ano 18 - edição 58 | setembro de 2021
revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR
Beleza interrompida Transtornos alimentares levam jovens a experiências de quase morte.
Corpo da matéria Ano 18 - Edição 58 - Setembro de 2021 Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR REITOR
Waldemiro Gremski DECANA DA ESCOLA DE BELAS ARTES
Ângela Leitão
COORDENADORA DO CURSO DE JORNALISMO
Suyanne Tolentino De Souza COORDENADORA EDITORIAL
Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL
Paulo Camargo (DRT-PR 2569)
COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO
Rafael Andrade
Alunos - 5º Período Jornalismo PUCPR Andre Luiz Festa de Quadros, Beatriz Bleyer de Almeida Martins, Beatriz Garcia Artigas, Beatriz Tsutsumi de Almeida, Bruna Eugenia de Cassia Quaglia Colmann, Brunna Gabardo Roth, Camila Mengarda Acordi, Carlos Vinicius Mazetto Illipronte, Daniela Balieiro Cintra Silva, Diego Diogo dos Santos, Eduarda Fiori Silva Fernandes, Guilherme André Pesch Kruklis, Gustavo Silva Barossi, Herick Pires Lopes, Isabella Serena Demski Casagrande, Isabelle da Silva de Almeida, Isadora Guimarães Mendes Vesguerber, Isadora Picasky Deip, Isadora Vargas Candeia Freitas, Jessica Pretto Varella, Laura Luzzi Siqueira Campos, Lorena Rohrich Ferreira, Lucca Smarrito Marreiros, Luiza Maria Hauer Ruppel, Maria Vitoria Bruzamolin Rodrigues de Oliveira, Mariana Scavassin Vaz Mattos, Nathalia Miguel Brum, Rafael Wolf Teixeira Coelho, Raissa Micheluzzi Ferreira, Rebeca Trevizani de Castro, Ricardo Luiz da Silva, Romano Zanlorenzi, Sabrina de Ramos, Sarah da Silva Guilhermo Galvão, Sophia Becker da Gama, Sthefanny Gabryella Gazarra Borges Pereira, Thamyris Ramos Vieira Candéa, William Zaramella Gonçalves
Imagem de capa: Camila Mengarda Acordi
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SUMÁRIO
O peso da vida
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O perigo está nas redes
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Nem mortadela nem gado
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Os idosos e a tecnologia
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E se essa fome fosse sua?
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Toda ajuda é bem-vinda!
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Porta fechada, discussão aberta
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O verdadeiro pulmão do mundo
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Esportes como fuga do urbano
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Noite em quarentena
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O peso da vida Anorexia e bulimia nervosa estão entre os principais transtornos alimentares que atingem adolescentes. Jovens contam suas histórias de batalha contra a distorção de imagem Alerta de gatilho: transtorno alimentar Beatriz Tsutsumi Camila Acordi Maria Vitória Bruzamolin Sarah Guilhermo
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transtorno alimentar é como uma doença invisível. Inúmeras pessoas carregam essa angústia com comida de forma imperceptível aos familiares e amigos da pessoa enferma. A história de Anna Ulson, 18 anos, foi assim. Ela se considerava uma pessoa extrovertida antes de desenvolver anorexia na pré-adolescência, quando se isolou de tudo. “Eu me via gorda, mas conseguia sentir meus ossos”, desabafou a estudante, que ficou internada no começo de 2019. “Não queria admitir que tinha essa doença, é muito ruim saber que você está se enganando. Em quem vou confiar se não em mim mesma?”. O transtorno é como tentar encaixar as peças erradas de um quebra-cabeça. Anna foi internada no meio do ensino médio. Ela conta que seu coração batia muito devagar. A jovem passou por situações absurdas com os médicos durante o evento. “Tive médicos que prescreviam muita comida para mim e eu dizia: ‘Meu estômago não aguenta’, e eles respondiam, ‘Ou você come, ou eu te coloco numa sonda”. Anna se lembra do que a médica disse para sua mãe quando seus órgãos começaram a falhar: “Não tem mais o que fazer, essa menina vai desligar”. O sentimento de Anna foi neutro. “Foi o momento mais estranho da minha
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vida. Eu não conseguia sentir nada, não não fiquei triste, não entrei em desespero”. Então, voltou a viver como se nada tivesse acontecido. Ela diz como não queria ficar na cama e com isso realizou o sonho de fazer dança. Certo dia após a aula de zumba, chegou em casa sentindo fome e se juntou à mãe na mesa de café. Voltou a ganhar peso e a tratar a obsessão. Essa jornada fez com que Anna melhorasse muito, mas ela nunca relaxou o suficiente por medo de ter recaídas. “Hoje em dia, me vejo 100% melhor do que era, mas sei que preciso me cuidar.” E existe algo sombrio sobre autocontrole que a comunidade de transtornos alimentares compartilha entre si. “Eu não gostava de sentir a doença, eu não gostava que ela fizesse parte da minha vida mais do que já fazia”, conta Lucas*, estudante de Direito, 20 anos. A história do jovem com a anorexia começou aos 15 anos, quando na puberdade ele cresceu e sua figura se tornou mais esguia. “As pessoas achavam bonito, e eu também achei’’, disse o estudante. “Fui inconscientemente tomando modos não saudáveis e perdi a mão.” Sua família notou que havia algo errado no momento em que ele estava abaixo do peso e não se alimentava mais.
Arquivo pessoal
Antes e depois de Anna Ulson.
“A sua relação com a comida não volta a ser uma coisa normal.” *Lucas, estudante
O choque aconteceu durante uma viagem de fim de semana, na qual Lucas e sua família foram a um restaurante e ele, em suas palavras, “comeu como se não houvesse amanhã”. A solução do jovem foi tomar um laxante. Seu estômago entrou em colapso, resultando no jovem vomitando durante a viagem de volta. Assim que chegaram a sua cidade, foram direto ao hospital, onde ficou internado por quatro dias. “Foi uma fase complicada para todos nós”, conta. Após a internação, o estudante passou a morar com sua avó, pois em sua antiga cidade o tratamento não era eficaz. Lucas chegou a pesar 36 quilos. O jovem conta que perdeu sua adolescência e sua rotina se baseava nos estudos: “Eu não tinha a rotina de um colega que era sair depois da escola, eu ficava na escola estudando ou ia para casa”, desabafou. Em 2018, no terceiro ano do ensino médio, Lucas já estava bem melhor. Nesse mesmo ano, fez um intercâmbio para Londres, viagem essencial para sua recuperação final. Hoje Lucas voltou a ser um jovem saudável e divertido.Apesar do período trágico em sua vida, ele conta essa história com firmeza e superação.
Muitos adolescentes e jovens adultos se enxergam acima do peso ao se olharem no espelho. Tais pensamentos muitas vezes se caracterizam como parte de algum transtorno alimentar, por exemplo, a anorexia e bulimia nervosa. Conhecida como anorexia nervosa, mas sem levar ao pé da letra o significado da primeira palavra - que em sua origem grega se traduz por “falta de apetite” -, esse transtorno se caracteriza como uma síndrome gerada pelo déficit de ingestão alimentar baseado no objetivo de não ganhar peso, e não por uma simples falta de apetite. Segundo a endocrinologista Sheila Montano, geralmente tal desejo se funda no sonho de um corpo extremamente magro e não saudável, considerado algo bonito pela pessoa. Pacientes com esse distúrbio costumam ter uma distorção da própria imagem e muitas vezes não percebem a seriedade do caso. Já a bulimia nervosa é guiada por impulsos, nos quais o paciente não consegue controlar seu próprio corpo. Comem compulsivamente em um curto espaço de tempo. Após as crises, o paciente se vê banhado por desespero e em um ato de compensação, acredita em soluções nada saudáveis para eliminar o que acaba de ingerir. Segundo Montano, vômitos autoinduzidos, utilização de laxantes, diuréticos, jejuns prolongados e exercícios físicos muito intensos estão entre os principais métodos utilizados. *O nome foi alterado para preservar a identidade do entrevistado.
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O perigo está nas redes
“FIQUEI FASCINADA POR AQUELE UNIVERSO SECRETO. MEU CELULAR ERA TOMADO DAQUELAS COISAS, ERA UMA OBSESSÃO MINHA.”
Beatriz Tsutsumi, Camila Acordi, Maria Vitória Bruzamolin e Sarah Guilhermo
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s pensamentos em espiral sobre magreza e as calorias ingeridas no dia não são a única coisa que enchem a mente de quem sofre de um transtorno alimentar. Por ser um local de fácil acesso para todos os públicos, as redes sociais possuem grande potencial para criar “gatilhos” a certas doenças, entre elas os transtornos alimentares. No twitter as hashtags #Borboletana, #NF (No food - Sem comida, no português), #ED (eating disorder - em português, transtorno alimentar, ), #TA (transtorno alimentar) são constantemente usadas por internautas, em sua maioria, meninas na adolescência. As tags têm como objetivo se tornar um código “secreto” aos que apoiam corpos extremamente magros. A estudante Anna Ulson descobriu a comunidade de uma forma que considera cômica, como uma piada de mau gosto do universo. “E minha psicóloga me perguntou se eu conhecia a ‘anamia’, e foi assim que eu descobri”, contou rindo. “Fui pesquisar e descobri a comunidade no Tumblr. Eu passava horas vendo fotos de meninas do T.A., lendo depoimentos, salvando dicas para autocontrole, dietas…” Com uma breve pesquisa no Twitter, é fácil identificar um certo padrão entre os usuários das hashtags, que geralmente possuem em sua biografia seu peso
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Arquivo pessoal
inicial, altura e meta. Sempre seguido do aviso “Se não tiver T.A, não me siga”. Eles não querem que pessoas de fora desenvolvam o transtorno também.
“Quem tem transtorno alimentar nunca vai deixar de ter. Temos que ser realistas em relação a isso.”
Anna Ulson, estudante. Uma das hashtags mais utilizadas pela comunidade virtual de transtornos alimentares é a #borboletana, que com seu prefixo “Borbolet”, remete a borboletas, inseto considerado leve e belo pelos membros da comunidade. Já o sufixo “Ana” é frequentemente utilizado para fazer alusão à palavra anorexia, uma forma de personificar o transtorno e transformá-lo em uma pessoa “real”. “Ah, sei lá, deve ser só ansiedade, né?”. Para o estudante de Psicologia, Kaue Cadene, de 19 anos, tudo parecia apenas ansiedade. As crises de vômito, o mal estar e a agonia ao estar fazendo uma refeição eram quase despercebidas. Afinal de contas, ele convivia com a ansiedade desde pequeno. A gota d’água foi um simples comentário de uma pessoa conhecida sobre seu corpo. Bastou isso para que um episódio de vômito acontecesse. A partir daí, a frequência aumentou, o desejo e necessidade de colocar para fora o que tinha acabado de comer parecia ser insaciável. “Não tem droga
Como é realizado o tratamento de um transtorno alimentar?
