A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 5 - Edição nº 50 - Junho de 2020 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Junho de 2020 Mariana - MG
Repasse Contaminação nas mineradoras não especificadas no boletim de saúde Mariana, maio
Em menos de 15 dias, a Prefeitura Municipal de Mariana mudou três vezes a forma de apresentar dados sobre a contaminação pela Covid-19. No dia 21 de maio, a prefeitura paralisou as obras dos reassentamentos de Bento Rodrigues e de Paracatu, após denúncias de que funcionários contaminados estariam trabalhando nas áreas. No dia seguinte, 22 de maio, foi divulgado o boletim da saúde constatando que 21 casos confirmados eram de funcionários da Vale, Renova e terceirizadas. Um novo modelo de divulgação dos dados apareceu no dia 25 de maio, dessa vez, a expressão “setor privado” substituiu os nomes da mineradora e das empresas vinculadas a ela. Já em 1º de junho, mesmo dia em que os comércios iniciaram a retomada na cidade, o boletim de saúde deixou de informar os números de contaminação do setor privado. Questionamos à Prefeitura Municipal de Mariana os números de casos do setor privado na cidade, segundo a Secretaria de Saúde são 185 pessoas do setor privado contaminadas, até o dia 04 de junho, mais da metade dos 328 casos desse dia. Esses números representam trabalhadores(as) da Vale, Samarco, Renova, terceirizadas e empresas que
arcaram com os exames dos(as) próprios(as) funcionários(as). Segundo a Secretaria de Saúde, a mudança no boletim ocorreu porque “o município iniciou a testagem dos funcionários das empresas que tiveram o plano de ação de atividades aprovado”, diz. A divulgação dessas informações, quando feita da forma mais clara possível, permite analisar a eficácia das ações realizadas pela administração pública diante das mineradora, Renova e empresas terceirizadas. É um direito da população fiscalizar e monitorar as ações tomadas no controle da propagação da Covid-19. As alterações ocorridas no boletim evitam que a população questione as ações do setor privado nesse momento. O poder político e econômico das mineradoras não pode isentá-las de prestarem contas para a opinião pública. Apenas com informações disponíveis, a imprensa e a comunidade poderão monitorar a forma como o setor tem cuidado da vida dos seus trabalhadores e as possíveis violações de direitos, bem como questionar as ações dos órgãos competentes diante dos desvios dessas empresas. A plena cidadania é exercida com informação, para isso, os poderes públicos precisam de transparência.
Atenção!
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Expediente Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Joice Valverde | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Papo de Cumadres: Opinião:
a defesa de Gaia
Consebida e Clemilda estão entendendo depois de tantas coisas que observaram, escutaram e leram, de várias pessoas e de vários filósofos, que a terra é um organismo vivo.
Por Sérgio Papagaio
- Cumadre Clemilda eu li na mitologia que a mãe terra se chamava Gaia. - Isto Consebida vô Necu sempre falava, também ele dizia que tinha um home da filosofia que iscreveu, a terra ou Gaia é um ser vivo igual a ocê e eu. - Pois é minha fia eu vi na intelnet outro dia, um rapaz que dizia que a terra era um olganismo vivu com todas as função vitá que um ser vivu pricisa pra vida levá. - Nois deve ter vistu u mesmu rapaz falá, u nome dele agora num vô me alembrá, mas ele disse que a terra tá duente com tanta agreção e tantu poluente e o grande mal da terra, samos nois, as gente. - Cumadre, dispois deste crime que a Samarcu e a vale chama de acidente, noís comecemos a ver coisa que num sabia que existia, quase tudu quês faz com a terra, é agressão, ês corta a terra pra tirá mineriu e mineral, fazendu a terra sangrá e as grandes empresa jogá fumaça nu ar, levanu a terra a sufocá, polui seus rius e seus Vale, conforme faz a vale, rompimentu de barrage, distruindu u que mãe terra tem de mais lindu. - Por istu passu a acreditá, que as grande epdemia du passadu, era Gaia que se defendia du seu únicu vírus mortá, u ser humanu que a sua supelfice veio habitá, e u novo coronavírus, conforme disse o rapaz, pode ser uma defesa que Gaia e sua natureza fez cria, pamode combater todas as duença que a maior praga da terra, us seres humanu veio lhe carsar. - Só tenhu uma triteza danada que agora vou lhe contá , nois é iguar us índius que sempre da terra só fez cuidá, morava lá na roça sem nunca a mãe terra machucá, dispois que u rompimentu da barragem da Samarcu tirô nois de lá, nois misturô na cidade nu meio de tanta pervecidade, só rogu a Deus, que Gaia nu meio desta guerra, saiba recunhecê nois cumadre, que sempre cuidô da terra.
