Hoje, muitas lideranças continuam firmes nas trincheiras do combate ao racismo. Os movimentos, sobretudo de mulheres negras, ganham força, e surgem novos coletivos para impedir retrocessos e denunciar a ação dos agentes do Estado no sistemático encarceramento e assassinato da juventude negra nas periferias das cidades. O genocídio ainda continua – porque “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, como canta Elza Soares. A desigualdade salarial, de oportunidades, de direitos, sobretudo para as mulheres negras – herança maldita da escravidão que no pós-abolição se moderniza e produz o abandono de milhões de seres humanos à própria sorte –, é o principal motivo que faz o Brasil ser reconhecido como um país antidemocrático, autoritário, conservador, elitista e eurocêntrico. Um país que revive o passado repressor e onde o futuro demora a chegar. Celebrar, por meio deste livro, os quarenta anos do Movimento Negro Unificado (MNU) é um modo de homenagear cada afro-brasileiro, cada negro e cada negra, por resistir e continuar lutando por direitos, cidadania e liberdade até que sejamos todas e todos livres do racismo, da pobreza, do machismo, da LGBTIfobia e de qualquer forma de intolerância. Axé e boa leitura!
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Este livro retrata, por meio de fotos, testemunhos, manifestos e artigos, a história da luta de mulheres e homens negros brasileiros que tiveram no Movimento Negro Unificado (MNU) uma das principais frentes organizadas contra o racismo e a segregação sociorracial. Evocando a força e a bravura de seus antepassados africanos, bem como de figuras históricas que desafiaram o status quo e desmascararam o mito da democracia racial no Brasil, esses atores têm denunciado, ao longo das últimas quatro décadas, a vulnerabilidade da população negra frente ao Estado e no mundo do trabalho, e pautado políticas públicas que buscam reparar as profundas marcas de desigualdade que permanecem após mais de trezentos anos de escravidão. Uma história que ainda está sendo escrita pelas mãos de muitas gerações.
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violência policial, dava continuidade à luta dos nossos antepassados, por isso hoje se junta ao panteão de nossa história: Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, Lenny Blue, Neuza Maria Pereira, Milton Barbosa, José Adão de Oliveira, Rafael Pinto e tantos outros que povoam as páginas deste livro protagonizaram marchas, encontros, festivais, publicações, conquistas constitucionais e políticas públicas para a população negra.
Em 1871, Luiz Gama diria que a resistência é uma virtude cívica. Pouco mais de cem anos depois, em julho de 1978, iniciava-se um grande movimento civil de mulheres e homens negros contra o racismo. Essa luta contra todo tipo de preconceito e discriminação vem de longe, desde quando nossos antepassados foram sequestrados do continente africano e aqui escravizados para enriquecer os colonizadores das Américas.
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO a resistência nas ruas ENNIO BRAUNS GEVANILDA SANTOS JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA (ORG.)
Apoio cultural:
ISBN 978-85-9493-163-4
Apesar da escravidão, resistimos. Hoje podemos evocar uma linhagem de lideranças que bravamente se insurgiram contra a ignomínia de torturas e castigos do cativeiro. Aquilombaram-se. Defenderam a si e aos seus com armas, palavras e manifestações. Com Zumbi e Dandara nos Palmares e João Cândido e Luiza Mahin nas revoltas populares. Com o abolicionismo de André Rebouças, de José do Patrocínio e do próprio Luiz Gama, que atuavam nas redações de jornais e na defesa intransigente da liberdade. Com a alta literatura de Machado de Assis, Maria Firmina dos Reis e Lima Barreto. Com Aristides Barbosa, Solano Trindade e os 200 mil mulheres e homens da Frente Negra Brasileira (FNB) de 1931 – primeira organização que enfrentou as dicotomias raciais e as teses de eugenia contra negros e mestiços. Os nossos antepassados ilustres foram torturados, assassinados, embranquecidos e apagados do panteão da história oficial. Ao lado de tantos outros anônimos, sobreviveram a um verdadeiro genocídio e nos deixaram um riquíssimo legado social, intelectual, cultural, religioso. Um capital simbólico inestimável. Aquela juventude negra que em 1978, em plena ditadura civil-militar, se insurgiu e saiu em protesto pelas ruas de São Paulo bradando que a democracia racial era um mito, denunciando a farsa da abolição e a
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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli
Fundação Perseu Abramo Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996. Diretoria Presidente Marcio Pochmann Diretoras Isabel dos Anjos e Rosana Ramos Diretores Artur Henrique e Joaquim Soriano
Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni Produção editorial Maria Elaine Andreoti Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel
Apoio cultural:
Soweto Organização Negra Fundada em 1991 Diretoria Presidenta Glauciana Aparecida de Souza Vice-presidenta Izolina Rosa de Jesus Secretária-geral Gevanilda Santos Tesoureiro Romildo José dos Santos
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MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO a resistência nas ruas Ennio Brauns Gevanilda Santos José Adão de Oliveira (org.)
São Paulo 2020
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APRESENTAÇÃO TRÊS DEDOS DE PROSA ENNIO BRAUNS, GEVANILDA SANTOS, JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA
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INTRODUÇÃO ANTECEDENTES DA LUTA MÁRCIO BARBOSA
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A GERAÇÃO DE JULHO DE 1978 MEMÓRIAS, LUTAS E SONHOS 18
A MULTIPLICIDADE DE EXPRESSÕES E A CONSCIÊNCIA NEGRA A REORGANIZAÇÃO DO CECAN JOANA FERREIRA DA SILVA
24 O FESTIVAL COMUNITÁRIO NEGRO ZUMBI (FECONEZU) REUNIÃO DE QUILOMBOS E QUILOMBOLAS LUIZ FERNANDO COSTA DE ANDRADE 27
CADERNOS NEGROS, A HERANÇA AFRO-LITERÁRIA ESMERALDA RIBEIRO
30 PONTOS DE ENCONTRO DA JUVENTUDE NEGRA PAULO RAFAEL DA SILVA 40 A TURMA QUE BATIA LATINHA JANAINA ROCHA, MIRELLA DOMENICH E PATRICIA CASSEANO 57 INFLUÊNCIA DO JORNAL VERSUS
62 NASCE O MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO: UM SALTO DE QUALIDADE NO TEMPO E NA HISTÓRIA DEPOIMENTO DE NEUSA MARIA PEREIRA 67
A MULHER NEGRA NO PALCO DA LUTA DO 7 DE JULHO DE 1978 DEPOIMENTO DE MARIA INÊS DA SILVA BARBOSA E ARTIGO “MULHER NEGRA”, DE LÉLIA GONZALEZ
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HAMILTON CARDOSO E O MNU FLAVIO CARRANÇA, COM COLABORAÇÃO DE FÁBIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA
101 AS VOZES DE QUATRO FUNDADORES DO MNU MILTON BARBOSA, LENNY BLUE DE OLIVEIRA, JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA E RAFAEL PINTO
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132 O PROTESTO NEGRO CONTINUA NAS RUAS PALCOS HISTÓRICOS (1988-2018) 133 O MOVIMENTO NEGRO CONTEMPORÂNEO FLÁVIO JORGE RODRIGUES DA SILVA 140 O MOVIMENTO NEGRO EM AÇÃO FLÁVIO JORGE RODRIGUES DA SILVA 140 OS SIGNIFICADOS DOS 100 ANOS DA ABOLIÇÃO CLAUDETE GOMES SOARES 143 145 147 153 158
A PERSPECTIVA DE UNIDADE NA DIVERSIDADE: O 1º ENCONTRO NACIONAL DE ENTIDADES NEGRAS A MARCHA ZUMBI DOS PALMARES CONTRA O RACISMO, PELA CIDADANIA E A VIDA 1º ENCONTRO NACIONAL DE COMUNIDADES NEGRAS RURAIS TERRA, PRODUÇÃO E CIDADANIA PARA OS QUILOMBOLAS DA CONFERÊNCIA DE DURBAN À CRIAÇÃO DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL (SEPPIR) ZUMBI +10: II MARCHA CONTRA O RACISMO, PELA IGUALDADE E A VIDA
163 PRIMEIRA MARCHA NACIONAL DAS MULHERES NEGRAS CONTRA O RACISMO E A VIOLÊNCIA E PELO BEM VIVER 168 II ENCONTRO NACIONAL LGBT DO MNU 171 CAMINHANDO AO ENCONTRO DA CONTEMPORANEIDADE DA LUTA DA MULHER NEGRA GEVANILDA SANTOS 189 LUTAS DE ONTEM, DE HOJE E DO AMANHÃ VIOLÊNCIA RACIAL EM TRÊS TEMPOS PAULO RAMOS 195 MNU: QUARENTA ANOS DE LUTA CONTRA O RACISMO IEDA LEAL 204 A PALAVRA DOS FOTÓGRAFOS 215 LISTA DE SIGLAS
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APRESENTAÇÃO
TRÊS DEDOS DE PROSA MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO EM MARCHA DA PRAÇA DA SÉ À PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO. PASSEATA PERCORRE O VIADUTO DO CHÁ. EM PRIMEIRO PLANO JOSÉ ADÃO, ATRÁS DELE O PROF. EDUARDO OLIVEIRA E MILITANTES FUNDADORES DO MNU. 20/11/1979.
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Apresentação TRÊS DEDOS DE PROSA
DAR VISIBILIDADE aos negros que fizeram e fazem a luta contra o racismo e a opressão de classe é um passo fundamental na construção da História Negra. As fotos dessa história, de cidadãos negros e da organização do seu Movimento, vieram de nove acervos diferentes. São nove fotógrafos de várias origens sociais que viveram, em parte ou no todo, esses quarenta anos de existência do Movimento Negro Unificado (MNU). Fotos de profissionais que olham agudamente para a evolução da história dos negros em São Paulo. Cada um desses fotógrafos, independentemente de branquitude ou negritude, lida com generosidade e empatia em cada momento visto. Todas as imagens têm um viés claro ao valorizar e/ou denunciar a condição negra de forma irrefutável. Ari Cândido, fotógrafo e cineasta, descreve seu momento inicial de transe entre a fotografia e sua negritude como uma “rara oportunidade de ‘captar’ a imagem de um negro que fumava
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cachimbo e ‘clicava’ ali o primeiro prefeito cassado, em 1965, no Brasil, Esmeraldo Tarquínio”. Jesus Carlos e Rosa Gauditano, dois brancos de origens diversas e visões semelhantes, fizeram do ofício e do engajamento político motores da identidade com a ação dos negros que o livro celebra. Sintetiza ele: “As ruas eram a grande trincheira naqueles tempos de chumbo, e foi de grande importância o surgimento do Movimento Negro exigindo o fim do racismo”. Para ela, foi “um aprendizado diário escutar essas pessoas que não tinham voz na grande imprensa... a ditadura era forte, mas a gente tinha ânsia de democracia”. Eles registraram os dois primeiros anos das ações negras e seus personagens fundadores na cidade.
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Luiz Paulo Lima, fotógrafo e cineasta, destaca que “este acervo se tornou uma importante documentação histórica da formação do Brasil enquanto ‘nação’, embebida de racismos de todos os matizes”.
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Samuel Tosta, fotógrafo de movimentos sociais no Rio de Janeiro que estava em Coroa Vermelha (BA), no ano 2000, na hora certa pra fotografar a coisa errada, lembra que “antes das 11 da manhã mais de 200 pessoas estavam cercadas por policiais (...) sendo obrigadas a sentar no chão, quase todas militantes do Movimento Negro”. Juvenal Pereira, Joca Duarte e Wagner Celestino representam duas gerações de fotógrafos distantes no tempo e próximas na visão sobre o negro. Juvenal, há meio século no fazer fotográfico, lembra que, quando trabalhava em Salvador para O Cruzeiro, viu “negros com autoestima mais elevada do que os negros das Minas Gerais... Em Minas, nos buracos, e em Salvador nas ruas, praias, becos, terreiros e uma circulação maior da voz negra”. Wagner, com 10 anos a menos na fotografia, conta que sua consciência profissional-racial foi estimulada pelo surgimento do MNU, “que,
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por meio de suas diretrizes de luta contra o racismo, reforçou a conscientização da minha negritude e, obviamente, criou parâmetros para o desenvolvimento do trabalho fotográfico”. Joaquim, o Joca, como é conhecido no fotojornalismo contemporâneo, em São Paulo, ex-cobrador de ônibus, autodidata “retado”, lembra como foi: “no trajeto diário entre a vila Carrão, na zona leste, e São Judas, na zona sul, uma infinidade de cores... que vinham e se perdiam na multidão... até tomarem coragem e começarem a se materializar”. Quanto a mim, que atuava no Em Tempo, eu era mais um daquela geração de fotógrafos jornalistas que ia pra rua, para trabalhar e para expressar um olhar político sobre o que víamos. Era proibido informar e, por isso, era preciso fazer. No olhar de cada um tem uma valorização absoluta da consciência do momento histórico, da natural beleza negra, das culturas negras e das religiosidades de matriz africana. Juntos, são uma pequena contribuição à história do negro, em luta por igualdade racial e cidadania plena. ENNIO BRAUNS
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Apresentação TRÊS DEDOS DE PROSA
NOS 130 ANOS do pós-abolição, a comunidade negra em geral, e de São Paulo, em particular, está de braços abertos para celebrar o Movimento Negro Unificado: a resistência nas ruas, bem como homenagear as palavras e atitudes fundantes da luta contra o racismo que segue até a atualidade. Muitos brasileiros já aprenderam com o Movimento Negro Unificado (MNU) a lição do protesto negro nas ruas e têm em sua trajetória uma forte referência. Mesmo não tendo sido capaz de eliminar o preconceito, a discriminação e o racismo, o MNU ao seu tempo assumiu com coragem aquela tarefa e inspirou a geração de julho de 1978 a desconstruir o mito da democracia racial, a farsa da abolição, a escrever na Constituição Federal brasileira de 1988 que o racismo é crime, a fortalecer a participação das mulheres nos encontros nacionais e internacionais, a celebrar Zumbi e Dandara como heróis nacionais, a exigir compromisso do Estado brasileiro em prover a igualdade racial em educação e saúde, garantir as terras dos quilombos e, sobretudo, a vida da juventude negra.
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Assim, o MNU despertou nacionalmente o desejo da unidade, condição sine qua non à efetividade dessa luta. No seu tempo, deu conta e cumpriu com afinco sua missão. Sabemos que a estrada é longa. A política sociorracial do Estado brasileiro é concentradora de riqueza, é conservadora da tradição escravocrata, arraigada de etnocentrismo, cinismo e desfaçatez, principalmente quando se trata de eliminar as iniquidades entre brancos, negros e indígenas Mas no seu encalço está o pioneirismo do MNU e das demais organizações negras brasileiras herdeiras dessa luta. Este livro faz uma homenagem ao MNU e seus quarenta anos de luta por meio de colaborações autorais, palavras, depoimentos, memórias, documentos históricos, iconografias e imagens do universo negro em lutas guardadas em publicações, acervos pessoais e institucionais, pensamentos ora convergentes ora divergentes, mas que sempre se encontram na defesa dos direitos da população negra brasileira.
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O MNU espera ganhar um presente do Brasil: que todos e todas possam, através da resistência negra e do protesto nas ruas, “reagir, re(sobre)viver e descolonizar para efetivar a democracia brasileira”.
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GEVANILDA SANTOS
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ENTRE AS MUITAS FOTOS que vi no registro dos quarenta anos de luta do MNU contra o racismo, estão duas que calam mais fundo. Uma é a do professor Eduardo Oliveira, o poeta, com o megafone falando no ato do dia 20 de novembro de 1979. Nesse dia saímos das escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, na primeira marcha em homenagem a Zumbi dos Palmares, e fomos em passeata até os degraus da Catedral da Sé. Fazia um ano que Karol Wojtyla tinha assumido o pontificado e se tornado Papa João Paulo II. Durante as atividades do Brasil 500 anos, houve conflitos e questionamentos sobre se deveria celebrar ou não o nascente Estado brasileiro, e no contexto do Jubileu do II Milênio da Igreja Católica Apostólica Romana, completados no mesmo ano, poucos prestaram atenção ao pedido de perdão do Papa reconhecendo os crimes, erros e danos cometidos pela Igreja durante o período de escravização e colonialismo de povos e etnias do continente africano e da diáspora. A outra foto é a do sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira ao lado de José Correia
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Apresentação TRÊS DEDOS DE PROSA
Leite na caminhada em visita ao túmulo de Luiz Gama. Essa imagem demonstrava que a liderança na luta contra o racismo continua mesmo após a morte. Em 4 de novembro de 2015, perante o seu túmulo, foi entregue o título de “Advogado de Todos os Tempos”, num reconhecimento póstumo nacional da OAB ao grande líder abolicionista. O professor Eduardo de Oliveira, cofundador do MNU, dizia em 2010: “quando eu era jovem, em 1942, não podia falar olhando no olho de um branco. Tinha que falar com a cabeça e os olhos baixos. Agora a juventude negra fala de cabeça erguida e luta por seus direitos e destinos”. E lembrou que o Dia Nacional da Consciência Negra é feriado em centenas de municípios e estados.
humanidade, desde o século XVI, por fruto de um acordo entre Estado nacional e Estado religioso católico, ocorreu a confissão de um crime de lesa-humanidade e lesa-divindade. A luta continua até que haja reconhecimento do direito e das conquistas. É isto o que representa os 40 anos do MNU. Ele tem na Lei 10.639/2003 um marco histórico porque assenta as inúmeras “Histórias afroatlânticas” que demarcam as reparações na construção de um novo futuro nas relações etnorraciais no Planeta Terra. JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA
O grande feito dos homens e mulheres da geração de jovens de 1978, fundadores do MNU, foi dar continuidade, com nova energia e intensidade, a uma luta contra séculos de dor e opressão. Em meio aos conflitos da celebração dos quinhentos anos das Américas, poucos perceberam que, pela primeira vez na história da
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INTRODUÇÃO
ANTECEDENTES DA LUTA PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. NAS ESCADARIAS DO TEATRO MUNICIPAL, CENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO, EM 07/07/1978. DA ESQUERDA PARA A DIREITA, ANTÔNIO LEITE, PROF. EDUARDO OLIVEIRA, HAMILTON CARDOSO (QUE DISCURSA), OSCARLINO MARÇAL E MILTON BARBOSA.
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©JESUS CARLOS
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Introdução ANTECEDENTES DA LUTA
A FRENTE NEGRA BRASILEIRA OUSOU UM PROJETO POLÍTICO PARA O BRASIL MÁRCIO BARBOSA*
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em sempre o protagonismo afro-brasileiro é lembrado de forma positiva ao longo da história. A nós, os relatos oficiais geralmente reservam o papel de coadjuvantes nos grandes eventos, especialmente naqueles que ajudam a definir a situação sociopolítica do país. Quando não nos dão esse papel, tentam desqualificar nossa luta rotulando-a de diversas maneiras negativas (…). O pós-abolição, por exemplo, é rico em termos de criação de associações afro-brasileiras, na sua maior parte com atividade de lazer e de cultura. Outras entidades tinham caráter assistencialista. Algumas se dedicaram à publicação de jornais numa época em que os índices de analfabetismo eram terríveis.