Cada caso é um caso. Mas, em geral, é realizada uma avaliação de comportamento alimentar e clínica para identificar possíveis deficiências como desnutrição e outras questões biológicas. Em seguida, o tratamento se dá de acordo com os resultados obtidos na triagem, levando em conta diversos fatores e áreas. Entre
que te faça sentir tão bem quanto vomitar, parece que você fica mais leve, fica mais disposto, e isso fica na minha cabeça até hoje”, diz Kaue. Para ele, a bulimia havia se tornado a amiga que o acalentava em momentos de estresse e nervosismo, era um escape, um meio de se livrar de toda a carga que sentia nas costas. “Eu dizia ‘ah, eu sei a hora de parar’, mas eu não sabia que hora eu ia querer parar”. O vício no vômito e a compulsividade por tirar a refeição pouco ingerida marcaram o ensino médio inteiro de Kaue e toda a sua relação com os colegas. A aflição do mau hálito e os dentes amarelos eram reflexo daquilo que ninguém sabia e nem suspeitava. Disfarçar os episódios virou rotina e ir em restaurantes era um pesadelo, foram incontáveis as vezes em que a ânsia e o desespero de ter que correr para o banheiro público vieram a acontecer. Mesmo superado sua pior época com o transtorno alimentar, a bulimia ainda deixa lembranças. Uma simples refeição gera desconforto, é difícil de engolir, como se o corpo entendesse que aquilo que está sendo comido logo seria rejeitado. A relação de Kaue com os alimentos ainda é complexa e turbulenta, mas para quem atingiu a marca de seis vômitos por dia, manter uma refeição inteira no estômago é uma grande vitória. Leia mais Veja alguns exemplos das comunidades nas redes sociais portalcomunicare.com.br
os profissionais envolvidos estão: Psicólogos, nutricionistas, psiquiatras, nutrólogos, pediatras (dependendo da idade), endócrinos e clínicos (para ter uma visão multidisciplinar). Dependendo do caso, ainda podem participar do tratamento fonoaudiólogos, fisioterapeutas e educadores físicos.
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Nem mortadela nem gado Os fenômenos da política brasileira atual se tornaram reflexo de uma polarização histórica-social Bruna Colmann Brunna Gabardo Isadora Deip Sabrina Ramos
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anatismo. É um substantivo masculino que remete à dedicação religiosa obsessiva. Por extensão, é uma concordância cega relacionada a um sistema ou doutrina; dedicação a alguém ou algo; paixão. É o estado psicológico de fervor excessivo e persistente por qualquer coisa ou tema, sendo perigoso em relação à certeza absoluta de suas verdades. A primeira vez que muitos moradores da capital paranaense ouviram falar na palavra “fanático”, pode ter sido relacionado a torcida organizada de futebol do Club Athletico Paranaense Os Fanáticos (TOF). Essa interação entre torcedores acaba se transformando em grupos com uma vontade maior de apoiar o time e de fazer a diferença dentro dos estádios. Na política, não são grupos, e sim pessoas, que até pouco tempo estavam completamente isoladas. Pessoas que se sentem particularmente ultrajadas por determinadas mudanças e encontraram uma linha de transmissão unificando esses grupos. O político acaba sendo um beneficiário: ele se aproveita de uma característica social, do ponto de vista estrutural. Mas o fanatismo se aplica na situação brasileira atual? Segundo a historiadora Andrea Slemian, especialista em História Política
José Cruz/ Agência Brasil
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e do Direito, crises tendem a criar polarizações e a necessidade de um senso de comunidade, como em bairros, igrejas e clubes: lugares e pessoas com ideias semelhantes às suas. Desse modo, formando diferentes fenômenos de identificação, e assim também funciona na política. Essa dinâmica foi ampliada pela internet – por sites que abastecem pontos de vista ideológicos particulares, fóruns de interesses específicos e pelas redes sociais, principalmente Facebook, Twitter e WhatsApp. A participação do novo “torcedor”, amplia o cenário político em um tipo de “rachadura” divisora de opiniões, um combustível cada vez mais inflamável. Ambos os fenômenos, ligados ao ex-presidente Lula da Silva e ao atual presidente Jair Bolsonaro, possuem uma conexão emocional com o passado. No bolsonarismo, o conservadorismo é presente, agregando pessoas que apoiam o governo militar e o Golpe de 1964. No caso do petismo, o partido foi um adepto da luta contra o regime militar, uma raiz profunda em movimentos populares que se organizaram durante a década de 1970.
POPULISMO NA HISTÓRIA Segundo Andrea, o fenômeno “populismo” é recorrente na trajetória política brasileira. Os discursos de um líder populista falam diretamente com a população, provocando sentimentos de identificação entre o eleitorado e seus respectivos candidatos. O governo de Getúlio Vargas é mencionado por ela como uma expressão do populismo no Brasil. “Mais do que um governo, a Era Vargas representou a personificação de um líder político”, explica. A ascensão ao poder do ex-governante foi consequência da Revolução de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes.
Para o Brasil, entre 1964 e 1968, a memória coletiva guardou o radicalismo e o teor político dos discursos da época como principal característica. Era difícil ser indiferente, discutia-se nas universidades, nas assembléias e nas passeatas. Isso é visível devido a um forte movimento de contracultura por parte dos jovens que se colocavam contra velhos hábitos. Temendo a ameaça esquerdista, discursos que se escutavam antes ainda ecoam nas discussões políticas: “São doutrinados pelos professores de história. Seguem a linha de Marx”, explicada pelas raízes sociais e não pela política. Eleitores bolsonaristas normalmente são apelidados de “gados”, entendendo que estas seriam pessoas que apoiam cegamente o presidente. Já os petistas e lulistas são chamados de “mortadelas” pois em manifestações de esquerda os organizadores costumavam entregar lanches para os manifestantes, sendo o principal deles pães com mortadela.
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
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A historiadora aponta que o termo “populismo” é utilizado para casos correlatos, como o peronismo - movimento político que surgiu na Argentina na década de 1940, baseado nos ideais de Juan Domingo Perón. Presidente do país por duas vezes, Péron aumentou o contato com sindicatos e proporcionou benefícios à classe trabalhadora. Andrea destaca a importância de separar práticas populistas de atitudes ligadas ao fanatismo político. “O termo ‘populismo’ faz com que pessoas desavisadas o confundam com ‘fanatismo’, mas não acho que seja a mesma coisa”, afirma. Ela acredita que um líder populista nem sempre vai manejar as características relacionadas ao fanatismo político.
tidos ideologicamente opostos (Republicano e Democrata), e que disputam há mais de um século. O posicionamento do eleitorado brasileiro reflete a formação estrutural do país. Mesmo com a existência de grandes tendências e movimentos políticos “rivais”, a maior parte dos eleitores ainda prefere seguir um outro caminho. De acordo com um estudo do instituto Paraná Pesquisas realizado em março de 2021 sobre o lulismo e o bolsonarismo, 27,6% dos eleitores entrevistados se consideram bolsonaristas; 22,3% se declaram lulistas e 46,3% dizem não fazerem parte de nenhum dos dois.
“Os dois apostam nessa lógica de colocar o eleitorado diante de uma escolha polarizada. ” Elizabeth Balbachevsky, cientista política Apesar de regimes autoritários, como nazismo e fascismo, se iniciarem a partir da configuração de um herói, eles não necessariamente estão atrelados à noção de populismo. “Em geral, no século XX, o ‘populismo’ serviu para ideologias mais conservadoras de direita, porque apelavam mais a identificação com o líder, uma coisa emotiva. No entanto, o termo também caracteriza governos como o de Lula e de Kirchner, na Argentina, que não estão vinculados à forças conservadoras”, explica a historiadora. Além da polarização ser o reflexo de uma crise, é um fenômeno recorrente na história. O Brasil surge como nação a partir disto: no momento da independência do país, haviam aqueles que colocaram-se contra as cortes de Lisboa, e os que apoiaram a não independência. No sistema democrático, a polarização política não representa uma ameaça. O conflito na política é natural e é fundamental que ele exista no ambiente político. Democracias sólidas são polarizadas politicamente. Por exemplo, a democracia dos Estados Unidos é estruturada por dois par-
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Os especialistas divergem quanto à natureza da polarização no país hoje. O cientista político Emerson Cervi identifica o que ocorre no Brasil como uma polarização social. Há um grupo majoritário de homens brancos heterossexuais católicos que se comportam como uma minoria social, o que é responsável pelo conflito social que se reflete na política. “Quando você tem uma minoria oprimida que se revolta ou se levanta contra a maioria, você tem um efeito na sociedade, que é muito mais fraco ou menos visível. E o que nós temos hoje é uma maioria social se comportando como minoria e é óbvio que você vai ter um conflito muito mais exacerbado”. Segundo Cervi, a polarização política manifesta-se a partir de uma consistência ideológica, o que não existe no eleitorado brasileiro. Ele observa que há uma disputa de modelo de sociedade, por exemplo uma sociedade progressista ou conservadora, e uma “projeção afetiva”. Ou seja, não é propriamente a política a raiz da polarização, as pessoas assumem po
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sicionamentos específicos e fazem uso da política para justificar a divergência em relação ao outro, na sociedade. O cientista político também explica que não é possível estabelecer uma relação entre lulismo e bolsonarismo do ponto de vista político, pois o lulismo surge em resposta às políticas públicas do governo Lula, enquanto o bolsonarismo nasce por outra forma de identificação. Somente após o fim do governo Bolsonaro, quando houver uma parcela significativa da população que se identifique e defenda o resultado de tais políticas, é então possível categorizar o bolsonarismo como uma das correntes políticas do país. Para a cientista política Elizabeth Balbachevsky existe uma polarização política forçada, que não é expressivamente do eleitorado em si, mas da dinâmica da competição eleitoral. Estimular essa polarização é conveniente para dois sujeitos distintos, pois existem fortes bolsões de rejeições - que nasceram em decorrência de eventos recentes como a Lava Jato. Além disso, possíveis lideranças de outros partidos, capazes de mobilizar o centro e se fortalecer, configuram uma ameaça para a consolidação de tais candidaturas. “Os dois apostam nessa lógica de colocar o eleitorado diante de uma escolha polarizada. Para o PT, a grande chance dele ganhar é o Bolsonaro como adversário. E para o Bolsonaro, a grande chance dele ganhar é ter o PT como adversário”, comenta. No contexto brasileiro, Elizabeth relembra o processo de impeachment de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016. “O Bolsonaro surge no cenário político há muito tempo, mas é com o impeachment que ele emerge como uma alternativa de coalizão de determinadas forças, que vão investir em sua figura”, explica. De acordo com a historiadora Andrea
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Slemian, Bolsonaro é visto como alguém capaz de unir bandeiras conservadoras, religiosas e moralizantes, como a questão da Escola sem Partido e do movimento pró-ditadura. Mais recentemente, ele se associa a pautas negacionistas, em um movimento que nega a eficácia da vacina contra a Covid-19. “Isso poderia se aproximar a uma ideia de fanatismo, pois um grupo de pessoas é unido em prol de uma mesma crença”. Andrea Slemian explica que essa questão fanática e anticiência é observada em outros personagens políticos ao redor do mundo, como no ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 15 de abril, rejeitar o recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra a decisão que anulou as condenações de Lula. O ex-presidente havia se tornado réu na Operação Lava Jato, em Curitiba, e a decisão do ministro Edson Fachin mandou o caso para a Justiça do Distrito Federal. Com a rejeição do recurso, Lula permanece elegível para as eleições presidenciais de 2022. Andrea acredita que as campanhas para o próximo ano vão se polarizar entre o lulismo e o bolsonarismo, mas reforça as histórias e a defesa de pautas de cada um. “Claro que, no final, você vai ter campanhas que exploram a personificação, mas as trajetórias são bem diferentes”, relata Andrea. Um dos fatores indicados pelo cientista político Emerson Cervi, para explicar a ascensão do bolsonarismo, é uma exaustão perante ao modelo de democracia brasileiro, que foi 20 anos pautado pela direção de dois partidos políticos: PT e PSDB, até 2018. Aliado a isso, ele aponta a criminalização da política. “Ela é consequência da forma como a Operação Lava Jato se deu. Não acho que operações judiciais para combater a corrupção devam ser cri-
ticadas ou estar ausentes da agenda política, mas o problema da Lava Jato foi a forma como ela criminalizou a política, o que contribuiu para o esgotamento do modelo vigente”.
