almoço

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Costumo dizer a eles (funcionários) que são minha segunda família, pois passo mais tempo com eles do que com a minha própria”

será servido pontualmente às 11h. “Ao meio-dia, a parte mais crítica é manter a qualidade dos produtos para que o cliente saia satisfeito. Como começamos cedo, o preparo é muito importante, e a manutenção da textura e cozimento dos alimentos é sempre um desafio, levando em conta que nenhum ingrediente é igual ao outro.” A preocupação do restaurante é clara, e Juliane, Eloi, Adriana e Caroline tomam a frente para garantir que a comida chegue da maneira correta até o buffet e, posteriormente, deixe Vinícius satisfeito.

Quando o salão começa a esvaziar, até o momento que o último cliente desce os degraus e entra novamente na caótica Voluntários da Pátria para encarar o segundo turno do seu dia, o buffet é recolhido e a limpeza é iniciada. “A parte mais braçal do dia” conta principalmente com Maria Doralice e Sonia, funcionárias do

n Vinícius costuma ler em voz alta o menu disponível no Instagram, convencendo os colegas de trabalho a acompanhá-lo ao Qualitá

restaurante há respectivamente sete e oito anos, que higienizam o restaurante inteiro.

Ao entrar no Instagram e pesquisar por Qualitá, dois restaurantes serão indicados como resposta. O de Porto Alegre e o de Caxias do Sul. Ambos têm similaridades, porém, a unidade de POA tem a mão de Alexandre, que aproveita o momento que o buffet está sendo servido para tirar as fotos favoritas dos clientes. “O Qualitá é simplesmente perfeito. Tanto o ambiente como o atendimento são impecáveis, e a comida então, nem se fala, fora do normal”, diz Vinícius, para quem a história de hoje termina aqui. Depois de comer, pagar e descer as longas escadas, acendendo outro cigarro, volta para o serviço um tantinho mais feliz, sabendo que no dia seguinte, a partir das onze horas, vai poder ficar namorando as fotos que Alexandre posta na conta do Instagram do Qualitá com os pratos do dia, começando o ciclo mais uma vez.

Acompanhando seus clientes chegando com uma expressão e indo embora com outra, o dono do Qualitá entende que o restaurante é um momento de descanso para os funcionários do Centro Histórico de Porto Alegre, momento esse que muitas vezes é

feito na correria, sem prazer nenhum pela comida. “Sempre foi nossa prioridade fazer com que o cliente não só almoce. Ele precisa relaxar e curtir o momento, cada vez mais estamos trancados em uma rotina avassaladora, sempre correndo e não curtindo”, finaliza Alexandre, feliz por ver fregueses como Vinícius saindo de lá com um sorriso que não estava no seu rosto quando entrou.

Se o restaurante continuará em família, não se sabe. Mas, secretamente, Katiane e Alexandre torcem para que sim. “O futuro a Deus pertence, e nossos filhos criarão asas como todos jovens. Não podemos obrigá-los a pousar dentro da empresa familiar, terão a liberdade de escolher e seguir seus caminhos. Caso a opção seja o Qualitá, com certeza seremos abençoados por mais gerações cuidando do restaurante”, conta o dono, com esperança pelo que vem. n

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PARA COMER E SE DIVERTIR

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DIVERTIR

CONHEÇA QUEM ESTÁ POR TRÁS DO FUNNY FEELINGS, RESTAURANTE DE SÃO LEOPOLDO FAMOSO PELA EXPERIÊNCIA CRIATIVA E LÚDICA

Para que um estabelecimento ganhe o carinho e o reconhecimento da clientela, deve, além de servir boa comida, oferecer um atendimento individualizado — destacar-se no meio gastronômico é uma tarefa difícil, já que existem infinitas opções para o público decidir entre os preferidos. No entanto, há lugares que conseguem encantar e transformar um simples jantar ou café da tarde em uma grande experiência. Assim é o Funny Feelings, um bar café localizado no centro de São Leopoldo que, além de oferecer pratos saborosos de nomes inusitados, dispõe de um ambiente cheio de referências a filmes, séries e games.

Do lado de fora, com uma pintura discreta e uma placa pequena indicando “Restaurante”, quem passa por ali não tem noção de tudo que aquele lugar pode proporcionar, mas até isso é uma estratégia dos donos. Fabiano Chaves, cofundador do Funny, conta que o motivo da fachada ser tão simples está no objetivo de surpreender quem passa pela porta de entrada.

“A fachada é extremamente discreta e isso é proposital. A gente gostaria que as pessoas, quando entrassem no Funny, mesmo olhando por fora, ficassem na dúvida se era aqui mesmo. Porque quando a pessoa entra, ela já dá de cara com um lugar grande, com uma iluminação bacana”, relata, enquanto estamos sentados em uma mesa do restaurante, em um sábado de outono. A música ao fundo está tão alta que Fabiano precisa pedir licença para baixar um pouco o volume e conseguirmos conversar. E esse é o clima de quem procura o Funny: descontração e bom humor.

A verdade é que a magia do Funny, muito além de estar na decoração atrativa, com centenas de objetos nas paredes, no bom gosto musical ou nos pratos criativos com nomes engraçados, como “bafo de bode”, “puta merda” e “a fera”, está nas pessoas que trabalham lá.

A gentileza, a alegria e a simpatia ao anotar um pedido são capazes de melhorar a noite de alguém.