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Direito de entender:
A saúde do povo e dos atingidos
Por Guilherme de Sá Meneghin, Promotor de Justiça
Os antigos romanos tinham uma máxima: salus populi, suprema lex esto. Traduzindo, significa que a saúde do povo é a lei suprema da sociedade. No Brasil, essa frase nunca fez sentido, ao menos para os governantes, já que políticos inescrupulosos e administradores públicos incapazes preferiram investir nos próprios interesses em detrimento da saúde do povo. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19), reconhecida pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020, pesou sobre o nosso sistema de saúde, que não suportou o impacto. Tornou-se necessário impor o isolamento social para toda a população e, apesar das propostas de flexibilização, a realidade é que não existe previsão do futuro e poucos podem afirmar categoricamente que sabem como o vírus irá se comportar. Por outro lado, se tivéssemos uma melhor estrutura na rede de saúde pública – o que prescinde de consulta aos oráculos, às cartomantes e aos astros –, os efeitos dessa pandemia seriam menores. Para a população atingida, os problemas decorrentes da pandemia, agravados pelas falhas no sistema de saúde, desferiram mais um duro golpe nas pretensões das vítimas do desastre da Samarco, visto que vários programas da Fundação Renova foram suspensos desde que a pandemia se espalhou pelo nosso país. De toda forma, nem tudo está perdido e não podemos agir com essa perspectiva pessimista. Estamos trabalhando junto à assessoria técnica para propiciar aos atingidos condições de permanecerem com as negociações extrajudiciais, sejam as indenizatórias, sejam para reassentamento. Sabemos das dificuldades do atendimento à distância, mas elas não constituem uma barreira intransponível ao prosseguimento de nossas ações. Sugerimos aos atingidos que se esforcem para se adaptarem, para desenvolverem novas habilidades, e se habituarem com essa fase diferente de nossas vidas. As novas tecnologias de comunicação são suficientes para muitas providências e a assessoria técnica estará à disposição para ajudá-los. Em recente reunião, exigimos que a Fundação Renova conceda os meios necessários às famílias para prosseguirem com as negociações e os atendimentos, desde que os atingidos assim se manifestem e estejam amparados pela assessoria técnica. Um velho ditado diz que “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”. Pois essa pandemia passará, assim como passarão aqueles que causaram esse crime, assim como passaram aqueles dias terríveis no resgate de direitos. Por isso, temos de nos manter firmes na deliberação de reconquista de direitos, sem perder a caridade e a esperança que, em todos os momentos, foram as marcas das comunidades atingidas.
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Pautas de pescadores(as) e garimpeiros(as) tradicionais se agravam durante a pandemia
Foto: Wigde Arcangelo
Pescadores(as) e garimpeiros(as) tradicionais da bacia do rio Doce enviaram à Câmara Técnica Indígena e Povos e Comunidades Tradicionais (CTIPCT) um documento que reforça as pautas já levantadas ao longo do processo de reparação. As demandas partem da necessidade do reconhecimento das comunidades tradicionais como atingidas, uma vez que foram impedidas de exercer suas atividades e tiveram suas fontes de renda comprometidas pela contaminação do rio, após o rompimento da barragem. Mas, para além das dificuldades já enfrentadas, uma nova urgência é inserida às pautas: os(as) pescadores(as) e garimpeiros(as) tradicionais que se valiam de trabalhos informais não podem agora exercer também esses serviços, devido ao isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19. Como alternativa, o documento prevê o pagamento de “auxílio pandemia” para o sustento das famílias dependentes da pesca e do garimpo tradicional. Por Antônio Áureo do Carmo, Clodomiro de Castro, Helena da Silva Lopes, José Márcio Lazarini, Maria Caia Auxiliadora Corrêa da Silva, Noêmia Gonçalves Guicciardi Com o apoio de Joice Valverde
O Auxílio Financeiro Emergencial está previsto no Termo de Ajustamento de Conduta como benefício assistencial para famílias atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Compreendo que merecem destaque os atingidos pertencentes aos coletivos garimpeiros/ faiscadores e pescadores, os quais se encontram impossibilitados de exercer suas atividades. Mesmo nesses tempos de pandemia por conta do coronavírus, a pesca, que é a minha atividade, certamente proporcionaria um alento através dos momentos de lazer, assim como a oportunidade de poder pescar e obter peixes para auxiliar um pouco na alimentação. Helena da Silva Lopes, pescadora de Rio Doce Após o rompimento da barragem, vivemos tempos de muitas dificuldades financeiras, doenças psicológicas e de pele. Sempre que apertava, sabia onde buscar recurso para sobreviver. O rio era ali bem pertinho. Nós todos o chamávamos de “nosso pai”, porque era ele que nos socorria nas horas de aperto. Era peixe, ouro, areia, cascalho, tudo era transformado em dinheiro. E, agora, com essa pandemia, quando muitos estão perdendo o direito de trabalhar, se não fosse essa tragédia, era lá que íamos buscar nosso ganha-pão. Os atingidos, agora mais do que nunca, necessitam desse apoio, para que possam se fortalecer e passar pelas dificuldades que estão sofrendo desde o rompimento da barragem e agora muito mais, com essa pandemia. Maria Caia Auxiliadora Corrêa da Silva, pescadora do Rio Doce Eles tiraram o rio totalmente, não tem como trabalhar, então são eles que têm que dar recursos para os garimpeiros. Hoje, tá muito difícil, acho que mais difícil ainda do que no rompimento da barragem. De
