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Revisão Linguística: Fátima Friedriczewski
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Concurso Nacional de Poesia Oracy Dornelles Vol. I./ Org. casa do Poeta Brasileira de Santiago. – Santiago RS: Casa do Poeta Brasileira de Santiago. 2023. 57 p. ISBN 978-85-64886-56-8 .
1. Poesia-Coletânea. 2. Literatura 3. Concurso.
CDU 821-1
Elaborado pela Bibliotecária Eliziane Lopes CRB 10/2330
A Casa do Poeta de Santiago promove o Concurso Nacional de Poesia Oracy Dornelles, que visa homenagear a memória do poeta santiaguense que lhe empresta o nome, bem como estimular produções literárias na categoria poema, com objetivo de revelar novos talentos das letras nacionais.
APRESENTAÇÃO
Falar de Oracy Dornelles é falar da arte em seu estágio puro e autêntico. Um dos grandes escritores da Terra dos Poetas, Oracy honrou a Literatura Brasileira com vários de seus inspiradores textos. Sua partida, em 2019, ainda é sentida dentro da comunidade artística regional e, por esse motivo, entre tantos, um Concurso Nacional de Poesia foi promovido em homenagem ao seu nome, em meados do ano passado.
Da participação nesta atividade literária, houve o envio de mais de 200 textos, de diversas cidades brasileiras, que deram mérito à memória do nosso grande poeta. E desses escritos, aos quais eu tive a honra de ser um dos julgadores. Foram tantos trabalhos magníficos enviados, que é uma grande pena ter que escolher, além dos premiados, apenas 25 deles para compor este livro. Portanto, amigo leitor, deleite-se nesta singela homenagem feita ao multifacetado artista santiaguense, Oracy Dornelles.
Evandro da Fonseca Almeida
Escritor e membro da Casa do Poeta de Santiago/RS
SUMÁRIO
ORACY DORNELLES.................................................................................................................7
PREMIADOS
Francisco Falabella Rocha – Belo Horizonte/MG...........................................................10
Danielle Damasceno da Silva - Capanema/PA................................................................12
Anderson Mireski – Venâncio Aires/RS ...........................................................................13
Froilam José de Oliveira – Santiago/RS 15
Marcelo Nunes Rodrigues- Arniqueiras, Águas Claras, DF 16
Analia Sanches Dornelles – Itacurubi/RS 17
SELECIONADOS
Adaílton Almeida de Souza - Passos/MG 18
Adilson Roberto Gonçalves - Campinas-SP 19
Airton Souza - Marabá / PA.................................................................................................20
André Luís Soares - Guarapari/ES ...................................................................................22
Arzírio Cardoso - Campo Largo/PR 26
Athos Ronaldo Miralha da Cunha - Santa Maria/RS 27
Bernadéte Costa - Joinvile/SC 29
Carlos Eduardo Dantas Cunha - Olinda/PE 30
Caroline Bento Diniz - Quixadá/Ceará..............................................................................31
Eduarda da Silva Bittencourt - Santiago/RS ...................................................................32
Fernando Jesus Nogueira Catossi - Jundiaí/SP.............................................................33
Francisco Júnior de Araújo Gomes - Patu/ RN 37
Giovani Roehrs Gelati - Uruguaiana/RS 38
Guilherme Brasil - São Paulo/SP 42
Gustavo Ferreira Canevare - São José dos Campos/SP ..............................................43
Hélio Batista Barboza - São Paulo/SP ..............................................................................44
Jane Mariza Dornelles Tusi - Santiago/RS.......................................................................46
José Cristian Góes - Aracaju/Sergipe. 47
Kíssila Muzy de Souza Mello - Nova Friburgo/RJ 49
Lauro Strazzabosco Dorneles - Porto Alegre/RS 50
Leonardo Castelo Branco - São Paulo/SP 51
Lilian Souza de Araújo - Taubaté/SP ................................................................................53
Luiz Rogério Camargo - Curitiba/PR.................................................................................54
Luiz Henrique Aguiar - Magé/RJ 55
Michelle C. Buss - João Pessoa/PB 56
ORACY DORNELLES
Oracy Dornelles nasceu em Santiago em 26 de junho de 1930, filho de José Felipe Dornelles e Brasilina Rodrigues Dornelles. Foi pintor cartazista, decorador, desenhista de publicidade, caricaturista, escultor, perito em grafologia judiciária e poeta. O poeta da Terra dos Poetas faleceu em 2 de junho de 2019, devido a um infarto.
Desde cedo mostrou suas habilidades artísticas: aos 7 anos escreveu seu primeiro poema e retratou Santos Dumont em um quadro negro do “Colégio Elementar” (atual Escola Estadual Apolinário Porto Alegre), desenho realizado em frente à Inspetora Estadual de Ensino que visitava Santiago.
Trabalhou como tipógrafo no Jornal “O Popular”, de Guirahy Pozo, em Santiago. Foi cartazista de cinema em Santiago e em Santa Maria, onde residiu a partir de 1945 e teve lições de desenho e pintura com Eduardo Trevisan. Nesse período escreveu seu primeiro e inédito livro de poesias, “Farrapos de Sonhos”, versos dos 15 anos, com prefácio de Oswaldo Mota.
Ainda em Santa Maria publicou no jornal “A Razão” o Menor Soneto do Mundo e uma tira em quadrinhos na revista Lanterna Verde. Mudando-se para Porto Alegre, fez amizades com poetas, artista e intelectuais e trabalhou como pintor letrista e decorador na empresa “Pepsi Cola”, depois em cinemas da capital, como pintor, e em agências de publicidade, mostrando suas habilidades artísticas.
Aos 17 anos participou de lutas nacionais da época: “O Petróleo é Nosso”, “Hiléia Amazônica”, contra as armas Bacteriológicas e Atômicas. Declamou, em comício popular, na Praça Central da cidade, violento poema épico de sua autoria, contra o envio de tropas brasileiras para a Coréia. Esse poema encontra-se no livro “Agonia das Trevas”. Trabalhou como Astrólogo na TV Gaúcha, Canal 12, de Porto Alegre, no Programa “Doze Dá Sorte”, apresentado por Ivan Castro. Em 1977, tornou-se funcionário da Prefeitura de Santiago.