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TEXTO E FOTOS DE LAURA ROLIM

n Fabiano esbanja simpatia atrás do balcão do Funny. Além da visão para os negócios, o cofundador do restaurante é muito criativo. Laura Coelho é gerente do Funny Feelings há sete meses. Já morou em seis estados diferentes e tem o desejo de trabalhar com Engenharia Química

É quinta-feira, estou sentada em uma mesa do lado esquerdo do restaurante. Um grupo de amigos está sentado atrás de mim. Parecem estar comemorando alguma coisa. Ou talvez só combinaram de se encontrar. Bem no centro, seis mulheres bebem drinks e dão risadas. Há um rapaz de cabeça baixa nessa mesma mesa. Ele parece estar triste, cansado. Logo ouvimos o grito dos garçons: “HELLBOY”. Esse é o sinal de que um prato está pronto. Uma música alta em referência ao filme toca. Todos reagem. O pedido então chega na mesa das mulheres. Não demorou muito para que o rapaz mudasse o humor. Talvez fosse fome.

Dirijo-me até o caixa, onde ficam alguns funcionários, e é aí que eu conheço a gerente do Funny, Laura Coelho, 32 anos, que está há

sete meses à frente do cargo. Ela usa o cabelo liso, não é muito alta e tem algumas tatuagens. Quem a indicou para a vaga foi a amiga Laís, que trabalha anotando os pedidos dos clientes. Enquanto organiza alguns copos e monitora as saídas dos pedidos, ela me conta que, das experiências que já teve em outros empregos, o Funny é um paraíso. “A vibe é mais alegre, o pessoal é muito de boa”, diz.

Laura já morou em cinco estados diferentes além do Rio Grande do Sul: Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio de Janeiro. “Sou rodada no Brasil”, brinca. A amiga ouve e reage: “Essa fala pode pegar mal, hein”. As duas dão risadas. Formada em Engenharia Química, Laura revela que tenta encontrar um emprego na área até hoje. “Está difícil”, expõe. A gerente, que já teve três bandas só de mulheres na adolescência, diz que não dava certo porque cada vez uma delas estava grávida. Mas relembra com carinho dos tempos vividos. “Era muito legal”, conta.

Trabalho duro e sonhos são duas coisas que se repetem em todas as histórias desta reportagem. Não seria diferente para Anthony Gustavo dos Santos Plaz,

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que com apenas 24 anos já trabalhou em cinco funções diferentes. O rapaz, assim como a maioria dos funcionários do restaurante, tem um estilo diferente. As tatuagens no rosto entregam um pouco da personalidade. Atualmente ele é cozinheiro do restaurante, depois que um conhecido o indicou para a vaga. O contato com o fogão surgiu através de uma experiência que teve em um café de Torres, mas também trabalhou por um tempo em uma pizzaria.

Aliás, se formos falar de todos os lugares que Anthony já passou, talvez faltariam páginas para o currículo extenso. Antes de trabalhar no Funny, ele vendia

CD e DVD na estação do trem de São Leopoldo. Em outro momento, chegou a trabalhar como servente de pedreiro em uma obra na parte da manhã, vendia os CDs das 16h às 20h no trem e aos finais de semana ainda fazia “bico” em uma barbearia. Foi até difícil conseguir anotar todos os detalhes. Mesmo trabalhando em todos esses lugares, tem uma coisa que bate mais forte no coração de Anthony: a música. O jovem teve contato com esse mundo ainda na escola onde estudava. Na Vila dos Tocos, bairro onde morava, conheceu pessoas e se interessou pelo rap. Foi aí que decidiu escrever algumas letras. Já fez show no Pepsi On Stage, Opinião e até mesmo no Planeta Atlântida, em 2020. Hoje em dia ele se dedica para a gravadora que pretende formar.

Anthony mora com a mãe e o padrasto em São Leopoldo. Conseguem pagar todas as contas e viver bem, mas nem sempre foi assim. Ele conta que já passou por muita dificuldade na vida, mas é grato à família por ter se tornado quem ele é hoje.

Nada deixa Anthony mais entusiasmado do que falar dos sonhos e os objetivos que busca realizar com a música. Apesar de ser um pouco tímido, foi quando entramos nesse assunto que ele se mostrou mais interessado. “Eu quero ser gigante, o maior”, diz, com toda a convicção. O desejo dele é que todo mundo saiba quem ele é. Que as pessoas entrem no carro e ouçam a música dele — foi o que me disse um pouco antes de ser chamado para voltar ao comando do fogão.

No Funny, encontrou uma

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O bar café oferece pratos saborosos de nomes inusitados, como “puta merda”, “bafo de bode” e “super galo”

“coisa leve” mesmo trabalhando em um lugar estressante como a cozinha. “De todos os lugares que eu já trabalhei, é o que eu me sinto mais feliz. É um esquema de família. O Fabiano e a Fani se conectam com todo mundo. Tu sabe que vai ser tratado bem. O Fabiano é um grande amigo meu, me ajudou a evoluir mentalmente”, reconhece Anthony.

Por falar neles, é hora de conhecermos os dois personagens que estão por trás do Funny Feelings. Fabiano Chaves, 57 anos, e Elisabete Stefanie Thomaz, 56, apelidada carinhosamente de Fani, se conheceram em Caxias do Sul, cidade natal do casal. Os dois têm três filhos, dois netos e dois cachorros. Fabiano é

fotógrafo há 18 anos e de vez em quando ainda faz algum evento pela região. Fani fez Serviço Social, mas não chegou a exercer a profissão.