repente, sem saber de nada, veio a lama e tirou todo meu recurso e meu local de trabalho. Aí eu fiquei sem rumo. Com dificuldades, fui mexendo daqui e ali, mas a renda não voltou até hoje. Tem muitos garimpeiros que não tiveram nenhum real depois do rompimento da barragem. Nesse momento de pandemia, como está ruim pra mim, pra eles então está pior. A Renova não dá satisfação, não fala nada. Clodomiro de Castro, garimpeiro tradicional de Acaiaca A pandemia parou o mundo e esse fato, hoje, é um problema global. Graças a Deus, nossa região registrou poucos casos da doença, pois as medidas de isolamento estão auxiliando muito, mas não sei como ficará a economia. Uma possível crise econômica devido à pandemia da Covid-19 agravará ainda mais a situação das famílias nos municípios atingidos. Aqueles que não podem mais pescar e nem garimpar devido ao rompimento da barragem de Fundão e que buscam novas opções de trabalho para o sustento de suas famílias, com uma crise econômica, terão maior dificuldade, pois a oferta de trabalho é reduzida. José Márcio Lazarini, pescador de Rio Doce Nós sempre usamos o rio, até quando pôde, como complementação de renda e, muitas vezes, como única fonte de renda. Hoje, além desse estresse que a gente tá vivendo por causa desse vírus que parou o mundo, a gente ainda tem que alimentar essa mancha que as empresas mineradoras, literalmente, deixaram na gente, de não ter como prover uma complementação de renda. Eu poderia estar agora indo pro rio, que é um lugar onde eu poderia trabalhar isoladamente, apesar do costume nosso de ir em pequenos grupos, reforçar minha renda com alguns décimos de ouro que tivesse lá. Mas como que eu vou fazer? Antônio Áureo do Carmo, garimpeiro tradicional de Rio Doce Nós, que estamos esperando o reconhecimento da Renova, neste momento crucial, com o isolamento, ainda está pior. Me impede de trabalhar e de fazer as coisas para a minha família, pois eu trabalhava com garimpo e, agora, eu não posso mais. É nele que tirava nosso sustento para sobrevivermos melhor. Nós só queremos que o nosso direito seja reconhecido e ter o direito de cuidar da nossa família decentemente. Nesse momento, precisamos muito que a Fundação Renova nos dê uma posição, pois, assim, poderíamos passar por essa pandemia com um pouco mais de tranquilidade. Noêmia Gonçalves Guicciardi, garimpeira tradicional de Felipe dos Santos
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Comunidades tradicionais atingidas em quarentena As comunidades indígenas e quilombolas são conhecidas pela relação mais harmoniosa e menos predatória com a natureza. Em 2015, sem que fosse do interesse dessas pessoas, essa forma de vida ao longo do rio Doce foi abalada. Isso se repetiu em 2019 para as comunidades que vivem no percurso do rio Paraopeba. Hoje, além dos problemas provenientes dos rompimentos das barragens, essas pessoas precisam mudar mais uma vez seus ritmos de vida devido à pandemia da Covid-19 e lidar com a negligência das mineradoras criminosas e o abandono do governo. Por Cacique Antônio Carlos (Toninho), Cacique Arakuã Pataxó, Mônica Silva de Jesus, Sucupira e Terré Pataxó Com o apoio de Júlia Militão, Sérgio Papagaio e Wigde Arcangelo
Com a chegada da pandemia no nosso país, a gente teve que mudar toda a rotina do trabalho da comunidade, desmarcar eventos, reuniões… Na verdade, a gente não está tendo suporte nenhum do governo, nem municipal, nem federal. Eles não têm estrutura para fazer isso, então, temos nossa organização interna, nossa associação, a liderança, os caciques, essa é a nossa base. Nos organizamos para cobrar das empresas. Nós, da comunidade indígena, já estávamos em “pandemia” há muito tempo. No território de Comboios e Córrego do Ouro, nós já estávamos neste momento complicado, porque, a partir do momento que o indígena não pode caçar, pescar, usufruir do seu espaço cultural, que é o rio e o mar, já era uma prisão. Só que é uma prisão diferente, porque você podia ir e voltar; já essa é mais complicada, pois você pode enfraquecer e ser levado a óbito. Então a comunidade tem esses dois impactos. A gente já estava impactado na área social, econômica e espiritual, a pandemia é um segundo impacto. A gente já estava preso pelo poder do capitalismo. E o vírus também é uma situação do capitalismo. Cacique Antônio Carlos (Toninho), morador da comunidade indígena de Comboios, Vera Cruz-ES A rotina mudou, pois os moradores evitam ao máximo sair de suas casas, ir a Linhares ou, até mesmo, ao Pontal. Os tradicionais forrós de fim de semana estão suspensos e também as demais reuniões
Foto: Sérgio Papagaio