Publicou os livros: “Agonia das Trevas”, 1954, “Belkiss”, 1955, “Ninguém e Mais Eu”, 1959, “Poemas Opus 4”, 1981, “Poesia a Dois”, 1984, “Cantares Ares”, 1992, “Antologia a”, 2000, “Cânticos do hoje”, 2006, “ Páginas Impossíveis”, 2008, “320 Caricaturas Menos Uma”, 2009, “Poesias Novíssimas e Antycqüas”, 2009, “epitáfios e últimos poemas”, 2010, “poesia y chronica” 2011.
Observando cronologicamente a poesia do Oracy vemos que aqueles poemas realizados na década de 50 se apresentam com versificação e metrificação perfeitas (sonetos, quadras, sextilhas, oitavas).
Com o passar dos anos, nota-se a evolução no processo criativo do poeta em perspectivas inovadoras: ele passa a se utilizar do verso livre (característica dos poetas modernistas), mas intensificando o ritmo e a cesura, que imprimem forte musicalidade e cadência aos seus poemas, pela conveniente alternância de sílabas tônicas e átonas, acentuando a sua mensagem cósmica, universal.
Quanto a linguagem poética oracyana, observa-se que os aspectos internos, semânticos, estão quase sempre ligados aos aspectos externos, formais. Da mesma forma, a literariedade, as idiossincrasias e a perenidade também não se separam, mas em alguns poemas se sobressaem
Entre 1998 e 2010, trabalhou na biblioteca da URI Santiago (campus da Universidade Regional Integrada), e colaborou durante muito tempo com o jornal da cidade.
Dornelles, patrono da Casa do Poeta Caio Fernando Abreu, também foi patrono da Feira do Livro de Santiago em 2003.
Tema do livro O que importa em Oracy, de Fátima Friedriczewski, Júlio Prates e Froilam Oliveira, de 2003, e integrou o projeto “Santiago do Boqueirão: seus poetas, quem são?”, organizado por Rosane Vontobel Rodrigues e Cintia Maciel Toledo, em 2007, entre outras homenagens.
Em 2013, participou da “Coletânea de Poesia Gaúcha Contemporânea”, organizado pelo escritor Dilan Camargo, obra lançada pela Assembleia Legislativa em alusão ao aniversário de 100 anos da Biblioteca Borges de Medeiros do Legislativo.
Também, foi Integrante da Academia Sul-Riograndense de Letras e da Associação Santamariense de Letras
Oracy foi o autor do Brasão e da Bandeira do município e de vários monumentos institucionais, como: monumento no centro da praça Moisés Vianna em homenagem à Nossa Senhora da Imaculada Conceição; monumento do Centenário de Santiago, no largo 4 de Janeiro, em frente da Prefeitura; monumento da lira que complementa os monumentos da Rua dos Poetas, simbolizando o potencial literário do município; monumento em homenagem à Força Expedicionária Brasileira, localizado na Praça da Bandeira; entre outros, que estão distribuídos em vários espaços públicos de nossa cidade, mostrando, assim a grandiosidade desse artista da Terra dos Poetas. Pelo Monumento à Força Expedicionária Brasileira, de 1992, foi condecorado com a “Medalha de Bronze Marechal Mascarenhas de Moraes”, pela Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira. Para o campus local da Universidade Regional Integrada - URI, executou quatro painéis em alto-relevo e sobre a Pedra Fundamental implantou uma Pirâmide Magnética e a escultura em ferro de um veleiro, simbolizando a História. Para o curso de Letras pintou três painéis, cópia-leitura de Oracy para “Noite Estrelada” de Van Gogh (1,80m x 2m), “Mulher junto ao Pilão”, de Portinari, (1,20m x 1m) e “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, (1,20m x 1m). Na biblioteca da Universidade foi criada a “Sala Oracy Dornelles” na qual estão em exposição permanente as suas micropinturas em pauzinhos de erva-mate e grãos de soja.
Com amigos fundou o Clube de Música Amigos de Beethoven, fez sucesso nacional com seu famoso “Circo de Pulgas Amestradas”, participando de diversos programas de televisão e foi o primeiro artista a ser homenageado na Calçada da Fama de Santiago, onde suas mãos foram imortalizadas.
Ampulheta
Gilliard Santos – Fortaleza/CE
1º Lugar
A areia ali se move lentamente Neste artefato frágil e incolor... E em sua ação mecânica e silente, Vai alcançando o bojo inferior.
Os grãos de areia nunca irão se opor À lei da gravidade contundente...
Transcorrem, exercendo seu labor, Cumprindo sua sina, tão somente.
Naquele artigo que hoje adorna a sala A areia nunca volta, nunca entala E vai, por ele, sendo consumida.
O tempo, em categórica faceta, Trabalha assim, conforme essa ampulheta, Levando, pouco a pouco, nossa vida.
TAUROMAQUIA
Pergunte ao touro: se o ritual permite ensaio, ou se, por acaso, na arena da vida é possível substituição.
Conviver com a morte independente do resultado. Ter a plateia contra e a certeza do fim: O touro e o matador se encaram. (Juntos no fracasso)
No balançar trêmulo da capa, pergunte ao touro: onde está a virtude? Ou se no puxar de espadas, você se deixou cair em velhas trapaças.
Pergunte a todos os touros que lutaram tão bem suas batalhas: vale a pena o embate? A justiça em um mundo injusto se faz pela mão ensanguentada?
Pergunte ao touro se um bolo de dinheiro engordurado vale a sua vida e a dele, em um ingresso de mais uma selvageria.
Pois quando menos se espera, os seus chifres partirão as tripas de um matador experiente, como você. Tirando não apenas a vida, mas levando junto a sua dignidade.
E por alguns segundos o mundo vai parar. Não vai se respirar. Todos ficarão chocados.