O casal, conectado pelo talento e criatividade que os dois têm de sobra, conseguiu unir em um só lugar os sonhos que cada um almejava. Fabiano, de abrir um rock café, com um clima legal e descontraído. Fani, um espaço para servir os cupcakes que vinha produzindo em casa e vendendo pela região — aliás, foi daí que surgiu o carro-chefe do restaurante. Os bolinhos recheados começaram a ser feitos para a família. Fizeram tanto sucesso que ela se encorajou a vender em empresas. Logo já estavam distribuindo em São Leopoldo, Esteio, Sapucaia e Canoas. Sobrecarregada pela rotina de trabalho, encontrou um lugar para abrir a lojinha que tanto queria.

O primeiro espaço, localizado a algumas quadras do Funny atual, foi um sucesso quando inaugurado. As pessoas faziam fila e não se importavam de esperar, pois sabiam que a experiência valeria a pena. Não demorou muito para que o local ficasse pequeno

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Os donos do restaurante não acreditavam que o espaço fosse ter tanto sucesso. Hoje, pessoas de diferentes cidades da região metropolitana frequentam o Funny

para tantas ideias e pessoas que frequentavam. Logo se espalhou pela cidade a fama do novo restaurante em que “os atendentes gritam umas coisas”. A ideia de gritar o nome dos pratos surgiu porque um deles havia ficado de fora do cardápio. Para que não tivessem que produzir novos, Fabiano juntou a turma de funcionários e passaram a divulgar o prato dessa forma. Assim, toda vez que chamavam pelo nome, as pessoas olhavam com curiosidade.

Fabiano, com a sua barba grisalha comprida, fala com entusiasmo do empreendimento, mas é quando se refere à esposa que o olhar fica diferente e as palavras aparecem com facilidade. “A Fani é a verdadeira criadora disso tudo. Ela é uma confeiteira de mão cheia. É muito criativa. Uma gênia”, diz.

Para Fani, foi difícil acreditar que aquele espaço fosse ter tanto sucesso. “Eu achei que seria mais um café”, expõe. Ela atribui a habilidade na cozinha ao incentivo que sempre recebeu da família. “Os meus pais faziam um encontro com os filhos. Cada um tinha que cozinhar alguma coisa para a gente con-

fraternizar. O meu pai era muito bom na cozinha, acho que vem dele essa aptidão”, explica.

Por trás de tanta originalidade, no meio de tantas ideias malucas, tem algo que faz com que as pessoas queiram voltar ao restaurante. Não apenas pelo jardim encantador que há nos fundos, ou pelo espaço aconchegante com inúmeras referências de séries que são consideradas favoritas, ou pela infinidade de pratos doces e salgados. O que faz o Funny ser tão singular são as pessoas que ali estão. E elas, assim como a maioria, enquanto trabalham, planejam aquilo que um dia ainda pretendem realizar. Os funcionários e os donos do restaurante representam o que o Funny tem de mais valioso: pessoas que não perdem a capacidade de sonhar. n

n O espaço é todo decorado com objetos que fazem referência a séries, filmes e games

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UMA PORRADA DE MEMÓRIAS

Durante três temporadas de verão, Alex Rogério Eugenio, 50 anos, atual proprietário d’O X Porrada Lanches, trabalhou na filial tramandaiense do Pica-Pau Lanches, empresa de Novo Hamburgo, em Tramandaí. Alex, hoje grisalho, trabalhou no local dos 13 aos 15 anos, retornando por um breve período aos 17. Mas foi em 1992, quando as filiais do Pica-Pau distribuídas pelo estado começaram a ser vendidas ou fechadas, que Alex viu a oportunidade de empreender. “Eu gostava do lugar, me identificava com ele e sabia que era próspero”, diz, com um sorriso de canto. “Sabia que ia dar lucro, só precisava persistir.”

Aos 20 anos, Alex deu seu Opala Comodoro 87 como entrada e assumiu um valor em parcelas para realizar o sonho: comprar a lancheria. No segundo andar do prédio, há um espaço que registra sua história. Em uma das paredes, em uma espécie de mural, há uma foto da lancheria, na época apenas uma construção de alvenaria semelhante a um trailer, com vários bancos sob uma área coberta e clientes, alguns em fila para fazer o pedido e outros nos bancos aguardando. O prédio, no entanto, era outro. Durante anos, a lancheria ficava localizada no terreno ao lado, que hoje é ocupado por uma loja de artigos diversos.

“O Porrada, como é hoje, é bem recente“, constata Cheila Mara Zabot Eugenio, 50 anos, esposa de Alex. A mulher coloca uma mecha de cabelo loiro atrás da orelha e ajusta os óculos de grau antes de voltar o olhar para o marido. “Faz só uns 12 anos que o Alex comprou o terreno e construiu o prédio”, ela diz, enquanto ele assente com a cabeça.

Para Alex, o que faltava para o negócio prosperar era a constância. Não importava o dia ou a hora, se a placa dizia que a lancheria estaria aberta, ela estaria. “Quando eu comecei, vendia um ou dois lanches no dia. Às vezes passava o dia sem vender nada”, relembra. Ele se prepara para continuar o relato,

LANCHERIA FAZ

PARTE DA HISTÓRIA

TRAMANDAIENSE HÁ TRÊS DÉCADAS

o antigo nome. Inspirado em um boneco popular da época, Alex encontrou uma maneira de manter a identidade da lancheria.