no território. As áreas de lazer eram ligadas às praias para pescaria. As conversas de bar, hoje, estão impedidas de acontecer. Não temos auxílio nenhum das mineradoras, a prefeitura de Linhares distribuiu máscaras para a comunidade. Mônica Silva de Jesus, moradora de Degredo-ES Em 2019, a comunidade indígena Nahô Xohã viu a sua rotina mudar devido ao rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, controlada pela Vale, em Brumadinho. Além das dificuldades que vinham enfrentando por serem atingidos(as), os(as) indígenas da comunidade agora enfrentam a pandemia de Covid-19. Estamos passando por um momento muito delicado, assim como todo o Brasil está passando, só que estamos sendo esquecidos pelo governo. Sempre foi difícil, mas, hoje em dia, está mais difícil ainda. Estamos fazendo o máximo possível para não sair para cidade, só que, infelizmente, alguns guerreiros estão saindo para comprar alimento, para correr atrás de doação lá fora. Porque a gente, hoje, não tem o rio para pescar, para poder tirar o nosso alimento. Não temos a plantação para colher, porque o solo, aqui na beira do rio, também está contaminado, e estamos passando por muitas dificuldades. Cacique Arakuã Pataxó, morador da comunidade indígena Nahô Xohã, Brumadinho-MG
Foto: Júlia Militão
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Foto: Sérgio Papagaio
Queremos colocar aqui a nossa preocupação com a nossa comunidade. Estamos passando por um momento muito crítico, porque temos o primeiro caso suspeito aqui, uma jovem de 15 anos de idade. Nosso povo está tendo que sair pra comprar o alimento. Terré Pataxó, morador da comunidade indígena Nahô Xohã, Brumadinho-MG
Nós estamos aqui jogados, mesmo. Porque mataram nosso rio. A Vale tirou o nosso rio, tirou o nosso sustento também. Como vamos caçar pra nos alimentar? Como vamos pescar? Como a gente vai comer um peixe? Não tem como. Sucupira, morador da comunidade indígena Nahô Xohã, Brumadinho-MG
Trancados dentro de nós. Regência é um distrito de Linhares, no Espírito Santo. A região, conhecida pelas ondas, recebia diversos turistas antes da chegada do rejeito de minério da Samarco/Vale/BHP Billiton, que percorreu o leito do rio Doce desde Bento Rodrigues até o município, atingindo o mar. Por isso, há mais de quatro anos, os(as) moradores(as), pescadores(as), comerciantes e surfistas de Regência tiveram de se adaptar à falta de recursos e, até mesmo, no caso dos surfistas, de local de trabalho. Se, antes, o surf era praticado na foz, local atingido pelo rejeito, hoje, os espaços da prática do esporte estão fechados por determinação do Governo Federal, por causa da pandemia. A comunidade local vive com a angústia das decisões da Renova, que segue violando direitos, e a sensação de que, de alguma forma, estão sendo atingidos(as) mais uma vez durante a pandemia. Por Fabrício Fiorot, Francelino Neto e Luciana Souza de Oliveira Com o apoio de Júlia Militão, Sérgio Papagaio e Wigde Arcangelo
Dentro da Vila de Regência, a gente se conhece, a gente se abraça, a gente se toca, a gente se visita, os portões estão sempre abertos… E, do nada, a gente começou a se trancar dentro de casa. Nós começamos a nos trancar dentro de nós mesmos. Devido ao isolamento, a Renova se ausentou totalmente dos territórios. As Câmaras Técnicas, em que nós, atingidos, tínhamos um espaço aberto, o espaço de voz, não de voto, ficaram restritas a videoconferências e nem sempre nós, da Foz, temos um sinal bom de internet. O fechamento do cadastro, por exemplo, que, para nós, pelo menos para a Comissão de Regência, nós somos contrários, está indo “de vento em popa”, porque temos a orientação de não nos reunirmos e tudo isso está avançando. As tratativas sobre o fechamento do cadastro, a questão da água, os projetos estruturantes, o próprio edital do rio Doce, por exemplo, que iria começar agora no segundo semestre, também está postergado. Tem uma comissão que está indo no território formando uma nova comissão de atingidos, registrando essa comissão em cartório e mandando pro juiz, porque esses atingidos são a favor do fechamento do cadastro, então, os atingidos que são contra estão sendo colocados de lado. O fechamento do cadastro é uma fala das mineradoras. Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência-ES e membro da Comissão dos Atingidos de Regência e Entre Rios Desde que essa pandemia surgiu, não tem tido condição boa para o surf da nossa região. Um problema grave que a gente tá enfrentando nessa atual conjuntura, que é um legado da Samarco, é o seguinte: o
número de surfistas que a gente tem na nossa vila é restrito. A gente consegue fazer a prática do esporte sem aglomeração, sem que leve risco a outras pessoas, só que, hoje, a nossa praia se encontra fechada. Um dos melhores acessos para a prática do esporte é dentro da Reserva Biológica de Comboios, gerida pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio), e existe uma determinação do Governo Federal para restringir acesso a qualquer coisa que seja federal. Grande problema que a gente herdou da Samarco, porque, a vida inteira, a gente pegou onda na foz do rio Doce e, desde que essa lama chegou, a gente tem utilizado esses acessos lá do ICMBio. Toda esse problema agrava a situação de muitos surfistas da vila que não tiveram nenhum reconhecimento da Fundação Renova e que, consequentemente, estão passando dificuldade. Em tempos de pandemia, o cara não tem condições de acesso ao auxílio e também não consegue fazer os “bicos”. Então, para a categoria do surf, está sendo uma grande dificuldade, desde a chegada da lama, pela falta de reconhecimento, pela falta de informação sobre a qualidade da água, sobre a falta de informação do impacto da nossa saúde. Francelino Neto, morador de Regência-ES O problema é que aqui já tinha poucos turistas. Com a pandemia, não vem mais nenhum. Antes, era o problema da contaminação da água [devido ao rompimento da barragem] e, agora, tem também o problema do vírus. Eu tenho pousada, tenho que manter meu negócio fechado durante a pandemia. Fabrício Fiorot, morador de Regência-ES