E aquela será a gloriosa tarde do touro, antes de seu próprio fim. Para uma plateia que não entende ou se importa.
Antes do nó e de seu desenlace, pergunte ao touro onde está a verdade da poesia: na coragem de suas carnes ou em seu bruto caminho?
E se você for paciente e habilidoso, o touro da vida lhe dirá a resposta de forma lenta e mortal. Esculpindo a face como um corte de navalha talha o tempo.
E isso será tudo que há. E nada mais. Pois a vida é esse ritual da morte.
Você pode desviar, saber contar seus passos, mas um dia você sairá ferido.
Besta da fúria, o touro é a existência com os chifres mais curtos e menos afiados. Máquina de perguntas, esperando resposta. Para um dia escutar: Olé!
ANJO MEU
Danielle Damasceno da Silva - Capanema/PA 3º LugarAnjo esquecido, Me empresta tuas asas!
Que ando perdido... Num rio de gelo e brasas...
Meu anjo, antigo amigo, Estou há tanto, longe de casa
Que já não sei, meu querido Sequer explicar o que se passa...
No mar de dor em que sigo Só peço um pouco de graça!
Meu anjo, sede um abrigo Até que a dor se desfaça; Enquanto passa o perigo Somente me abraça
Que já não consigo Seguir tão rasa
Amido perdido Dá-me asas
Ou leva-me nas tuas Contigo Para casa!
Ora, se...
Anderson Mireski – Venâncio Aires/RS Prêmio Terra Dos PoetasOra, se cada verso não escrito fosse um grande amor não dito, e deixado pra depois, Será que na mudez das folhas brancas haveria histórias tantas de uma não-vida-a-dois?
Ora, se toda dor que não se canta, desatasse da garganta o nó, em soluço de paz,
Será que mesmo estando sempre adiante, curioso, por um instante, o tempo olhava para trás?
Ora, se fosse em preto e branco agora a vida como já fora - quadro de janeiros idos -
Será que não seria nova chance, a derradeira revanche pra dezembros coloridos?
Ora, se...
este infante desvario bastasse à sede do rio dos meus sonhos naufragados, Certo que com pouca e leve bagagem, desembarcava da viagem da louca nau do passado.
IMAGEM
Froilam José de Oliveira – Santiago/RS Menção Honrosa
A boina prende a cabeleira louca para voar com o vento
As mechas revoluteiam no mesmo ritmo dos altivos passos. As ruas da cidade não guardam mais segredos sob os caducos adoquins.
De agonia a cantares de opus à epifania... o poeta é uma imagem (em nossa memória).
A escrita é a atadura
Marcelo Nunes Rodrigues- Arniqueiras, Águas Claras, DF Menção Honrosa
Escrever é como eu lido com a dor.
Meu remédio é a caneta e o papel.
Enrolo palavras nas feridas como ataduras.
Incertas, erradas, fixadas com esparadrapos textuais vacilantes.
Porém certas dores.
Por mais que eu escreva dicionários.
Não se curam.
Ainda sangram.
Como caneta tinteiro pressionada demais contra a folha.
Certas dores necessitariam de muito mais do que minha medicina.
Necessitam da capacidade dos grandes cirurgiões da língua portuguesa. Pra costurar o corte com seus pontos precisos.
Exclamações, vírgulas, interrogações.
Por isso sigo com feridas abertas.
Com dores não curadas.
Tampadas apenas por frases ruins e rimas pobres.
Contudo, talvez a dor é o que me faça escrever. Sendo assim continuem doendo. Que daqui seguirei escrevendo.
De horas e Sombras
Analia Sanches Dornelles – Itacurubi/RS Menção Honrosa
Havia sal no olhar partido, perguntas e bocas marcadas em dias de sol.
Havia gritos presos entre as janeles e correntes invisíveis impedindo os dias.
Os pés descalços buscavam os caminhos e dançavam sobre espinhos e sombras.
Passagem
Adaílton Almeida de Souza - Passos/MGAo passo que passo, acho-me em canto nenhum. Tal espécime esquecida, de canto incomum.
Ao passo que passo, perco-me em fragmentos, de memória e passado, nas dobras dos tempos.
Ao passo que passo, um dia passarei, como pássaro sem rastro, sem destino, sem lei.
força interna Adilson Roberto Gonçalves - Campinas-SP
retirar da chama que queima o bicho em seu nicho uma centelha, um recomeço retirar do sangue que sai do pobre nunca nobre a marca da paixão para viver retirar do cinza que do verde resta seja uma fresta o adubo para o reflorescer retirar da doença em pandemia um dia a ciência para compreender sim, que se retire a esperança que não cansa da energia escura que alimenta a vida.
amanhã, em silêncio, meu pai saberá plantar auroras na carne de deus Airton Souza - Marabá / PA
para todos os pais que morreram pensando na necessidade de plantar estrelas meu pai nunca ouviu a palavra auschwitz por isso sustentou a morte da própria mãe em suas unhas sujas de primaveras talvez ele sentisse vontade de limpar todas as lonjuras acinzentadas sobre a carne preta da mãe dele ou desabitar o cheiro dos bárbaros impregnando de outros paraísos abraçados pela voz de deus a quem meu pai nunca compreendeu
feito um calcário aberto de misérias e sem saber soletrar o abismo a mãe de meu pai tinha nos olhos a fome de quem não saberia fabricar uma única noite para os desertos nem consolar qualquer pretérito nas gargantas silenciadas dos inocentes
foi através da carne preta de sua mãe que meu pai semeou o alfabeto das pedras como se aquilo fosse a polissemia dos campanários enquanto isso a mãe dele mirava a dicção triste das papoulas fazendo de si mesma pequenos mocambos que servirão amanhã para comover as estrelas meu pai nunca ouviu o nome auschwitz porque na boca dele os escombros nomeiam vírgulas em vez de azuis & espalha no meio de sua língua candeeiros acesos e grafados de saudades. atravessado pelos cômodos da casa meu pai guardava o cheiro das guirlandas
para vociferar melancolias contra os ossos quando dezembro não fosse mais quermesses ele, incandescido pelo que há de mais triste no amor, soube purificar ontem, mais que deus, a clarividência das asas em ruínas quando desabitava a ausência das enseadas ou umedecia de contornos destroçados o próprio corpo nu antes da cidade
meu pai, incrustado de neblina, pronunciou uma única vez nuvens na via crucis de seu corpo e depois trouxe nas unhas inconcebíveis vazios capazes de distinguir: o pão, o chão e as estrelas forçado a rezar por necessidade meu pai passou a entender de séculos e ilhas como se em suas asas de silêncios migrassem a fome dos que jamais saberão os sentidos dos epílogos foi na mudez dos peixes que meu pai arrastou cicatrizes e geologicamente passou a ter mais medo de deus que da luz
o que sabia meu pai sobre as guerras mais do que de sua própria fome? de vez em quando emergia de suas mãos a introdução do corpo de sua própria orfandade e aquilo fazia meu pai esquecer a dimensão de não aperfeiçoar o ódio ou amar cada vez mais o cheiro da carne de deus
com o nu das árvores dentro da boca todas as manhãs quando ele falava: amor o cheiro que saia de entre seus dentes era o que de ele nunca seria capaz de escrever o desconsolo das nuvens jamais semearia alfazemas em seu peito para argumentar se amanhã terminaria de compreender a comoção das janelas.