“Na época eu botei o nome de O X Porrada em função daquele bonequinho que era bem famoso, o Bad Boy”, relata. Com a testa franzida e um sorriso, completa: “Então a gente pensou em um xis porrada. Fortão.” “Tinha um cara que ficava desenhando na esquina (onde fica a Praça Leonel Pereira, conhecida como Praça da Tainha) e ele pediu pra desenhar”, Cheila aponta para Alex. “Eu pedi um pica-pau forte, remetendo à coisa do lanche”, explica. A imagem que Alex descreve é o personagem estadunidense Pica Pau, no entanto, ele flexiona os braços — da mesma forma que fisiculturistas — para evidenciar os “músculos”.

mas é interrompido por Cheila. “Uma coisa que o Alex sempre fez foi manter (o combinado). Se dizia que ia fechar às cinco da manhã, ele ficava até o horário determinado, mesmo que às vezes uma da manhã já não tivesse movimento, ou estivesse um frio desgraçado”, Cheila recorda. Alex se ajusta na cadeira e sobe o zíper da jaqueta estofada até a altura do pescoço. Novamente, assente a fala da esposa.

Em 1994, aproximadamente, em decorrência do registro de marca, a lancheria teve que abandonar

Enquanto Alex mexe no computador à sua frente, Cheila começa a cantarolar. Ele imediatamente reconhece o som e sorri. “A gente tem uma música, que fica tocando no nosso site e na rádio”, ele diz enquanto volta para o computador. O rosto assume uma expressão surpresa ao não ouvir o jingle quando a página carrega. No entanto, Cheila dá uma palhinha.

“Não dá nada, vem pra cá. Vem comer um Xis Porrada. Porrada, porrada, porrada”, canta. Os dois se entreolham e sorriem.

O tempo

Um sinal sonoro irrompe o silêncio na lanchonete. A tela que indica o número do pedido pronto para retirada pisca, e as letras vermelhas formam o número 40. A garota que estava sentada em uma das mesas da janela levanta e vai em

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TEXTO E FOTOS DE PAOLA DAMAZIO

n Conhecido como um ponto de início e fim na vida noturna de Tramandaí, O X Porrada tem público fiel fora de temporada

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n Em julho de 2023, O X Porrada completa trinta anos, mais da metade da idade da cidade de Tramandaí, emancipada em 1965

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direção ao balcão. Quando retorna, carrega uma bandeja com uma porção de batata frita com queijo e uma lata de refrigerante. Ela caminha em direção a outra mesa, mais próxima à escada, coloca a bandeja sobre a mesa e se acomoda.

Do outro lado dos vidros — que do lado externo são espelhados —, há um painel luminoso circular, com aproximadamente dois metros de diâmetro. No centro dele, está o símbolo do Porrada: a imagem do Pica Pau. É através daquele espaço que, ao longo do dia, se percebe o efeito do tempo: as luzes na rua vão acendendo, os carros passam e as pessoas aparecem.

É fim de tarde de uma sexta-feira e a lanchonete ainda está vazia. O ambiente tem mesas que acompanham sofás pretos, típico de lanchonetes americanas, colocadas ao lado das janelas de vidro que vão do chão ao teto. No restante do cômodo, as mesas com tampo semelhante ao granito são acompanhadas de quatro cadeiras pretas. É nesse mesmo ambiente que estão localizados o caixa de atendimento e a cozinha. No andar superior há banheiros e mais mesas — apenas as acompanhadas por cadeiras, que nesse espaço estão dispostas em maior quantidade. O piso é preto, cor presente em detalhes da tinta branca nas pa-

n Alex e Cheila compraram a lancheria há quase trinta anos, e hoje é referência na cidade

redes. Vinte e cinco funcionários dividem o atendimento ao público, que inicia logo cedo pela manhã e se estende até a madrugada — às vezes até quase o amanhecer.

“A geração da gente”, diz Cheila apontando para si e para Alex, “tem esse registro de sair de festa e ir pro Porrada”, relembra. Mas, segundo ela, hoje não é mais assim. Ainda que a vida noturna em Tramandaí seja presente, a temporada que sucede o verão é marcada por outros tipos de clientes, em maioria famílias e fregueses assíduos.

“Esses dias teve Tribo de Jah, e o pessoal que estava aqui ficava mandando foto”, comenta Cheila. Alex reforça o impacto que a realização de eventos na cidade tem sobre o empreendimento. “Lotou o X em cima e em baixo. Só o pessoal daquela época”, conclui, de forma nostálgica.

Pausa para o lanche

Dez minutos se passam até que alguém entre no Porrada. Assim que um casal e uma criança surgem pela porta de entrada, o menino aponta para a mesa que havia sido desocupada há pouco. Os três se acomodam e, logo em seguida, o homem vai ao caixa buscar um cardápio. A mulher arruma a cuia de chimarrão no canto da mesa e o homem retorna, sentando em frente a ela. O menino estende a mão para o pai e abruptamente um som preenche o cômodo silencioso. “Um, dois, três e já!”, a risada do garoto acompanha uma careta do homem, que agora tem seu dedo esmagado em uma guerra de polegares. “Melhora a tua tática”, diz o pai franzindo a testa. O garoto persistiu, e saiu vitorioso. Quinze minutos depois um sinal sonoro quebra

o silêncio, e a placa indica que o pedido está pronto. O homem vai ao balcão e retorna com três xis porrada e três garrafas de vidro de Coca-Cola. Durante vinte minutos eles permanecem ali, alternando a atenção entre si e os lanches. Os três começam a se movimentar, e então o menino pede para o pai levá-lo ao banheiro. Quando voltam, pegam a cuia e a garrafa e se preparam para sair.

Tradição

O X Porrada completa 30 anos em julho, mais da metade da idade de Tramandaí, que celebrará 58 anos de emancipação em 24 de setembro. Para Alanna Brahim Hanna, 25, o Porrada faz parte de sua história, e frequentá-lo é tradição. “O Xis Porrada faz parte de grandes lembranças da minha vida. Por ser um lugar tradicional da cidade, era costume ir comer um xis depois dos rolês”, explica.