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Em São Paulo, uma das entidades mais conhecidas foi o Centro Cívico Palmares, fundado em 1926. Essa associação ultrapassou os limites das entidades recreativas ao pautar o tema da participação política. Em 1931, surgiu a Frente Negra Brasileira, aprofundando os temas que o Palmares esboçara e atingindo um nível de organização e atuação que a tornaria lembrada através das décadas. Fundada no dia 16 de setembro no salão das Classes Laboriosas, constituiu sede posteriormente na Casa de Portugal, na avenida Liberdade, na cidade de São Paulo. Nesse local, a Frente Negra manteve escola, departamento de assistência social e jurídica, grupo de teatro e jornal, além de promover palestras e os grandes bailes organizados pelo grupo das Rosas Negras, dentre outras atividades.
*PESQUISADOR E INTEGRANTE DO QUILOMBHOJE LITERATURA. ADAPTAÇÃO DO TEXTO NO LIVRO FRENTE NEGRA BRASILEIRA: DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS E TEXTOS. SÃO PAULO: QUILOMBHOJE, 1998.
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É importante notar o contexto em que a Frente Negra surge. Em depoimento para o livro Frente Negra Brasileira, Aristides Barbosa afirma que, ao chegar a São Paulo vindo da cidade de Mococa, encontrou no bairro da Bela Vista os homens negros desempregados nas ruas. Eram as mulheres que, trabalhando como domésticas, arcavam com o sustento das famílias.
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Na época, grassava a tese racista e pseudocientífica, para a qual a mestiçagem resultava numa raça degenerada, e por isso negros e mulatos estavam fadados ao desaparecimento. Entre os ideólogos dessa concepção estavam Nina Rodrigues e Monteiro Lobato. Essas teses sustentaram políticas públicas como o incentivo à imigração europeia, dando corpo ao desejo de embranquecimento, pois, para as classes dirigentes do início do século XX, o país só atingiria o status de “civilizado” quando a “raça degenerada” desaparecesse do seio de sua população. Os jornais da época estampam anúncios que procuram por empregados brancos. Nesse sentido, a Frente Negra estabeleceu um projeto político de inclusão do povo negro na sociedade brasileira. Nos estatutos da Frente afirma-se que a entidade “visa à elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional e física; proteção e defesa social,
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jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra”. Esse objetivo amplo foi seguido com tenacidade, podendo-se destacar nesse passo três diretrizes centrais de ação: a construção da ideia de comunidade, independentemente de cor de pele, com uma história comum, um passado comum, com heróis como Zumbi e Henrique Dias – elabora-se uma identidade negra; a educação como um fator de superação da situação atual (a educação pode ser formal, como na escola frentenegrina, mas pode ser mais geral, humanista, como nas palestras, no teatro, nas leituras de poesia, no incentivo à leitura de livros); e a atuação político-partidária para alcançar objetivos mais amplos. Deve-se notar que essa ação é pensada em termos nacionalistas. Para os frentenegrinos, o negro, por sua contribuição à construção do país, deve levar sua luta em termos nacionais, tem direito à terra, tem direito a participar da vida política e da tomada de decisões. E, especialmente, deve pensar na disputa de poder. Embora houvesse informação dos movimentos internacionalistas, como o da volta à África, de Marcus Garvey, a Frente concebe sua atuação somente em termos de Brasil. A unidade pretendida pela Frente Negra teve resultados concretos. Alguns autores afirmam que ela chegou a ter 200 mil filiados em todo o
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Introdução ANTECEDENTES DA LUTA
Brasil, com ramificações em vários Estados. No Recife, o poeta Solano Trindade chegou a criar a Frente Negra Pernambucana. A carteirinha da Frente valia como um documento de identidade. A participação feminina na Frente Negra revela o papel da mulher na direção das atividades educativas, assistenciais, artísticas e de lazer, especialmente as atividades organizadas pelo departamento feminino denominado Rosas Negras. Em 1936, a Frente foi registrada como partido político. Apesar da breve duração, pouco mais que um ano, até hoje é lembrada por ser o primeiro partido político negro brasileiro. Dirigida por afro-brasileiros que tinham superado a barreira do analfabetismo e se tornado professores, a Frente teve de lidar com diversas contradições. O primeiro presidente, Arlindo Veiga dos Santos, era patrianovista, isto é, monarquista e, embora sempre afirmasse que essa sua posição não interferia em seu papel como frentenegrino, as maiores críticas à Frente e muitas das cisões que surgem derivam dessa postura e da linha autoritária que a diretoria teria imprimido à Frente, com a formação, por exemplo, de uma milícia. Logo no seu início, o grupo do jornal Clarim da Alvorada, de José Correia Leite, rompeu com a Frente Negra. Na Revolução de
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1932, ela decidiu por se manter neutra, não aderindo à luta empreendida pelos paulistas. No entanto, houve uma cisão, e de dentro da Frente saiu um grupo que formou a Legião Negra, para lutar ao lado dos paulistas. Em 1937, um decreto de Getúlio Vargas que colocava na ilegalidade todos os partidos políticos atingiu também a Frente Negra, provocando seu fechamento. Ela ainda tentou se rearticular como União Negra e depois como Clube Recreativo Palmares. Em décadas posteriores, houve tentativas de se reconstruir a Frente Negra empreendidas por Francisco Lucrécio (ex-primeiro secretário) e outros, mas a época de ouro havia terminado. Porém, a Frente permanece atual, pois teve o mérito de elaborar um projeto político para o negro e para o Brasil. Nesse projeto político de inclusão, a raça seria um fator de mobilização e coesão, e não de segregação, como vista e sentida no dia a dia. Agindo no sentido de privilegiar a educação, a ação cultural e a participação política baseada no que poderíamos chamar hoje de voto étnico, suprapartidário, a Frente supriu carências imediatas de parte da população negra. Ainda surgirão muitos estudos sobre a Frente, muitos deles tentando desqualificá-la, mas os temas que pautou permanecem atuais.
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A GERAÇÃO DE JULHO DE 1978 MEMÓRIAS, LUTAS E SONHOS PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO (MNU), NAS ESCADARIAS DO TEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO, NA PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO, EM 07/07/1978. ESTA FOTO FOI CAPA DO JORNAL VERSUS, NA EDIÇÃO SOBRE O MNU. NO MEGAFONE, MILTON BARBOSA, MILITANTE FUNDADOR DO MNU.
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©ROSA GAUDITANO/STUDIOR
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A GERAÇÃO DE JULHO DE 1978 memórias, lutas e sonhos
MANIFESTAÇÃO NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, NA PRAÇA DA SÉ, EM 20/11/1979. NO CENTRO, NELSON TRIUNFO, LADEADO PELO PROF. EDUARDO OLIVEIRA, GERALDO POTIGUAR E JOSÉ ADÃO. ©ENNIO BRAUNS/FOTO&GRAFIA
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os anos 1970, jovens negros começam a se reagrupar em torno do Clube Coimbra, na avenida São João, nos encontros do viaduto do Chá, nas atividades culturais do bairro do Bixiga e em muitos lugares da capital e interior de São Paulo. Entre esses jovens, a exemplo do que acontecia em outras partes do país, havia a preocupação com a retomada da própria identidade étnico-político-cultural, há muito desvalorizada pelo mito da democracia racial da ditadura civil-militar de 1964. Com isso, as péssimas condições de vida da população negra se ampliaram com o “milagre brasileiro”. À época, organizações negras como Cecan, Feconezu, Cadernos Negros, bailes black, resenhas poéticas e outras vivências da
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juventude negra na periferia de São Paulo ganharam força com sua base popular. Também aumentaran o convívio em escolas de samba e terreiros de candomblé. Toda efervescência cultural vivida tinha um novo propósito político: descobrir a negritude, assumir-se com orgulho e se lançar aos protestos contra a condição de cidadão e cidadã de segunda classe. O Cecan, como apresenta Joana Ferreira da Silva em seu texto a seguir, foi uma das primeiras organizações negras paulistas a se reestruturar para uma missão social, cultural e política. Sua sede, localizada no bairro do Bixiga, ficava na rua Maria José, 450, Bela Vista, em São Paulo. Fundada em 1971, passou por diferentes fases de estruturação até 1981, sempre com as portas abertas para a juventude negra, suas lideranças, a cultura negra e a luta de combate ao racismo.
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A MULTIPLICIDADE DE EXPRESSÕES E A CONSCIÊNCIA NEGRA A REORGANIZAÇÃO DO CECAN
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO a resistência nas ruas
JOANA FERREIRA DA SILVA*
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N *UMA DAS GRANDES LÍDERES DO MOVIMENTO NEGRO FEMINISTA. FORMADA EM HISTÓRIA E FILOSOFIA, DOUTORA EM ANTROPOLOGIA POLÍTICA, FOI PROFESSORA, ATIVISTA E POLÍTICA. TEXTO ADAPTADO DO LIVRO CENTRO DE CULTURA E ARTE NEGRA (CECAN), SÃO PAULO: SELO NEGRO, 2012.
a fase de reorganização do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), logo após o autoexílio político de Tereza Santos, a sua coordenadora, em meados de 1976 iniciam-se articulações para a reorganização de suas atividades, por meio do seu vice-presidente, Odacir de Mattos. Este acreditava que o Cecan seria o espaço adequado para uma atuação voltada à consciência negra. Era preciso, então, como dizia Odacir Mattos, valorizar todos os nossos padrões estéticos, morais e físicos: enfim, tudo que consideramos importante. Toda ação de uma pessoa, conscientemente ou não, baseia-se nos conceitos que ela tem de si mesma. O negro precisa formar sua autoimagem
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sem medo da crítica de outros grupos sociais e sem se preocupar com a aceitação ou não do negro – como realmente somos – por parte dos outros1. Odacir de Mattos retomou as atividades no Cecan, nessa segunda fase, enfatizando o peso da colonização cultural como um dos fatores determinantes para a distorção da imagem e da consciência negra. Além do mais, ele apontava o perigo da folclorização da cultura negra, propondo uma recuperação dos valores negros, criticamente, para se alcançar uma consciência e uma autoimagem positiva do negro. A partir de então, o Cecan passa a ter como finalidade a pesquisa de todo o tipo de cultura e, em particular, a cultura negra; a promoção de cursos, 1. O. Mattos, Comunicação apresentada no “Simpósio Educação e descolonização cultural”. In: Estudos Afro-Asiáticos, p. 93-4.
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seminários e conferências de cunho cultural dentro ou fora dos assuntos afro-brasileiros; o trabalho pelo desenvolvimento intelectual, cultural, cívico e moral dos sócios; a realização de atividades artísticas, culturais, sociais e desportivas, em todas as suas manifestações: o intercâmbio sociocultural entre o Brasil, os países africanos e demais, onde haja a influência da cultura negra; relações culturais com a Société Africaine de Culture (SAC) e entidade americana congênere; a representação junto aos poderes constituídos: lutar pelo maior prestígio da cultura negra e da nobre missão de representar; reconhecimento e desenvolvimento do espírito de irmandade entre os indivíduos de qualquer raça, respeitando as normas dos direitos da pessoa humana, bem como os princípios espiritualistas e democráticos que fundamentam a organização2. Em relação ao primeiro estatuto, há uma ampliação nas finalidades do centro, com referência explícita à cultura negra e assuntos afro-brasileiros: o intercâmbio entre Brasil, os países africanos e outros onde houver influência da cultura negra; as relações culturais com a Société Africaine de Culture e entidades congêneres americanas; a definição do Cecan 2. Estatuto do Centro de Cultura e Arte Negra, p. 2.
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como órgão representativo de pesquisadores amadores da cultura negra não apareciam no estatuto anterior. Outro aspecto é a manutenção do artigo pela não participação da entidade em qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, apesar do início da abertura política, e a não promoção ou apoio a atividades desta natureza. O fato de ampliarem suas finalidades deve-se a uma mobilização maior do negro. Isso era possível, naquele período, por causa do início da abertura política. Ora, isso não ocorria em 1971, época de seu primeiro estatuto, quando a repressão alcançava seu ápice. A referência explícita à cultura negra é provável fruto do momento vivido pelo Movimento Negro, quando foi colocada a necessidade de recuperação das raízes negras para a criação de uma identidade e a percepção de que a cultura desempenharia um papel fundamental no processo da constituição dessa identidade étnica. No primeiro momento, havia a preocupação de um trabalho também voltado para a conscientização do branco quanto à questão racial negra; e nesse segundo momento, parece prevalecer a ideia de atuação voltada somente para o interior da comunidade negra.
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Em entrevista, uma militante afirmou que para o Cecan
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era um momento de recuperar os grupos culturais e tidos como folclóricos, para mostrar que o negro era mais do que aquilo que era mostrado, visualizado. Ele se voltava mais para dentro, para atingir a comunidade negra, não para atingir a comunidade branca. Aliás, ‘branco não entra’, porque toda vez que o branco chegava às reuniões, vinha dizendo o que tínhamos que fazer, e não para deixar que a gente fizesse como achasse melhor...3.
adolescência dos bairros Bela Vista e Ipiranga. Na década de 1960, eles juntavam-se no centro de São Paulo, entre a praça da República e o viaduto do Chá, um ponto de encontro dos negros paulistanos. Reuniam-se para discutir questões diversas, desde informação sobre festas negras até problemas do dia a dia. Esses amigos reencontraram-se na Universidade de São Paulo (USP) e juntaram-se a outros estudantes negros que discutiam e refletiam sobre a problemática racial no espaço universitário e editavam o jornal mimeografado Árvore das Palavras, versando sobre o mesmo tema4.
O grupo que reiniciou as atividades no Cecan caracterizava-se por já trazer experiência de militância; alguns no Movimento Negro, mais especificamente na Associação Cultural do Negro, citada anteriormente, e no Grupo Decisão, outros na organização de esquerda Liga Operária. Observa-se que apenas um membro havia participado da diretoria passada do Cecan, como vice-presidente, mas sem uma intervenção concreta nos trabalhos do departamento teatral.
Esse pequeno grupo, almejando atingir um maior número de negros, saiu do circuito universitário, indo participar da Escola de Samba Vai-Vai. Seus componentes encabeçaram um movimento para a realização da primeira eleição para a diretoria da escola, participando com uma chapa de oposição. Perderam, mas conseguiram formar uma ala, chamada “Ala do Cala Boca”, composta por cerca de 60 pessoas, que saíam a desfilar com fantasias mais artesanais e com uma temática afro.
Segundo um dos militantes, o “Grupo Decisão é originário de um grupo de amigos de
O grupo preocupava-se e refletia acerca dos espaços negros, sua folclorização e sua invasão
3. Entrevista com Maria Lucia da Silva, tesoureira do Cecan, em 27/08/1990.
4. Entrevista com Milton Barbosa, vice-presidente do Cecan, em 17/04/1991.
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por intelectuais e pessoas da classe média branca. É desse momento o contato com uma pesquisadora negra norte-americana, Angela Guillen, que realizava estudos sobre o papel da língua, especificamente da gíria, no processo de resistência negra. Ela influiu, de forma bastante acentuada, sobre o grupo, ao trazer muitas informações sobre o Movimento Negro americano. O grupo via no seu comportamento uma semelhança com o ativismo de Ângela Davis, também militante negra norte-americana. Em relação à cultura negra, um militante afirma que “entendiam que ela garantiu a sobrevivência do negro enquanto grupo étnico, e tínhamos que resgatá-la, indo contra a folclorização e passando, por meio de um trabalho, à ideia de cultura negra dentro de uma visão histórica, filosófica e de defesa do grupo. Nessa perspectiva, acreditávamos estar buscando o ego rompido pelo colonizador”. Ainda, segundo outro militante, “tínhamos que recriar o que nós chamávamos de linguagem negra e definir uma identidade, o que é ser negro. Além da ideia de cultura negra como sendo aquilo que foi folclorizado – alimentação, música, dança, religião etc. –, começaram a surgir outras coisas que para nós seriam também consideradas como cultura negra: a produção de livros, de jornais, de
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uma arte plástica feita por negros e, na maioria das vezes, com uma temática negra”5. Após as atividades na Escola de Samba VaiVai, são iniciados contatos com outros grupos: Grupo Evolução – de Campinas –, que atuava como grupo teatral; Negros do Bairro Casa Verde, vinculados ao poeta Solano Trindade, e que se encontravam todos os domingos na praça da República – na feira de artesanato; alguns para vender os seus produtos artísticos, outros para conversar sobre problemas raciais – e Casa da Cultura e Progresso (Cacupro), existente no bairro Ipiranga. Todos participam da campanha política de um candidato negro – Milton Santos – para deputado estadual pelo MDB. No processo de conhecimento sobre o que ocorria no nível das discussões sobre a questão racial e do Movimento Negro, o grupo foi convidado a dar continuidade ao Centro de Cultura e Arte Negra. Os outros membros que dirigiram o Cecan conheceram-se em eventos negros, que ocorriam na cidade, pois, além da reativação do Cecan, 5. Entrevista com Rafael Pinto, organizador do segundo momento do Cecan, em 23/01/1991.
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os anos pós-1975 podem ser tomados como parâmetro de crescimento dos eventos e grupos, na capital e interior. É desse período, por exemplo, o Grupo de Divulgação da Arte e Cultura Negra (Gana) de Araraquara; o Teatro Zumbi de Santos, o Grupo Rebu, posteriormente chamado Congada de São Carlos e o Grupo Vissungo de São Paulo. A I Semana do Negro na Arte e na Cultura é realizada em maio de 1975; o I Encontro de Entidades Negras de São Paulo, Rio de Janeiro e ex-Guanabara, no início de 1976, e os II e III Encontros, no Rio de Janeiro e São Carlos, respectivamente 6.
Em 1970, a população foi criando formas políticas de repúdio ao autoritarismo e conquistando espaços para suas reivindicações: Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Movimento contra a Carestia e Movimento do Custo de Vida podem ser vistos como antecessores de organizações voltadas para formas específicas de exploração, dominação e discriminação, (...) tais como movimento operário, sindical, de mulheres, negros, homossexuais, sendo que estes últimos (...) trouxeram ao conhecimento da sociedade outros domínios onde grupos e indivíduos são igualmente discriminados 7.
Fatores de ordem econômica, social e política contribuíram para o crescimento dessas entidades e grupos negros. O período pós-1975 marcou o começo da reorganização da sociedade civil no interior do processo de abertura política, retomando valores democráticos. Em São Paulo, estudantes, operários, grupos de reivindicações da periferia, mulheres e homossexuais organizamse e saem às ruas para protestar e reivindicar melhores condições de vida e o fim da repressão e da discriminação, num momento que ainda guardava vestígios da repressão político-militar.
Entretanto, a tradição organizadora dos negros é um fator relevante, pois foi por meio dela que, historicamente, o negro evitou sua destruição social, cultural e biológica. Além disso, a influência de um contexto internacional relativo à luta do negro no mundo – seja nos países africanos colonizados, seja na luta do negro americano por seus direitos civis – contribuiu para um aumento substantivo das entidades negras.