BRASILEIROS
André Luís Soares - Guarapari/ESNão bastou viver em harmonia, na medida exata da felicidade... a dose perfeita, o equilíbrio, jamais bastaria. Num dia de marés turvas vieram as naus, os homens maus e seus presentes do hemisfério norte... a morte, os ratos, a tortura, a usura criminosa, com a covardia própria dos velejadores da Sagres doenças, canhões, bacamartes... estampidos de assustar trovão.
Disseram ter errado a rota sei lá para onde. Só sei que, em suas tontas andanças, escravizaram a América e a África.
Malditas bússolas enferrujadas... ironia torpe, destino de águas, vieram na maré alta para nos roubar a paz. Criaturas puras que éramos [nuas e selvagens] quando nos demos conta, já era tarde: os olhos secos dos que só veem lucro já nos viam xucros imprestáveis.
Cantiga de grilo em noite eterna, eles vieram mais e mais sedentos. Não lhes bastou o pau-brasil, o ouro, o couro... queriam a costa, o interior, o rio, o mangue... o sangue, os ancestrais, pais, mães, filhos e filhas... o sul da América repartido em Tordesilhas. E no que não lhes servimos de escravos – e no que não nos rendemos passivos serviçais –fomos quase extintos, como cupins.
Logo nós... apenas homens nus,
mulheres dóceis e anjos curumins. Nós, os donos de todas as terras, agora estrangeiros não bem-vindos em nossa própria pátria. Índios... assim chamados, com asco reforçado, como se índio fosse praga.
Desapropriados com a anuência de leis que nem reconhecemos. Tudo com as bênçãos das Missões e Bandeiras. Presente luso-hispânico... [ibérico] na próspera carnificina de além-mar. Justo nós, que andávamos despidos entre as feras, conhecemos o medo, nos enredos do invasor, que a cada dia nos restringe a um chão menor.
Matam-nos ainda hoje sem remorso... a desculpa, como sempre... é do progresso! Com sucesso, esmagam nossa cultura, apagam nossos idiomas puros e os deuses aos quais somos fiéis; desprezam os métodos de nossa lavoura onde não há excesso, nem lixo que manche o sempre. Outrora, esta terra era mais do que sonhamos; agora... é somente chão que encolhe sob os pés.
Desconsolado... questiono tudo que entendo ser divino: – Tupã, Xangô, Alá, Buda, Jesus, Minerva... quantos índios mais morrerão nessa reserva? Aymoré, Anambé... Apiaká, Apurinã, Apinayé... Atroari, Arara... Asurini, Araweté... Ashaninka, Bororó, Canoeiro... Caiapó, Guajajara. Caeté, Carijó... Enawenê-Nawê, Fulni-ô... Juruna, Jarawara... Kaapor, Kayapó... Kambivá, Krahô, Kanela... Kuikuro, Nambikwara.
Em nossa imperfeição rupestre
aprendemos a aquietar o espírito; pouco querendo ter, se quase tudo temos, nada sonhando ser que já há muito não sejamos. Nosso consumo dá-se a céu aberto, pela fartura indômita de igarapés e matas... tabas, lendas, cipós, folhas, bambus, venenos, sol, lua, noite, dia, pedra, chuva, cataratas.
No entanto, cinco séculos se passaram e ainda mendigamos território tal fôssemos errantes – nós, os donos de tudo! Jogados de acampamento em acampamento, quando calha a sorte de gostarmos de um lugar surge, então, um minério, nova jazida, outra madeira, novos balaios de razão para nos enxotar. Doenças, canhões, caminhões, carabinas, posseiros, traficantes, grileiros, tratores, garimpos, fronteiras... tudo ao redor nos oprime. Se nos ferem... mera consequência! Se revidamos... é crime! Nada há que nos redima o pecado original de ter nascido aqui primeiro, e viver sem destruir... do interior ao litoral.
Resta-nos a fé nas mudanças que virão por força da natureza: a água que seca, a floresta que míngua, o chão brocado sem minério, inútil ao plantio, o descompasso das estações... excessos de calor e frio. Não que assim o desejássemos. Nossa fé somente encontra abrigo no óbvio: a paciência da Mãe-Terra tem limites. Diante da ganância insana, a escassez é boa escola. No eco límpido desse anúncio, pássaros revoam. Eis o tempo, sem mais tempo para atrasos – Quiçá já seja hoje.
Eis que chega o tempo, implacável e lisonjeiro, em que nossos irmãos nos chamem apenas... brasileiros!