Dentre todas as vezes que foi ao local, duas memórias se destacam: um aniversário e um encontro. Em 2014, Alanna comemorou seu aniversário de 17 anos no Porrada. Após organizar a festa, foi no segundo andar da lancheria — em frente à foto do primeiro ponto comercial do Porrada — que ela se reuniu com os seus melhores amigos da época. Em seu celular, mostra uma foto do grupo. São 17 adolescentes, alguns com camiseta xadrez, outras com blusa ombro a ombro. Alanna está à frente deles, fazendo a selfie. O cabelo loiro e os olhos verdes a destacam no grupo, que tem uma característica em comum: todos estão sorrindo.

“Fomos todos lá, celebrar a amizade e tudo de maravilhoso que tínhamos na vida naquele momento”, relata. A voz fica mais alta, e um sorriso acompanha a descrição da lembrança.

Anos depois, em 5 de janeiro de 2021, aconteceu no mesmo lugar o primeiro encontro com a pessoa com quem ela divide a vida hoje. Apontando para o espaço à sua volta, Alanna conclui: “Mais do que o lanche e o espaço, o que me traz aqui são as memórias que construí”. n

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Quando eu comecei, vendia um ou dois lanches no dia. Às vezes passava o dia sem vender nada”

À SOMBRA DO TEMPO

A HISTÓRIA DO

BAR ALFREDO, RESTAURANTE QUE

COMPLETA 70 ANOS

EM PORTO ALEGRE

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TEXTO E FOTOS DE JOSÉ HAMEYER

Do lado de fora a arquitetura desperta olhares: a fachada vermelha em estilo retrô, com janelas muito grandes espalhadas por toda sua extensão, me faz lembrar cenas das lanchonetes dos filmes norte-americanos da década de 1980. Estaciono o carro na Cristóvão Colombo, em frente a um casarão antigo, onde hoje funciona uma boate. Descobriria mais tarde que ali, no passado, já funcionara uma casa noturna melhor frequentada. E afamada, me confidenciam. Caminho até a porta de vidro emoldurada em madeira e, quando a abro, sou arrebatado por um pensamento que me acompanhou por muito tempo depois desse dia:

quem entra no Alfredo não consegue sair dali indiferente. Sento na segunda das 10 banquetas de um balcão antigo, daqueles que vemos nas cenas de qualquer filme de Martin Scorsese. Entenderia, depois, que ali é o coração do restaurante. Toca um telefone – com fio – do outro lado do balcão. Quem atende é um homem de boina e óculos, semblante muito sério – Alex Macchi. Olho em volta, estupefato, e percebo a diversidade que ali

habita: homens, mulheres, transgêneros, crianças – acompanhadas dos pais! –, velhos, punks, policiais, jornalistas e políticos. Todos são bem-vindos. E todos se sentem bem-vindos. Boa noite, dona Patrícia, berra Alex na minha frente, enquanto a garçonete Val corre pelos corredores entre as 17 mesas do salão, anotando um pedido aqui, entregando um café acolá. Um à parmegiana, dona Patrícia, pode deixar. Lhe aguardo, completa Alex.

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Municipal, à Assembleia e ao Palácio Piratini

São onze da noite e enquanto espero o prato do dia que pedi para o Docinho - um garçom matreiro da capital, na casa dos 60 anos, mas “estagiando” no Alfredo por indicação do Alex – bebo uma xícara de café com leite. Um homem chega ao balcão e o Alex, que exerce, na prática, a subgerência do restaurante, o recepciona com um sorriso largo e uma sacola com seu pedido. Dona Patrícia já deixou o pedido pronto, queres uns pasteizinhos daqueles que vocês gostam?, leva logo três, quentinhos. O homem leva os pasteizinhos. Não era o marido da Patrícia, como inferi, mas seu irmão. O marido, Milton Cardoso, deveria estar saindo da redação da tv Band. São clientes fiéis, confidencia o dedicado “subgerente”.

Enquanto coordena a casa, espalhando ordem em um ambiente um tanto caótico, Alex me conta um pouco da sua relação com o Alfredo: começou em 2004, como garçom. Ascendeu na estrutura do negócio, mesmo não sendo o funcionário mais antigo, título que pertence a Maria Catarina, uma senhora atarracada que ostenta tantas tatuagens quanto anos de vida. O semblante dela, invariavelmente sisudo, parece ser sua marca registrada. Uma forma de se blindar do machismo estrutural, haja vista que é uma mulher trabalhando em um ambiente noturno há décadas? Não pergunto, vai que a mulher simplesmente não anda bem-humorada ou tem uma dor de dente que não passa. Essa dúvida me parece mais poética que qualquer realidade.

É quase meia-noite e há umas 20 pessoas no salão. Peço uma fatia de pudim – que tem uma

cara ótima – e um cafezinho. Alex conta que nos tempos áureos pré-pandemia o movimento era muito maior. Havia quatro agências bancárias a uma quadra dali, além de um sem fim de pizzarias – era a região da pizza em Porto Alegre, explica Alex. Nessa época o Alfredo funcionava 24 horas. Era o ponto de encontro do fim de noite da capital, um faroeste na cidade. Usando alguns eufemismos, Alex conta que habitavam ali clientes da gruta mais famosa da cidade, homens com o hábito

de passear de madrugada pelo Parcão e pela Redenção, jovens que vinham da Cidade Baixa. Hoje fechamos à uma da manhã, completa. Termino meu doce e meu café e peço a conta, já é quase hora de fechar. Hoje em dia a noite termina mais cedo.