gotamento, acaba justificando a situação brasileira atual. De modo semelhante, vale ressaltar a influência das narrativas midiáticas e das fake-news no comportamento dos brasileiros.
O cientista também considera um terceiro aspecto, que contribuiu para o crescimento do bolsonarismo. “A crise econômica de 2008, no Hemisfério Norte, chegou para nós a partir de 2013, gerando um ambiente de insatisfação, contrariedade e insegurança social”. Cervi acrescenta que Bolsonaro representou um “porta-bandeira” de determinadas características sociais do Brasil, como o racismo estrutural, a homofobia e o machismo.
Maria Aparecida acredita também que sentimentos exagerados que alguns eleitores criam por seus candidatos são tipos de comportamentos desenvolvidos a partir de crenças e valores particulares. Essas atitudes, segundo ela, podem causar problemas nas relações pessoais do indivíduo. “Rupturas estão acontecendo no cotidiano das famílias, nas relações de trabalho, nos atendimentos e serviços, visto que as pessoas podem deixar de frequentar determinados lugares por existir alguém ali com uma ideologia diferente das delas. Isso também afeta aspectos mais específicos, como a escolha de uma cor. Se a cor de alguma roupa ou objeto for vermelha, verde ou amarela, por exemplo, a pessoa pode sentir um impedimento, repulsa ou raiva por relacionar aquilo a algum partido político contrário ao seu.” A representante da ABPP comenta ainda que é importante que as pessoas que possuem heróis dentro da política tentam cultivar relações saudáveis com seus familiares e amigos. Para isso é preciso compreender que aquilo que nem sempre aquilo considerado por alguns como o ideal, o correto para a vida em sociedade, será necessariamente aplicável para toda a humanidade. Portanto, o momento pede prudência e lucidez.
A RELAÇÃO COM A POLÍTICA Com a falta de interesse em se informar em um nível básico sobre tópicos que afetam suas vidas, grande parte dos cidadãos brasileiros abdicam de ter controle sobre esses assuntos, e acabam por gerir os próprios prejuízos sem ter quem os represente de fato. A vice-presidente regional sudeste da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP), Maria Aparecida Cunha Malagrino, pontua que o imaginário das crianças e adultos é construído historicamente a partir de figuras heróicas, cujos feitos épicos são repletos de narrativas poderosas com a finalidade de superar obstáculos cotidianos. Ela acredita que a construção de heróis políticos se relaciona com a tendência que as pessoas possuem de transferir as responsabilidades desde pequenas. “Eu penso que alguns indivíduos preferem ser tutelados o tempo todo. Primeiro é com os pais, depois com os professores e depois com os políticos.” Isso tudo, atrelado a um sentimento de desconfiança das gerações anteriores em comparação com as de agora, a falta de memória ou a memória contábil errada, a indignação e o es-
Leia mais Você sabe o que é personificação e como ela afeta o contexto político brasileiro? portalcomunicare.com.br
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Os idosos e a tecnologia Herick Pires Isadora Mendes Mariana Scavassin Sophia Gama
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vida de Nelson e Terezinha Becker sempre foi muito tranquila. Casados há 52 anos, o marido trabalhava na área comercial de uma oficina e Terezinha cuidava da casa. Nelson, em seus 75 anos, nunca teve muito contato com a tecnologia, nem mesmo no trabalho. “O nosso contato era mínimo, não tinha essas redes sociais. Nós pegamos o telefone mesmo para ligar para o cliente e tudo que você fosse tratar com ele, 80% era ao vivo”. Já Terezinha, 70, era antenada em redes como o Facebook e utilizava o WhatsApp para se comunicar com família e amigos. Com a chegada da pandemia, os dois tiveram que adaptar suas rotinas. Sempre muito próximos da família, precisaram intensificar o contato online. O marido foi afastado do emprego e tarefas como ir ao banco agora são feitas apenas através de aplicativos. Terezinha conta que o período a ajudou a se tornar “expert” nos aplicativos e que tem o apoio da filha e das netas na hora de lidar com eletrônicos. Nelson, por sua vez, não encontra essa facilidade, pois nunca precisou ficar por tanto tempo online.
“O nosso contato era mínimo, não tinha essas redes sociais.”
- Nelson Becker, aposentado A batalha travada entre idosos e tecnologia não é uma novidade, porém, o período de pandemia potencializou essa questão. Antes, a internet era tratada apenas como um adendo para as relações sociais, mas, agora, ela passou a ser algo indispensável para que a comunicação seja realizada de forma segura. Poucos eram os idosos que se sentiam confortáveis com o uso de tecnologias, como o celular e as redes sociais. A
maioria mantinha o aparelho apenas para o básico, como realizar ligações e mandar mensagens. A necessidade de suprir a solidão causada durante a quarentena e a busca por uma melhora na vida cotidiana levaram os grupos de terceira idade a explorar o mundo digital com mais frequência, seja na prática de exercícios remotos, compras online ou do uso diário das redes sociais. De acordo com uma pesquisa publicada no site Kantar Ibope Media, as três principais redes acessadas por esse público são: Facebook (98%), WhatsApp (95%) e Instagram (78%).
O Coral Som do Bosque, do clube Duque de Caxias, em Curitiba, conta com diversos idosos coralistas e, frente ao risco de contágio, agora fazem todas suas atividades à distância. “Tínhamos duas saídas: ou desistir do trabalho, ou continuar com ele da forma mais afastada, essa coisa inédita, que é fazer virtualmente as aulas”, conta o maestro Sidney Gomes, de 33 anos. Para ele, conduzir as práticas com esse público é um “desafio enorme”, mas necessário para a continuidade das produções do grupo. Nair Ishikawa é coralista no Som do Bosque e professora de línguas. Aos 70 anos, ela não imaginou que passaria por uma situação que exigisse tanta imersão no virtual. “Eu trabalho online desde março de 2020. Quando me vi diante dessa realidade, fiquei com muito receio em assumir minhas turmas novamente”, conta. Mesmo com as dificuldades, ela acredita que conseguiu evoluir em seu conhecimento tecnológico ao longo do tempo. Sidney, que tem contato direto com Nair nos ensaios, acredita que a chave para trabalhar com idosos na atual
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situação é a paciência e o incentivo para sanar qualquer obstáculo. A educadora física Márcia Takai trabalha diretamente com públicos acima dos 70 anos e ressalta que também percebeu essa evolução: “Alguns alunos meus pediram para que eu ensinasse a criar uma página no Instagram para que eles pudessem assistir às lives. Eu acabei ensinando a eles como instalar e participar, apesar de saberem somente o básico, para eles já é muito importante”. Segundo ela, o acesso a novas redes possibilita a criação de novos espaços de aprendizado, e destaca que uma de suas alunas está utilizando plataformas como o “Zoom” para aprender a tocar piano, por exemplo. A dificuldade em lidar com as transformações tecnológicas levaram esse público a procurar ajuda para poder dar continuidade às suas atividades sociais, mesmo com o isolamento. Há casos, não tão raros, de idosos que já estavam habituados a alguns tipos de tecnologia antes de precisarem em momentos de emergência, como uma pandemia, mas o hábito de estar em frente a uma tela grande parte do dia nunca foi um costume. Alguns anos atrás, a procura por auxílio tecnológico voltado para a terceira idade serviu de motivação para João Borges, administrador de 38 anos. Ele decidiu desenvolver sua própria
“Alguns alunos meus pediram para que eu ensinasse a criar uma página no Instagram para que eles pudessem assistir às lives.” - Márcia Takai, educadora física
metodologia para fundar o curso “Facilitec - Tecnologia para Pessoas Acima de 50 Anos”, que foca em ensinar funções e aplicativos essenciais para celulares e computadores. O objetivo inicial do curso era auxiliar pessoas com conhecimento quase nulo em relação à tecnologia. Assim como em qualquer idade, a diferença no aprendizado também atinge os idosos, como declara Borges: “Já tive aluno de 80 anos que não sabia nada e em poucas aulas evoluiu, aprendeu e se tornou independente, e tive aluno de 60 anos que fica patinando, tem dificuldade de aprendizado e não consegue evoluir sozinho”. Dessa forma, é preciso trabalhar na questão emocional para que os idosos não se sintam incapazes de aprender Sophia Gama
Nelson Becker possuia pouco contato com aparelhos tecnológicos e redes sociais. Agora, na pandemia, essa situação mudou.