Emocionado... rogo a tudo que entendo ser divino: – Tupã, Xangô, Alá, Buda, Jesus, Minerva... bênçãos infinitas a todos os filhos dessas terras: Guarani, Kadiwéu... Kariri-xocó, Matis, Matipu... Zo’é, Goitacá... Pareci, Pataxó... Suruí, Makuxi, Pankaru... Parakatejê, Karajá... Tamoyo, Tremembé... Kalapalo, Juma, Xucuru... Xavante, Xetá... Ticuna, Tiriyó... Terena, Yanomami, Palikur... Mongoió, Kamayurá...
Eros e Tânatos
Arzírio Cardoso - Campo Largo/PR
Recém-chegado de paragens tão distantes De gaiolas tão estanques O pássaro indagou à árvore:
Como é viver fazendo parte Deste grande cemitério Deste vale lacrimoso E ver em tudo tanto luto Tanta morte?
Aninhando em seu regaço o ser de plumas Assim lhe respondeu a árvore:
Foram os muros túmulos e cruzes Que cresceram em minha volta De muito tempo eu os precedo
Se sitiada agora estou por tanta morte Tanto luto Meu enterrar-me é vida e fruto E algum re-pouso.
Maragato em noites de prata
Athos Ronaldo Miralha da Cunha - Santa Maria/RS
O meu chimarrão é virado
Com a cuia xucra dos dias Num domingo de ventania
O meu churrasco é salgado E o coração mal-domado Porque esta rima é incerta E um clarim me desperta Nessa querência pampeana Eu levo a vida aragana Numa porteira entreaberta
Trago verdades feridas E um longo aceno perdido Na manhã de um jardim florido E com a rosa vermelha parida Deixei a boina basca puída Porque eu vivo num tranco E dando murro em barranco Eu perdi o encanto criança Porque a minha vida balança Peleando no ferro branco
Eu sou um taura veterano No tempo que se esvai no mate
O meu coração escarlate Vagueia no mundo mundano Varando várzeas, planuras e anos Eu sempre fiz o mesmo braseiro Para o chimarrão bem campeiro Com o verde dos olhos dela E um ventito fecha a cancela Num facho de luar pampeiro
Levando a alma lavada Nos riachos da primavera Assobiando uma quimera Diante da correnteza enluarada E os olhos meigos da amada Surgem na noite dolente Encharcando a minha vertente Porque fazem falta para mim Um dia vai ser o meu fim As dores que trago presente
O meu lenço é maragato Desde os tempos dos avós Este panuelo é minha voz Quando faço esse relato Da minha essência vida de fato Que o silêncio maltrata Deixando a vida pacata Nessa imensa pampa baguala No aconchego rubro do pala Recuerdos em noites de prata
E roda o meu universo Nas voltas que o mundo vive Muitas saudades eu tive Pra cantar o último verso Assim eu me despeço E liberto a minha agonia Trocando a noite por dia Na campanha rumo solito Cruzando o pago infinito E enchendo a vida vazia.
Alinhavo do acaso
Bernadéte Costa - Joinvile/SC
Antes da angustura de minha voz engasgar no interior d’água, entrelaço fios no tecido.
Recosto a cabeça no travesseiro de pedra a ouvir todo o seu silêncio líquido.
Há uma voz sem nome no alinhavo do acaso.
Quando o íntimo cavalga dias a fio soletra um mantra profundo a ecoar no bambual oco.
Nesse espaço-tempo principia o nada. No meio da trama... a eternidade das mãos.
Velas
Carlos Eduardo Dantas Cunha - Olinda/PEVelas içadas Infladas ao vento Levadas no tempo A mares e mar
Há mares revoltos E mares ocultos Amor inocente Por que me culpar?
Se vejo, se sinto Se choro, se peço Se sou, se me faço Se fico a negar
Não sou para ti Antes de ser para mim
Há velas içadas Infladas ao vento Levadas no tempo Da vida sem fim Amares ocultos, sim
Sol do meio-dia
Caroline Bento Diniz - Quixadá/CearáUma flor despedaçada alegremente e em meio ao sol do meio-dia só cabem a espera e aquela ânsia de chegar, posto que a volta é retornar ao mesmo corpo e já não me lembro dele desde atraquei no porto.
Indícios
Eduarda da Silva Bittencourt - Santiago/RS
Navego no mar do esquecimento. Decido, de forma inconsciente, sair em noite de tempestade. Não há bússola que me faça encontrar os pontos cardeais; na mala não levei nada, nem comida, nem água, nem instrumentos pra me proteger: sou eu e meu rosto refletido no mar. Sou eu, o mar, a tempestade e a lua.
Agora, mais calma, eu noto a lua. Na astrologia nós a estudamos como um arquétipo de afeto; dos sentimentos mais íntimos, do passado. Então posso ver: o mar não mais reflete somente meu rosto, reflete o rosto dela, também
O falso VIRA FATO
Fernando Jesus Nogueira Catossi - Jundiaí/SPPerene insegurança que acompanha os corações
Quando as orações não afugentam seus demônios Virtude simulada que se esvai num mero instante Fé de quem só crê no que convém aos seus caprichos
Fugindo não vê portas que o garantam segurança Nem mares tão profundos que seus medos não naveguem Faz da realidade um mero jogo de ilusões
Onde habitam seres que a razão não reconhece Como se esquivar do que não se pode entender? Como não temer o próprio passo quando cego?