6. Maria Ercília do Nascimento. A estratégia da desigualdade: o movimento negro dos anos setenta, dissertação (mestrado), PUC São Paulo, 1989, p. 93.
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Os integrantes do Cecan, após a realização de várias reuniões, decidiram organizar um ciclo de debates. A ideia era o resgate do trabalho dos 7. Ibid., p. 100-1.
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velhos militantes, pessoas do mundo do samba e religiosos do candomblé. O intuito era ouvir as experiências dos mais velhos, refletir sobre elas, tentar fazer avançar a luta e, ao mesmo tempo, exercitar e vivenciar uma tradição da cultura africana, o griot, o contador de histórias, aquele que mantém viva a tradição, os costumes e, fundamentalmente, a história do grupo. O ciclo de depoimentos “O negro e suas associações”8 realizou-se de 5 de junho a 3 de julho de 1976, como promoção do Cecan e do Grêmio Recreativo, Esportivo e Cultural Coimbra, na sede deste último 9. Nesse mesmo ano, houve no Coimbra a conferência do professor de Ciência Política da Universidade de Princenton, Michael Mitchel – brasilianista negro, com o tema “Movimento Negro Americano na década de setenta”, evento realizado pelo Cecan. 8. A programação contou com a presença de Geraldo Filme – compositor da Escola de Samba Paulistano da Glória; Altair Silva – presidente do Coimbra; Raul Joviano do Amaral – da Imprensa Negra do passado; Henrique Cunha – ex-presidente da Associação Cultural do Negro; Caio Aranha – babalorixá do Achê Ilé Obá; José Jambo Filho (Chiclet) – presidente do Grêmio Recreativo e Cultura Escola de Samba Vai-Vai; Alberto Alves da Silva (seu Nenê) – presidente do G.R. Escola de Samba Nenê de Vila Matilde; Iracema de Almeida – presidente do Grupo de Trabalho e Profissionais Liberais Universitários Negros (Gtpun); Sebastião Francisco da Costa – presidente da Associação Cristã Brasileira Beneficência; Inocêncio Tobias – presidente do GRE de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco; Ana Florêncio Romão – presidente da Casa de Cultura Afro-Brasileira; Francisco Lucrécio – ex-participante da extinta Frente Negra Brasileira; Wilson Antonio Reginaldo – pai pequeno da Tenda Espírita de Candomblé Cabana Eruiá; José Correia Leite e Jayme Aguiar – das extintas Associação Cultural do Negro e do Jornal Clarim da Alvorada; Odacir de Mattos – presidente do Centro de Cultura e Arte Negra. 9. A sede localizava-se na av. São João, 1.143, 2° andar, Centro.
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Em 1977, em função do grande número de negros que o Cecan aglutinava, seus organizadores decidem alugar uma sede social10. Esse fato pode ser considerado um marco na sua história, pois, a partir da sede social, transforma-se num ponto de referência e num espaço aglutinador de uma heterogeneidade de negros: desde aqueles que já tinham um passado de militância no Movimento Negro e outras organizações políticas até aqueles que iniciavam sua militância e que, pela primeira vez, tinham contato com uma organização negra. Havia, ainda, aqueles que estavam desejosos de congregar, mas que buscavam algo mais do que as escolas de samba e entidades negras recreativas ofereciam. Enfim, todos os negros interessados e sensibilizados pela questão racial acorreram ao Cecan para usufruir das atividades e/ou participar dos trabalhos e de suas organizações. Naquele momento, o Cecan era a única organização negra, com proposta diferenciada das outras, a ter uma sede social. Reunidos em assembleia geral em 29 de julho de 1977, definiram a reestruturação da diretoria, em que foram eleitos Odacir de Mattos, presidente; Milton Barbosa, vicepresidente; Isidoro Telles de Souza, secretáriogeral; e Maria Lúcia da Silva, tesoureira. 10. A sede do Cecan fivaca na rua Maria José, 450, Bela Vista.
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O FESTIVAL COMUNITÁRIO NEGRO ZUMBI (FECONEZU)
REUNIÃO DE QUILOMBOS E QUILOMBOLAS
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LUIZ FERNANDO COSTA DE ANDRADE*
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O 1º Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu) tem por objetivo finalizar as comemorações em homenagem aos 283 anos da morte de Zumbi. É um trabalho promovido pela Federação de Entidades Afrobrasileiras do Estado de São Paulo (FEABESP), organizado e patrocinado por entidades afro-brasileiras. A proposta é que o Feconezu seja realizado anualmente, em cidades diferentes e sob a responsabilidade das entidades locais. O 1º Feconezu será realizado na cidade de Araraquara (SP), sob a responsabilidade do Grupo de Divulgação e Arte e Cultura Negra (Gana). Contamos com a sua presença e participação. Local: Gigantão – Araraquara (Jornegro, ano 1, n. 5, nov. 1978).
*COORDENADOR EXECUTIVO DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL DA PREFEITURA DE ARARAQUARA TEXTO ADAPTADO DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO O MOVIMENTO NEGRO E A CULTURA POLÍTICA NO BRASIL (19781988): O CASO DE SÃO PAULO, UFSCAR, SÃO CARLOS, 2016.
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entre as iniciativas organizativas do Movimento Negro contemporâneo paulista, o Feconezu11 foi talvez o que mais se preocupou com o alcance e a coletivização da cultura negra e dos valores mais fundamentais associados a essa noção de cultura, especialmente em sua dimensão popular. O Feconezu completa quarenta anos, mas as palavras e ideias aqui registradas são alusivas ao estudo da primeira década da sua organização. O festival foi marcado pela reunião de vários membros e entidades que trabalhavam com cultura no estado de São Paulo, principalmente com práticas teatrais, tradicionais, populares e musicais. Uma peculiaridade, ele apenas ocorreu em cidades do interior do estado e, de modo itinerante, ano a ano realizava encontros em uma nova cidade, com vista a inserir, nos municípios onde os encontros ocorriam, 11. Evento itinerante que por mais de quatro décadas percorre as cidades do interior paulista. Acontece no mês de novembro, cada ano em uma cidade do interior para homenagear a data nacional – Dia 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. O festival surgiu em 1978, ano de grande efervescência cultural e política entre ativistas antirracistas da capital e interior de São Paulo. Promove e difunde a cultura e a arte negra, atividade esportiva, lúdica infantil, conferência e debate, desfile de moda e beleza negra. As atividades se encerram com um grande baile, onde predominam os vários estilos de música negra.
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discussões sobre a questão étnico-racial, associando aspectos culturais, sociais e políticos, ainda que a ideia de “comemoração” fosse a maior divulgadora do encontro. A ideia fundamental era fortalecer e “plantar sementes” em cidades onde as organizações eram incipientes, visando à realização do debate étnico-racial, ao mesmo tempo em que se vivenciariam, na prática, aquelas ideias e questões na construção do Festival e, principalmente, nos dias de sua realização. A autointitulação “Organização Quilombola” e a frase que caracteriza a iniciativa – “O melhor do Feconezu é sua gente” – oferecem a leitura do caráter popular dessa organização, dos valores então muito em voga de recuperação do quilombo como referência e fundamento para se pensar a coletividade, e de Zumbi dos Palmares como símbolo e inspiração. Principalmente em sua primeira década de ocorrência, o Festival, originalmente pensado como um momento de confraternização em homenagem a Zumbi dos Palmares no seu aniversário de morte, foi ganhando relevância como foro de troca de experiências, ideias e debates acalorados, promovendo novos espaços de formação tanto de pessoas não alinhadas
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a debates teóricos ou políticos, quanto de militantes já em atividade e de grupos importantes como o Quilombhoje, MNU, Grupo Negro da PUC, Vissungo/SP e diversas entidades e associações político-culturais do interior de São Paulo.
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Encontramos em uma das edições do Jornegro relatos da experiência construída em torno da proposta do Festival com os preparativos do 3º Feconezu, realizado na cidade de São Carlos (SP) em 1980. O 3º Feconezu contou ainda com um registro muito especial. No documentário Ôrí – uma produção de Raquel Gerber, texto e narração de Beatriz Nascimento –, lançado em 1989, temos cenas e discussões de grande densidade que ilustram situações que auxiliam no entendimento e na caracterização do Feconezu, sendo o Ôrí um dos principais registros fílmicos do Movimento Negro Brasileiro entre as décadas de 1970 e 1980. O Feconezu, por seu alcance e sua pluralidade, propicia que existam diversas e diferentes narrativas sobre sua história e memória. Não é incomum conhecer pessoas que se entenderam e reconheceram positivamente como negras nos encontros do Festival Comunitário Negro Zumbi.
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Parte da intelectualidade e da militância negra histórica, ou mesmo mais recente, tem e teve avaliações distintas do Feconezu, e o ponto central dessas avaliações encontra amparo em uma “falsa dicotomia” entre cultura e política. Se à época a questão poderia ser dividida entre aquelas e aqueles que entendiam a “via política”, ou a “via cultural”, como principal bandeira para a luta dos negros no Brasil, hoje se tem maior adesão à ideia de que tais dimensões são indissociáveis, e que o combate ao racismo precisa ser feito em todas as frentes, entendendo que, na maioria das vezes, uma dimensão da questão favorece os debates da outra, e vice-versa. Três ideias sintetizam um tipo de sentimento particular sobre a importância do Feconezu, mas que certamente vão ao encontro de muitos outros sentimentos particulares. A primeira frase é: “Muitos querem ser Zumbis, poucos querem ser quilombolas”. A outra é pensar o significado da frase “(Re)Viver Palmares”, diante dos velhos e novos desafios, e dos absurdos do século XXI. E, por último, a frase: “O melhor do Feconezu é sua gente”. Parecenos que o pensamento emblemático subjacente às frases é que apenas juntos podemos entender e apreciar, de fato, o Feconezu.
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CADERNOS NEGROS,
A HERANÇA AFRO-LITERÁRIA ESMERALDA RIBEIRO*
*ESCRITORA, PESQUISADORA DA LITERATURA DA MULHER NEGRA E ORGANIZADORA DOS CADERNOS NEGROS.
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m primeiro lugar, é preciso registrar na história do Movimento Negro Brasileiro que o território do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), criado e recriado nos anos 1970, faz parte da história dos Cadernos Negros porque foi o lugar que abrigou muitos dos nossos e um local muito frequentado por lideranças do Movimento Negro. Cadernos Negros é uma herança afro- -literária recebida desde o volume 21 – Poemas. E a história da antologia está sempre às voltas com poemas. Nós, os herdeiros, Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, sabemos que tudo começou em 1978, quando surgiu o primeiro volume da série. Uma saga de oito poetas que dividiam os custos do livro, as tarefas da publicação no formato de bolso e 52 páginas. A publicação foi vendida, principalmente, no dia
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do lançamento. Grande lançamento. Posteriormente, circulou de mão em mão, haja vista as dificuldades de distribuição nas livrarias. O retorno foi expressivo e animou os poetas e as poetisas fundadoras. Desde então, ininterruptamente, foram lançados novos volumes – um por ano – alternando poemas e contos com diversos estilos. A distribuição aperfeiçoou-se. Surgiram mais e mais escritoras e escritores, de vários estados do Brasil, interessados em publicar nos Cadernos Negros. É preciso reconhecer que não existe outra antologia com publicação regular e exclusiva de autoria afrobrasileira dada à falta de incentivo à literatura desse tipo. Conquistamos visibilidade e garantimos a permanência dos Cadernos Negros, um feito importante para o fortalecimento da literatura negra. Atualmente, é
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uma referência didática nacional para a educação antirracista, é fonte de pesquisa para os ensaios, teses e estudos diversos dos estudantes de letras, pesquisadores e educadores de todas as áreas e níveis educacionais.
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Os Cadernos Negros, por sua estética diferenciada ou sua função social de fazer valer a resistência e o protagonismo cultural, inegavelmente se destacam e proporcionam oportunidade para que a criação literária dos descendentes de africanos se torne sujeito e objeto da própria escrita, enriquecendo a reflexão sobre o racismo, estimulando o debate a respeito da questão racial e novos caminhos para a cultura brasileira. É um tipo especial de literatura, que respondeu satisfatoriamente a uma demanda reprimida no mercado editorial brasileiro. O seu nome tornouse uma marca editorial da consciência negra, cujo alcance vai além dos limites da distribuição e venda de livros. A maior comercialização ocorre, anualmente, no dia do lançamento de cada volume. Um evento que há quarenta anos vem marcando o calendário da cidade de São Paulo no mês da consciência negra (novembro) e às vezes se estende ao mês de dezembro, já chegou a reunir cerca de duas mil pessoas para assistir às performances poético-dramáticas e espetáculos de dança.
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A responsabilidade editorial é do coletivo Quilombhoje12. Desde a fundação (1978), o grupo organiza de forma coletiva e cooperativada participação, colaboração e recursos entre os autores de cada volume. Uma forma criativa e responsável para superar as barreiras e dificuldades do mercado editorial. A cada ano, a idade cronológica dos Cadernos avança. Estamos no volume 40. Que venham mais e mais volumes. Parabéns pra nós. O tempo passa. Renovamos e continuamos na resistência! EU JURO Quando for condicional o racismo acabar sem ser atemporal juro, com todas as letras, escreverei poemas sobre flores falarei de países visitados riscarei poemas de negritude serão poemas sitiados vetarei militância poética tomarei atitude minhas novelas com enredo de novelas globais 12. Ver mais informação no site: www.quilombhoje.com.br. Contatos: quilombhoje@gmail.com e Quilombhoje Literatura (Facebook).
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assim você contemplará a branquitude dos meus versos juro, com todas as letras, terei o cuidado de revisar meus pensamentos nunca usar em vão a palavra negritude etecetera e tal no capítulo da minha nova escrita serei mulher e ponto agora você pode me ler nas páginas brancas do meu livro quando for condicional e nossos jovens negros envelhecerem entre nós quando o feminicídio deixar a vida da negra mulher quando outros índices negativos deixarem as nossas vidas agora você pode me ler nas páginas brancas do meu livro poesias sobre paz, perdão, amor, amor, amor até que você sufoque nas minhas paixões Mas... Enquanto ainda ecoar em nossos corações a pergunta: “Quantos mais precisarão morrer?”. Não dá pra jurar com todas as letras não dá pra cumprir a literária promessa porque aqui tem muitos “coisas e coisos” ainda vou ficar na minha pegada, na poética vou eternizar Marielle Franco e nos meus negros versos reforço
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a pergunta de Marielle: “Quantos mais precisarão morrer?”. “Quantos mais precisarão morrer?”. “Quantos mais precisarão morrer?”.
Esmeralda Ribeiro para a vereadora Marielle Franco, in memoriam13 13. Poema em homenagem a Marielle Franco, vereadora negra do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que foi a quinta mais votada nas eleições municipais de 2016, no Rio de Janeiro. Assassinada no dia 14 de março de 2018, no Estácio, no centro do Rio de Janeiro. A citação entre aspas era um dos questionamentos da vereadora.
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PONTOS DE ENCONTRO DA JUVENTUDE NEGRA PAULO RAFAEL DA SILVA*
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*HISTORIADOR E EDUCADOR SOCIAL E COAUTOR DO LIVRO ALMAS DA LIBERDADE, SÃO PAULO: AQUARELA BRASILEIRA LIVROS, 2018.
Na trilha da geração de julho de 1978 havia muitos pontos de encontros, lugares onde a juventude negra começava a se reagrupar em torno dos bailes, das amizades na periferia, na escola, na universidade e na agitação política. Tudo deixa muita saudade e boas lembranças, guardadas nas crônicas de Paulo Rafael da Silva.
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MÃO NA VITROLA, DETALHE DO ENSAIO DO FOTÓGRAFO “BAILE DO LU”, TRADICIONAL EVENTO DE MÚSICA NEGRA NA ZONA LESTE DA CIDADE DE SÃO PAULO. ©JUVENAL PEREIRA
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“QUERO VER VOCÊ NO BAILE” Quando Maria Aparecida Pinto Silva, doutora em Antropologia pela PUC-SP, saiu colhendo dados para sua tese de mestrado Visibilidade e respeitabilidade – memória e luta dos negros nas associações culturais e recreativas de São Paulo (19301968), não imaginava que a luta dos entrevistados fosse tão intensa para conseguir um espaço de lazer para a população negra. Com espaços de encontro limitados, esses negros, que na época tinham o centro da cidade como eixo especificamente a igreja da Mãe Preta no largo Paiçandu frequentemente eram expulsos pela polícia e proibidos de participarem de bailes promovidos pela população branca.
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Criaram-se, então, propostas de aglutinação em lugares específicos para a comunidade negra, como proteção das agressões e expulsões, quando foram fundadas as associações culturais como os Clubes Aristocrata, Coimbra, Royal, Evoluídos, Associação Cultural dos Negros, entre outros. O que talvez esses fundadores não imaginavam era que essa ideia de aglutinação fosse se estender até os dias atuais. No final da década de 1960, um jovem office boy, Luís Antônio Peters (Lu), que nos finais de semana ouvia música e dançava no morro vermelho (Cidade Patriarca), alugou um salão abandonado chamado Chico Fumaça para juntar amigos e promover tardes dançantes. Lu já começa a ser fruto da ousadia dos “nêgos velhos” do Aristocrata e frequentar também bailes nas periferias em outros salões, como Guilherme Giorgi, União Tatuapé, Cruz da Esperança, ao som de Eduardo, Amauri, Paulinho Sorriso ou Zezinho, famosos discotecários da época. Para saber onde seria o encontro semanal, os participantes iam todas as segundas-feiras, com sua melhor roupa, à igreja das Almas, na Liberdade, em busca de circulares (convites) distribuídas pelos divulgadores dos bailes.
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Depois disso, tinha outro encontro na estação Brás, no último vagão no trem das 6h50, fazendo o boca a boca (promoção dos eventos) para garantir companhia com as pretinhas bonitas, assíduas frequentadoras do vagão. Paralelo a esses circuitos, às sextas-feiras, o viaduto do Chá (em frente ao antigo Mappin), galerias da rua 24 de Maio e o largo São Bento serviam de ponto de divulgação. A boa estética era fundamental para não ir sozinho ao baile. Que tempo bom que não volta nunca mais (Thaíde & DJ Hum). Esses encontros expandiam-se pelas periferias paulistanas, na zona norte a fervança era forte, como diz Manoel José, consultor de imóveis conhecido como Zuzu, ou Michael, em virtude de seu visual da década de 1970, que, segundo os amigos, era parecido com o do cantor Michael Jackson. Zuzu, frequentador de bailes caseiros, ficava encostado nos muros olhando os mais velhos dançarem. “Começamos a preparar nosso visual, fazer cabelo black e a partir daí fomos para os Clubes”. Depois, como frequentadores do centro, foram se juntando às grandes equipes de baile, o
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Chic Show, a Musicália e companhias como a Company Soul, Zimbabwe, Black Mad e Soul Train. A partir daí, as referências eram os clips musicais, e não mais os muros das casas.