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e acabem se afastando novamente de algo que, hoje, é mais que necessário. O Facilitec acabou se tornando um local de acolhimento para esse público. De acordo com o fundador, “eles veem um curso como um lugar para relaxar, conversar e descontrair”. Contudo, devido ao cenário da pandemia, Borges teve que encerrar o projeto por tempo indeterminado. “Eu fechei o curso por conta dos custos e agora não sei, sinceramente, quando vou retornar a trabalhar com as aulas”. Segundo ele, migrar as aulas para o online não era uma opção devido ao nível de conhecimento e familiaridade do público com os aparelhos digitais. “A maioria dos alunos que nos procuram são alunos que não conseguem nem ligar os computadores”, explica. Ainda sim, a missão de auxiliar os idosos a evoluírem nessa área está longe de acabar para João, que descreve seus alunos como “espetaculares”. Uma dificuldade comum a essa classe de pessoas frente ao cenário atual tem relação com a força de vontade para continuar tentando. Os problemas que Nelson, Terezinha e Nair enfrentam ao se adaptar com essa “nova realidade” não são casos isolados; idosos vivem isso diariamente, desde antes mesmo da pandemia começar. Ser empático e garantir suporte familiar, para que essa faixa etária seja valorizada e não desista é fundamental, agora, mais do que nunca.
Veja mais Quer conhecer mais sobre o Facilitec? Dê uma olhada na página do Facebook do curso portalcomunicare.com.br
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E se essa fome fosse sua?
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Carlos Mazetto, Luiza Ruppel, Gustavo Barossi e Thamyris Candea
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O número de pessoas passando fome no Brasil é crescente. Grupos se organizam para doações e especialistas cobram medidas do poder público
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ove horas da manhã de um dia qualquer nos últimos meses. Josiane, 30, Bruno, 38, Nicolas, 12, Isis, 8 e Laura, 4, estão de pé reunidos na cozinha. O horário rotineiro por si só já emana o cheirinho marcante, doce, amargo e maravilhoso do café. Mas nesse dia não tem café. Não tem bolacha nem iogurte. Apenas chá colhido das ervas no quintal. Desde que começou a pandemia da covid-19, algumas mudanças foram feitas na alimentação da família que mora em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Na hora do almoço, Josi afunda a colher no pote de banha para começar a cozinhar. Com o preço do óleo, mais essa substituição teve que ser feita. No quintal, um cacarejar sem interrupções marca a presença das galinhas, as queridinhas do Bruno. São elas que garantem a presença dos ovos na alimentação da família.
Josiane não tem água disponível todos os dias.O pouco que chega na casa dela a família estoca em garrafas pet.
Com a crise econômica e sanitária gerada pela disseminação da covid, o preço dos alimentos subiu, junto com a dificuldade para achar empregos e meios alternativos para conseguir renda. “Tá tudo muito caro. Se hoje a gente consegue comprar 5 kg de arroz é muito. Antes ia 15 kg por mês. O iogurte das crianças não dá mais pra comprar e o que a gente mais come é macarrão”, conta Josiane, com uma voz abafada e triste. Eles são uma das muitas famílias brasileiras que enfrentam uma luta diária por sua sobrevivência .
A coordenadora da Rede Brasileira de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (rede PENSSAN), Elaine Pasquim, explica que a substituição e/ ou subtração de alimentos no cardápio é um dos indícios de insegurança alimentar. “Quando se reduz esse poder de compra, a primeira medida que as pessoas tomam é tirar os alimentos mais caros, depois elas começam a tirar frutas, legumes, verduras, carne, leite, então começam a diminuir quantidades - são os níveis de insegurança alimentar -, até que um momento se tira também a comida das crianças.” Um levantamento realizado pela nossa equipe, utilizando dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), mostra que o valor médio da cesta básica subiu 40% em dez anos, chegando, atualmente, ao preço médio de R$ 550 no país. Esse valor corresponde a 50% do salário mínimo estipulado para 2021.Os R$ 1.100 propostos para este ano não cobrem nem a inflação do ano anterior. Enquanto abre a torneira na parte exterior da casa, Josi relata como a falta de água prejudica várias partes da vida.”Sem água não dá pra fazer nada”, diz Isis, enquanto olha decepcionada para as gotas que caem da torneira. O projeto “Olhe para a fome”, realizado pela rede PENSSAN, indica que a fome não anda sozinha, sendo a falta de acesso à água potável um dos fatores que aumenta a transmissão do coronavírus, prejudicando os hábitos alimentares e higiênicos das famílias mais pobres do país.
Carlos Mazetto
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Com a criação de uma série de programas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 2014 o Brasil saiu do mapa da fome. Hoje, sete anos depois, a insegurança alimentar volta a assombrar o povo brasileiro. Dados da pesquisa coordenada pela PENSSAN mostram que 55,2% dos lares do país têm algum grau de insegurança alimentar, ou seja, 116,8 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a alimentos. Por uma janela quebrada de uma das casas em Colombo espia uma criança com olhos curiosos. Ali mora Gislaine Machado de Souza, 26, que atualmente está desempregada. Ela divide o lar com mais 11 pessoas, a maioria crianças pequenas e apenas um adulto empregado. “Eu recebi (quando foi demitida) R$2 mil de acerto, mas não deu pra nada… têm as crianças, né? Tem faltado comida. Quando não tem como eu comprar, peço socorro à Igreja, pra não deixar faltar pra eles”, relata com olhos cheios de lágrimas, enquanto as crianças a rodeiam, falam, brincam e interagem entre si. De 2013 a 2018, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8% ao ano. A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN: o aumento da fome foi de 27,6%. Em apenas dois anos, o número de pessoas com insegurança alimentar grave foi de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Para se ter uma ideia da dimensão da fome, esse número corresponde à população da grande São Paulo. É importante observar que, sim, a pandemia da covid-19 agravou a situação de uma forma sem precedentes, mas a insegurança alimentar vem aumentando desde antes da pandemia. O sucateamento dos programas governamentais de segurança alimentar vem ocorrendo de forma sistemática desde 2016. É o que aponta Elaine Pasquim, uma das coordenadoras da
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VigiSAN. “Estratégias políticas para o combate à fome, como o PAA, foram sucateadas, mesmo o Estado tendo obrigação de prover o acesso à alimentação, desconfigurando um direito humano de acesso a alimentos, que está na constituição”, explica.
“O que fez o Brasil voltar ao mapa da fome é o projeto político do governo.” Naomi Mayer, antropóloga especialista em alimentação
Além do desmonte das políticas públicas, a questão alimentar no Brasil também está profundamente ligada à questão agrária. Não à toa as principais políticas públicas responsáveis por tirar o país do mapa da fome estão atreladas a modelos de produção que favorecem os agricultores familiares. Com o desfavorecimento dessas políticas, podemos observar também que, nos últimos anos, o Executivo brasileiro têm se aproximado cada vez mais das grandes indústrias agroalimentares. “O que fez o Brasil voltar ao mapa da fome é o projeto político do governo”, é o que explica a antropóloga especialista em alimentação, Naomi Mayer.
19,l1hões Mi
É a quantidade de pessoas passando fome no Brasil. O número corresponde praticamente a população da Grande São Paulo.
Para Naomi, a chave para o combate à fome no Brasil está na agricultura, mais especificamente no fomento de políticas públicas que priorizem os modelos produtivos agroecológicos da agricultura familiar. Essas políticas públicas são vistas pela antropóloga como práticas “contra-hegemônicas”, que levam alimento saudável à mesa das pessoas. “Se pensarmos que a prática hegemônica agroalimentar no nosso país é a prática latifundiária, de monocultura, de transgênicos e de commodity, a agricultura familiar é contra hegemônica no sentido de que se baseia em coisas completamente diferentes, é uma outra relação com o solo, com o alimento, tudo é diferente, visto que se produz alimento para uma finalidade diferente, que é a alimentação.”, explica.
Os terrenos são divididos em tamanhos iguais e distribuídos, as famílias devem providenciar material para a construção de seus lares. No local, as pessoas convivem com incertezas e o medo de acontecer um novo despejo. Por isso, são grandes os esforços para fazer com que o espaço esteja regulamentado, contando o apoio de advogados e servidores públicos. Pessoas como Valdoir Antunes veem a ocupação como a melhor alternativa para o momento. Afetado pelo desemprego, não pôde pagar o aluguel de sua moradia, além de ter que adaptar sua alimentação por conta do alto valor da cesta básica. “Nós vamos nos adaptando, a carne está mais complicada por conta do valor. Mas então substituímos por outra coisa, e assim vamos nos mantendo”, conta.
UMA NOVA ESPERANÇA Em um domingo ensolarado, há muita movimentação por todo um terreno baldio cheio de árvores localizado na região sul de Curitiba. De um lado, é hora de providenciar o almoço com o pouco que há na geladeira, do outro, os barulhos de martelo nos guiam para construções de novos lares. 387 famílias vivem na ocupação Nova Esperança, surgida em dezembro de 2020, após um despejo violento dessas famílias. A ocupação se organiza de forma autônoma e tenta prover a doação de alimentos, que, para muitas famílias, é a única forma de conseguir sustento no momento. “Eu vejo, diariamente, a tristeza e o sofrimento das pessoas estampados nos rostos delas”, relata Fernanda, coordenadora da ocupação.
Valdoir Antunes prepara o almoço em fogo de chão pois não tem dinheiro para comprar um butijão de gás.
Se essa fome não for sua...
Ações e projetos que você pode apoiar: Marmitas da terra: ação que produz e distribui marmitas para a população em situação de rua, trabalhadores e famílias de Curitiba. Brigada Solidária: Ação movida pelo PCB e coletivos partidários para promover a arrecadação de alimentos e itens de higiene pessoal para as famílias afetadas pela pandemia da covid-19. Tem gente com fome: A Campanha provida por várias entidades para arrecadar fundos no enfrentamento à fome, à miséria e à violência na pandemia da covid-19.
Carlos Mazetto
Em sua pequena mercearia dentro da ocupação, Pedro da Silva e Souza, de 63 anos, conta que tem contato com grande parte das pessoas que residem no local e percebe que ali, mesmo com as doações, as famílias passam fome. Para ele, aposentado, a situação não é diferente “Mesmo com a aposentadoria, tive que adaptar a minha alimentação por conta do preço. Mas está complicado, e posso afirmar que as pessoas voltaram a passar fome, elas não têm renda nenhuma para sobreviver”, relata Pedro.