Força e devaneio se confundem na coragem Daquele que tropeça nos percalços da loucura
A luz de um amanhã que se comporta como esporas
Na dúbia condição que testa aquele que se perde Temendo nunca mais achar caminhos pra si mesmo Imerso no que entende como sendo seu destino Pois mundos são criados quando a mente assim o quer E olhos que se fecham dão passagem para os sonhos Tênue sintonia entre o delírio e o equilíbrio Dando ao impossível tons e cores tão reais Insólitas veredas que amortecem paradigmas Trincam os alicerces da vontade mais ferrenha
Poder que tira as rédeas do mais hábil cavaleiro Deixando-o galopar até que atinja o precipício É quando o vento sopra e lhe desperta num instante Batendo sobre o rosto como um tapa que orienta Revelando o quanto é frágil a palavra “destemor”
Quando se define como aba da arrogância Fossas de um abismo sempre escuro e taciturno Voragem tão faminta por sequelas da existência Almas que se entregam em voluntário sacrifício Buscando nesse vórtice a verdade embrionária
Rouco pelos gritos de quem sente o desamparo Perdido em labirintos num contexto inescapável
O ser que se dizia tão repleto de princípios Chora de joelhos desejando o próprio fim Jaz aniquilado e alvo fácil dos tormentos Que sempre o perseguiram nos confins de seu juízo Minando cada impulso de manter-se equilibrado Forjando uma corrente que parece indestrutível Pois fracas são as pernas que sustentam a raça humana Herança dos covardes que fugiram pra viver Quando, no passado, confrontados pela morte Teceram na desonra sua própria salvação Genes que se arrastam pelos cinco continentes Compondo gerações de mentes frágeis e agitadas Atadas a crendices e reféns do imaginário Que serve de alicerce pra qualquer superstição O falso vira fato quando é o tempo que o profere Pois traz subentendido o que há de mais oculto Eleva o seu sentido para um plano incontestável Rabisca suas verdades pelas páginas da história Surgem novos deuses no horizonte das quimeras Surgem novas penas que o Universo nos aplica Bolhas de sabão que vagam soltas pelo ar Largando para trás um fino rastro de incertezas Fraco e desprovido de um juízo que o sustente O homem se encaminha para o fel do desespero Desprende-se dos elos que embaraçam sua conduta Cético, se lança nos confins da imprecaução Não mais se vê cativo do que os olhos não enxergam Nem crê no que suas mãos estão distantes de tocar Perambula pelas ruas, tão vadio quanto um mendigo Sentindo a liberdade e o desalinho que ela oferta E cada instante verga sob o peso do imprevisto Infância que se perde quando a morte é descoberta Levando para o limbo as ilusões que a definiam
Deixando uma saudade bem difícil de esquecer
Agora nada em águas tão mais fortes que seus braços
E os gritos se acomodam na garganta emudecida
Almeja desprender-se de seus dias sobre a Terra Se pra isso não faltasse o sangue frio de um suicida Febre realista que jamais serviu de amparo
Quando o que se busca está distante da matéria Dita sua sentença em concretismos ortodoxos Galho que, de rígido, sucumbe à ventania
Vê nos pormenores os caprichos do acaso
Alheio ao que lhe foge dos limites do intelecto Mesmo que esse mesmo inda se encontre enclausurado No ventre primitivo de uma infante humanidade
O que de seu conserva são perguntas sem contexto
Tão vagas que lhe escapam como areia sobre as mãos Pairam no deserto das pretensas soluções Calam-se nas drogas que amortecem a consciência
Nada que o liberte ou dê-lhe paz durante a noite Apenas um engodo que acoberta os seus gemidos A luz que ofusca a vista antes de dar-lhe nitidez Morfina para os ossos corroídos pela luta Mas, quando num abismo, todo alvor sempre é bem-vindo Se faz cicatrizar o corte aberto que o lacera E fácil é se apegar ao que afugenta a provação Se a chaga se comporta como um travo indesviável Estrelas que se alinham e orientam o navegante
Que já se despedia da esperança moribunda Nos lábios ressecados e na fronte atormentada
Ou lágrimas de orgulho embaraçadas ao suor Levados pelo vento vão-se empáfia e pedantismo Quando mãos em bolhas não suportam mais os remos Solto e à deriva, a sorte agora vira bússola
E preces sufocadas ganham sons em sua garganta Refúgio irresistível pra quem teme o seu desfecho
Ventre que o recebe sempre que lhe faltam forças
Conforto a quem não mais lembrava os tons de uma cantiga
Pão pra quem a fome era uma ingrata companhia
Profícua transição que traz à tona os afogados
E eleva um simples gesto à condição de epifania
Quebrando o que entendiam como sendo inquebrantável
Brilhando em céus noturnos chamas tidas como mortas Ciclos que se estendem e sobrevivem na desordem Minando a confiança de quem busca a eternidade Inábeis jogadores numa arena transitória
Que se faz rarefeita a cada instante que a transpassa Valores se desligam da pretensa probidade Virtudes se transformam em matizes da demência Cartas de um castelo que jamais se esquivarão
Do sopro que os milênios nunca deixam de emitir.
Cosmus I Francisco Júnior de Araújo Gomes - Patu/ RN
Um sopro na orelha Por uma boca-coração Arrepiou a pele: Olha minha mão! Meu braço-canela Eriçaram-se os pelos negros, alinhados Dilatou a pupila Meus olhos te olharam: Sorrindo
Sua imagem os mantinha em fusão Como se fossem estrelas num Cosmos Vasto, cheio de paixão...
MANHÃ MULTIAÇÃO
Giovani Roehrs Gelati - Uruguaiana/RSE lava
E estende E recolhe E passa E dobra E guarda. E lava…
E enquanto lava varre e esfrega o chão e passa pano e põe o ventilador pra secar e grita “não pisa!” e suja e lava de novo e esfrega e passa pano e põe o ventilador. E estende.
E enquanto seca junta a louça esquenta a água pega o sabão e lava e põe pra secar e pega a toalha e seca e guarda e desliga o ventilador e guarda o ventilador. E recolhe do varal.
E passa
E dobra. e a criança acorda e troca a fralda e dá o leite liga o desenho e se culpa e seca o suor da testa e toma água e põe a carne para descongelar. E, de novo, Passa, Dobra.
E antes de guardar a criança chora e troca a fralda de novo e pega um brinquedo a criança quer outro pega mais um brinquedo a criança quer correr e sai correndo com os cachorros. E guarda E guarda E… ufa! Guarda tudinho.