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A lama invisível do adoecimen Em fevereiro deste ano, a Vale surpreendeu os(as) moradores(as) de Antônio Pereira com a notícia de que teriam de ser removidos(as) de suas casas. Com a justificativa de que iniciaria um processo de descomissionamento da barragem do Doutor, localizada nas proximidades, a mineradora determinou que os(as) moradores(as) deveriam sair de suas moradias e ir para casas alugadas, hotéis ou pousadas. A comunidade, conhecendo o rastro de crimes que a Vale deixou em Minas Gerais, tem exigido a garantia de seus direitos antes de qualquer mudança. Atualmente, mesmo em meio à crise de saúde pública causada pela Covid-19, a empresa insiste em realizar mudanças coletivas, assediando aqueles(as) que se recusam a sair de suas casas em um momento como esse e sem garantia de reparação. Tanto os(as) moradores(as) da Zona de Autossalvamento (ZAS), quanto das áreas consideradas seguras, relatam um clima de insegurança, de medo e de danos à sua saúde mental. Por Ana Carla de Carvalho Cota, Charles Romazâmu Murta, Elizabeth Cristina da Costa, Geraldo Pereira de Souza, Maria Helena Ferreira e Patrícia Ferreira Ramos Com o apoio de Juliana Carvalho
A ZAS representa as localidades que podem ser atingidas caso a barragem do Doutor venha a romper. A situação da barragem do Doutor tem roubado nossa paz, além de trazer inúmeros transtornos, inclusive em relação à saúde mental dos moradores. Os moradores sofreram diversas violências por parte dos funcionários da Vale. Vivenciamos momentos turbulentos, inclusive com boletim de ocorrência policial. O que mais nos incomoda é a postura de imposição dos funcionários da Vale, aliada à falta de informações e à falta de diálogo com os moradores. A luta não está fácil. A Vale aproveita a situação da pandemia e faz o que quer. Maria Helena Ferreira, moradora de Antônio Pereira A Vale elevou o nível para dois, no dia 1º de abril. No dia 2 de abril, já tinham dois funcionários da Vale aqui dentro, na porta da minha casa, oferecendo para os meus pais irem olhar casa para alugar. O nosso questionamento é por que, inicialmente, a empresa colocava que essa saída seria definitiva. Hoje, ninguém sabe se essa saída é definitiva ou se ela é temporária. Então todo mundo fala que isso faz parte da estratégia da empresa para desestabilizar a comunidade. Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira A minha preocupação hoje é com essa violência, essa forma abusiva e impositiva da Vale, ferindo os direitos humanos básicos, fundamentais de todo ser humano, com destrato mesmo, entrando dentro da casa das pessoas. Mais do que isso, essas pessoas [moradores(as)] querem falar, sabe? Quando eu paro pra conversar com eles, cada dia é uma história diferente. Isso precisava ter uma memória e a Vale, em momento algum, se preocupou ou deu o direito para as pessoas construírem algumas das suas reparações. Então, foi tudo muito imposto. A comunidade não construiu nada junto com a Vale. Ana Carla de Carvalho Cota, moradora de Antônio Pereira Tem insegurança, tem tristeza. Os vizinhos aqui eram vizinhos há 30, 40 anos. O último que saiu aqui, saiu chorando. Ele tinha a horta dele, ele ficou até o último minuto. Ele relutou para mudar, só que não teve jeito. A minha casa mesmo, foi por um triz que nós não mudamos. Então o clima é horrível, clima de insegurança, clima de vazio, clima de que não tem pessoas aqui mais. Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira
O que mais me incomoda, como moradora, é a falta de respeito com que a Vale trata os moradores. Devemos lembrar que, quando a Vale chegou em Antônio Pereira, a comunidade já existia. É bom lembrar que a Vale quebrou nosso isolamento social, muitos moradores removidos fazem parte do grupo de risco. O vazio deixado pela remoção dos moradores, a Vale nunca irá conseguir reparar. Infelizmente, a Vale nos trata apenas como números, se esquece que somos seres humanos, dotados de sentimentos e emoções. Maria Helena Ferreira, moradora de Antônio Pereira Os(As) moradores(as) ouvidos relataram extremo desconforto com o dia 30 de abril, no qual diversos funcionários da Vale e operadores de caminhões de mudança ocuparam a rua Água Marinha. Os(As) moradores(as) contam que houve assédio e pressão por parte da empresa para que se retirassem rapidamente de suas casas. Na época medieval, o pessoal fazia um cerco na cidade e tirava o suprimento. Aqui, o que eles fizeram? Cercaram a comunidade e distribuíram informações descentradas. “Vocês têm até o dia 30 de abril pra sair.” Primeiro, eles falaram assim: “a barragem está em risco e vocês têm que sair”. Alguns moradores já tinham um conhecimento maior, sabiam que a barragem não estava pior do que ela esteve no ano passado, porque, hoje, ela não recebe rejeito mais. Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira Isso aqui parecia uma guerra, sabe? A gente tava muito apreensivo, porque a Vale colocou o terror psicológico em todo mundo. Usando desse nível dois como um possível rompimento mais iminente. E aí esse dia 30 é um dia emblemático, porque tava todo mundo sob uma tensão tão grande. A Vale, inclusive, chegou a fazer alusão de que teria um mandado judicial para tirar todo mundo. Ana Carla de Carvalho Cota, moradora de Antônio Pereira Não necessariamente precisa haver mudança física na estrutura, indicando uma patologia estrutural que pode levar a um rompimento, para se elevar o nível. Basta que existam índices, por exemplo, coletados durante o monitoramento que não atinjam os fatores de segurança preconizados pela prática mundial. O auditor chegou à conclusão de que, mesmo com as intervenções que vinham sendo tomadas, a barragem não conseguiu atingir o fator
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Foto: Larissa Pinto
Foto: Arquivo Pessoal de Ana Carla de Carvalho Cota
de segurança mínimo necessário. Ainda está ineficiente a tentativa de elevar o fator de segurança simplesmente pela drenagem da barragem. Esse foi um dos motivos que levaram o auditor a sugerir a elevação para o nível dois. A Defesa Civil não tem estrutura física, equipamentos e mão de obra qualificada para elaborar técnicas de monitoramento, a fim de dizer se uma barragem está em risco, ou não, e tomar ações. Isso não é função da Defesa Civil. Isso é função do empreendedor [Vale] e da Agência Nacional de Mineração (ANM), que é o órgão fiscalizador máximo dessas barragens no Brasil. A partir do momento em que o auditor externo, independente ou não, ou a ANM, ou a própria empresa, nos apresenta esses resultados, aí nós vamos agir, garantindo a segurança da população em cima do que nos foi falado. Charles Romazâmu Murta, geólogo da Defesa Civil Municipal de Ouro Preto Apesar de a ZAS ser a área de maior risco, há um clima de tensão em toda a comunidade de Antônio Pereira, visto que a mineradora não tem sido clara em suas informações. Segundo moradores(as), essas informações são repassadas por grupos de WhatsApp, o que gera, por um lado, pânico e, por outro, desconfiança do real perigo que a barragem do Doutor possa apresentar. Eu lembro bem de um dia, dando aula na parte da manhã, uma sirene tocou sem aviso prévio. Estava num período de bastante medo, a fala sobre a barragem era bastante recorrente e soou uma sirene em horário de aula. A gente não tinha tido notificação nenhuma de que haveria um teste e nós ficamos todos apreensivos. Os alunos ficaram com muito medo e chorando. A escola é considerada um ponto de encontro, mas não tem estrutura, nem pessoal, para lidar com uma situação de crise, como um rompimento. O nosso cotidiano é encontrar alunos que relatam que a família faz vigília de madrugada para o caso de uma barragem se romper; ou que talvez vão se mudar pra outro lugar, porque veio, segundo eles, uma pessoa da Vale falando que tem que sair da casa. Existe um grau de adoecimento muito grande da comunidade como um todo. Não só dos moradores que estão na ZAS, porque a desinformação é tamanha que eles também nem sabem. Patrícia Ferreira Ramos, professora na Escola Estadual Daura de Carvalho Neto, em Antônio Pereira
Caminhões de mudança no dia 30 de abril, na Vila Samarco. O risco que nós passamos, há dois anos, com a Vale operando essa barragem, jogando rejeito nela e a Vale brigando na justiça pra falar que a barragem era segura... Hoje, nós estamos sendo removidos, a empresa quer remover a gente alegando que o risco é da barragem sem dar nenhuma garantia para os moradores, então, a gente não acha justo isso. Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira Para quem saiu de suas casas, deixou para trás anos de história, suor e trabalho, indo viver de incertezas, visto que são tratados com desdém e omissão. Para quem ficou e não faz parte da ZAS, como é o meu caso e de muitos moradores aqui, restou a incerteza, a angústia e o medo do que possa acontecer no amanhã. Com o isolamento social devido à pandemia, não recebemos notícias de como está a estabilidade da barragem e, tampouco, sobre os direitos que nós, atingidos de forma direta e indireta pela barragem do Doutor, temos. Vivemos como reféns de uma mineração selvagem cujo lucro supera a vida. Elizabeth Cristina da Costa, moradora de Antônio Pereira Esse período escancarou ainda mais o que é a Vale e a mineração predatória que ela promove. Nós continuamos defendendo um outro modelo de mineração que seja organizado pelos trabalhadores. Que seja organizado pela comunidade para que os recursos sejam voltados para o bem-estar, para a garantia de vida das pessoas, com informação, com direito à memória do lugar. Direitos sem riscos à saúde, sem riscos à vida. Que a gente também pense que um novo modelo de mineração é possível. Patrícia Ferreira Ramos, professora na Escola Estadual Daura de Carvalho Neto, em Antônio Pereira