Quem é esse Alfredo?

Os proprietários do restaurante são Patrício e Vera e seus dois filhos, Artur e Marcelo, todos eles Aleixo Ferreira. O patriarca, com 85 anos, não trabalha desde 2019, vítima de Alzheimer e prisioneiro do próprio corpo. A esposa, com 83, vai todos os dias pela manhã trabalhar. O olhar inquisidor é

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O ambiente simples e meio anacrônico já recebeu candidatos à Câmara

(D) acompanha o patrão Artur (E) no caixa do Alfredo implacável: nenhum detalhe lhe escapa. Entra no salão fiscalizando o chão e as mesas, as fatias do bolo de cenoura e a finura da massa dos rissoles. Nada nem ninguém – absolutamente ninguém – está a salvo das suas críticas vorazes. Veste seu avental azul e fica junto ao caixa. O filho caçula, Marcelo, 53, não é muito afeito a conversas. Consegui, contudo, com muito trabalho e insistência nas três vezes em que nos vimos, lhe arrancar um ríspido e gelado “boa noite”. Para minha sorte – e dos leitores

também – foi o primogênito, Artur, 56, quem sempre trabalhou com os pais no comércio. É ele que me atende, solícito, enquanto a mãe pragueja contra a funcionária que cortou um bolo com a faca errada.

O homem que deu nome ao Alfredo já não existe mais. Na verdade, pouco se sabe sobre ele. Abriu, em 1953, uma loja de armarinho e alguns poucos anos mais tarde a vendeu para Carlos e Manoel Branco, irmão e primo de Patrício. Esse último recém havia deixado Portugal nessa época. Voltaria alguns anos mais tarde para visitar a família na região de Aveiro, e foi nessa visita que conheceu Vera. Acredita-se que se apaixonaram. Patrício voltou ao Brasil e, por questões legais à época, foi seu pai

quem casou com Vera no papel para que a mulher pudesse deixar o país luso. Casado e estabelecido em Porto Alegre, o português trabalhava com a venda e entrega de pães: o pai tinha um reparte e entregava pela cidade usando uma mula, detalha Artur.

Foi só no final dos anos 1960 que Patrício se tornou dono do antigo armarinho e já então Bar, Café e Restaurante Alfredo. Comprou a parte do irmão Carlos e se tornou sócio de outro irmão, José, que havia comprado a cota do primo Manoel. Em 1967, inauguraram a Casa de Carnes Alfredo, na rua Ramiro Barcelos, ao lado do bar, com uma proposta comercial à frente do seu tempo: o açougue funcionava como uma espécie de atacarejo de carnes, atendiam restaurantes da cidade inteira. Eu cresci fazendo entregas perto do Mercadão, detalha Artur. Chegaram a montar uma churrascaria no mesmo lugar, que teve fim nos anos 1990. Para administrar os dois negócios, os sócios adotaram uma política um tanto curiosa: se revezavam entre os dois comércios, cada um trabalhando um ano em cada negócio. Com idade avançada, em 2013, os irmãos Aleixo Ferreira desfizeram a sociedade. José ficou com a Casa de Carnes e Patrício com o Restaurante. Foi nesse momento que Artur se tornou sócio do restaurante e ganhou maior poder de decisão. Mais tarde, cedeu parte de sua cota ao irmão, até então servidor da EPTC.

O pavor do empresariado

Não só no comércio de pequeno porte, mas no mundo corporativo em geral, um temor que tira o sono de muitos empresários é a sucessão dos negócios. O Bar Alfredo, que completa 70 anos de existência, sempre no mesmo endereço e há mais de seis décadas sob o controle da mesma família, se encontra em um limbo sucessório. As duas filhas de Marcelo e a de Artur não têm vocação para o comércio. Como um bolinho de batatas com carne junto ao balcão enquanto o primogênito Artur – que levaria a mãe a uma consulta médica – confessa antes de se despedir: Acho que quando os Irmãos Coragem se forem, a novela acaba. n

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n Alex Macchi

DAS BANCAS NO VAIVÉM

NO LUGAR ONDE TODOS ESTÃO DE PASSAGEM, ALGUÉM DECIDIU FICAR

Tinha 52 anos quando saiu de casa sem saber se iria voltar. Com o tempo, entendeu que a rua tinha mais a oferecer do que o próprio lar. Mário Luis Severo teve família anos atrás. Hoje, ele tem duas filhas, irmã e mãe, mas não tem família. Nascido e criado em Novo Hamburgo, como boa parte dos locais, era frequentador das famosas Bancas de NH, hábito que de outro modo mantém. Um retângulo comprido tem uma das raízes mais sólidas da cidade. Desde 1949, oito repartições formam o complexo das Bancas. Não há hamburguense que não tenha passado por lá. É o ponto de encontro para quem finda as madrugadas no Vale do Sinos, mas poucos sabem da intensa afetividade que circula entre balcões e mesas.

Passear rapidamente com os olhos é suficiente para notar que gente de todas as tribos ali habita (bem-intencionada ou não). E, para atender a vasta gama de público, dentre as sete bancas abertas encontram-se lanches de todos os tipos, para todas as fomes: de verdade, de beliscar, para levar ou aquele pingado para aquecer. Este último aquece as mãos de um senhor grisalho acomodadas no copo americano enquanto escrevo estas linhas. A geladeira de bebidas marca sete graus negativos e acho que na rua não está muito diferente. Ainda assim, o casal de jovens da mesa a frente preferiu um par de sorvetes.

O lugar tem cheiro de tudo ao mesmo tempo. Café com leite, cinzeiro, resto de cerveja, os mais variados perfumes, além da fumaça de carro e de cigarro (mentolado, vermelho e ilegal).