E lava mais uma vez E enquanto lava, pica a carne o tempero a cebola o tomate o pimentão a batata
põe o arroz no fogo, E recolhe a roupa E estende e o arroz queimou. E enquanto seca no varal lava a panela do arroz queimado põe óleo põe o sal põe o arroz aguarda um tempo e, então, a água não arreda o pé a criança cai no chão chora sai correndo volta correndo pro arroz não queimar a criança debaixo do braço o nariz escorrendo ainda chorando o cachorro pulando quase tropeça a panela fumegando a fumaça já indica a tragédia ufa! não queimou põe mais água limpa a criança melhor dar banho melhor não queimar o arroz. Termina de preparar a comida põe a criança na cadeirinha serve o almoço faz aviãozinho careta
conta historinha agarra a boca da criança e enfia a comida a criança cospe na sua cara limpa-a ela esfrega o olho pega no colo embala come com uma só mão não dá para cortar a carne deixa os talheres de lado come como os ancestrais sente-se uma pessoa das cavernas embala mais um pouco logo a criança está deitada, dormindo respira com alívio mas a fome já passou.
Deita a criança na cama hora de descansar coisa boa! momento de fazer o que quer então: Recolhe a roupa do varal E passa E dobra E guarda. E lava…
POESIA TRABUZANA
Guilherme Brasil - São Paulo/SP
escrito pra ser falado
A folha é terra pura amálgama de restos vegetais
E de repente palavras gotejam letra a letra líquidas vogais que se engrossam numa enxurrada de consoantes enlameadas arrastando tils, acentos e até estrofes inteiras pelas valas entupidas de versos
Torrente vernacular escorrendo, metáforas, zeugmas, coriscam no céu polissemias alucinantemente aliterantes assoviam pelas frestas [dos meus olhos e não me deixam dormir é preciso levantar é preciso se aquecer Então quando abro minha boca de lobo [pausa] as palavras já não me enchem mais a terra branca bebe meu transbordar com sede de deserto
Resta-me esse copo meio vazio ou, por fim, meio cheio e suas marcas nas paredes dos meus pensamentos
Destino
Gustavo Ferreira Canevare - São José dos Campos/SPTua sina não lhe ceifa a liberdade, Não é o que lhe faz mero prisioneiro, inerte e conformada faculdade de perdurar vigente o tempo inteiro.
É estar livre e, de bom grado, aceitá-la, Forjar-lhe compulsória alternativa, entre supor que pode controlá-la ou insistir a cada tentativa.
Sorte ou infortúnio sequer optado, Um dia aclamado, noutro… coitado! Esteja a passo lento ou repentino
Mais um plano aleatório do destino! Que sempre foi, ou que nunca será, Nada em vão nesta vida ocorrerá…
LEITURA DA MÃO
Hélio Batista Barboza - São Paulo/SPA mão atravessa o campo de visão
Para virar a página do livro. Interrompo a leitura do papel E começo a ler a pele dessa mão.
Epiderme, derme e hipoderme. Carpo, metacarpo e falange. Palma e dorso. Unhas e dedos. Punho e antebraço. Veias, nervos e músculos.
Estrias percorrem a cútis ressecada e desenham o mapa de uma vida entre porosidades e asperezas. Pergaminho exposto ao sol. Homem exposto ao tempo.
A pele também é um livro aberto: esta mancha eu trouxe da praia, aquele calo ganhei no trabalho, e esta cicatriz chama-se destino.
A mão atravessa o tempo. Em vão procura a essência das coisas. Pobre mão atravessada pela fugacidade do vão.
Agora a mão se atrofia, mas não esquece que um dia foi mão de prestidigitador.
Que um dia se uniu à outra mão numa prece. E a outras mãos numa ovação.
Um dia a mão deu murro em ponta de faca. Noutro dia cumprimentou o Grande Irmão.
Um dia a mão afagou a brisa. Noutro dia apertou o botão.
Mas agora a mão se atrofia, se enrijece, atravessa o campo de visão. Melhor virar a página.
Germinar aquarela
Jane Mariza Dornelles Tusi - Santiago/RS
O grão que sacia a fome
Ao artista vira tela Tinge linda aquarela Tão difícil imaginar
Como pode tal partícula Revelar tantas imagens De vidas, de personagens Que consegue recriar
Na palheta multicores
Descortina grandes feitos Que em nuances perfeitos Faz um cenário cintilar
E em micro pinceladas
O grão germina na arte É a magia que faz parte De um ser de luz revelar
cavaleiro
José
Cristian Góes - Aracaju/Sergipe.não acabou a vida nem a guerra escute o estômago que ainda resta a devorar a palavra não dita ronco solto de uma máquina ferida embrenha-se no cinza urbano da floresta onde batalha nenhuma cabeça enterra
o cavaleiro não foi vencido sua armadura suja e aos trapos insiste em lembrá-lo o quanto é destemido a ganhar montanhas de plásticos perdidos fazendo brilhar as insígnias em fiapos escudo que jamais revela o soldado ferido
não há a espada nem a lança o corpo é o próprio brasão em combate armadura reforçada engana o inimigo corre apressado sem medo do perigo busca gritos de horror para o arremate murmura sonhos de fumaça de esperança cabelo e barba não são desse tempo pés descalços sangram sua coordenada pula entre máquinas para vencer a morte peleja onde jamais ouviu falar de sorte em cada esquina encontra lança envenenada a furar sua armadura em todos os dias de tormento
não há trégua nem sossego clama aos céus por seu exército infinito que virá glorioso enquanto o inimigo dorme a preparar mais uma batalha que suporte
paus e pedras do vigilante afoito joga a fome para derrotar o cavaleiro trôpego
o fantástico alazão sumiu na poça piscina cornetas alucinadas cantam a vitória do inimigo cavaleiro rendido somente é desperto pelos querubins a anunciar valoroso prêmio na guerra sem fim medalha do pão podre empurrada como castigo renova todo o sentido da morte como disciplina
sim, o cavaleiro insiste nessa terra logo atravessa em um pulo a avenida dos anônimos batalha de morte em vida sem opção a engrossar a pobre armadura em vão numa luta visível contra loucos demônios numa vida visível sempre a perder a guerra
SEM DORMIR
Kíssila Muzy de Souza Mello - Nova Friburgo/RJ
Pernas petrificadas Cabeça pesada Olhos ardendo Língua afoita roendo a arcada.