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Equipes como a Chic Show traziam alguns músicos como atração no Palmeiras, conta Zuzu, fato confirmado pela pesquisadora Maria Aparecida como um momento de formação de vínculos e congraçamento entre pessoas de vários lugares. Essa tradição já vinha acompanhando uma sequência histórica, estava aí mais uma vez a ousadia dos fundadores do Aristocrata, Coimbra etc. A língua era a mesma dos outros bailes, e os negros frequentadores acabavam casando entre si. Nos bailes do Chic Show, por exemplo, a frequência era de 10 mil pessoas aproximadamente, sempre divulgados no boca a boca, lambe-lambe (divulgação de cartazes nos muros) nas galerias da 24 de maio e arredores no centro da cidade. Cada equipe de baile tinha sua coreografia. Às vezes havia competição nos salões, feito a Black-Mad x Zimbábue, Company Soul x Soul Train etc.
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Segundo Zuzu, os ensaios das coreografias nas casas dos componentes dos grupos era uma constante. Éramos considerados os bailarinos da época e tínhamos que ter um diferencial no visual, usávamos pisantes (sapatos com sola de couro) feitos no Isaac, sapateiro exclusivo, calças boca de sino, batas africanas e sempre havia alguém que queria se destacar mais. Na década de 1970, fomos convidados para dançar na TV Tupi, no programa Almoço com as Estrelas e no Clube dos Artistas, comandados por Ailton e Lolita Rodrigues. Passamos a ser considerados celebridades e disputados pelas mulheres. A questão da estética visual sempre foi fundamental para ser destaque e mexer com a autoestima dos jovens negros, fato esse comprovado por Carlos Dafé e Lula Barretos, músicos cariocas que com frequência eram convidados para animarem shows em salões de São Paulo. Carlos Dafé era um dos preferidos da Chic Show, junto com Tim Maia, Jorge Ben (na época) hoje Benjor, Simonal, Luiz Wagner e Bebeto. Segundo Dafé, essa fusão do funk carioca, na época encampado pela Banda Black Rio, Tim
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Maia, Toni Bizarro, mais o som do Samba Rock paulistano, teve que sobreviver ao momento político brasileiro, ou seja, a ditadura militar. Os negros bem vestidos incomodavam. Debatia-se muito sobre o fortalecimento da negritude com o Black is Beautiful. Conseguimos entrar pela brecha nos meios de comunicação, não pela porta da frente. “Quando a gente olhava do palco, diz Dafé, dava um prazer enorme ver os negros elegantes. Passamos a nos admirar cada vez mais”. Essa composição musical de Dafé, Originais do Samba, Tim Maia, Banda Black Rio, Bebeto e Trio Mocotó fez com que Luiz Antônio de Campos (Biló), funileiro e soldador, comprasse duas caixas e um amplificador e começasse a ser conhecido como discotecário. Sua coleção chega hoje a mais de mil LPs, dentre os quais os clássicos Jackson Five, Jonny Rivers, Marvin Gaye, Al Green, Renato e seus Blue Caps, Trio Esperança, Bebeto, Roberto Ribeiro e outros. Biló já deu baile no salão do Chico Fumaça, na Sociedade da Vila Carrão Royal Club, e foi grande atração como discotecário no Baile do Lu.
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Com uma longa experiência de décadas, não usa fone de ouvido, sempre acerta a música na faixa que quer tocar. Tem uma admiração muito grande por seu pai, sr. Arlindo de Campos, pois com ele começou a gostar de festa para “aliviar o sofrimento”. Biló diz que, sem festa, fica faltando algo em sua vida. E, como já dizia Bebeto, Segura a Nega, viu?
HAMILTON BERNARDES CARDOSO Hamilton veio da periferia, estudou no centro da cidade, se formou em Jornalismo e aprendeu que o negro é a soma de todas as cores, mas não é colorido. Da mesma forma que a democracia racial beneficiará não só os negros, mas a todos os cidadãos de uma sociedade pluriétnica e multirracial, poetizou: Todos os seres humanos nascem iguais e livres. Crescem e são discriminados, distinguindo-se por causa de raça, sexo, religião e todas as índoles que diferenciam um indivíduo do outro!
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Hamilton andou, como poucos, atrás de justiça e igualdade perante os seus. Subiu escadas, participou da formação do MNU com Milton Barbosa, Abdias Nascimento, Majô, entre outros.
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Outro registro importante foi feito por Raquel Gerber através do filme Ôrí, narrado por Beatriz Nascimento. Hamilton atuou como jornalista no jornal Versus (AfroLatino-América), Diário Popular e SBT, sendo nesta última empresa o primeiro repórter negro. Escreveu junto a Vanderlei José Maria, Neusa Barbosa e tantos outros pensadores e pensadoras negras, que se tornaram referências para uma parte da população. Já no diário Folha de S.Paulo deixou sua indignação ao descrever o ataque americano contra um hospital psiquiátrico em Granada, país com ideias socialistas. Relatou as agruras da FEBEM e da casa de detenção, época em que Neninho, liderança negra, estava preso. Também registrou a morte de Robson Silveira, morador de Guaianases que pegou um cacho de bananas do caminhão de um feirante. Vinha de um baile black, foi preso, levado à delegacia e morto num pau de arara.
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Cerimônia para um negro assassinado foi o título da matéria. Escreveu também sobre Margarida Maria, mulher, negra periférica, que morreu jogando bola com amigos. Negra tem que morrer era o título desse outro artigo. Para os filhos, Hamilton também deixou mensagens: O menino preto dança com os bichos, o pato, o marreco, o ganso, o crocodilo. O menino preto é muito bonito, o beiço, o cabelo, a pele o seu estilo. O menino preto brinca com a chuva, ele ama a mata, sorri com o calor, ele não briga c’o rio. O menino preto brinca na calçada, ele vai na escola, estuda no livro, ele conta sua história. D’avó escuta a história, aprende c’o a vida.
Falava com orgulho de Amilcar e Diogo, mas também se culpava por suas ausências: “Não sei se sou pai. Pai é quem cria e divide com a vida que produziu o filho a elaboração do seu projeto de humanidade. Pai não é quem produz”.
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EM BUSCA DA MINHA NEGRITUDE Deolinda B. Cardoso (associada a meu pai Catiça) produziu minha negritude. Submetida às circunstâncias da cultura escravista foi e tem sido a sua guardiã. Cristina Barbosa (submetida à cultura senhorial) foi capaz de tolerá-la e compreender tolerando o meu direito a exercer minha liberdade Amilcar Maiela Cardoso e Diogo Almada (serão submetidos à humanidade e a consciência negra) As minhas, a eles expostas, serão questionadas. Toleradas ou não, condicionarão condicionadas às circunstâncias
Ndacaray Zulu Nguxli (Pseudônimo de Hamilton Bernardes Cardoso)
Enquanto raça, os negros, privados da condição humana básica, tornam-se fracos para exigir ou suportar o preço a ser pago pelos que resistem às imposições. Enquanto seres humanos que querem ser íntegros, para exercer sua liberdade têm que se submeter, como todos os seres humanos, a sua condição: a condição de seres humanos da raça negra. Beatriz Nascimento
HAMILTON CARDOSO, MILITANTE JORNALISTA, ESCRITOR E POETA, FUNDADOR DO MNU, DISCURSA NA PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO, CENTRO DE SÃO PAULO, NO ENCERRAMENTO DA PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979. ©ENNIO BRAUNS/FOTO&GRAFIA
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VANDERLEI, NEGRO FILÓSOFO
contribuído para discutirem num banquete regado a Platão, Sócrates, Hegel, Simone de Beauvoir, Sartre, Foucault, Kant etc.
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Levaram como contribuição ao banquete uspiano, além da sabedoria varzeana de seus mestres (Valter e Arlindo), filosofias de beira de campo, dentre elas a seguinte: “Quem se desloca tem preferência”.
VANDERLEI JOSÉ MARIA, MILITANTE FUNDADOR DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. ARQUIVO DE FAMÍLIA
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Vanderlei José Maria e Valter José Maria, negros e moradores da periferia, estudaram em escolas públicas e acompanharam um pouco das histórias varzeanas. Moravam próximos a um campo de futebol e vibravam quando o pai (Valter Pelé) e o tio (Arlindo) alegravam domingos coloridos ou cinzentos, com jogadas de mestres. Presenciaram conflitos, alegrias, tristezas, solidariedades, éticas, o que talvez tenha
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Vanderlei, no caso, se deslocava com uma pasta repleta de referências literárias como a de Aimé Césaire: “A saúde da literatura como escrita consiste em inventar um povo. Nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força. Há lugar para todos”. Também faziam parte das referências e da pasta, Marcus Garvey, Bob Marley, Patrice Lumumba, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Noêmia de Souza, Neusa Maria Pereira, Tereza Santos, Oswaldo Camargo, que cantava um louvor a Bene: “‘Canto Bene’, um negro errado, assinalado, morto fardado de pretidão”. Constavam na pasta ideias de Kabengele Munanga: “O racista não se limita apenas em querer impor ao outro sua visão no mundo, mas também em impedir-lhe o acesso quando se aproxima”.
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Passou por escolas públicas e de samba, onde se falava de Solano, Zumbi, Talismã, bailes blacks e utopias. Vanderlei corria com e contra o tempo, pois sua necessidade de justiça e igualdade de direitos era urgente. Visitava Lumumba em Campinas, conversava com Hamilton, Miltão, Adão, Leni, Maria Lucia. Palestrava em Febens, faculdades, penitenciárias, igrejas. Sim, tinha um sonho. Gostaria de ver construído o Parque Histórico Nacional do Zumbi, queria formar educadores que falassem da história afro- -brasileira, já na década de 1970. Apanhou como muitos, passou noites em delegacias como “suspeito” ou à procura de amigos “suspeitos”. Era ditadura. Nas palestras pelas Febens da vida, a constatação da teoria e prática. Abdias Nascimento, um de seus mestres, falava sobre o genocídio do povo negro, o que ajudava Vanderlei a refletir de perto essa cruel realidade.
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Na mesma pasta, carregava uma proposta de projeto para a criação de um Centro de Referência da Questão Racial. Uma das ideias era juntar a produção atual em torno da questão racial, de caráter acadêmico ou não, implementada principalmente por negros, com intuito de contribuir para a divulgação de novas ideias, subsidiando a intervenção do Movimento Negro na sociedade. Para facilitar o trabalho do Centro de Referência à Questão Racial, se fazia necessária a manutenção de uma estrutura básica de informatização e comunicação, composta por equipamentos como computador, fax, telefone, e fotocopiadora. Em sua pasta, Vanderlei guardava um texto escrito por ele com o título de “Domingo colorido”. Talvez esse colorido fosse como um daqueles da beira do campo, ou poderia ser cinzento. Em um dos parágrafos cita Hannah Arendt: “A mentira é a grande aliada do racismo. Serve para convencer todo um povo de que no seu meio existe um ‘inimigo objetivo’, cujo sangue pode degenerar a nação, devendo por isso ser excluído para que a sociedade possa crescer e se desenvolver”.
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Voltando ao começo da lista, ainda restava um poema na pasta: E está de pé a negrada A negrada arriada Inesperadamente de pé De pé no porão de pé nas cabines De pé na ponte de pé no vento De pé sob o sol De pé no sangue De pé E livre Aimé Césaire, Diário de um retorno ao país natal. Axé, Vanderlei e todos negros filósofos. Quem se desloca tem preferência.
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O CARTEIRO E O POETA José Adão de Oliveira, também conhecido como Adãozinho, nasceu em Vieiras, próximo à cidade de Muriaé, norte de Minas. Com sua família, ainda criança, aportou na vila Nhocuné, leste de Sampa, com aquela bagagem de retirante, repleta de roupas amassadas e coloridas e contendo sonhos ancestrais conduzidos por pai, mãe, avós e irmãos.
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Esses eram seus pedagogos, condutores de sabedoria. Bebendo dessa fonte, Adão fez seu trajeto por vielas, campos de futebol, dentre eles Negritude, que é perto da favela, e Palmeirinha da vila Nhocuné, próximo ao Negritude. Os irmãos Jadir e Jair, do MNU, eram cofundadores do Negritude Futebol e Samba. João Mata Gato era o ídolo do Paulistinha. Frequentou a igreja de Santa Tereza e por lá aprendeu, através das homilias de dom Angélico e dom Pedro Casaldáliga, a nada possuir, nada pedir, nada calar e sobretudo nada matar. Já nos terreiros lhe ensinaram o significado da palavra Ubuntu, aprendendo a somar forças e histórias, ficando “atento e forte”, como diziam os poetas. Adão começou a escrever e entregar cartas, alimentando sonhos e mantendo esperanças através da poesia. Gratidão é uma palavra Em meio à carta do sofrimento Que sobressai no baralho da vida Entrelaçando histórias na teia da aranha Mas onde está ela
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Se não entre as árvores e plantas Exemplificando o planejamento e a paciência Na obtenção do alimento Que pode ser bom ou ruim Segundo as doses de raiva ou ódio Que mais ou menos fluem Fluem em nós Podendo nos afastar do pódio Pódio da luz apontada pelo adoluminescente Que veio da periférica cidadezinha de Nazaré E perante os políticos e doutores da lei Compartilhou a essência da fé Afirmando que a cólera Não é o móvel do universo Pois pode se ter paciência E na hora dos conjuras Para se tecerem os encantos Mira-se o alvo E estabelecem-se estratégias de amor Para lá chegar a salvo Entendendo que elas são as energias da construção E ao mesmo tempo reparação
Dias atrás encontrei Adão sentado, lendo em voz alta, trechos do livro Cartas da prisão de Nelson Mandela. Madiba relatava na carta o agradecimento a um amigo com as seguintes palavras:
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Eu me senti realmente confortado pela tocante mensagem de condolências que você mandou por ocasião da morte de meu filho mais velho, Thembi. Tanto o texto de cartão de pêsames quanto os sentimentos que você registrou à mão junto ao texto impresso foram singularmente apropriados e contribuíram muito para me inspirar. Adão lembrou-se das cartas escritas aos jornais Movimento, Versus, Opinião, Jornegro, Mulherio, Lampião da Esquina e sonhou que todas essas cartas e poemas chegassem até o Hamilton, Vanderlei, Majô, Sônia Leite, Marielle, Edna e Faerman. Pós-cartas a serem entregues: para João Mata Gato, ídolo de negros na várzea, e Moa do Katendê, tocador de vida e de berimbau. Os dois não resistiram ao corte da faca. Última poesia, em forma de haikai. Marielle, presente. Bola e tantos outros Isto é Ubuntu
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A TURMA QUE BATIA LATINHA
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JANAINA ROCHA, MIRELLA DOMENICH E PATRICIA CASSEANO*
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por difundir o break no país. O cabelo estilo black power e o andar robótico são marcas de Nelsão, como é conhecido. No início da década de 1980, quando veio viver na capital paulista, seu comportamento causava estranhamento pelas ruas do centro da cidade. Muitas pessoas não entendiam o motivo pelo qual um homem alto e esguio caminhava com passos duros que, ao mesmo tempo em que eram pesados e marcados, levavam com eles a agilidade e a leveza da música. NELSON TRIUNFO, MÚSICO E PROMOTOR DE FESTAS E BAILES PARA JOVENS NEGROS. ©JUVENAL PEREIRA
*AUTORES DO LIVRO HIP HOP – A PERIFERIA GRITA. SÃO PAULO: EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2001, P. 45-55.