O mesmo serve para o som. Ruído de conversa, risada alta. A música que varia entre o bailão abafado que vem da Banca 1, o sertanejo do carro da frente e o funk do carro ao lado. Patinhas de cachorros que passeiam estrategicamente em busca de comida, conversas clássicas de rua: “Empresta o fogo?”, “Arruma um cigarro?”. A única sonoridade permanente é o “bip” que alerta os motoristas de aplicativos e dos andarilhos com suas frases sozinhas e inaudíveis.

“Eu vou te matar, velho des-

graçado!”, diz um cliente que chega pelas minhas costas. Por um instante achei que mudaria para a editoria policial. Com ouvido curioso, descubro que se trata de um motorista de aplicativo, bravo com o “velho desgraçado” que lhe indicara uma passageira bêbada, da qual agora ele só queria se ver livre. Quem é ela? Não saberei. Assim como não conhecerei os sujeitos de pelo menos 30 bocas que falam simultaneamente.

A sensação é de que aqui se consegue tudo. O que precisa e o que se escolhe. Desde um pão de queijo com café até um programa e drogas - para essas, deve-se andar uns cinco metros ao lado. Uma pequena pracinha depois da meia-noite não é mais lugar de criança. Dia um. Dia dois. Dia três. Quase se confundem. Mudam as pessoas (exceto os frequentadores de carteirinha), mas a dinâmica é a mesma e reversa à grande maioria dos estabelecimentos comerciais: quanto mais tarde, maior o movimento.

Carro-chefe

Há quem diga que algumas bancas têm seu público fiel mais definido. Neste caso, quem diz é o Rafael. “A banca 1 é a do Uber. A 3 a dos jovens, quem vem da balada. E na 8 são os mais maduros. Se tornou um ponto de encontro do pessoal da noite. Sempre encontro algum conhecido.”

De estatura alta e porte físico condizente com o estereótipo

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TEXTO E FOTOS DE JORDANA FIORAVANTI n De mesa em mesa, Mário Luis Severo, o “Flanela”, busca o futuro esperado

das suas profissões, aos 39 anos Rafael Braga é personal trainer e segurança em um bar de rock que fica na mesma rua das bancas (Pedro Adams Filho, a principal do centro da cidade), apenas algumas quadras à frente.

Em uma rápida “fugida” da portaria, para buscar um lanche na Banca 1, ainda deu tempo de contar que o carro-chefe da casa é o prensado com bife e ovo. “Na Banca 1, o atendimento é o diferencial. A gente tá na era da experiência, né? Nenhuma banca faz um xis com quatro ovos, como eu pedi. Aqui sempre atendem o desejo do cliente.”

A flanela

Em meio ao turbilhão de informações que permeiam o ambiente, algo chama atenção. Peculiar por ser tão simples: uma flanela de cor amarela marca-texto que, para lá e para cá, desliza por todas as mesas. Perdi as contas de quantas vezes perambulei por ali, mas insistentemente a flanelinha se fazia visível de qualquer ponto de observação. Ergo meus olhos para descobrir quem comanda esse vai e vem. Descubro que “o Flanela” chama atenção não só pelo amarelo vibrante. Seu jeito singelo e o sorriso fácil que o acompanham em cada passo contrastam com o olhar sério e atento que se instala a cada movimentação minimamente duvidosa. Ele tá sempre ligado.

Entretenimento

A noite também é o horário dos garis do Centro. Circulam por quase uma hora. Para deixar o trabalho mais leve, eles brincam com sons de sirene policial e fazem graça com a clientela. Passam com os pés arrastando no chão, presos ao caminhão apenas pelas mãos. Neste momento o riso é coletivo e sem querer todos compartilham do mesmo afago.

Uma distração para quem senta na ponta da Banca 1 são as pessoas estacionando seus carros. O cordão da calçada é alto. Daria um bom jogo de apostas sobre quem vai encostar a lateral ou não. “Achei que o motoqueiro ia cair ali.” “Quase entrou no cordão.” Apenas um dos vários “quase aci-

dentes”. Entretenimento para os motoristas que aguardam a corrida certa para voltar à rua.

Observada

Na décima segunda página do bloco que escrevi, eu me tornei objeto de observação. Desconcertante para quem foi até lá a fim de observar. Ainda que faça total sentido.

Confusão

Se desenhou no ambiente que um morador de rua ou “cara da jaqueta verde” tentou “passar a mão” em uma criança que brincava naquela praça sobre a qual já falamos antes. A briga chegou nas bancas. Já no chão, o culpado foi alvo fácil de diversos golpes. No caminho ficou seu tênis, o murmurinho e o Flanela.

Depois do episódio, o balconista da Banca 1 diz: “Dá confusão e eles vêm brigando até aqui. Aí depois o pessoal diz ‘ah, a confusão foi nas bancas’”. É uma crítica à má fama certas vezes atribuída.

O balconista profere a frase que me faz levantar na mesma hora:

“Pela metade não dá pra contar a história”. Finalmente, cansei de saber pouco sobre o Flanela.

Aprender a viver

Antes disso descobri a poesia do nosso coadjuvante, o balconista da Banca 1. Jaime Wiltgen aprendeu muita coisa ao longo dos seus 59 anos e muitas delas foram ali de trás do balcão.