Pisco para não dormir Lucidez abandona
Pego o lápis, autômata Escrevo pra conter a alma. Pois o corpo, esse parece que não tem mais cura.
Sinto a energia surgir E logo me consumir Não consigo dominar O sono que sonho em verso.
Há sons em meu orbe De um rio que não dorme Com música nas águas Que ninguém escuta. Invadem (somente) a (minha) noite e não fazem eco.
Dia seguinte sou fachada Simulacro de nada Não há paz que dê conta Da minha fome de cama.
Não há penumbra ou canção Comprimido ou ilusão Que permitam o descanso D’uma alma em ebulição. Essa é a fortuna dos que vivem despertos nas nuvens
Toquei uma estrela
Lauro Strazzabosco Dorneles - Porto Alegre/RS
As horas se alongam, além do espaço Não tenho teus braços pra compartilhar Retenho saudade dentro do peito Ensaio o efeito de tudo sonhar
Toquei uma estrela pensando em teu rosto Estava exposto ao amanhecer Sangrei os meus olhos perdidos no tempo Refiz-me no espelho com teu bem-querer
Desvio o olhar mirando horizontes Não passei a ponte por medo do além Trago comigo a lembrança presente Causando uma enchente sem me entristecer
Carrego essa dor transformada em ausência Mas sei que meu dia não terá dissabor Se as sementes plantadas germinaram comigo Faço delas meu abrigo no arremate indolor
Na chegada da noite, derradeira do dia A esperança renasce na tua chegada Tua dor é que agora precisa de cura Transborda alegria, hora alongada.
No espelho
Leonardo Castelo Branco - São Paulo/SPDá vertigem (em fúria) olhar a si mergulhar na luz e cegar-se por um instante sentir o gosto do cigarro que já não fuma como o amputado sente o que já não existe [mas persiste.
Que tal este reflexo de rosto convexo? nariz macetado, peles pelancas, pés de galinha barba por fazer, cabelos pela hora da morte. Os primeiros fios brancos perdidos como náufragos, olheiras lapidadas em três décadas de insônia. Eu sou as lágrimas que não chegam aos olhos; sou uma raiva cega, um desejo mudo de mudança a falta de coragem de cobrir este poema de porrada.
Veja, sou este vazio cheio de coisas: metade homem, metade hábito, metade gosto, metade escarro. Sou eu mesmo neste reflexo? Sou as palavras que brotam da alma da alma a inquietude de um coração nu em praça pública o chiado que habita o intervalo das canções aquele que ouve Bach no amolar da faca.
Também sou essa coisa inominável: o medo de que tudo e nada aconteça por exemplo, o lustre cair na minha cabeça enquanto meus pensamentos atravessam a lua; sou a certeza de que toda vida não basta; toda vida é tempo de menos.
Olhe, sinta o ruflar da pele feita de verso e verbo a valsa dos raios vulcânicos exploradores de bibliotecas a cabeça ancorada em poemas e hipotecas o torpor do corpo invadido; do corpo maldito um grito de socorro nunca ouvido perdido entre milhões de gritos de socorro [nunca ouvidos. Repare nestes olhos instigados pelo pecado a timidez das tatuagens vencidas pelo tempo
Destoante
Lilian Souza de Araújo - Taubaté/SP
Toca um ‘noturno de Chopin’.
A janela desmente a luz que adentra e o breu de um outono fantasiado invade a sala.
Teclados e dedos se confundem.
Não há certezas de nada, e na chaleira um apito agudo destoa da canção.
A tristeza permeia os fatos.
Na ponta de um galho uma folha que ainda não se desprendeu fala de resiliência.
CHOVE HÁ SÉCULOS NA CIDADE
Luiz Rogério Camargo - Curitiba/PR
Chove há séculos na cidade E nos jornais nenhuma notícia Dos afogados.
Nada dos corpos perdidos Boiando sem rumo nos canais Irresgatáveis.
Nada do velho dançando sobre a ponte Surpreendido enfim Pelo trovão.
Nada do sol de artifício Lançado às pressas no céu Que se apagou.
Nada dos peixes fosforescendo Que invadiam as casas à noite Para morrer.
Nada da epidemia de insônia Que apagou os olhos das crianças No grande raio.
Nada dos barcos fantasmas Fugindo dos gritos Na cerração.
Nada além da chuva de séculos Transbordando para as bocas Bocas de homens.
SOBRE PESO
Luiz Henrique Aguiar - Magé/RJ
Carrega sobre os ombros
A janela e a porta abertas. Foi tudo o que restou àquele homem: A paisagem de todas as tardes A criança uniformizada subindo a escada.
A brisa e dentes-de-leão
Circundam janela adentro. O homem à porta No espaço À espera.
Assim carrega por onde vai
A porta e a janela. Leves como dentes-de-leão ao vento. Não menos fardo Como o tempo.
SER ESTA POR ESCREVER
Michelle C. Buss - João Pessoa/PBas pernas balançam soltas na beira da dobra do mundo entre ser e escrever um interlúdio de (r)existires um amontoado de escolhas de pássaros e luas tirando os sentidos do chão soltar-se em linhas e vazios obscurecer-se no ninho de silêncios à espera do nascedouro das palavras
entre escrever e ser muito mais que um caminho... me caminho por dentro descobrindo instintos de estradas tateando o segredo das panteras que emudecem à noite quando se movimentam... a quietude do mistério: dos peixes que falam o que são apenas sendo sem palavras... e o que é a palavra se não os sons do mundo grafados em arquiteturas de letras e outros mundos ressoando em marés com as águas batendo no coração
viver vai além de qualquer constatação
para se estar vivo é preciso mais que respirar… é preciso o que for preciso estar vivo e não cabe em palavra ou papel não cabe nas histórias e poemas cantados cabe mais em um abrir de olhos e sentir cabe mais na curva do sorriso que acorda sol cabe no acontecimento de ser um novo dia ser e ser e ser sem catálogos ou prescrições para estar vivo um tanto de coragem na beira da dobra do mundo as pernas balançam soltas… não cabe escrever não cabe mas por estar viva escrevo