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TODA AJUDA É BEM-VINDA! O trabalho social aumentou em meio a pandemia, e a dedicação de quem oferece seu tempo ao próximo é fundamental Isadora Vargas, Raissa Micheluzzi, Rebeca Trevizani, William Zaramella
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odo dia é segunda-feira.” É assim que se iniciam os dias dos funcionários da Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS). Para Admaro Pinto, diretor de relações com o terceiro setor da FAS, mesmo com as limitações da pandemia, o serviço que a fundação tem recebido é prioridade e, todos os dias devem ser aproveitados e cheios de trabalho para atender a demanda. Admaro não parou um dia sequer desde o início da pandemia do coronavírus.“Não tive um dia de home office.” Para ele, enquanto houver pessoas que precisam ser atendidas, ele estará trabalhando. A fundação auxiliou famílias com mais de 70 mil cestas básicas e estão previstas mais 35 mil cestas para serem entregues nas próximas semanas. O diretor afirma que a motivação de todos na FAS tem sido “A assistência social é para quem dela precisar.” Enquanto houver aqueles que precisam, eles estarão lá. O isolamento social e a dificuldade ao acesso à informação têm trazido dificuldades para pessoas que são, ou se tornaram mais necessitadas com a pandemia. Mesmo a prefeitura e os governos estadual e federal oferecendo serviços de apoio social, eles nem sempre são suficientes. O aumento no número de demandas por doações, das pessoas mais necessitadas, surpreendeu as ONGs, trazendo o medo da escassez. São pessoas que dedicam seu tempo para a ajuda ao próximo.
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Por este motivo, Fátima Ribeiro Dumas, integrante do instituto Sol Cidadão e vice-coordenadora da Pastoral da Criança, na Arquidiocese de Curitiba, diz que nunca foi tão necessário recorrer às redes sociais. “Estamos fazendo as arrecadações entrando em contato com todos os meus amigos das redes e vizinhos que possam doar, pelo menos, 1kg de alimento, depois juntamos tudo e fazemos cestas básicas. Conseguimos distribuir 50 cestas, em uma semana, e mais verduras, legumes e ovos que
‘Dona Fátima, tem um pacote de leite?’. Dói o coração, se eu não der, não consigo tomar um leite tranquila. - Fátima Ribeiro Dumas chegam e a gente distribui também, tudo para que se possa suprir a fome dos nossos irmãos mais necessitados.” “Com a pandemia, está sendo um grande desafio sair de casa. O que me motiva a continuar fazendo esse trabalho social é o amor ao próximo. Quando você vê uma criança falar: ‘Dona Fá-
tima, tem um pacote de leite?’. Dói o coração, se eu não der, não consigo tomar um leite tranquila. Eles estão com fome Pedi doações para várias pessoas e fui fazer uma visita para entregar cestas de alimentos. Cheguei lá e encontrei as crianças dormindo. A mãe disse que está colocando os filhos para dormir, pois assim eles não pedem comida, que não tem”, disse Fátima. Algumas pessoas iniciam seus trabalhos em ONGs com o objetivo de se organizar para uma possível transformação social, como é o caso do diretor de interação com a comunidade da ONG LGBTQ Grupo Dignidade, Lucas Siqueira. “Por ser gay, por ter sofrido homofobia e sofrer homofobia até hoje, e entender que a gente só vai conseguir um status igual na sociedade, se a gente se organizar, nenhum direito é nos dado, todos são conquistados, são conquistados através de organização”. A maior parte do trabalho de Lucas costumava ser presencial, pois ele atende e encaminha as demandas da comunidade, seja buscando políticas públicas junto às esferas governamentais ou até mesmo encaminhando alguma pessoa ao atendimento jurídico ou psicológico, quando necessário.
gal, muito bacana, tanto a quantidade de cestas que conseguimos distribuir, como também a união da comunidade que nos ajudou a arrecadar”. A pandemia da covid 19 tem deixado a pobreza ainda mais alarmante. O desemprego e a insuficiente ajuda governamental fizeram com que o número de pessoas pobres no país aumentasse e ficassem mais vulneráveis. Segundo levantamento feito pela Central Única de Favelas (CUFA), em conjunto com o Instituto Data Favela e Locomotiva, 82% da população nas favelas estão dependendo de doações para se alimentar. Para conter esse aumento, o papel das instituições de caridade e de ONGS são ainda mais fundamentais.
“Com a pandemia nós tivemos que parar com todas as atividades que envolvem a comunidade LGBTQ diretamente, como a marcha pela diversidade, atendimentos presenciais, rodas de conversa, eventos, reuniões com governadores, e procuramos fazer tudo de forma virtual. Apesar de nossa comunidade sentir muita falta disso, porque é um lugar de acolhimento”, diz Lucas. Durante a pandemia o diretor, junto à ONG da qual participa, realizou uma ação que arrecadou 20 toneladas de alimentos, que foram distribuídos para a comunidade LGBTQ em situação de vulnerabilidade social agravada pela pandemia. Ele relata que foi muito gratificante participar disso e ver sua comunidade unida “Foi muito le-
Atenção a saúde mental!
Rebeca Trevizani Em 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) relatou que 23,9% dos brasileiros apresentavam algum transtorno de ansiedade. Entre os assistentes sociais não é diferente. A psicóloga Anna Carolina Henneberg trabalha no Centro de Atenção Psicossocial de Ponta Grossa, juntamente com uma equipe de assistentes sociais, educadores físicos e terapeutas, afirma que grande parte dos assistentes sociais atuantes com pessoas em situações vulneráveis nesse período tem desenvolvido maiores frustrações e preocupações. “Eu vejo eles muito frustrados, sabe, por não conseguirem lutar contra a maré, contra tudo que está acontecendo agora.” Enquanto o cenário permanece sem grandes mudanças, cuidar da saúde mental é essencial.
William Zaramella
Familia sendo atendida pela Pastoral da Criança na Arquidiocese de Curitiba.
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Lana Patrícia Monteiro
Porta fechada, discussão aberta Indefinição sobre o retorno das aulas presenciais inflama debates públicos e divide os paranaenses Beatriz Bleyer Lorena Rohrich Lucca Marreiros
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om apenas um computador em casa, os três filhos de Alinne Poleski, João, 15 anos, Vítor, 11, e Helena, 9, precisam dividir o acesso às aulas. Eles enfrentam essa “guerra” todos os dias. São sete integrantes ao todo dentro da mesma casa e que, dentre todas as dificuldades da vida “normal”, agora, se enfrentam por conta do excesso de tempo e a falta de organização e preparo. Contra o retorno das aulas presenciais, a mãe acredita que essa é uma fase de aprendizado. “Não acredito que o ensino remoto ensine as crianças como uma sala de aula ensinaria, mas tivemos que nos adaptar a essa nova forma de aprendizado em casa, devido ao momento que estamos passando. Uma experiência totalmente nova, mas ao mesmo tempo desafiadora.”
A abertura das escolas em meio a pandemia tem sido alvo de discussão desde março de 2020, quando o primeiro caso de Covid-19 foi notificado. De um lado, famílias que têm condições de garantir educação de qualidade para seus filhos de dentro de casa, com dispositivos tecnológicos e aulas online. Do outro, irmãos que disputam pela única televisão em casa para assistir às aulas na TV aberta e pais que viam, também, nas instituições escolares uma forma de assegurar cuidado e segurança aos filhos, enquanto estavam trabalhando, e que agora são cobrados em dar um suporte educacional, muitas vezes sem base de conhecimento. Para a socióloga e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Márcia dos Santos, essa realidade escancara as dificuldades en-
“Uma experiência totalmente nova e ao mesmo tempo desafiadora.” Alinne Poleski frentadas por muitas crianças na hora de estudar. Mesmo assim, o problema, muitas vezes, passa despercebido no dia a dia dos familiares. “As famílias com quem eu venho tendo contato, em geral, não têm condições de criar um espaço adequado para que a criança estude, principalmente quando tem mais de uma criança em
casa”, afirma a socióloga. De acordo com a especialista, apenas uma criança da pesquisa afirmou ter um lugar para estudar e esse lugar muitas vezes é inadequado. “Ela senta em uma cadeira ruim, com pessoas circulando. Essa não me pareceu ser uma preocupação das famílias.” A professora Mariana Zétola é uma das milhares de mães que observam de perto as dificuldades e os desafios enfrentados pelas crianças. A mãe de Otávio, de 6 anos, acredita que o maior problema para os estudos do menino em casa são as distrações durante o horário da aula. “Ele precisa ficar das 13h15 às 17h15 assistindo à classe, e mesmo com os intervalos, é muito difícil a concentração ser 100%.” Para ela, a falta de um lugar
Lana Patrícia Monteiro
24,2% dos domicílios com até domicílios com renda per capita de até meio salário não têm acesso à educação remota, segundo pesquisa do Ibope, em agosto de 2020.
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adequado para o estudo certamente prejudicará o aprendizado da criança. “Não temos um espaço ideal para ele estudar, e com mais pessoas em casa, os sons não são nada convidativos”. De acordo com a pesquisadora Márcia dos Santos, o cenário pandêmico tem cobrado que familiares deem suporte educacional às crianças no ensino remoto, mesmo que essa não seja uma situação possível para todos. “Conversando com uma das famílias para a pesquisa, quem ensina o mais novo da casa são os dois irmãos mais velhos, já que a mãe não teve acesso à educação”, afirma Santos. Para a pedagoga Júlia Cardoso, do Colégio Municipal Professor José Wanderley Dias, em Curitiba, o papel dos pais na educação dos filhos é importante, mas em muitas famílias existem defasagens. “Temos casos em que a família trabalha direto, pais que são analfabetos, que não moram com os filhos. Todas essas situações prejudicam”, explica a especialista. De acordo com o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), a taxa de adultos paranaenses com ensino fundamental completo é de 7,2 %, enquanto o número de pessoas com mais de 18 anos com ensino médio completo é de em média 23%.