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A pandemia não parou a
mineração
No dia 1º de abril, foi divulgada a nota unificada “Paralisar a mineração por nossas vidas”, após o ministro de Minas e Energia do atual Governo Federal, Bento Albuquerque, lançar uma portaria que incluiu as atividades mineradoras como essenciais, em 28 de março, e a confirmação do primeiro óbito pela Covid-19 em Mariana ser de um terceirizado da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton. O intuito é de pressionar e gerar mobilização pela segurança dos(as) trabalhadores(as) do setor minerador e da população em geral. A nota foi assinada por diversas entidades, como a Federação das Associações de Moradores de Mariana (FEAMMA) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Por Darcy Carvalho, Letícia Oliveira e Mauro Silva Com o apoio de Wigde Arcangelo
Defendemos, tendo como referência, as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que o isolamento social seja a medida fundamental e prioritária para a “contenção” do avanço deste vírus. Sendo assim, as mineradoras, por mais que tomem medidas preventivas, não garantem, em sua total integridade, o não contágio ou transmissão e, como consequência, a plena garantia da saúde de seus funcionários. A vida não tem preço e deve ser prioridade acima de tudo, até mesmo sobre a produção, venda e lucro. Com ou sem pandemia, a dependência financeira da mineração não se altera em nada. Ela é inegável: não tem o que se discutir! Porém estamos vivendo um momento atípico. O foco é (e tem que ser) outro. Quarenta anos explorando e lucrando não permitiriam, às empresas mineradoras locais, paralisarem suas atividades por alguns meses, garantindo os salários de seus funcionários? Provavelmente, sim! Darcy Carvalho, secretário da FEAMMA O papel dos governos diante dessa questão deveria ser mais enérgico. Visar menos o lado financeiro do arrecadador de impostos. Os “benefícios” que a mineração gera, porque a Vale vem garantindo subsídios para hospitais e máscaras, ela usa isso como propaganda, tanto que todos os meios de comunicação têm propagandas vinculadas à Vale. Ela deve gastar muito mais com mídia do que o fato propriamente dito de ajuda. Há um interesse na imagem, que já vem arranhada desde o rompimento da barragem de Fundão. Ela quer melhorar essa imagem perante a sociedade e os investidores. Mauro Silva, morador de Bento Rodrigues As reivindicações da nota ganharam força após virem a público denúncias de trabalhadores contaminados pelo novo coronavírus nas obras de reparação da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton, que voltou a operar após aprovação, pela prefeitura, de um plano de segurança. Embora a Renova não seja uma mineradora, é importante relembrar que sua existência se deve aos crimes cometidos pelas empresas do setor. A prefeitura de Mariana, na nossa opinião, foi bem omissa em ter liberado a volta das obras da Renova, porque estava claro que não seria cumprido nada do que ela prometeu. Nós sabemos também que a Renova quer fazer as obras nesse momento, porque os atingidos não podem fiscalizar, não podem se reunir para questionar. Mais de 45% das famílias atingidas da comunidade de Bento Rodrigues estão insatisfeitas com o reassentamento. Em Barra Longa, a Renova já apresentou, para algumas autoridades, um plano de retomada das atividades no município. Os atingidos estão muito apreensivos com essa possibilidade por entenderem que Barra Longa é pequeno, ainda não tem nenhum caso de coronavírus, mas, com a volta às atividades da Renova, pode haver uma chegada de trabalhadores que podem levar o vírus para a cidade. Não se deve voltar às atividades da Renova em Barra Longa, porque não é o momento. Letícia Oliveira, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) As comunidades atingidas não são tão egoístas ao ponto de quererem que as obras sejam entregues a qualquer preço. Isso pode custar vidas e a gente não quer dessa forma. No meu ponto de vista, agora é hora de ter calma, sabedoria e ver o melhor momento para a volta das atividades nos canteiros de obra. Temos urgência, mas, acima de tudo, queremos que seja com responsabilidade. Mauro Silva, morador de Bento Rodrigues
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Um Dia das Mães diferente O Dia das Mães é uma das datas comemorativas mais importantes do Brasil. Geralmente, é um dia que separamos para homenagear aquelas pessoas que assumiram o papel de cuidado com os seus. É muito comum que, nessa data, as famílias se reúnam para celebrar a vida e o amor a essas mães. Neste ano de 2020, no entanto, o Dia das Mães foi diferente. Algumas mães das comunidades atingidas nos contaram como foi passar esse dia com a saudade dos(as) filhos(as) e dos(as) irmãos(ãs) distantes, sem o abraço e o contato físico de familiares e vizinhos(as) dos territórios. Um dia saudoso, nostálgico, mas com a responsabilidade de continuar cuidando da saúde de cada pessoa querida por meio do distanciamento social. Por Gracinha Costa, Olívia Gonçalves, Terezinha Maria dos Santos (Nega) e Vera Lúcia Com o apoio de Júlia Militão