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O
hip hop demarcou outros pontos de encontros da juventude negra. Tudo começou com a turma que batia latinha e dançava break no centro da cidade de São Paulo. O fenômeno do rap no final dos anos 1990, deixou uma falsa impressão. Ao contrário do que muitas pessoas podem pensar, o hip hop não chegou ao Brasil por meio da música, mas pela break dance. O b.boy Nelson Triunfo, 45 anos, foi um dos responsáveis
Desde a infância, no município de Triunfo (PE), Nelsão conta que já praticava o break “sem saber”. “Eu dançava soul, e, como o hip hop tem sua origem no próprio soul, dançar break foi apenas um passo para mim”, diz ele. “Percebia que algumas batidas nas músicas estavam mudando, e que os clipes que chegavam ao Brasil traziam novos passos. Eu já dançava como robô, mas não sabia que isso era parte do break. Depois que descobri, foi só me aperfeiçoar”,
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completa Nelsão. Ele inventava passos, girava e se contorcia todo, como alguns anos mais tarde, no começo dos anos 1980, quando levou às ruas do Brasil – mais precisamente para São Paulo – o break. Naquela época, Nelsão começou a frequentar a discoteca Fantasy, no bairro de Moema, zona sul da capital paulista, onde se apresentava com seu grupo de soul Funk & Cia. Segundo ele, a Fantasy foi o primeiro lugar no país a promover eventos para que as pessoas pudessem dançar break. “Foi muito estranho o que aconteceu com o break no Brasil: os ricos eram as únicas pessoas que conseguiam viajar para os Estados Unidos e lá descobriram essa nova dança”, lembra Nelsão. Depois de quase um ano frequentando a Fantasy e tendo adquirido mais conhecimento sobre o break e o hip hop, que na época se confundiam no Brasil, Nelsão levou a dança para seu local de origem: a rua. “Pensei como era importante levar tudo aquilo que acontecia na Fantasy para o seu verdadeiro lugar, as ruas, como no Bronx, em Nova York”, explica Nelsão. Como os outros jovens que dançaram os primeiros passos de break no centro de São Paulo, ele apenas dançava o break para se
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divertir, mas não tinha a percepção do hip hop como movimento social. Entretanto, mesmo em alguns passos dessa dança já estavam embutidos alguns elementos de crítica política e social. Segundo Elaine de Andrade, os primeiros breakers, que surgiram nas ruas do Bronx, bairro de população majoritariamente negra e hispânica em Nova York, no final da década de 1960, faziam uma espécie de protesto contra a Guerra do Vietnã por meio de dançarinos que simulavam os movimentos dos feridos de guerra. “Cada movimento do break possui como base o reflexo do corpo debilitado dos soldados norte-americanos ou demonstram a lembrança de um objeto utilizado no confronto com os vietnamitas, como o próprio giro de cabeça”14. Nesse movimento, o dançarino fica com a cabeça no chão e, com as pernas para cima, procura girar todo o corpo. O movimento das pernas no giro de cabeça também alude às hélices dos helicópteros, largamente utilizados na Guerra do Vietnã. No Brasil, antes do surgimento do break e do hip hop, quem antecipou a ideia da valorização dos afrodescendentes nos bailes blacks dos anos 1970, como propõe hoje o hip hop, foi o cantor 14. E. N. de Andrade. Movimento Negro Juvenil: um estudo de caso sobre rappers de São Bernardo do Campo. Mestrado em Educação (dissertação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
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e dançarino Gérson King Combo. No início da década de 1980, enquanto no Rio de Janeiro Combo e seus companheiros embalavam a juventude com soul e funk, em São Paulo o break começava a ganhar espaço. Tanto para paulistas como para cariocas os objetivos eram os mesmos: a diversão e a busca da autoestima. Os integrantes da old school, como Nelsão e seus contemporâneos são conhecidos, ainda não tinham consciência de que o hip hop propunha a “troca da violência pela paz”, segundo Nelsão. “O hip hop era só break para nós. Era uma dança robótica, e o rap nem era conhecido com esse nome. Nós o chamávamos de toast (estilo jamaicano precursor do rap)”, afirma o b.boy Moisés, de 34 anos, presidente da equipe paulista de break Jabaquara Breakers. A valorização do negro, entretanto, era evidente. Em qualquer roda de break podiam-se encontrar jovens bem vestidos e com os cabelos sem alisar, uma das marcas do orgulho negro. O break começou a ser praticado na praça Ramos, em frente ao Teatro Municipal, no centro de São Paulo. O som saía de um box ou de pick-ups, ou por meio do beat box. Os primeiros breakers brasileiros também dançavam ao som improvisado de uma ou de
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várias latas, dando origem à expressão “bater a latinha”. Vários jovens que passavam pelo centro da cidade identificavam-se e, pouco a pouco, equipes de break surgiam. Elas eram formadas em sua maioria por office boys e chamadas erroneamente de gangues – em alusão às gangues norte-americanas, apesar de não praticarem a violência como nos Estados Unidos. Os breakers, no entanto, ficaram pouco tempo lá porque o calçado da praça não era adequado para os passos da dança. Eles se mudaram para a 24 de Maio, esquina com a rua Dom José de Barros. “Na 24 de Maio havia duas pedras de mármore que eram lisas e grandes, ideais para dançar. Ali foi virando o point da Funk & Cia. e de alguns outros convidados”, conta Nelsão. “A 24 era o lugar ideal para quem curtia break. Lá encontrávamos tudo o que era necessário para dançar. Além do chão apropriado, havia várias lojas onde podíamos comprar luvas e lantejoulas, muito usadas na época”, lembra Moisés. Mais tarde, as galerias da 24 de Maio passaram a ser conhecidas como ponto de encontro dos b.boys. A informação era escassa para os adeptos ao break e muito menor para aqueles que não
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entendiam essa dança. Os breakers eram perseguidos pelos policiais, que, incentivados por comerciantes das lojas do centro da cidade, procuravam inibir suas apresentações. Os policiais alegavam que a aglomeração formada em torno dos breakers facilitava o aumento do número de furtos. Os breakers também foram discriminados em alguns bailes blacks, onde era proibido dançar break. Naquele tempo, a maioria da juventude negra paulista ainda preferia o funk, que, mais do que um estilo musical, era um estilo de vida, de autoafirmação do negro. Os obstáculos foram diminuindo à medida que chegavam ao Brasil videoclipes de Michael Jackson, como "Thriller", "Billie Jean" e "Beat It", e filmes como Flashdance. O break virou moda e passou a atingir um público maior. A dança passou a fazer parte de aulas de academias de ginástica da classe média, fez a música utilizada para dançar break emergir como sucesso no mercado fonográfico, nas rádios e em programas de televisão. Chegou a ser apresentada em frente a uma loja do Shopping Center Iguatemi, no bairro do Itaim, zona nobre de São Paulo. Segundo o sociólogo José Carlos Gomes da Silva, “dentro do contexto da break dance nacional, a experiência da Funk & Cia. foi fundamental para a formação das
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primeiras equipes e a difusão do movimento hip hop”. Nelsão, porém, adverte que, quando a moda do break passou, depois de 1985, só ficaram no movimento aqueles que eram mesmo interessados: “A mídia achou que a febre tinha acabado, mas nós insistimos.” Quando o irmão de Nelsão, o b.boy Luisinho, e outros integrantes da Funk & Cia. começaram a dançar break na estação São Bento do metrô, eles mal sabiam que o local iria se transformar no santuário do hip hop no Brasil, a partir de meados da década de 1980. O b.boy Marcelinho, 33 anos, presidente da equipe de breakers Back Spin Crew, lembra que várias equipes de break se formaram naquela época porque queriam disputar entre si. Aos poucos apareceram as equipes Nação Zulu, Street Warriors, Crazy Crew e Back Spin. Em outras cidades, como Brasília, surgiram equipes como a Eletric Bugaloo e a Eletro Rock. Elas eram identificadas pelas cores dos uniformes. “Éramos adversários porque o hip hop é disputa o tempo todo. Mas nos uníamos quando os ‘urubus’ [seguranças do metrô] vinham tirar a gente da estação. Nós sempre voltávamos para lutar por nosso espaço”, afirma Marcelinho. Ele também explica a formação das equipes de
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break como um consenso entre os dançarinos da São Bento. “Chegou um momento em que percebemos que, se ficássemos só com a disputa na estação, não iríamos mostrar a nossa cultura para São Paulo nem para o Brasil. Daí nos organizamos melhor e entendemos que era possível profissionalizar o hip hop, com a formação das equipes.” Muitos office boys que frequentavam a estação no horário do almoço se tornaram profissionais da dança. Os primeiros traços de grafite também começaram a ser vistos espalhados pelas ruas, como os do artista plástico Alex Vallauri. Nesse período de organização das equipes de break e do surgimento do grafite, entre 1983 e 1988, o rap conquistava sutilmente a juventude negra nos bailes blacks. Como os jovens não entendiam o inglês cantado nas músicas, detendo-se apenas no ritmo, eles batizaram o rap de “tagarela”. “A denominação tagarela foi a expressão usada para designar rapper e também foi aceita pelos diversos grupos de break. Como o elo entre a juventude negra sempre foi o baile, era através dele, e a seguir, por meio da imprensa, que as informações sobre o movimento eram transmitidas aos jovens breakers”, explica a educadora Elaine de Andrade (1996). Foi nas equipes de break que surgiram os primeiros rappers, como Thaíde
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e DJ Hum, ex-integrantes da Back Spin. Eles fizeram parte da primeira coletânea de rap lançada no país a obter repercussão nacional, Hip hop cultura de rua, em 1988, que vendeu mais de 25 mil cópias. O primeiro disco de rap, A ousadia do rap, gravado pela Kaskatas, quase não fez sucesso. Ele havia sido lançado um ano antes, seguido pelos discos O som das ruas, Situation rap e Consciência black. Como alguns rappers não dançavam break e queriam conquistar um espaço próprio para desenvolver sua música, a geografia do movimento foi se modificando. Os adeptos do rap deixaram a estação São Bento e deslocaram-se para o Clube do Rap, espaço aberto pelo Chic Show. Outros rappers se instalaram na praça Roosevelt, no centro de São Paulo, local que foi liberado pelos Correios. A energia para os aparelhos de som era fornecida por uma galeria de arte. Segundo o sociólogo Silva (1998), “a ruptura entre a São Bento e a Roosevelt foi um momento importante para a história do movimento porque, desde então, um segmento mais identificado com o rap decidiu-se por um espaço diferenciado”. Destacavam-se na época grupos como Stylo Selvagem, Bad Boy, DMN, Personalidade Negra, MT Bronx, Doctor MCs e MRN.
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Com o passar dos anos, os breakers foram adquirindo conhecimento sobre a cultura hip hop e seus ideais. Os outros elementos (grafite, mestre de cerimônias e disk jockey) juntaramse à dança, e a consciência de movimento social juvenil foi amadurecendo. Surgiu o Movimento Hip Hop Organizado, conhecido como MH²O-SP, um marco divisor entre a old school e a new school. O MH²O-SP foi criado por iniciativa do produtor musical Milton Sales com o objetivo de organizar os grupos de rap nascidos das equipes de break. “O que me motivou a criar o MH²O foi a possibilidade de fazer uma revolução cultural no país. A ideia principal foi fazer do MH²O um movimento político através da música”, diz Sales, que é sócio com o grupo Racionais MCs da empresa Racionais Produções. “A música é uma arma, está em todos os lugares. Se ela tem esse poder de mover esse sistema, ela tem também o poder de elucidar. Eu trouxe essa proposta política para o rap.” O lançamento oficial do MH²O-SP aconteceu no dia 25 de janeiro de 1988 num show no parque do Ibirapuera, antiga sede da prefeitura, em comemoração ao aniversário da cidade de São Paulo. Na ocasião, os rappers levaram lençóis pintados como bandeiras para
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consagrar o movimento daqueles que resistem e se organizam. Depois do lançamento do MH²O-SP, rappers, grafiteiros, breakers e militantes do hip hop começaram a promover eventos em praças públicas, como no parque da Aclimação e no parque do Carmo. O MH²O-SP também contribuiu para o início da formação das posses, característica marcante da nova escola, ou seja, a geração que aderiu ao movimento hip hop quando ele já tinha um pano de fundo social. Nas posses, os manos discutem questões sociais e políticas, promovem cursos, como o de disk jockey (DJ), e dão orientação sexual. A primeira posse brasileira, o Sindicato Negro, foi um marco simbólico. Sua sede era na praça Roosevelt, a céu aberto. Ela teve início quando os integrantes do movimento resolveram se organizar politicamente. O b.boy Marcelo Buraco, 21 anos, da Associação Cultural Negroatividades, lembra que os manos se reuniam na praça para discutir e apontar alternativas para a condição social do negro, historicamente marginalizado pela sociedade. “O Sindicato Negro só não deu certo porque era muita gente (mais de 200 pessoas) para falar ao mesmo tempo. Era uma posse muito grande”, conta Buraco. Segundo Silva (1998), “a breve experiência do Sindicato Negro foi
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marcada por cisões internas, mas as maiores dificuldades foram enfrentadas no plano externo, em relação à polícia. O policiamento desconhecia a proposta do Sindicato Negro e começou a associar os integrantes ao surgimento de uma nova gangue”.
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Com a repressão policial e a confusão generalizada criada dentro do Sindicato Negro, o espaço da praça Roosevelt começou a perder o sentido original para a maioria dos rappers a partir do final de 1990. As posses nas regiões periféricas da cidade, como a Aliança Negra, na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, foram se consolidando e oferecendo novas alternativas para os integrantes do movimento. Em 1992, o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, criou o projeto Movimento de Rua, que, em cinco festas, reuniu mais de 60 grupos de rappers. Desse projeto saiu um dos primeiros livros sobre hip hop no país, ABC RAP, uma coletânea de letras de rap de 148 páginas, fundamental para a formação da posse Haussa, de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
fonográfico, e um novo espaço foi criado em 1991 – o Projeto Rappers Geledés, vinculado à organização não governamental (ONG) do Instituto da Mulher Negra Geledés. A ação dos rappers tornou-se, então, mais descentralizada, e as temáticas mais condizentes com as características do local onde a posse atua. Surgiram também incentivos governamentais para o desenvolvimento do hip hop como instrumento de socialização do jovem da periferia. Em Mauá, na Grande São Paulo, o Quilombo do Hip Hop, por exemplo, oferece aulas sobre os elementos artísticos do hip hop. O espaço para que as oficinas aconteçam foi cedido pela Secretaria de Cultura e Esportes da cidade. A Casa do Hip Hop, em Diadema, no ABC paulista, inaugurada em julho de 1999, é um dos centros culturais da prefeitura dedicado aos jovens. Lá acontecem oficinas de break, grafite, DJ e MC ministradas por percussores da cultura, como Nelsão e Thaíde, que são funcionários registrados do centro cultural. O local abriga também o Museu do Hip Hop, administrado pelo auxiliar de obras Nino Brown, conhecido como o antropólogo do hip hop por possuir o maior acervo nacional sobre o movimento.
A adesão em massa de jovens ao movimento fez com que o rap crescesse no mercado
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CAMINHADA POR ZUMBI. MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO CONTRA A LEI AFONSO ARINOS NAS RUAS DO CENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO. CONCENTRAÇÃO À NOITE, EM FRENTE AO TEATRO MUNICIPAL, EM 20/11/1979. ©JESUS CARLOS
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PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DO MNU, RECÉM-FUNDADO EM JUNHO. EM 07/07/1978; CENTENAS DE MILITANTES, CONCENTRAM-SE EM FRENTE AO TEATRO MUNICIPAL. EM SEGUIDA, NA CHAMADA CAMINHADA NEGRA DE ZUMBI, PERCORREM O VIADUTO DO CHÁ.
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PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DO MNU. O MILITANTE FUNDADOR MILTON BARBOSA LÊ O MANIFESTO DE FUNDAÇÃO E PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. ©ROSA GAUDITANO/STUDIOR
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CAMINHADA POR ZUMBI. MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO CONTRA A LEI AFONSO ARINOS NAS RUAS DO CENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO. CONCENTRAÇÃO INICIAL NO FINAL DA TARDE, EM FRENTE À CATEDRAL DA SÉ, EM 20/11/1979. ©JESUS CARLOS
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MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. CAMINHADA POR ZUMBI. PASSEATA PERCORRE O VIADUTO DO CHÁ, NO CENTRO DE SÃO PAULO, EM 20/11/1979. A MILITANTE FUNDADORA DO MNU FÁTIMA FERREIRA SEGURA O FILHO SAMOURY E A FAIXA CONTRA A TRÍPLICE EXPLORAÇÃO DA MULHER NEGRA.
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CAMINHADA POR ZUMBI CHEGA À PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO, NA PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DA CONSCIÊNCIA NEGRA. OS MOVIMENTOS Lgbt E NEGRO JÁ EMPREENDIAM LUTA CONJUNTA, EM 20/11/1979. EMBAIXO, À DIREITA, THEODOSINA RIBEIRO, PRIMEIRA DEPUTADA NEGRA DE SÃO PAULO. ©ENNIO BRAUNS/ FOTO&GRAFIA
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MANIFESTAÇÃO DA JUVENTUDE NEGRA NA 16ª MARCHA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NA AVENIDA PAULISTA, EM 20/11/2016. DESDE 2004, A DATA CELEBRA O FERIADO DA CONSCIÊNCIA NEGRA NA CIDADE DE SÃO PAULO, JUNTO COM MAIS DE CEM MUNICÍPIOS NO ESTADO. ©JESUS CARLOS.
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MANIFESTAÇÃO DE FUNDAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, EM 07/07/1978. MILTON BARBOSA DISCURSA EM FRENTE AO TEATRO MUNICIPAL, NA PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO, NO CENTRO DA CAPITAL.
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MANIFESTAÇÃO PELO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979, NA PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO, EM FRENTE AO TEATRO MUNICIPAL, CENTRO DE SÃO PAULO. À DIREITA, COM MEGAFONE, ANTÔNIO LEITE; EM PRIMEIRO PLANO, WILSON PRUDENTE, AMBOS MILITANTES FUNDADORES DO MNU. ©ENNIO BRAUNS/ FOTO&GRAFIA
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PRIMEIRO ATO PÚBLICO ORGANIZADO PELO MNU EM CELEBRAÇÃO AO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979. EM PRIMEIRO PLANO, JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA, ANTÔNIO LEITE E MULHERES PARTICIPANTES. ©ENNIO BRAUNS/FOTO&GRAFIA
WILSON PRUDENTE, MILITANTE FUNDADOR DO MNU, DISCURSA NA PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO. DURANTE O PRIMEIRO ATO PÚBLICO ORGANIZADO PELO MNU EM CELEBRAÇÃO AO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979. ©ENNIO BRAUNS/FOTO&GRAFIA
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AILTON GRAÇA FAZ A LEITURA DO MANIFESTO NAS ESCADARIAS DA CATEDRAL DA SÉ, ENCERRANDO A CAMINHADA POR ZUMBI NAS RUAS DO CENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO, EM 20/11/1979. ©ENNIO BRAUNS/FOTO&GRAFIA
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PROTESTO NEGRO NAS RUAS DO CENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO NO PRIMEIRO ATO PÚBLICO ORGANIZADO PELO MNU EM CELEBRAÇÃO AO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979. ©JESUS CARLOS
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56 CAPA DO JORNAL VERSUS JULHO/1978
NEUSA MARIA PEREIRA, JORNALISTA QUE INAUGUROU A SEÇÃO AFRO-LATINO-AMÉRICA DO JORNAL VERSUS, DURANTE ATO DE LANÇAMENTO DO MNU, EM 07/07/1978. ©ROSA GAUDITANO/STUDIOR
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HAMILTON CARDOSO E O MNU FLAVIO CARRANÇA, COM COLABORAÇÃO DE FÁBIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA*
H
amilton Cardoso foi um dos mais talentosos representantes da geração de ativistas do Movimento Negro Brasileiro dos anos 1970/80. Durante a ditadura imposta pelo golpe civil-militar de 31 de março de 1964, ele esteve no centro de uma série de atividades que deram impulso à luta antirracista no Brasil, como parte do movimento pela redemocratização do país. Teve também expressiva participação na imprensa alternativa e na grande imprensa paulista, além de manter um constante diálogo com intelectuais negros e não negros dos movimentos sociais e do meio acadêmico. Hamilton viveu intensamente seu tempo, tendo participado da campanha pela anistia, da articulação do movimento “Diretas Já”, do processo da Constituinte, da reorganização do movimento sindical e da construção do Partido dos
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Trabalhadores (PT), além de atuar na esfera internacional. Nascido em 10 de julho de 1954 em Catanduva, noroeste do estado de São Paulo, Hamilton Bernardes Cardoso foi o segundo filho de uma família composta por mais três irmãos: Airton, o mais velho, Arlete, a terceira, e Auriluce, a caçula, além da mãe, dona Deolinda Bernardes, e do pai, Onofre Cardoso, um músico trombonista de orquestras. Hamilton viveu pouco tempo em Catanduva, passou a maior parte de sua infância já na capital. Em 1955, a escassez de apresentações nas orquestras do interior do estado levou Onofre Cardoso e sua família a mudarem definitivamente para a cidade de São Paulo. Logo que chegaram, foram morar no Ipiranga, na zona sul, e depois na Casa Verde, na zona norte, bairro com grande concentração de população negra.
* FLAVIO CARRANÇA É FORMADO EM JORNALISMO PELA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CÁSPER LÍBERO EM 1980. TRABALHA ATUALMENTE COM REVISÃO E PREPARAÇÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS, LIVROS E RELATÓRIOS DE EMPRESAS E ONGS, ENTRE OUTROS. É DIRETOR DO SINDICATO DOS JORNALISTAS NO ESTADO DE SÃO PAULO, ONDE COORDENA A COMISSÃO DE JORNALISTAS PELA IGUALDADE RACIAL – COJIRA SP. PELA IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO (IMESP) E POR GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA, PUBLICOU A COLETÂNEA ESPELHO INFIEL: O NEGRO NO JORNALISMO BRASILEIRO, ORGANIZADA EM PARCERIA COM ROSANE DA SILVA BORGES. PELO CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADES (CEERT), COM APOIO DA FORD FOUNDATION, PUBLICOU DIVERSIDADE NAS EMPRESAS & EQUIDADE RACIAL, COLETÂNEA ORGANIZADA EM PARCERIA COM MARIA APARECIDA DA SILVA BENTO. FÁBIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA É PROFESSOR ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB) CAMPUS XXIII – SEABRA. DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA USP, MESTRE EM SOCIOLOGIA E DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF) E GRADUADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA USP.