Segundo a psicóloga, é importante investir no acompanhamento psicológico tanto dos filhos, quanto dos responsáveis. “O que nós indicamos aos pais é que esses se envolvam realmente nos estudos dos filhos. Vale a pena também reiterar que os filhos são capazes e que vamos passar por cima de todas as dificuldades. Eu indico aos pais a fazerem ou levarem as crianças a um apoio psicológico, para que seja mais fácil lidar com esse período”, acrescenta a profissional. Impossibilitada de frequentar o espaço escolar, por conta da pandemia, Fernanda Zanetti, de 14 anos, vem tendo dificuldades em aprender. A filha de Angela Cristina Zanetti sofre de deficiência intelectual (DI) e necessita de maior amparo nos estudos. “Ela não consegue acompanhar as aulas pela TV sozinha, precisa de auxílio e, como eu trabalho fora, ela fica com a avó, que não consegue dar o suporte necessário. Mesmo tomando remédio para atenção, ela não consegue focar em casa.” O ambiente em que estuda, a mesa da cozinha, não favorece: “Tudo a distrai’’, afirma Angela.
o EMOCIONAL PANDÊMICO
De acordo com a psicóloga Daniela Lins, a pandemia trouxe consequências psicológicas às crianças. “A maior consequência vista dentro dos consultórios é a ansiedade. Tenho recebido uma grande demanda de crianças com ansiedade, precisando em alguns casos fazer o uso de medicamentos.”
Para a especialista em Psicologia Infantil Daniela Lins, os pais não estão preparados para darem apoio aos filhos. “Os pais estão muito angustiados nesse momento e isso faz com que eles se atrapalhem na hora de manejar os estudos dos filhos”, diz.
Esses efeitos psicológicos, segundo a especialista, têm atrapalhado os estudos dos alunos. “Recebi pacientes que não querem mais assistir às aulas, e também pacientes que assistem, mas começam a chorar frente aos conteúdos novos”, conta.
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Fechamento & abertura
Os principais decretos publicados pelo governo do Estado em 2020 e 2021 sobre a abertura e fechamento das escolas durante a pandemia.
NO OUTRO LADO DA MOEDA Moana Monteiro Rebouças, 16 anos, mora com a prima de 20 anos, Lana Patrícia Monteiro, e com os avós, ambos com mais de 60 anos. Estudante do último ano do ensino médio de uma escola particular em Curitiba, está entre inúmeros jovens que tiveram que se adaptar às dificuldades encontradas na pandemia. Sua preocupação: os vestibulares e como lidar com a situação em um momento de grande definição pessoal e profissional. “No começo, era mais difícil, porque não estávamos acostumados.” Apesar da incerteza, Moana reconhece: “Eu tenho muito privilégio, eu tenho o meu canto de estudo, o meu notebook próprio e condições para isso”. Na instituição em que estuda, são poucos os alunos que não têm dispositivos tecnológicos para o estudo e “aqueles que não têm acesso, a escola providencia o suporte”, afirma. A rápida adaptação e a organização da escola particular em que estuda foi fundamental para a estudante sentir segurança no cenário educacional. Apesar da recorrente mudança no âmbito da educação, no cenário pandêmico, a instituição criou cronogramas e disponibilizou conteúdos para o modelo remoto. Rebouças também contou que não realizou o ENEM em 2020. “Eu não achei que era a hora para aglomerar.” A estudante ainda afirmou não concordar com o retorno das aulas presenciais neste momento. “Tem muita gente morrendo, então precisamos nos cuidar o máximo possível, principalmente se a gente tem como ficar em casa”. *Os nomes das crianças citadas na reportagem foram preservados.
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Publicado em 16 de março de 2020, o decreto 4230/20 determinou a suspensão das aulas presenciais em escolas e universidades públicas.
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O Decreto 6637/21, publicado em 20 de janeiro de 2021 sancionou o Art 8º que autorizava a retomada das aulas presenciais em escolas estaduais públicas e privadas e em universidades públicas.
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Decreto 6983/21, 26 de fevereiro de 2021, adotou medidas rígidas suspendendo serviços não essenciais e toque de recolher, inclusive as aulas no estado.
No dia 8 de março de 2021 foi publicado o decreto 7020/21 que voltou a autorizar o retorno das aulas presenciais da rede pública e privada em universidades públicas, a partir do dia 15 de março. O governo estadual voltou atrás devido a gravidade da situação no Paraná, proibindo o retorno das atividades da rede estadual. As instituições privadas seguiram ofertando as aulas presenciais.
Veja também Acesse a linha do tempo completa dos decretos sobre a abertura e fechamento das instituições de ensino do Paraná. portalcomunicare.com.br
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O verdadeiro pulmão do mundo UNESCO inicia a Década Internacional das Nações Unidas sobre a Ciência Oceânica e o Desenvolvimento Sustentável. Isabelle Almeida, Jéssica Pretto e Nathalia Brum
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onhecemos mais sobre o espaço sideral do que sobre os oceanos que estão diante de nós. A imensidão azul que atrai milhares de pessoas todos os dias para desfrutar de um banho de mar ou apenas aproveitar a vista é abrigo de uma gigantesca biodiversidade. Entretanto, o que poucos sabem é que cerca de 80% da sua composição nunca foi mapeada, observada ou explorada. Preocupada com esse dado e com a preservação da biodiversidade marinha, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu início este ano à Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, popularmente chamada apenas de Década dos Oceanos, proposta
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em 2017. O marco tem objetivo de gerar e divulgar conhecimento relacionado ao oceano. Por mais que seja pequeno nosso conhecimento sobre toda essa imensidão azul, cerca de 3 bilhões de pessoas dependem diretamente da biodiversidade marinha e costeira para sua sobrevivência, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Essa dependência, que deveria ser o motivo para a preservação do ecossistema marinho, ameaça sua sobrevivência e prosperidade. A Netflix lançou recentemente o documentário Seaspiricy, abordando a destruição catastrófica que é imposta aos oceanos em todo o mundo e com a intenção de mudar a forma de pensar e agir sobre a sua preservação. O documentário repercutiu na internet com confrontos à veracidade dos dados utilizados e supostos exageros propositais adicionados ao roteiro, sem falar das fortes críticas da indústria da pesca. Entretanto, a produção aborda de forma verdadeira o impacto que a ação humana está causando na sobrevivência da vida marinha e pode causar também à nossa, em um futuro bem próximo, caso não sejam providenciadas mudanças. Acessível à boa parte da população, o documentário ajuda a despertar o interesse das pessoas sobre os oceanos e sua preservação, encaixando perfeita-
mente seu lançamento com o início da Década dos Oceanos. A agenda muito ambiciosa da UNESCO tem como intuito discutir sobre a importância de conscientizar todos os países sobre a necessidade da preservação dos oceanos. “A comissão oceanográfica intergovernamental da UNESCO está coordenando esse processo globalmente e cada país tem liberdade de desenvolver esse projeto”, afirma Glauco Kimura, Oficial de Projetos do Programa de Ciências Naturais da Unesco. No Brasil, o comitê gestor do projeto liderado pela UNESCO é formado por 15 instituições, entre elas ongs como a Rare, a Fundação Boticário para Proteção da Natureza e a Confrem. Entretanto, nem todas as instituições e empresas conseguem enxergar a importância da Década. “Tivemos um envolvimento maior de alguns governos e das universidades. Um dos nossos objetivos é atrair as empresas da chamada economia azul, que são as empresas que dependem exclusivamente dos mares como portos, transporte aquaviário, pesca, petróleo”, ressalta Glauco. Os oceanos possuem uma riqueza que equivale a quinta economia mundial, por isso o envolvimento do setor industrial é de suma importância. “Queremos fortalecer a pesquisa e os investimentos sustentáveis dos oceanos no Brasil”, enfatiza. Apenas 1% do investimento em ciência no mundo é destinado a pesquisas oceânicas, de acordo com o último Relatório da Ciência Oceânica Mundial. Um dado alarmante e que preocupa cientistas que olham com atenção e preocupação para a situação atual dos
oceanos. “Precisamos de mais investimento em ciência oceânica. O homem conhece mais sobre a superfície da Lua do que os oceanos, e isso é inaceitável”, contextualiza Glauco.
“Eu ainda tô lutando hoje, em 2021, as mesmas batalhas que eu lutava em 1968 quando entrei pro movimento ambiental.” José P. Truda, ambientalista.
A médica veterinária que trabalha com animais marinhos Rafaelle Monteiro relata que a relevância desta série da ONU também é passar a informação para as pessoas, sobre todos os prejuízos desse problema. “Trabalhando com educação ambiental, divulgando a importância de estudar e preservar os oceanos e o ecossistema que está ali. Além de divulgar para a sociedade, alertar os órgãos federais, comprovando cientificamente que se não melhorarmos as condições do oceano, lá na frente não vamos conseguir reverter o quadro”, diz.
MAR DE PLÁSTICO Praticidade e comodidade, duas coisas que o plástico proporciona ao nosso dia a dia e são muito valorizadas na vida moderna. Mas a que preço? O material leva cerca de quatrocentos anos para se decompor na nature
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za. E, todos os dias, 890 toneladas de plásticos são despejadas no mar brasileiro. Parte desse volume de lixo é ingerida por animais marinhos, e outra parte se decompõe em fragmentos, se tornando microplásticos que vão parar dentro de peixes de todas as espécies, incluindo aqueles que são ingeridos pelos seres humanos, o que faz com que cheguem à nossa alimentação com consequências ainda desconhecidas a nossa saúde. Rafaelle trabalhou em instituições que fazem monitoramento de praias e resgate e reabilitação de animais encalhados. Ela conta que a ingestão de resíduos antrópicos por animais marinhos é a causa de muitos encalhes. “Naqueles animais que já são encontrados em óbito, fazemos a necropsia, na qual acabamos encontrando esses resíduos. Ou animais que encalham vivos e durante a reabilitação excretam o lixo junto das fezes. É muito comum, principalmente nas tartarugas marinhas. E o plástico é o principal resíduo”, conta. Estima-se que aproximadamente 70% de todo o plástico produzido no mundo vai parar no mar. “Conversando com mergulhadores e biólogos que trabalham na área, eles afirmam que podemos encontrar plástico em todos os cantos do planeta. Os nossos oceanos não podem ser uma grande lata de lixo”, reforça o pesquisador Glauco Kimura.