Teve dois filhos homens. Wagner, de 21 anos, que mora com ele, e o outro não pude descobrir. Ele perdeu o filho mais velho, na ocasião com 27 anos. Passou quase uma década, mas ele continua relutante em falar sobre. “São coisas da vida.” De fato, não foi preciso sequer dizer o nome para que as lágrimas ocupassem metade de seus olhos. O curioso é que ele faz questão de tocar no assunto para dizer que trabalhar ali o ajuda a superar a dor (ou conviver com ela).

Mas, de todos os ensinamentos que adquiriu trabalhando na noite, o principal é a humildade: “Porque aqui tu aprende que tu não é nada e que é tudo ao mesmo tempo”. “Aqui uma noite é diferente da outra. Faz muitos amigos. Trabalho aqui porque eu gosto. É uma rotina que faz bem. Ninguém é mais que o outro. É um lugar democrático, tem desde moradores de rua até gente que tu nunca imaginou conhecer, de todos os lugares do mundo. Políticos como Giovani Feltes, por exemplo, são clientes. Não serve só para rico, nem só para pobre.”

Já ouviu falar em concorrência positiva? O Jaime diz que é assim que funciona ali. Cada um faz o seu, todos se ajudam e a brincadeira faz parte

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do cotidiano. O segredo é a união da “turma”. “A gente aprende a viver. Aqui a gente vive!”

E assim ele segue, conversando com todo mundo, fazendo amigos, conhecendo gente de todo lugar do mundo (sim, as bancas são internacionais na hospitalidade). Tudo isso mantendo em mente a sua filosofia de vida: “A gente costuma se pressionar sobre o que tem que ser feito a cada dia, mas eu digo que deve ser o inverso: o que eu posso fazer amanhã? Não o que tenho que fazer. Espero o amanhã e só”.

Quando a rua é casa...

...e a banca é lar. Isso resume a história do Mário Luis Severo. Ou apenas Severo, como é conhecido. Seu endereço é: “Debaixo da marquise de uma loja na quadra ao lado, na mesma rua”. Mas o que faz um homem encontrar seu lar nas calçadas? Ele já tinha perdido o chão quando também perdeu o teto.

Mário trabalhava em uma rede de supermercados quando

sofreu um acidente de trabalho em 2018. Estava descarregando mercadorias de um caminhão e caiu ao escorregar pela plataforma de descida. Machucou o ombro e aí tudo começou. “Eu estava ‘encostado’, né? Quando o Temer entrou, ele fez um pente-fino. Aí ele me cortou. E aí eu caí na rua.”

Quando foi para as ruas, sempre morou pelo Centro. Achava mais seguro. Primeiro, dormiu na frente da UPA, por cerca de dois anos. Nessa época ele ganhava comida de alguns amigos que fez, como o segurança da unidade de saúde e também em uma padaria 24h que costuma distribuir sanduíches para os moradores de rua, além de sobras de comida de restaurantes, que enchiam o pote de sorvete que ele carregava como prato.

Na UPA ele comemorou Natal e Ano Novo em companhia dos funcionários. No inverno podia entrar para aproveitar o ar-condicionado. Coisas que ele conta com olhos alegres. Porém, o local chamou atenção de outros moradores. Mário não bebe e nunca usou drogas, mas os novos vizinhos sim. A partir daí ele precisou se mudar. Veio então para próximo das Bancas, o que mudaria mais uma vez a sua vida. “Um sábado de noite deu bastante movimento aqui. Aí eu vi que estava apertado para atender e eu comecei a recolher os pratos das mesas, para não atrasar o lanche, para eles não fazerem a volta e sair do ponto para limpar prato.”

O que começou de forma despretensiosa, talvez em busca de um prato de comida, se

tornou um trabalho fixo há quatro anos. Virou “o Flanela”, e até já subiu de cargo: hoje ele agrega o serviço de rua, que é ir ao banco e lotérica pagar as contas que recebe dos funcionários.

Não é só dali que vem a renda. Mário também é beneficiário do programa do governo federal Bolsa Família e contratou um advogado com a esperança de conseguir se aposentar por invalidez. O pagamento do serviço é de 30% do valor que ele terá a receber. Isso porque ele precisava de cirurgia e, como o plano médico da empresa não cobria o procedimento, encaminhou via SUS, e até hoje não foi chamado.

Esta é apenas uma de suas frustrações. Por não conseguir trabalhar, virou alvo de piadas pejorativas na família. Foi tão longe que ele então optou pela rua, para fugir da situação. Os familiares não o procuram. Ele não procura de volta. Admite erros do passado em que bebia muito e não se fez um pai presente. Parece que não compensa.

Foi nas bancas que ele passou a se sentir em casa de novo. Com o frio das ruas ele está acostumado, mas o afeto encontrou ali. Tem muitos amigos e é grato pela atenção. O ponto alto foi uma festa de aniversário que recebeu em 2022 do pessoal que trabalha com ele.

Por tudo que sabemos e também que não saberemos nunca, Mário vai na missa quase todos os dias. Há uma catedral perto de onde ele sobrevive, e lá tem uma gruta para Nossa Senhora de Aparecida. Para ele, ela também significa uma missão: “Eu fiz uma promessa, se eu me aposentar agora, se der tudo certo, eu vou lá na Basílica percorrer as escadarias a pé”.

Assim ele vive um dia de cada vez. Próximo de quem o acolhe, servido de esperança.

Fraternidade

A verdade é que o mantra que guia tudo aquilo que rodeia as Bancas de NH é justamente o laço fraternal, a afetividade que permeia o simples e o torna imutável há mais de 70 anos. Como diz Jaime Wiltgen, o balconista da Banca 1: “Onde tu encontra tudo das sete às sete horas? Nas bancas!”. n

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Seu endereço é: “Debaixo da marquise, na quadra ao lado”

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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