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Teatro e Consciência Negra
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As atividades culturais e artísticas foram o principal caminho para muitos jovens negros refletirem sobre sua identidade étnica e ingressarem na militância antirracista. A trajetória de Hamilton é um exemplo disso. Em 1970, participou como ator da peça de teatro E agora falamos nós, escrita e dirigida pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira e pela atriz Tereza Santos, como parte das atividades do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), entidade criada por ambos em 1969. A peça teve especial importância por causa das pessoas envolvidas em sua elaboração e também pelo fato de ter sido encenada durante três meses no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Entre 1970 e 1980, o teatro negro recebeu um novo alento na capital e nas cidades do interior paulista. De maneira geral, os grupos eram informais, sem estatutos e registro legal, apresentando-se, de forma bastante precária, em espaços não tradicionalmente dedicados às artes cênicas (como praças públicas, salões de baile, clubes etc.). A preocupação da maior parte das montagens era fazer uma “revisão histórica” do papel do negro e denunciar as manifestações do racismo na sociedade brasileira. No entanto, a vida desses grupos foi efêmera, constituindo,
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muitas vezes, uma etapa da organização das entidades negras que se formaram no processo de reconstituição do Movimento Negro durante os anos 1970. Nesse teatro de protesto, Hamilton Cardoso, além de se descobrir negro, teve despertado o desejo de ser ator. Ele deixou registrada essa aspiração no poema Vontade, publicado sob o pseudônimo de Zulu Nguxi na seção Afro-Latino-América do jornal Versus: Eu quero subir num palco Pintado de branco, preto e vermelho, com a cara pintada e o cabelo trançado. Quero representar minha vida falar de meus pais, de meus amigos falar de meus irmãos, de meus inimigos, Quero contar as histórias falar desta vida: Eu quero subir num palco. Ouvir aplausos e cantar cantigas pintado de branco, pintado de preto Quero ostentar minha pele negra, meu nariz chato e arrebitado com meus cabelos duros à mostra Quero escrever do meu jeito. Quero ser ator Quero subir num palco me ver rodeado de amigos De meus pais, meus irmãos Agradecer a Olorum pela vida concedida Agradecer ao povo a presença concedida
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Quero falar de meu povo, de minha gente Quero falar de mim Quero subir num palco Quero subir porque é bonito Quero subir porque quero Simplesmente quero.34
São Paulo negra José Correia Leite35 conta que, na época do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, negras e negros de São Paulo faziam um footing (passeio) na rua Direita que chegou a ser proibido, a pedido dos comerciantes locais. Isso provocou revolta na comunidade, que passou a se encontrar no vale do Anhangabaú, entre a parte de baixo do viaduto do Chá e a avenida São João. Entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970, alguns desses pontos tradicionais voltaram a ser espaços de encontro da comunidade negra da cidade. Eram locais em que rapazes e moças se conheciam, namoravam e ficavam sabendo dos bailes e outras atividades do circuito cultural negro. Um evento que traduzia essa atmosfera era a Feira Hippie, que, no final da década de 1960, 34. Versus, n. 12, jul/ago 1977, p. 33. 35. Luiz Silva (Cuti), E disse o velho militante José Correia Leite, São Paulo: Noovha América, 2007.
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começou a ser realizada aos domingos na praça da República, onde pintores, escultores e artesãos, muitos deles negros, expunham e vendiam seus trabalhos. O fato é que desses encontros de domingo participavam tanto ativistas mais novos, como Hamilton, Ivair dos Santos, Milton Barbosa e Rafael Pinto, quanto gente mais velha, como Solano Trindade, Raquel Trindade, Ciro Nascimento, Odacir de Mattos, Jangada e a doutora Maria da Penha. Conta Rafael Pinto: Nós nos encontrávamos lá na praça da República para bater papo. Estávamos debaixo de uma ditadura severíssima, que era a do Médici, e ali era um local para muita conversa e troca de informações. O Aristides Barbosa tinha lido muito, feito muita atividade, então passava para nós indicações de alguns livros, alguma coisa da literatura brasileira, tipo ler o Artur Ramos, o Bastide, alguma coisa do Eldridge Cleaver do período em que ele era black panther, James Baldwin, por aí. No início da década de 1970, o Clube Coimbra, localizado na avenida São João, tornou-se o novo ponto de encontro de uma juventude negra intelectualizada e progressista, que ali se reunia para discutir política e cultura. Em depoimento, Ivair Augusto dos
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Santos confirma que essa juventude construía uma identidade negra que transcendia o âmbito nacional, situando-se já na esfera da diáspora africana, a exemplo do que aconteceu com os movimentos do pan-africanismo, da negritude e dos direitos civis.
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Outro ponto de encontro desses jovens era a Casa da Cultura e do Progresso (Cacupro), entidade sediada no bairro do Ipiranga dirigida por Estevão Maya Maya e Agnaldo Avelar, que trabalhava com crianças fazendo uma complementação escolar com elementos afro-negros. Também foi muito importante para os jovens negros paulistanos desse período o estímulo proporcionado pelo Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros (Geteplun), criado na década de 1960, na vila Prudente, pela doutora Iracema de Almeida, uma das primeiras médicas negras da cidade. Era uma época em que atividades culturais e políticas voltadas para a busca da identidade eclodiam em pontos diversos da cidade de São Paulo, e, como é natural em um processo desse tipo, as pessoas com interesses comuns acabavam por se encontrar.
Nas escolas, nas ruas... O contato da juventude negra universitária com as correntes de pensamento de esquerda marcou
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profundamente a fisionomia do Movimento Negro Brasileiro. Como se sabe, o movimento estudantil protagonizou inicialmente a luta pelo fim da ditadura e pela democratização do país. Na década de 1970, os estudantes reconstruíram seus mecanismos de representação e saíram às ruas, enfrentando o aparelho repressivo e propondo mudanças estruturais na sociedade. As manifestações de protesto contra a morte do estudante de geologia da USP Alexandre Vannuchi Leme, em 1973, do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, foram momentos importantes dessa retomada do movimento de massas no país. Ainda que em pequeno número, os estudantes negros participaram ativamente desse processo e dentro dele amadureceram intelectual e politicamente. Militante do movimento estudantil, sem vínculos com a vida sociocultural do meio negro paulistano, entrei (eu, Carrança) em contato com a discussão da temática racial por volta de 1974, período em que participava, junto com Milton Barbosa, de uma gestão do Centro Acadêmico Visconde de Cairu da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, diretoria integrada em grande parte por ativistas que iriam participar da construção da tendência estudantil Liberdade e Luta, ligada à corrente
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política do jornal O Trabalho. A partir desse contato, conheci Jamu Minka, Rafael Pinto e Wanderlei José Maria, também estudantes da universidade, e passei a receber o jornal Árvore das Palavras 36, fortalecendo vínculos pessoais e políticos que me levariam anos depois a participar do Movimento Negro Unificado (MNU). Entre os diversos grupos políticos que atuavam no movimento estudantil nessa época, a Liga Operária era o que mais se abria para a reflexão sobre a questão racial. Fundada na Argentina em 1974 por cinco exilados brasileiros, a organização constituiu seus primeiros núcleos em Santo André e na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Concentrando a formação de suas células junto às entidades do movimento estudantil, a Liga estabelece um diálogo com a classe média negra que começa a ter acesso às instituições de ensino superior. Astrogildo Esteves, Milton Babosa, Rafael Pinto, Odacir de Mattos e Isidoro Telles fizeram parte da primeira geração de militantes negros da Liga Operária, na qual discutiam a questão racial. “O Astrogildo – conta Milton 36. A Árvore das Palavras foi provavelmente o primeiro jornal da imprensa negra da década de 1970. Era feito por estudantes da USP, entre os quais estavam Jamu Minka, Rafael Pinto, Milton Barbosa e Wanderlei José Maria. Começou a circular em 1974, sendo distribuído dentro da universidade e nos pontos de encontro da juventude negra.
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Barbosa – foi quem nos puxou para a Liga Operária, isso em torno de 1974. Começamos a montar uma proposta sobre a questão racial.” Segundo Milton, tanto Odacir quanto Isidoro, mais velhos, não tinham uma ligação especial com o trotskismo, mas ingressaram na organização para “tomar conta da molecada”. Nesse período, Hamilton Cardoso ainda não estava na Liga, tendo ingressado na organização depois da saída desse grupo. Nós começamos a discutir Frantz Fanon – prossegue Milton –, aprofundamos essa discussão e, depois disso, a gente não aceitava que os brancos, embora pessoas inteligentes e decentes, ficassem nos dando linha, nos centralizando em termos políticos, e aí acabamos rompendo com eles, depois de alguns acontecimentos. O Hamilton entra nessa nova leva, do Afro-Latino-América, junto com Wanderlei José Maria, Adãozinho (José Adão de Oliveira), Marcos Vinícius, Neusa Maria Pereira e outros.
Imprensa alternativa Um papel importante desempenhado por Hamilton e seu grupo foi o de ter incluído a questão racial na pauta de um expressivo órgão
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dessa imprensa, o jornal Versus. O jornalista Bernardo Kucinski37 afirma que Versus foi ao mesmo tempo uma alternativa de linguagem, de organização da produção jornalística e de proposta cultural, diferenciando-se de outros jornais alternativos do período por substituir o discurso político por uma narrativa mítica, operando no plano ideológico por meio de metáforas culturais e históricas. Definido pelo seu criador, Marcos Faerman, como um “jornal de reportagens, ideias e cultura”, Versus publicava poucas reportagens factuais, valorizando muito a forma, numa “fusão de elementos usados livremente: jornalismo, fotografia, desenho, história em quadrinhos, literatura, poesia”38. Quando criou a publicação, em 1975, Faerman trabalhava no Jornal da Tarde, tendo como colega e amigo o jornalista e escritor Oswaldo de Camargo. Este conta que, a partir de um convite de Faerman, tomou a iniciativa de criar dentro de Versus uma seção dedicada à questão do negro e, para isso, reuniu em torno de si um grupo de jovens poetas e estudantes de jornalismo. Neusa Maria Pereira, no 37. Entrevista de Marcos Faerman em 16 ago. 1990. Bernardo Kucinski. “Versus: a política como metáfora”. In: Jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 2003. 38. Marcos Faerman. “A imprensa alternativa”. In: Cadernos de Comunicação Proal. São Paulo: 1977, n. 1.
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entanto, diz que a participação mais efetiva dos jornalistas negros em Versus começou a partir da publicação de um artigo escrito por ela sobre a discriminação da mulher negra, e que logo em seguida também passaram a colaborar Hamilton Cardoso e Jamu Minka. Hamilton trabalhou na seção Afro-Latino-América de junho de 1978 até o fechamento do jornal, no final de 1979. No Versus, ele entraria em contato mais próximo com a esquerda e acabaria se tornando militante da Liga Operária. Numa entrevista que concedeu a Gevanilda Santos, ele afirmou: “Eu entrei para o Versus nessa época, junto com a Neusa Maria Pereira, o Jamu Minka, o Oswaldo de Camargo e a Tânia Regina Pinto. Nós fomos pra lá aprender jornalismo, e depois alguns foram cooptados pela Liga Operária”. A coordenação do Afro-Latino-América era formada originalmente por Hamilton Cardoso (sob o pseudônimo de Ndacaray Zulu Nguxi), Jamu Minka, Neusa Maria Pereira, Oswaldo Camargo e Tânia Regina Pinto. Essa primeira coordenação atuaria do número 12, de julho de 1977, até o número 18, de fevereiro de 1978, antes, portanto, do surgimento do MNU.
Discurso no corredor A opção de Hamilton pelo jornalismo como profissão foi anterior à entrada
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em Versus. Em 1974, ele ingressou no curso da Faculdade Cásper Líbero, à qual permaneceria vinculado até 1981. Vera Lúcia Benedito, que conheceu Hamilton na Cásper em 1977 e foi sua namorada, diz que, apesar de estar matriculado na faculdade, ele quase não frequentava as aulas, dedicando praticamente todo o seu tempo à militância política: A ocasião em que o vi foi muito peculiar, porque ele estava fazendo um discurso contra a ditadura e falando em termos de revolução, de questão marxista de raça e classe, indo numa linha pouco convencional para a época, porque se discutia o capitalismo sob o prisma de classe. Dificilmente as pessoas colocavam a questão da raça. E o Hamilton apareceu fazendo um discurso no corredor da Cásper. Juntou muita gente para ouvilo, porque ele era muito eloquente nas suas colocações, e foi aí que parei para prestar atenção. Hamilton não conseguiu terminar o curso na Cásper Líbero por causa da opção pela militância política. Foi jubilado e completou os estudos nessa área em 1982 no Instituto Rudge Ramos, atual Faculdade Metodista, de São Bernardo do Campo.
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Primavera negra A luta pela inclusão da questão racial entre as bandeiras dos movimentos em favor da democracia, nos anos 1970, fez amadurecer entre alguns militantes a ideia de que era preciso construir mecanismos autônomos, nos quais a questão racial ocupasse o centro do debate. As pesquisas sociológicas mostravam cada vez mais as distâncias entre negros e brancos, o que possibilitava que o debate sobre o racismo se tornasse um eixo norteador para a superação das desigualdades. Diferentes iniciativas apontam nesse sentido. Em 1970, no Rio Grande do Sul, forma-se o grupo Palmares, que em 1974 propõe que o dia da morte de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, se torne a data nacional dos afro-brasileiros, no lugar do 13 de maio. Em Salvador, no mesmo ano, surge a Sociedade Cultural Bloco Afro Ilê Aiyê. No Rio de Janeiro, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) e o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) desempenham um importante papel na reaglutinação do Movimento Negro fluminense. Ainda no Rio, em 1976, Lélia Gonzalez abre o curso de Cultura Negra da Escola de Artes Visuais, no momento em que aumenta o intercâmbio entre as organizações cariocas e paulistas.
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Um antecedente importante foi a I Semana do Negro na Arte e na Cultura, realizada em maio de 1975. No início de 1976, aconteceu em São Carlos o I Encontro de Entidades Negras de São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara.
discussões sobre a realidade da população afrodescendente na sociedade brasileira e procurar as alternativas para a superação das desigualdades raciais.
Após vários encontros de grupos de São Paulo e Rio de Janeiro realizados em 1976 e 1977, foi criada a Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo (FEABESP). Dessa articulação surgiria a proposta de uma grande festa de confraternização que reunisse anualmente, em diferentes cidades do interior, em datas próximas a 20 de novembro, grupos e entidades negras de todo o estado para mostrar seus trabalhos culturais e trocar experiências de Movimento Negro. Nasce daí o Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu), evento que teve sua primeira versão realizada em Araraquara em 1978.
As atividades culturais tiveram papel muito importante no processo de organização do negro brasileiro em diversos âmbitos. Teatro, literatura, dança, música e cinema foram expressões artístico-culturais que contribuíram significativamente para a reconstrução da identidade desse segmento, tornando-se ponto de partida para a atuação política. Um dos principais palcos desse debate foi o novo Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). A entidade, que tinha sido desativada por Tereza Santos quando de sua ida para Angola, foi reativada em 1976, passando a funcionar em uma casa hoje demolida que ficava na rua Maria José, 450, no Bixiga, região central da cidade.
Outro evento que marcou significativamente a retomada da consciência negra naquele período foi a Quinzena do Negro, um ciclo de estudos realizado no prédio da Faculdade de Psicologia da USP entre 22 de maio e 8 de junho de 1977. O objetivo da Quinzena foi reunir a intelectualidade negra para realizar
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Cultura e política
No grupo de pessoas que promoveu essa reorganização estavam Isidoro Telles de Souza, Maria Inês Barbosa, Maria Lúcia da Silva, Milton Barbosa, Odacir de Mattos e Rafael Pinto. Maria Lúcia observa que, no momento dessa reativação, o Movimento
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Negro tinha uma perspectiva e um perfil mais cultural, a fim de recuperar a identidade, com grande influência dos movimentos de libertação da África e também da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
tradicionais da comunidade, como os clubes José do Patrocínio ou 13 de Maio, mas observa que em São Paulo as lideranças, principalmente os homens, mantinham intenso diálogo com o movimento político mais clandestino.
O Cecan – diz Lúcia – se configurou em um polo do Movimento Negro em São Paulo, no qual circulavam as notícias do que estava acontecendo. Eram grupos que desenvolviam atividades culturais por um lado e por outro discutiam a questão racial, procurando pensar estratégias para poder ampliar o debate na sociedade brasileira.
Eram militantes de esquerda, muitos universitários, que participavam das discussões nas universidades. E aí o Movimento Negro recebia toda a influência do movimento político da sociedade, da luta contra a ditadura.
Ela lembra que havia toda uma articulação com o interior do estado: Campinas, Rio Claro, São Carlos e outras cidades. Era um momento em que a gente começou a discutir o 20 de novembro e a fazer atividades nesse dia, como forma de fixação da data, de trazer uma data significativa para a população negra. Então o Feconezu nasce nessa perspectiva. O primeiro festival, realizado em 1978, já surgiu de um movimento articulado com os grupos do interior. E acrescenta que os grupos jovens do interior estavam em geral ligados às organizações
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O que fazer no 13 de maio? Em São Paulo, o debate político de maior importância entre os jovens militantes que se reuniam no Cecan ocorreu em maio de 1978 e teve como tema justamente as comemorações do 13 de maio. A posição defendida pela maioria dos participantes era de que na data deveria ser feita uma espécie de antimanifestação, ou seja, em protesto contra a falsa liberdade concedida pela Lei Áurea, a população deveria ser estimulada a não sair às ruas. A proposta contrária, defendida pelo Núcleo Negro Socialista, do qual Hamilton fazia parte, e pelo Grupo Decisão, em que estavam Rafael Pinto e Milton Barbosa, era de sair às ruas para denunciar o mito da
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princesa Isabel como redentora, uma das bases da ideologia da democracia racial. O pressuposto era de que o 13 de maio ainda era uma data significativa para a população negra e seria comemorado de qualquer maneira, sendo melhor participar criticamente do que se omitir. Escreve Gevanilda Santos39:
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A proposta do Núcleo Negro Socialista foi vitoriosa, e o 13 de maio entrou no calendário do Movimento Negro Brasileiro como Dia Nacional de Luta Contra o Racismo. Cabe salientar que, como contraponto, foi escolhida a data de 20 de novembro como elemento mítico para a luta da população negra, que ficou conhecida como Dia Nacional da Consciência Negra40.
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Em entrevista concedida a Maria Ercília do Nascimento, em 29 de outubro de 1984, Hamilton Cardoso afirmava: 39. Gevanilda Santos, “Comentários” em: Octavio Ianni et al., O negro e o socialismo, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005 (Coleção Socialismo em Discussão). 40. A ideia de que 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695, deveria substituir o 13 de maio como data nacional da população negra foi lançada em 1971 pelo Grupo Palmares de Porto Alegre, liderado pelo poeta Oliveira Silveira. A proposta, definida a partir do consenso de que o Quilombo de Palmares foi o episódio mais importante da história do negro no Brasil, símbolo de resistência à opressão, foi acolhida pelos ativistas negros de todo o país.