NEM SEMPRE É O QUE A GENTE ESPERA “Quando ia me formar em Biologia, achava que ia trabalhar com insetos nos parques e praças de Curitiba,
acabei montando um projeto para ir para Antártida, tempos depois, pela PUCPR. Foi quando cheguei lá, àquele fim do mundo, e encontrei lixo, redes de pesca e até latinha de refrigerante, que eu vi que o oceano precisa de ajuda. E a minha vida mudou”, desabafou Carlos José Gomes, professor da área de Gestão Ambiental da PUCPR. Depois de sua experiência, ao voltar ao Brasil, ele começou a se aprofundar na situação da costa brasileira, principalmente no litoral do Paraná. Os resultados que obteve com a busca deixaram Gomes inconformado. Segundo ele, além de toda a poluição que afeta a costa brasileira há anos, o que é inaceitável é a falta de políticas públicas preocupadas com a preservação e renovação dos mares brasileiros e, pior ainda, a existência, alguns anos atrás, de um Ministério da Pesca. “Temos pescadores aqui no litoral, que cercam tainhas com seus barcos e jogam dinamite, matando todos os tamanhos de tainha. A pesca de camarão que tanto ouvimos falar, é, na verdade, uma pesca predatória, coloca-se uma rede no fundo do mar trazendo tudo que você imaginar, de uma única vez”. Segundo Gomes, o maior motivo para os mares estarem comprometidos como estão hoje, é a desinformação. Por isso, para ele, iniciativas como a da ONU de criar uma década de pesquisa e conscientização sobre o oceano
“A gente sempre viu o oceano diferente, como aquela coisa que não acaba nunca.”
Carlos José Gomes, biólogo.
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é tão importante, por mais que, em sua opinião, a organização devesse ser muito mais agressiva. “A gente sempre viu o oceano diferente, como aquela coisa que não acaba nunca. Mas, se o mar continuar como está, nos próximos 50 anos teremos um massacre sobre os oceanos. Temos que conscientizar as pessoas sobre eles e promover mais estudos para adquirirmos mais conhecimento científico”. E uma das formas mais incríveis de conscientizar sobre o assunto e instigar a população é através de séries e filmes. Assim como no documentário Seaspiricy, a UNESCO tem em mente a divulgação de uma websérie voltada a conhecer mais sobre os oceanos que será implementada em escolas de todo o país. “Junto com a Unifesp e o projeto Maré de Ciência, a websérie terá 50 capítulos e duas temporadas, como uma série da Netflix mesmo, e cada capítulo vai abordar uma área diferente do oceano”, comenta animado Glauco Kimura. O conhecimento precisa chegar aos pequeninos, pois eles podem reverter a situação em que vivemos atualmente. A verdade é que o pulmão do mundo não é verde e terreno como as florestas que temos em mente, é azul e concentra em suas águas as maiores produtoras de oxigênio do planeta: algas marinhas. Sozinhas, elas são responsáveis pela produção de 54% do oxigênio do mundo, segundo dados do Instituto Brasileiro de Florestas. Gomes destacou também sobre outra função que também caracteriza os
oceanos como o pulmão do mundo, a sua função de grande captador do gás carbônico que circula na atmosfera. Mas, de acordo com ele, a grande poluição que invade as águas marinhas ameaça o cumprimento desse papel tão fundamental no “corpo” da Terra. “Os oceanos estão recebendo todo ano cerca de 8 milhões de toneladas de plástico. Não só de plástico, mas de tudo, plástico é mais comentado pois dá ibope. É muito triste você ver que as pessoas não cuidam nem da mata que está diante delas, aí eu penso, uma pessoa dessa vai se preocupar em cuidar do oceano? Claro que não! Temos que entender que cada um é um habitante do planeta Terra, ela é a sua casa. E aí eu pergunto, você não vai cuidar da sua casa para seus filhos, netos e outras gerações futuras?”, questionou Gomes. E a mata tem um papel muito importante na preservação dos oceanos. Como a restinga, que é um ecossistema costeiro que faz parte do Bioma da Floresta Atlântica, e serve como proteção a muitos animais, inclusive os ameaçados de extinção, que usam a vegetação como abrigo. A restinga é um berçário de vida marinha, as tartarugas precisam deste espaço para colocar seus ovos. “Pequenos filhotes de tartarugas são muito afetados pela luz. Eles veem os postes elétricos, e, achando que é o sol, que é a referência deles, acabam indo em direção à cidade ao invés do mar. É isso que acontece quando um litoral não tem restinga”, relata Juliane Nonato,
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bióloga e presidente fundadora do Instituto Pró-Restinga, de conservação da fauna e flora da restinga e manguezal do litoral paranaense. A especulação imobiliária coloca as restingas em ameaça. “As pessoas querem morar na beira da praia, encostadas no mar, querem o calçadão para caminhar, e para isso precisam tirar a vegetação. E nós temos uma contradição porque as restingas são áreas de proteção permanente, mas se for para beneficiar a população, elas podem ser retiradas”, diz Juliane. E as construtoras se aproveitam dessa brecha na legislação, colocando em risco essa área que deveria ser preservada.
ESPERANÇA PARA O FUTURO? Os oceanos passaram por muitas mudanças com o aquecimento global e com a caça predatória das baleias, mas é possível enxergar uma mudança significativa. Em 4 décadas de estudo foi possível observar de perto algumas das consequências da irresponsabilidade de alguns governos, é o que conta José Palazzo Truda Júnior, fundador do Projeto Baleia-Franca e ativista ambiental. O esforço que os pesquisadores têm feito durante décadas está sendo capaz de mudar essa realidade. “Nós estamos vendo as baleias retornarem como nunca pensamos que fosse possível, ainda mais as baleias azuis, as que chegaram mais perto de uma extinção pela caça indiscriminada”. Por outro lado, a sobrepesca tem chamado a atenção dos pesquisadores, principalmente a pesca dita artesanal, quando é feita sem qualquer controle e que pode causar muitos danos. Na pesca dessa modalidade, não acontece apenas a captura direta das espécies que são alvo, mas também a pesca incidental de espécies vulneráveis ameaçadas como tartarugas, tubarões e até mesmo albatrozes. Segundo Truda, grandes mudanças estão ocorrendo no mundo inteiro a favor do planeta e da biodiversidade. O motivo para toda onda positiva de ações, segundo ele, é a tomada de consciência por parte dos governos,
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indústrias e empresários de que se os oceanos forem comprometidos, seus trabalhos serão comprometidos. E para continuar trabalhando, a conservação da natureza torna-se uma exigência. Infelizmente, como de costume, essa onda positiva está atrasada no Brasil. Segundo o ambientalista, ela ainda está longe da nossa realidade pelos próximos pelo menos 30 anos. “É inacreditável que eu ainda tô lutando hoje, em 2021, as mesmas batalhas que eu lutava em 1968 quando entrei pro movimento ambiental. Ainda estamos lutando com o governo federal que não se interessa em transformar a pesca em algo mais sustentável, com prefeitos que continuam derrubando as áreas de preservação urbana porque não acreditam nas áreas naturais que restam e não entendem que aquilo é um patrimônio inestimável da cidade. Sem falar que é o equipamento indispensável para a sobrevivência das pessoas no meio urbano”. Mesmo sentindo de perto todas as mudanças que acontecem no fundo do oceano, José se diz otimista e acredita que a resposta para todos esses problemas está nas gerações mais novas. “Está surgindo uma nova geração de José Palazzo Truda Júnior
José Truda em visita ao Parque Marinho de Bonaire, Caribe Holandês, 2004.
políticos, empresários, pesquisadores e de cidadãos com uma visão de mundo diferente, muito mais consciente sobre o que está acontecendo e disposta a mudar hábitos, a participar da vida política e fazer com que os oceanos sobrevivam”. Entretanto, segundo Gomes, o crédito dessa mudança é dos próprios jovens. “É muito triste você ver as pessoas mais velhas, os professores, os doutores, desestimulando os mais jovens a praticar cidadania com o seu conhecimento acadêmico científico. Então, eu hoje vou a eventos e converso com pessoas mais jovens com a única e exclusiva intenção de colocar minhoca na cabeça delas”. A boa notícia é que as minhocas já estão sendo implantadas. É o que garante Rafaelle Monteiro. Seu filho Luca, de apenas 8 anos, já participa desde mais novo com a mãe em atividades ligadas ao mar e sua preservação. “Quando meu filho nasceu,eu já trabalhava na área de marinhos. Era impossível ele não gostar também. Rafaelle Monteiro
Sempre que vamos na praia, ele recolhe lixo e fala com as pessoas sobre a importância dessa prática. É muito importante conscientizar as crianças sobre a preservação da natureza, elas devem ser nosso foco principal porque aprendem muito mais rápido. E inteirar as crianças é muito mais fácil porque elas não têm pensamento formado sobre as coisas, diferente dos adultos”, explica Rafaelle. Também apaixonado pelos oceanos, Luca é surfista profissional e já conquistou diversos prêmios em categorias infantis de surf em Sergipe. Com grande influência nas redes sociais, ele também mostra sobre a rotina marinha da família aos seus seguidores, isso quando não está juntando lixo na praia e participando de mutirões de coleta. Com apenas pequenas ações que estão ao seu alcance, Luca contribui com a preservação do planeta e serve de exemplo para o público infantil de como podemos transformar nossa realidade em oportunidades que estão bem à nossa frente.
Participação Luca Messenger em multirão para colher lixo na praia em Aracaju - SE.
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Esportes como fuga do urbano Atividades com contato com a natureza proporcionam alívio psicológico
André Festa, Laura Luzzi, Rafael Coelho e Romano Zanlorenzi
Rosane Pikussa
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pandemia impôs o isolamento, a restrição da maioria das atividades e até o distanciamento de familiares, sem contar o desespero diante de um cenário de milhares de mortos diariamente. Todos estes fatores foram os responsáveis pelo aumento no número de casos de doenças psicológicas durante 2020. De acordo com levantamento feito pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), houve um aumento de 82% de novos casos de transtornos mentais durante a pandemia, dentre eles transtorno de ansiedade, pânico, alterações significativas de sono e depressão. Houve, também, um aumento de 16% no consumo de antidepressivos, indutores do sono e estabilizadores de humor no último ano. Outro dado alarmante refere-se aos pacientes que já haviam recebido alta nos seus tratamentos psicológicos: 70% tiveram recaída no mesmo período. A fim de evitar o desenvolvimento de doenças psicológicas, diversas pessoas recorrem às atividades físicas. Para a psicóloga Rebecca Milazzo, a prática de esportes e exercícios que movimentam o corpo favorece muito a di-
cios para as pessoas que eu atendo”, comenta a psicoterapeuta. Além disso, ela ressalta que o ser humano é essencialmente social. Por isso, em tempos de isolamento, estar com outras pessoas faz muito bem para o bem-estar psicológico, e praticar exercícios em grupo pode contribuir muito ao favorecer esse contato com o outro, mas sempre prezando pela segurança dos envolvidos. A administradora Roberta Vidal, de 36 anos, é um exemplo claro desta situação. Ela começou a praticar futevôlei no início de 2021, quando percebeu que a vida não voltaria ao normal tão cedo. Para ela, os esportes ajudaram a aliviar o estresse do dia a dia e, por ser uma amante de praia, optou por um esporte que a aproximasse desse cenário. “A atividade física em si já diminui a ansiedade, proporciona bem-estar, o aumento da autoestima, entre outros benefícios. Aliado ao contato com a natureza, o ganho é maximizado”, completa Roberta. Além disso, ela comenta sobre a importância da sociabilização proporcionada pela atividade física coletiva neste tempo em que passa a maior parte do tempo em isolamento social.
“A atividade física em si já diminui a ansiedade, proporciona bem-estar, o aumento da autoestima, entre outros benefícios. Aliado ao contato com a natureza, o ganho é maximizado.” Roberta Vidal, administradora e praticante de futevôlei minuição da ansiedade, alivia sintomas de depressão e contribui para o sono. Ela explica que, ao se fazer exercícios, há a liberação de endorfinas no cérebro, que são substâncias que geram sensação de bem-estar emocional. “A prática de atividades físicas faz com que a atenção do indivíduo se volte para o corpo, ou seja, prestamos atenção em nosso corpo e tiramos o foco de nossos pensamentos. Sempre recomendo a prática de exercí-
O ex-jogador, empresário e sócio do Centro de Treinamento Pé na Areia, Dinelson Lima, relata um aumento significativo na busca por aulas de futevôlei durante a pandemia. Esse novo público é majoritariamente de pessoas que buscam o esporte visando o lazer e a oportunidade de praticar uma atividade física em um ambiente amplo, fugindo do ambiente das academias e das exaustivas repetições dos exercícios mais comuns. O contato com a
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Deco Pestana / Divulgação instagram Pé na Areia
Centro Esportivo Pé na Areia areia, que remete à praia, é mais um fator importante para os praticantes. Aliado a isso, Dinelson conta que outro motivo para esse aumento é a sociabilização mais segura que nos esportes de contato como futebol, por exemplo.
Rafael Coelho
Pelas restrições sanitárias impostas para diminuição do contágio pela covid-19, quadras poliesportivas foram proibidas de funcionar por serem ambientes fechados e com maior aglomeração, enquanto as quadras de areia, muitas vezes, são abertas, com número de praticantes bastante reduzido e com menor contato. Por isso, puderam voltar a funcionar antes.
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Segundo o personal trainer, Emanuel Andrade, muitas pessoas buscam em esportes alternativos uma maneira de fugir do cotidiano urbano, o que fica evidente ao relatar que a maior procura dos alunos da academia foi pela natação. O contato com a natureza, ainda que de maneira reproduzida como piscinas e quadras de areia, faz com que os sentidos naturais das pessoas sejam aguçados, fazendo com que as poluições sonoras e visuais, que são abundantes no ciclo urbano diminuam e aumente o rendimento nas atividades praticadas. Por isso, segundo Andrade, é importante que se pratique esporte ao ar livre, melhorando o bem-estar e ajudando a
“Devemos pensar primeiro no bem coletivo e depois no individual. Por isso, é importante respeitar todos os decretos e orientações durante a prática, não só das atividades de aventura, mas de qualquer atividade física.” Rosane Pikussa, professora de educação física desempenhar melhor nas atividades esportivas e cotidianas. Da mesma forma, a professora de educação física Rosane Pikussa ressalta que os esportes que proporcionam algum contato com a natureza despertam o sentimento de conexão e de pertencimento ao mundo. Essas atividades fazem com que se preste mais atenção nos cheiros, sons e texturas, o que dificilmente acontece nas grandes cidades, uma vez que o indivíduo está sempre preocupado e realizando alguma tarefa, sem momentos de descanso efetivos. Além disso, ela comenta como essas práticas são importantes para o autoconhecimento, fazendo com que o praticante preste mais atenção nele, no seu corpo, nos seus sentimentos e, após a atividade, sinta uma sensação gratificante.
Pikussa salienta que o esporte é uma prática bastante coletiva, portanto deve seguir as medidas de segurança, decretos e orientações de profissionais da saúde.
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Noite em quarentena Fechamento de bares e casas noturnas gera um efeito dominó em todas as peças envolvidas do setor Daniela Cintra Sthefanny Gazarra
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ocê já se deparou com algum filme ou série nas plataformas de streaming, em que a temática é sobre jovens que são levados para outros mundos para viverem isolados da realidade que conhecem? Ou em que a sociedade vive o drama de precisar viver em um mundo assolado por um vírus letal? As telas do cinema abordam há décadas essa temática de uma forma que nós, espectadores, nunca cogitamos a possibilidade de tal ficção estarrecedora invadir a nossa vida real. Mais de um ano após a fantasia ter se tornado realidade e a lei de quarentena no Brasil ser aprovada, um dos segmentos mais afetados foi o do entretenimento. O setor não tem perspectiva de retomada das atividades, paralisadas desde março de 2020. Diferentemente dos restaurantes que estão conseguindo se manter em funcionamento devido ao delivery de comidas, os bares e casas noturnas tinham como maior atrativo a aglomeração de pessoas e socialização em antes da pandemia. Os drinks e comidas eram só um pretexto para os frequentadores. Por conta de não ser um serviço essencial, bares e casas noturnas acabam sendo deixados de
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lado e não tendo o auxílio que merecem, para sobreviverem em meio à crise por conta do Coronavírus. O sentimento é de desespero para os donos, que tentam fazer com que os negócios resistam em meio à pandemia. Enquanto alguns proprietários de estabelecimentos aproveitam o tempo parado para fazerem reparos nos locais, outros tateiam no escuro à procura de uma saída de emergência, em medidas mais drásticas, muitos acabam se vendo obrigados a demitir colaboradores por falta de recursos para pagamento dos mesmos. De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), 60% das empresas do setor no país relataram estar com prejuízos e 25% destas, não conseguiram pagar o 13º salário. Antônio Rodrigues era garçom de uma casa noturna em Curitiba, que desde março de 2020 mantém as portas fechadas. Em abril do mesmo ano, ele se viu desempregado e a situação de vida tornou-se sombria “Hoje vivo no escuro sem saber o que será do amanhã, se minha família vai ter o que comer ou se serei um peso para eles. Estou fazendo alguns bicos como eletricista, e quando tinha o auxílio emergencial ajudava bastante, mas
quando acabou me vi numa situação de desespero, fui diagnosticado com depressão, mas mesmo assim continuei procurando emprego, porém nenhum lugar está contratando garçons pois o risco do estabelecimento fechar é grande. Sou pai de três meninos e minha esposa é diarista. Houve dias que não tínhamos o que comer.” Em Curitiba, a situação é alarmante, segundo Gustavo Grassi, vice-presidente da Abrapar (Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas), cerca de 40% dos bares da capital fecharam as portas sem chances de retomarem o funcionamento e 75% das casas noturnas, também. O proprietário da festa “Toca Aquela CWB” e produtor de eventos, Bruno Celini, relata um pouco dos bastidores dessa crise no entretenimento. “De cara tivemos o problema de estoque de comida sendo vencido, depois a situação se agravou com os pais de família perdendo os empregos. Nossos funcionários são freelancer, não possuem uma renda fixa, o que gerou um prejuízo maior para eles”, diz. O produtor de eventos ainda chama atenção para um dos maiores problemas no combate à pandemia: as festas clandestinas. Bruno relata que muitos dos frequentadores do evento recorreram a esse tipo de festa, pois se viam com abstinência de socializar. Apesar de estarem cientes dos riscos e das consequências desse tipo de evento, existem algumas explicações para tal comportamento. A psicóloga Paula Machado, especialista em psicanálise, explica que os jovens estão acostumados a estar incluídos em grupos, nos quais se sentem mais confortáveis para agir da maneira que desejarem sem riscos de julgamentos. Muitos deles não se veem sozinhos e possuem a necessidade física de estar no meio de outras pessoas para serem notados. Ainda há a questão dos jovens não serem considerados grupos de risco, isso encoraja muitos a saírem de casa e encarar os perigos de contaminação nas festas clandestinas.
NOVA FORMA DE LAZER E CUIDADO COM A SAÚDE MENTAL Os bares e casas noturnas são usados pelos jovens no intuito de distração e uma busca por diversão. Juliana Ribeiro, de 19 anos, conta que costumava sair com os amigos durante o fim de semana, não apenas por diversão, mas como uma forma de criar um livro de histórias e recordações. Com a chegada da quarentena Juliana sente-se mentalmente cansada, pois a sua rotina se estruturou atrás das paredes de sua casa. O que um dia era um passarinho livre, hoje se vê aprisionada em “uma gaiola, no qual o coronavírus é o caçador de vidas livres”. Para a estudante, uma das alternativas para manter-se entretida em casa foi o uso de aplicativos de vídeos caseiros. O tik tok tornou-se seu maior aliado durante a quarentena. Somente em abril de 2020, o aplicativo atingiu a marca de 1 bilhão de instalações. A constante adesão, por parte dos jovens, a esse tipo de aplicativos deve-se ao fato de poder monetizar os conteúdos criados e por estar gerando sempre novidades na plataforma, o que mantém a nova geração conectada por longo período à ferramenta. Outra alternativa de lazer resgatada durante a quarentena foi o hábito da leitura. Para o estudante de ensino médio André Asher, a leitura contribuiu para lidar melhor com a ansiedade durante o tempo em casa. “Curtia muito encontrar meus amigos em baladas, com o início da quarentena tive muitas crises de ansiedade por estar isolado, por meio da leitura consigo me manter focado e viajar para outros lugares e realidade”, conta.
Música
A importância do Spotify na pandemia Certamente o Spotify não seja o mais barato serviço de streaming musical e nem mesmo o com a melhor qualidade de áudio, mas é o mais popular entre as pessoas, além de ser uma forma honesta de ouvir música. Recentemente a empresa ofereceu apoio a instituições de caridade que ajudavam músicos durante a pandemia, além de dar aos consumidores do Spotify a chance de ‘dar gorjeta’ aos artistas enquanto ouviam suas músicas. Esta ação é muito importante, pois além dos bares e casas noturnas, os músicos e sua equipe, são um dos públicos que mais sentem os impactos da pandemia. Eles foram os primeiros a parar e serão os últimos a voltar ao trabalho.
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Ilustração do banco de imagens Canva
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