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O Núcleo Negro Socialista passou a atuar dentro do Cecan junto com o Grupo Decisão. O primeiro rompimento, a primeira derrota do Cecan, isto é, do grupo majoritário do Cecan, foi em relação às atividades do 13 de maio de 78. O Cecan pregava que os negros deveriam ficar em casa, pois a data não existia. O Núcleo Negro Socialista foi para o Cecan e propôs a realização de atividades; embora as vanguardas protestassem através da inércia, neste dia a grande massa negra trabalhava e continuava enfrentando a sociedade. Então, o Movimento Negro deveria ir para a rua e denunciar o 13 de maio (...). Enfim, transformar este dia num dia de denúncia contra o racismo. O 13 de maio foi a primeira mudança qualitativa. Esse posicionamento levou a que se organizasse o primeiro ato do Movimento Negro, no largo do Paiçandu, em 13 de maio de 1978, durante as comemorações oficiais da atividade. Na concentração inicial, que reuniu cerca de 1.200 pessoas aos pés da escultura da Mãe Preta, vários oradores falaram, denunciando a situação marginal da população negra e a farsa do 13 de Maio. Além de ativistas e organizações do Movimento Negro, participaram
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da manifestação grupos organizados de mulheres e de homossexuais e organizações de trabalhadores. Após a concentração, os manifestantes saíram em passeata pelas ruas do centro, portando faixas e fazendo coro de palavras de ordem contra o racismo, o subemprego, o desemprego, a repressão policial e a ditadura. A passeata dirigiu-se para a escadaria do Teatro Municipal, onde foi realizada nova concentração. Vejamos o que, dez anos depois, Hamilton escreveria a respeito desse dia: Foi uma data memorável, o dia 13 de maio de 1978. O presidente do Clube 28 de Setembro, Frederico Penteado, começou a suar quando faixas e cartazes, questionando a abolição da escravatura em São Paulo e denunciando a brutalidade policial, foram erguidas no Largo do Paiçandu diante da estátua da Mãe Preta. A solenidade com autoridades visava comemorar o dia 13 de maio. O inusitado da situação tornou autoridades e policiais incompetentes para impedir a leitura da primeira carta aberta à população, fazendo um balanço dos mortos pela Rota e denunciando a violência policial. O governo da época era de Paulo Maluf.
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Estava aberto um campo comum de atuação para as forças que se uniriam na construção do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. O impulso para a mobilização de 13 de maio de 1978 veio em grande parte dos acontecimentos envolvendo Robson Silveira da Luz, primo de Rafael Pinto, torturado e assassinado no início daquele mês nas dependências da 14ª Delegacia de Polícia da Capital. Em seguida, a discriminação sofrida por quatro garotos negros, expulsos do time juvenil de basquete do Clube de Regatas Tietê, desencadeou novas e fortes reações no interior da população negra. Os dois episódios causaram grande indignação. Em 18 de junho de 1978, grupos e entidades se reúnem na sede do Cecan para deliberar sobre as ações a serem implementadas. Nessa reunião, foi fundado o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (Mucdr), que seria lançado no dia 7 de julho em um Ato Público Contra o Racismo. Celso Prudente41, que costumava participar sempre junto com seu irmão Wilson das 41. Celso Luiz Prudente foi um dos fundadores do MNU e colaborador do Afro-Latino-América. É antropólogo, cineasta e escritor, com doutorado em educação e cultura pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp).
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reuniões do Cecan, lembra que ele, Milton Barbosa, Rafael Pinto e Hamilton defendiam a ideia de uma passeata contra a opinião da maioria dos participantes: “Ir às ruas era tão significativo que vieram de diferentes estados pessoas ligadas a associações culturais, políticas ou populares, que tinham a questão do negro como elemento nuclear. Porque não se falava em negro fazer uma passeata, então aquilo foi muito forte”. Partiram desse núcleo as denúncias daqueles episódios de racismo feitas aos jornais da grande imprensa nacional e internacional e da própria imprensa alternativa. Cabe destacar o importante papel desempenhado por duas pessoas brancas nessa divulgação: a jornalista Mirna Grzich (1951-2018) e o cineasta José Antonio de Barros Freire, que junto com Hamilton fizeram um intenso trabalho de contato com os diversos órgãos de informação. Ao anoitecer do dia 7 de julho de 1978, cerca de 2 mil pessoas, na grande maioria negros e negras, concentraram-se na praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. Durante a manifestação, foi distribuído um manifesto
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conclamando a população a fazer frente ao racismo, assinado por Grupo AfroLatino-América, Grupo Decisão, Brasil Jovem, Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), Associação Cristã Brasileira de Beneficência (Acbb), Grupo de Artistas Negros e Grupo de Atletas Negros. Estiveram representadas no ato a Escola de Samba Quilombo, o Renascença Clube, o Centro de Estudos Brasil-África, o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN) e o Núcleo Negro Socialista do Rio de Janeiro, além Grupo Nego da Bahia. A carta aberta, distribuída à população e lida em coro pelos manifestantes, dizia a certa altura: “Hoje é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o negro. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo”. O ato, que contou com a presença de militantes de associações negras do Rio de Janeiro, além de moções de apoio do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia, culminou com o apelo à criação de uma entidade nacional que unificasse as lutas contra a discriminação racial. A grande repercussão nacional e internacional da manifestação colocou o movimento em novo patamar, tornando secundárias as polarizações existentes no interior do Cecan.
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A realização desse ato desnudou a falácia da afirmação insistentemente feita pelos governos e pela diplomacia do Brasil de que o país era um paraíso racial, ao mesmo tempo que demonstrou o anseio da população negra por encontrar caminhos para combater de maneira mais incisiva o racismo e suas consequências. O tema dominante no Movimento Negro agora seria o caráter da organização que estava sendo criada. Para Hamilton, a estruturação do movimento estava se dando até aquele momento nos marcos do que havia sido imaginado pelo Núcleo Negro Socialista, mas justamente na primeira assembleia há uma mudança de rumos, que ele depois classificará como início da crise do Movimento Negro Unificado. Na leitura dele e do Núcleo Negro Socialista, o movimento deveria unificar forças sociais contra o racismo e não se restringir a um movimento de negros. Sua intenção era criar uma articulação que abrangesse negros e todos os que estivessem dispostos a lutar contra o racismo. Mas essa ideia acabou sendo derrotada. Em 8 de julho, foi realizada uma reunião de avaliação do ato e, no dia 23 de julho, na
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sede da Associação Cristã de Beneficência, em São Paulo, foi feita a primeira Assembleia de Organização e Estruturação Mínima do Mucdr, com a presença de representantes de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. É nesse momento que, por sugestão de Abdias Nascimento, a palavra “negro” é incluída na sigla, que passa de Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (Mucdr) para Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (Mnucdr). É Milton Barbosa quem explica: Ele [Hamilton] queria fazer um movimento tipo Sos Racismo da França, que junta todo mundo. Já eu e Rafael queríamos construir o embrião de um movimento de libertação nacional. Não estava decidido na nossa cabeça o que seria, mas nós já tínhamos essa noção. A gente estudava muito os movimentos de libertação em África, partidos políticos, e achávamos que se tinha que construir um Movimento Negro organizado. Quando Abdias veio com a palavra negro, nós abraçamos porque queríamos uma única coisa: organizar o povo negro. Nos dias 9 e 10 de setembro de 1978, no Estado do Rio de Janeiro, realizou-se a 2ª
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Assembleia Nacional do Mnucdr, em que foram aprovados a Carta de Princípios e o Programa de Ação. A terceira Assembleia Nacional aconteceu na cidade de Salvador, em novembro de 1978, e aprovou o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, data nacional do Movimento Negro Brasileiro, e o Manifesto Nacional do Mnucdr. Em setembro de 1979, ocorreu o I Encontro Nacional do movimento, que tinha como objetivo preparar o I Congresso Nacional, realizado nos dias 14, 15 e 16 de dezembro na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nesse congresso foram discutidos e aprovados a Carta de Princípios, o Programa de Ação, o Estatuto e o Regimento interno da organização, cuja sigla é simplificada para Movimento Negro Unificado (MNU). Apesar das diferenças em relação à estruturação do MNU e da distância que ele acabou tendo de sua ideia original, Hamilton sempre se declarou militante da organização. Por mais que criticasse o projeto do MNU, ele sempre o reivindicou como parte de uma construção coletiva do Movimento Negro Brasileiro. Flávio Jorge afirma que muitas das propostas do MNU nasceram sob influência do pensamento de Hamilton:
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Eu diria que ele não influenciava as instâncias do MNU, se você for pensar burocraticamente como funciona a organização do tipo do MNU, com a coordenação, direção nacional... mas o que Hamilton escrevia era sempre alvo de debate dentro desses agrupamentos. Ele nunca foi um dirigente reconhecido e de destaque dentro do MNU, mas sempre influenciou informalmente tudo o que o MNU fez, principalmente nos primeiros dez anos. Quando analisamos as matérias assinadas por Hamilton na seção Afro-Latino-América, em 1978, no Versus, verificamos um esforço para garantir a unidade política do Movimento Negro que surgia, entendido como um fenômeno de massas e sempre citado no singular: O Movimento Negro não é algo isolado do conjunto das manifestações de massas. Dele se alimenta, alimentando-o, participa de suas vitórias e de suas derrotas. E sofre com os seus desvios. É preciso, portanto, estar atento a tudo que vem ocorrendo no Brasil e no mundo. (...) Em outras palavras: precisamos começar a escrever – fazendo – a história atual do Brasil. Uma
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história negra que há muito vem sendo embranquecida (...), um Movimento Negro Unificado é, hoje, a única forma responsável de trabalhar no sentido de responder aos anseios das populações negras [grifo nosso]. Depois da fase de grande ativismo de 1978, a relação de Hamilton e do Núcleo Negro Socialista com a Liga Operária (depois Convergência Socialista) foi gradativamente se desgastando. Os militantes negros exigiam uma participação maior na definição de uma política antirracista, mas esbarravam na resistência da direção. Na entrevista que concedeu a Maria Ercília do Nascimento, Hamilton revela que novamente (como havia acontecido com a geração de Milton Barbosa e Rafael Pinto) existia um desejo desses militantes de estar em posição de igualdade com os brancos da Liga Operária, o que gerava polêmicas, debates: A relação entre os negros e a direção da organização era de certa forma uma relação rica, porque aprofundou a questão marxista no Movimento Negro e aproximou a organização na questão racial. Então, a gente exigiu que
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a organização definisse uma política antirracista e que a gente pudesse se pautar por tal orientação. Na medida em que a organização não definiu uma política antirracista, o núcleo começou a se desfazer. Saiu um daqui, outro dali, essa coisa toda. O afastamento de Hamilton da Convergência Socialista parece ter sido um processo gradativo e combinado com a busca de novos espaços de realização profissional e de atuação política. Era evidente a necessidade que ele tinha de ampliar seus horizontes. Em 1980, Hamilton passou nove meses na Inglaterra em uma viagem feita para ampliar os horizontes. A experiência da Europa ofereceu a oportunidade para ampliar o seu contato com grupos artísticos e políticos engajados na resistência cultural negra, na luta contra o racismo e pela libertação nacional. Esse contato aguçou a sua perspectiva diaspórica em relação à consciência negra (algo já observável no Brasil em sua militância trotskista). De volta ao Brasil, ele retoma o estudo de jornalismo e inicia sua carreira profissional. Os arquivos da Metodista registram seu ingresso em 1981, tendo terminado a graduação em 1982.
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O próximo passo seria a luta para conseguir emprego como jornalista.
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A garra de um repórter
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Examinando minhas pastas de recortes de jornais com artigos sobre a questão racial, encontrei alguns textos assinados por Hamilton na Folha de S.Paulo, principalmente no caderno Folhetim. Dulce Pereira fala de contribuições dele para a Folha Ilustrada, e Ivair Augusto dos Santos lembra-se de um período em que ele teria trabalhado na revista IstoÉ. Eu me lembro que, em 1980, Hamilton participou, junto com Celso Prudente, do projeto de uma revista negra, Ébano, publicada pela Associação de Cultura Afro-Brasileira (Acacab), entidade negra dirigida por Jorge Octávio Xavier Júnior e Benedito Eduardo de Paula, que funcionava em uma casa da rua Bela Cintra. A experiência, no entanto, seria curta. O primeiro emprego fixo de Hamilton como jornalista parece ter sido na assessoria de imprensa do então vereador Paulo Ruy de Oliveira, que assumiu a liderança do MDB na Câmara Municipal de São Paulo em 1979 e que, em 1981, depois de migrar para o PDS, tornou-se o primeiro negro a assumir a presidência daquela casa.
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O maior reconhecimento profissional como jornalista, Hamilton teve em meados da década de 1980 como repórter especial de política do Diário Popular. Esse “especial” aí de cima quer dizer que ele tinha autonomia para criar suas próprias pautas, tinha fontes exclusivas, trabalhava sem um horário específico e ganhava um pouco mais que um repórter comum. Na redação do Diário Popular, por volta de 1987, recebeu um convite para trabalhar no SBT, cujo departamento de jornalismo havia decidido ter um repórter negro, um personagem chamado “Repórter do Povo”, que discutia com a população os problemas da cidade. O jornalista Simão Zigband, colega de Hamilton no Diário Popular e que também trabalhava no SBT nessa época, conta que, apesar de nunca ter trabalhado em TV, ele logo se familiarizou com o veículo, e que suas entradas como repórter do jornal local da emissora faziam subir a audiência: Ele não só atraía a atenção do telespectador como, no local da reportagem, em geral a periferia. A presença de um repórter negro era muito familiar para as pessoas. Então era a fome com a vontade de comer: o Hamilton se sentia à vontade de ir a um
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posto de saúde ou a uma escola da periferia, onde a população é predominantemente negra. Quando a gente via as imagens, via o Hamilton cercado de crianças negras, sempre muito à vontade, em casa.
Trabalho e ativismo Ao mesmo tempo em que trabalhava como jornalista, Hamilton continuou atuando tanto no Movimento Negro quanto na vida política geral do país. Um momento de sua vida que merece ser lembrado é a participação no III Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado em 1982 pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), sob a presidência de Abdias Nascimento e coordenação de Dulce Pereira42. O local do congresso foi o prédio da PUC de São Paulo, na rua Monte Alegre, onde funcionava o Ipeafro. Vale lembrar que o 1º Congresso foi realizado em agosto de 1977, em Cali, na Colômbia, e que o segundo, realizado em março de 1980, teve como sede o Panamá. Hamilton passou por momentos difíceis nesse congresso, uma vez que o MNU teve uma participação bastante crítica, questionando 42. Arquiteta, conhecida militante do Movimento Negro e primeira esposa de Hamilton.
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a ausência de movimentos sociais e da população negra no evento. Um apoio importante a essa reivindicação foi dado por Humberto Brown, experiente militante do Movimento Negro panamenho, que havia participado do II Congresso e que fazia parte da cúpula do III Congresso. O contexto em que conheci Hamilton – conta Brown – foi quando o pessoal do MNU apresentou uma proposta política dentro da conferência. Em um dado momento, quando acontece o conflito, eu tive problemas com Abdias e as pessoas da direção do Congresso no Brasil, porque apoiei Hamilton e o MNU, que queriam ampliar a participação, iniciar um novo processo, defendendo que eles teriam direito de estar oficialmente no evento. Isso foi visto como uma traição, porque eu tinha integrado a organização da conferência e tinha um lugar dentro da sua estrutura, mas consolidou um pouco minha amizade com Hamilton. Além da dedicação ao trabalho de jornalista, Hamilton manteve uma militância política de esquerda e antirracista, que depois da sua saída da Convergência passou a ser desenvolvida no Partido dos Trabalhadores. Foi no interior do
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PT que ele reencontrou, no início dos anos 1980, o sociólogo José Álvaro Moisés, que ele havia conhecido no final de década de 1970, por intermédio de Dulce Pereira. Dirigida por Moisés, a revista Lua Nova, do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), era uma publicação com perfil intelectual, mas que procurava ter capacidade de intervenção junto aos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e organizações não governamentais. Nas entrevistas que realizou e nos artigos que escreveu para essa publicação, Hamilton organizou a sua reflexão em relação à esquerda, à questão racial e ao momento histórico de restabelecimento das liberdades democráticas. No âmbito da questão racial, merece destaque o artigo “O resgate de Zumbi”, publicado em Lua Nova n. 4, de janeiro-março de 1986. Nesse texto, Hamilton Cardoso fala das consequências políticas do reconhecimento de Zumbi como herói nacional em novembro de 1985: (...) com o reconhecimento do herói e com o tombamento da serra da Barriga, encerra-se a fase em que os negros lutavam apenas para legitimar as lutas antirracistas no Brasil. Um
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bom sintoma de que o objetivo está alcançado é que já há brancos engajados na luta antirracista. Há índios repensando quem e o que são os negros no Brasil. Há mestiços que já oscilam entre a fácil consciência branca e a consciência negra – que cada vez mais deixa de ser tratada como vergonha ou complexo. Há negros que se movem nos sindicatos e nas periferias. Finalmente, as elites elaboram uma nova tática para conter a subversão negra, um risco jamais afastado nos países de populações multirraciais e onde a dominação, além da exploração econômica, baseia-se também no racismo. Hamilton viveu uma experiência que escapa à maioria dos negros e negras: ativista, jornalista e escritor, com lucidez para pensar a discriminação racial além de suas próprias fronteiras. E essas posições e cargos, sabidamente de difícil acesso para um homem negro comum, ele ocupou graças ao seu talento. O que o credenciou a ocupar lugares e posições tradicionalmente estranhos e difíceis a homens e mulheres negros? A sua história de vida nos permite dizer que, mais do que um importante militante para a causa negra brasileira, Hamilton Bernardes Cardoso foi um intelectual, no sentido lato do termo.
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Ao mesmo tempo em que permaneceu ligado a sua cultura de origem, ele estabeleceu um diálogo constante com o meio acadêmico. Foi informante-chave de inúmeros pesquisadores da questão racial, mas também teve uma produção intelectual própria, ainda que sem ocupar um espaço formal na academia. Vários de seus artigos figuraram lado a lado com a produção teórica da elite intelectual do país. Além disso, iniciou na década de 1980 um projeto de mestrado na Faculdade de Ciências Sociais da USP, ao qual acabou não dando continuidade. E aqui talvez seja o momento para trazer à tona um lado de Hamilton, apontado por José Álvaro Moisés, que permite conhecê-lo melhor: o fato de às vezes ser confuso e indisciplinado, nem sempre dando continuidade aos projetos que tinha iniciado. “Esse é um aspecto humano de que me recordo muito. Às vezes tinha que chamar Hamilton às suas próprias responsabilidades, em função das coisas que ele queria fazer, não das coisas que o Cedec propunha, mas as coisas dele mesmo.” O sociólogo situa Hamilton na categoria de intelectual orgânico: “Eu tenderia a trabalhar com a noção de intelectual de um autor como Gramsci, de que as lideranças que são
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capazes, de alguma maneira, de organizar os pensamentos e dar resposta aos problemas de organização do seu grupo, propondo temas, agenda, solução e ação, são intelectuais”. Nesse sentido, Hamilton deu continuidade a uma tradição de pensadores e pensadoras negros, como Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Eduardo Oliveira e Oliveira, Lélia Gonzalez, Lima Barreto, Luiz Gama e Manuel Querino, ao mesmo tempo em que pensou e atuou politicamente no sentido da construção de um país (creio que ele diria um planeta) mais justo para mulheres e homens de todas as cores.
Um longo adeus No dia 1º de maio de 1988, depois de uma festa na Escola de Samba Unidos do Peruche, Hamilton foi atropelado por um automóvel na rua da Consolação, em frente ao cinema Belas Artes. O acidente obrigou-o a ficar internado por mais de um ano na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Recuperou-se parcialmente, mas só conseguia caminhar com alguma dificuldade, o que não o impediu de continuar atuando no PT e no Movimento Negro, mas o afastou da grande imprensa. Foi um divisor de águas na sua vida. O ator,
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o poeta, o amante, o militante aguerrido, o jornalista em ascensão, o intelectual que acreditava na construção de um futuro melhor cedem lugar a um homem amargurado. Segundo a economista Eliana Moraes, companheira de Hamilton na fase final de sua vida, a depressão foi algo que o acompanhou durante os últimos anos, embora não o impedisse de continuar a escrever: MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO a resistência nas ruas
Hamilton era uma pessoa que sofria, tinha crises de depressão. Depois começou a virar depressão mesmo, porque, se você não tem uma forma de trabalhar essas questões, elas vão virando depressão, a pessoa se isola e aí ela não consegue mais fazer as coisas. Mas ele escrevia sempre...
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Esse quadro de depressão levou Hamilton a uma tentativa de suicídio, em 1994. Atirouse do viaduto Pedroso, no bairro do Bixiga, fraturou as pernas, mas sobreviveu. Depois dessa primeira tentativa, voltou a residir na casa dos pais, na Casa Verde, bairro de sua infância. Ficou em minha memória uma frase dele, numa das últimas vezes em que nos falamos e que dá a dimensão do estado em que se encontrava: “A vida me venceu”. Hamilton fez ainda uma segunda tentativa de suicídio,
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jogando-se nas águas do rio Tietê, ato que repetiu em 5 de novembro de 1999, quando faleceu. Humberto Brown diz que, quando soube da sua morte, sentiu que perdeu um amigo que nunca chegou a conhecer como queria, e que o Movimento Negro havia perdido um grande líder. Brown observa que às vezes nosso movimento fracassa em apreciar os tesouros que temos, e a parte pessoal, íntima, o ser humano que existe para além do militante, do quadro político, do jornalista, que é o que precisamos e deveríamos entender quando pessoas como Hamilton estão em crise. Creio que nós mesmos construímos essas barreiras, em que uma pessoa que teve reconhecimento, prestígio, visibilidade não sabe se o irão querer e respeitar quando não é mais o vencedor, o dirigente, o homem atraente e bonito, uma pessoa influente. Mas acredito que seu espírito permanece e que existem muitos Hamiltons dentro de cada um de nós.
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LUTAS DE ONTEM, DE HOJE E DO AMANHÃ
VIOLÊNCIA RACIAL EM TRÊS TEMPOS PAULO RAMOS*
Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa. Lima Barreto
AGRESSÃO POLICIAL CONTRA UM JOVEM NEGRO, DURANTE A MANIFESTAÇÃO “OUTROS 500”, EM PORTO SEGURO, BAHIA, DIA 22 DE ABRIL DE 2000. ©SAMUEL TOSTA
A
violência contra pessoas negras sempre compôs a paleta temática do Movimento Negro Brasileiro desde a sua reorganização, nos anos 1970. A partir de 2007, nota-se em torno desse tema maior intensidade e campanhas sistemáticas do Movimento Negro e de outras organizações, de onde emerge o jargão “contra o genocídio da juventude negra”. A despeito da ampliação da renda, do acesso a direitos sociais e da participação política do último processo de democratização, houve um aumento significativo da violência policial, do encarceramento e dos homicídios em geral.
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Esse cenário desafia as ciências sociais brasileiras por explicações que digam mais que a subsunção dos conflitos raciais aos problemas de
* MESTRE PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR). FOI CONSULTOR DA UNESCO E, ATUALMENTE, COORDENA O PROJETO RECONEXÃO PERIFERIAS, DA FPA.
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PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979. POLICIAL PEDE IDENTIFICAÇÃO AO POETA ARNALDO XAVIER, MILITANTE FUNDADOR DO MNU, QUANDO A CAMINHADA DE ZUMBI CHEGA À PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO.
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©ENNIO BRAUNS/ FOTO&GRAFIA
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classe (negros como pobres) ou de território (periferia). Propomos a interpretação da violência denunciada pelo Movimento Negro sob o nome de discriminação racial, violência racial ou “genocídio”, sendo registrada nas estatísticas pelo viés das relações raciais e relacionando a violência policial, os homicídios e o encarceramento às dinâmicas sociorraciais no Brasil. Para tanto, aproximaremos os principais autores que inspiraram os estudos sobre violência no Brasil às principais teorias sobre relações raciais no contexto brasileiro, sob a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e os debates sobre o racismo. Assim, buscamos um caminho para reconstruir o sentido da
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denúncia da violência presente nos protestos negros desde o processo de redemocratização, observando as principais formas de categorizar a violência vivida pelos negros no Brasil – violência policial e crescente sobrerrepresentação nas taxas de homicídios e nas taxas de encarceramento. O trajeto da reconstrução da gramática dos protestos negros deve percorrer o fio lógico que foi tecido da elaboração das pontes semânticas que foram elaboradas por entre conflitos e consensos59. Ao longo do período analisado, é possível rever momentos de confluência e dispersão da pauta negra diante da variação das pautas defendidas, o lugar que elas ocuparam e a posição delas na estrutura dos documentos. Assim, é possível afirmar que houve ao menos três momentos de consenso – ou confluência – em torno de 59. A. Honneth. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
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ACERVO SOWETO
categorias agregadoras das experiências de desrespeito vivenciadas pela população negra, designadas pela gramática negra. A partir de 1978 vigora o termo discriminação racial englobando o conjunto das experiências de desrespeito expresso pelo protesto negro. Trata-se de um termo que reflete diretamente um ato da vida social e é resultado da prática do preconceito racial. O país vivia uma ditadura militar em decadência e havia uma ebulição de movimentos sociais a pressionar por democracia. Sob o signo da discriminação surge o Movimento Contra a Discriminação Racial. O termo ganha lastro na produção sociológica da época, desde os estudos da chamada escola paulista de sociologia até o livro contemporâneo da criação do MNU Discriminação e desigualdade racial, de Carlos Hasenbalg, de 1978.
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Nos últimos anos da ditadura militar, tomou posse o primeiro presidente civil, em 1985, e uma nova Carta Magna é construída democraticamente em 1988. A violência nas cidades e no campo tomam a atenção do noticiário. Grupos de extermínio, chacinas, pés-de-pato; Carecas do ABC, brigas de gangues de jovens. Toda sorte de problemas vinculados à experiência do racismo seria subsumida na ideia de violência racial. Houve um forte investimento das organizações negras em torno do tema da violência, tematizando, além desses problemas, propostas de esterilização de mulheres negras, de pena de morte, de exclusão da história da África dos currículos escolares, além do desemprego entre negros e outros temas. Essa agenda foi alimentada também por pesquisas sobre direitos humanos ligadas ao tema da segurança pública, entre as quais destacamos um trabalho realizado pelo Núcleo de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo (NEVUSP), que pioneiramente demonstrou a preferência de policiais em atirar letalmente em pessoas negras. Em 2007, o início de um novo esforço coletivo atualiza o termo-síntese da mobilização negra ressignificando o termo genocídio e associando-o especificamente à
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juventude negra. Desempenharam um papel de protagonismo e destaque jovens negros de todo o Brasil, em muitos casos formados pelo movimento hip hop, com a organização do 1º Encontro Nacional da juventude negra, que lançou a campanha contra o genocídio da juventude negra.
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Era um período de democracia pulsante, de implementação de políticas públicas, de intensa interlocução entre sociedade e estado por meio de grandes conferências temáticas nacionais. A ideia de genocídio foi motivada pela escalada de homicídios em massa, mas foi associada também à escalada das taxas de encarceramento, à persistente desigualdade racial, à segregação territorial/racial, bem como às questões de gênero e representatividade. Em 2007, os mapeamentos sobre homicídios ou não existiam, como o Atlas da violência, ou não traziam com confiança o quesito raça/cor, como o Mapa da violência. Contudo, levantamentos preliminares davam conta da tragédia brasileira de aumento dos homicídios e da sua concentração entre jovens homens negros. Sob a ótica do corte etário, a ideia de genocídio surge nos anos 2000 ressignificado, acrescentando à argumentação de Abdias Nascimento problemas da violência policial, do encarceramento e dos homicídios em massa.
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Todos os três termos, não nos seus significados originais, mas sim nos seus significados politicamente construídos pela mobilização negra, expressam uma noção ampla da experiência da violência e da racialização dos sujeitos envolvidos na denúncia. Discriminação racial, violência racial ou genocídio negro procuram abarcar não os atos isolados, eventuais – ainda que graves, ou intensos –, mas atos recorrentes e sistemáticos, diferentes entre si, mas conectados por um mesmo fio lógico. Tal fio lógico amarra cada denúncia específica – preconceito racial, desigualdade de renda, exclusão do mundo do trabalho, por exemplo – dentro de um sistema de exclusão e eliminação material e simbólica dos sujeitos negros. Por isso, não se trata de um ato isolado, nem um processo histórico, mas sim de um sistema que se atualiza e se reinventa a cada contexto e momento histórico.
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Para elucidar melhor tais diferenças entre processo e ato, vale o debate sobre a noção de genocídio. O entendimento comum sobre o que seria genocídio está muito associado a eventos tópicos, intervenções últimas, meios extremos e terminativos que resultam na eliminação – ou tentativa de – exterminar um povo. Assim o é a chamada Decisão final do III Reich Alemão, por exemplo, fato que hegemoniza a memória do que seria um genocídio. Contudo, para a denúncia do Movimento Negro no Brasil nos últimos quarenta anos, a ideia de genocídio sempre esteve associada à de processo, como estabelece o subtítulo do livro de Abdias Nascimento O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado. Desde lá a ideia de genocídio vem desassociada de eventos cirúrgicos como viveram os judeus na Alemanha já nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Para Abdias, o processo que vivenciou o negro no Brasil é de longo termo e estaria espraiado em diversas esferas da vida social, mas principalmente na cultura. Ao longo dos anos nos protestos negros, o que vimos foi, por um lado, a manutenção da ideia de genocídio como processo, mas por outro, a aproximação desse processo a temas mais afins com a eliminação direta de vidas. É esse o fundamento que o chamado genocídio
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da juventude negra expõe. A essa ideia são associados outros problemas sociais que não estavam presentes no livro de Abdias, como os homicídios, a letalidade policial, o hiperencarceramento, além, é claro, da discriminação e da desigualdade racial. A estruturação desse processo, que envolveria desde as mortes de autoria de agentes do Estado até as desigualdades de renda, de educação, de oportunidades, dar-se-ia por vias das dinâmicas raciais da sociedade brasileira. É nosso intento reconstruir o sentido histórico dessa denúncia para criar o sentido sociológico do fenômeno das lutas por reconhecimento em torno do chamado genocídio da juventude negra. Baseamo-nos nos panfletos manifestos e outros documentos de autoria coletiva de organizações do Movimento Negro que registram esse tema. Em que pese a contradição da expressão “genocídio da juventude negra” – “geno” é povo, e não faixa etária –, vale retomar sólidas interpretações sobre o mais notável caso de genocídio, o nazismo, como a de Michel Foucault (em especial, no livro Em defesa da sociedade) e, mais recentemente, a de Aquile Mbembe (no livro Necropolítica), no intento de ponderarmos a extensão da aplicabilidade de suas formulações. Além da interpretação sobre o genocídio, tais autores foram fundamentais
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para a edificação dos estudos sobre violência e trazem consigo articulações sobre raça, racismo e racialização que dialogam com as relações raciais no Brasil.
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A contribuição de Abdias Nascimento expõe o caráter histórico e subjetivo da experiência de negação de direitos da população negra no Brasil. Histórico pois deita raízes desde o século XIX; subjetivo por ter ênfase no discurso sobre a nação. A despeito da radicalidade do termo, Nascimento não falava de mortes em massa. No mesmo sentido, Frantz Fanon – de Pele negras, máscaras brancas – deslinda o mundo colonial por meio da análise das interações subjetivas dos sujeitos, com base na dialética senhor-escravo hegeliana. Ele demonstra a consistente e resistente negação existencial do preto haitiano. Trata-se de uma regular e ordinária ausência de reconhecimento. Para o Fanon de Os condenados da terra, tal cenário alimenta uma “violência atmosférica”, pronta para se insurgir em rebelião política e guerra política interna. No entanto, em uma leitura mais contemporânea, Aquile Mbembe entende que tal violência converteu-se mais em massacre do que em conflito de potências simétricas. Para este camaronês, a violência sistêmica do mundo colonial irrompe-se como uma política de produção industrial da morte, uma necropolítica.
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A violência reportada pelo Movimento Negro por meio dos tropos discriminação racial, violência racial ou genocídio negro não é explicada por nenhum desses autores em separado. O que se vê nos documentos do Movimento Negro é mais complexo, pois o esforço de aliança dos atores é também um esforço de sintetizar o sofrimento do povo negro ao ter sua entrada barrada na loja, ao ter o salário médio inferior ao dos brancos, ao ser morto pela polícia gratuitamente, ou ao ver seu povo morrer em massa nas periferias das cidades. Assim, a violência sempre foi associada, articulada, conectada com outros tantos problemas da vida negra nas cidades e nos campos do Brasil, promovida por uma política que limita e nega o acesso aos direitos sociais e ao trabalho; segrega a população territorialmente; nega o conhecimento à sua própria história; invisibiliza sua produção cultural; encarcera e mata. É uma política que impede a vida subjetiva, legal e material, agindo sobre o indivíduo e sobre o coletivo. Da discriminação, à violência, do genocídio como processo à violência sistemática, algo que poderíamos chamar de sistema de encerramento de corpos, pois atua sobre o coletivo da população negra, dá fim a vidas e limita, cercando as possibilidades ao ponto de não deixar viver.
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Hoje, muitas lideranças continuam firmes nas trincheiras do combate ao racismo. Os movimentos, sobretudo de mulheres negras, ganham força, e surgem novos coletivos para impedir retrocessos e denunciar a ação dos agentes do Estado no sistemático encarceramento e assassinato da juventude negra nas periferias das cidades. O genocídio ainda continua – porque “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, como canta Elza Soares. A desigualdade salarial, de oportunidades, de direitos, sobretudo para as mulheres negras – herança maldita da escravidão que no pós-abolição se moderniza e produz o abandono de milhões de seres humanos à própria sorte –, é o principal motivo que faz o Brasil ser reconhecido como um país antidemocrático, autoritário, conservador, elitista e eurocêntrico. Um país que revive o passado repressor e onde o futuro demora a chegar. Celebrar, por meio deste livro, os quarenta anos do Movimento Negro Unificado (MNU) é um modo de homenagear cada afro-brasileiro, cada negro e cada negra, por resistir e continuar lutando por direitos, cidadania e liberdade até que sejamos todas e todos livres do racismo, da pobreza, do machismo, da LGBTIfobia e de qualquer forma de intolerância. Axé e boa leitura!
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Este livro retrata, por meio de fotos, testemunhos, manifestos e artigos, a história da luta de mulheres e homens negros brasileiros que tiveram no Movimento Negro Unificado (MNU) uma das principais frentes organizadas contra o racismo e a segregação sociorracial. Evocando a força e a bravura de seus antepassados africanos, bem como de figuras históricas que desafiaram o status quo e desmascararam o mito da democracia racial no Brasil, esses atores têm denunciado, ao longo das últimas quatro décadas, a vulnerabilidade da população negra frente ao Estado e no mundo do trabalho, e pautado políticas públicas que buscam reparar as profundas marcas de desigualdade que permanecem após mais de trezentos anos de escravidão. Uma história que ainda está sendo escrita pelas mãos de muitas gerações.
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violência policial, dava continuidade à luta dos nossos antepassados, por isso hoje se junta ao panteão de nossa história: Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, Lenny Blue, Neuza Maria Pereira, Milton Barbosa, José Adão de Oliveira, Rafael Pinto e tantos outros que povoam as páginas deste livro protagonizaram marchas, encontros, festivais, publicações, conquistas constitucionais e políticas públicas para a população negra.
Em 1871, Luiz Gama diria que a resistência é uma virtude cívica. Pouco mais de cem anos depois, em julho de 1978, iniciava-se um grande movimento civil de mulheres e homens negros contra o racismo. Essa luta contra todo tipo de preconceito e discriminação vem de longe, desde quando nossos antepassados foram sequestrados do continente africano e aqui escravizados para enriquecer os colonizadores das Américas.
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO a resistência nas ruas ENNIO BRAUNS GEVANILDA SANTOS JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA (ORG.)
Apoio cultural:
ISBN 978-85-9493-163-4
Apesar da escravidão, resistimos. Hoje podemos evocar uma linhagem de lideranças que bravamente se insurgiram contra a ignomínia de torturas e castigos do cativeiro. Aquilombaram-se. Defenderam a si e aos seus com armas, palavras e manifestações. Com Zumbi e Dandara nos Palmares e João Cândido e Luiza Mahin nas revoltas populares. Com o abolicionismo de André Rebouças, de José do Patrocínio e do próprio Luiz Gama, que atuavam nas redações de jornais e na defesa intransigente da liberdade. Com a alta literatura de Machado de Assis, Maria Firmina dos Reis e Lima Barreto. Com Aristides Barbosa, Solano Trindade e os 200 mil mulheres e homens da Frente Negra Brasileira (FNB) de 1931 – primeira organização que enfrentou as dicotomias raciais e as teses de eugenia contra negros e mestiços. Os nossos antepassados ilustres foram torturados, assassinados, embranquecidos e apagados do panteão da história oficial. Ao lado de tantos outros anônimos, sobreviveram a um verdadeiro genocídio e nos deixaram um riquíssimo legado social, intelectual, cultural, religioso. Um capital simbólico inestimável. Aquela juventude negra que em 1978, em plena ditadura civil-militar, se insurgiu e saiu em protesto pelas ruas de São Paulo bradando que a democracia racial era um mito, denunciando a farsa da abolição e a
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