Geralmente, antes da barragem romper, nós íamos pra casa da minha mãe, em Paracatu. Juntávamos os irmãos e íamos. Agora, estamos aqui, com essa quarentena. Também foi aniversário da minha menina, inventei um bolo surpresa de emergência, cantamos “parabéns”. E ficamos ali, a família reunida contando caso, relembrando as coisas que aconteciam em Paracatu, nessa época. Lá em Paracatu, no Dia das Mães, era prática das famílias receber visita. Por exemplo, eu ia na casa das minhas tias; a cada lugar que você ia, tinha que comer um pouquinho, era costume você ir na casa de todo mundo assim. Geralmente, eu ia nas minhas tias, na casa dos vizinhos que eu tinha costume… Hoje, como muitos não moram tão perto, acabou esse contato de ir em casa. Lá na roça, era gostoso, porque, quando chegava o Dia das Mães, era dia de um ir na casa do outro, provar um “tiquinho” da comida do outro, era muito gostoso, sabe? E, aqui, eu vi que acabou. Então, lá em Paracatu, todo mundo ia na casa de todo mundo, contar caso; aqui, depois que a barragem rompeu, isso acabou, você não vê ninguém na casa de ninguém, ninguém visitando ninguém… Eu sinto muita falta disso. Olívia Gonçalves, moradora de Paracatu de Baixo Uma parte foi boa, porque eu passei com meu marido e três filhos meus. Na outra parte, eu me senti muito triste, porque é a primeira vez que eu passo sem os outros três, de Belo Horizonte, que não puderam vir por causa da quarentena. Então isso foi muito triste, porque, em todos os Dias das Mães, a minha casa fica cheia, com os meus filhos, meus genros, meus netos. E esse ano, por causa da quarentena, foi triste. Mas fazer o quê, né? Em nome de Jesus, isso vai passar logo, logo e eu vou estar junto, em dezembro ou até no Dia dos Pais, com todo mundo presente. Gracinha Costa, moradora de Gesteira Foi um Dia das Mães diferente, em que não houve abraços. Mas não posso falar que foi ruim, tive meus filhos comigo, mantendo todo cuidado que devemos ter. Mesmo com toda restrição, foi um Dia das Mães feliz. Se Deus quiser, no próximo ano, poderemos abraçar e ficar juntinhos sem medo de nada, basta ter fé e paciência. Terezinha Maria dos Santos (Nega), moradora de Bento Rodrigues Passei bem, graças a Deus. Saudosa, né? Com saudade da nossa rotina… Só com os filhos presente, que estavam em casa. Cheia de saudade, mas com respeito à nossa saúde, porque essa epidemia vem nos trazendo um transtorno muito grande. Passamos só com quem estava em casa mesmo, sem tumultuar, só com as lembranças e as ligações do meu filho, que mora fora e não veio, em respeito à nossa saúde, à nossa idade… E só o tempo que vai responder, pra nós, isso aí. A gente tem que cuidar, a gente tem que estar atentos, porque o vírus não é brincadeira. O vírus avança muito rápido. Então a gente, tendo esse cuidado de não estar expostos, mais quietos dentro de casa, a gente pode ficar livre dele. Então, pra mim, foi um dia bom, um dia saudoso, mas uma saudade que é pra prevalecer a minha saúde e a do meu marido… Recebi muitas ligações de amigos, de mães e filhos, que me completaram. Vera Lúcia, moradora de Gesteira
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A fé que permanece Foto: Joice Valverde
O mês de junho marca o início das celebrações e das festividades para a religião católica. Como de costume, mesmo após o rompimento da barragem, os(as) atingidos(as) se reúnem em seus territórios para celebrar a alegria, a fé e a devoção. Neste ano, porém, o isolamento social devido à pandemia da Covid-19 impede, por hora, esses momentos de contato coletivo. Ainda sim, mais do que nunca, é importante relembrar a força e a união das comunidades atingidas. Por Joice Valverde, Juliana Carvalho, Larissa Pinto e Tainara Torres Com o apoio de Joice Valverde
Festa do Menino Jesus, Paracatu de Baixo, em 2019.
Festa de Santo Antônio, Paracatu de Baixo, em 2019.
Foto: Larissa Pinto
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Foto: Juliana Carvalho
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Foto: Juliana Carvalho
Festa de Nossa Senhora das Mercês, Bento Rodrigues, em 2019. Foto: Tainara Torres
Festa de Nossa Senhora das Mercês, Bento Rodrigues, em 2019.
Festa de Santo Antônio, Paracatu de Baixo, em 2019. Foto: Joice Valverde
Celebração do dia de Nossa Senhora Aparecida, Mariana, em 2019.
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
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Assessoria busca reinventar formas de trabalho e segue na luta pela reparação integral durante a pandemia Por Ellen Barros
Hoje completam 80 dias de distanciamento social ocasionado pela pandemia de Covid-19. Nesse período, a Cáritas, em Mariana, precisou reorganizar suas formas de trabalho. As equipes sentem falta de estar em campo, presencialmente, com as atingidas e os atingidos, mas não deixam “a peteca cair” e seguem firmes, na luta pela reparação integral dos danos causados pela Samarco, Vale e BHP nas vidas dessas milhares de pessoas de Mariana, desde 2015. Durante o distanciamento social, a Cáritas MG tem realizado as atividades de Assessoria Técnica, Assessoria Jurídica e do Processo de Cadastramento remotamente, isso significa que as equipes estão trabalhando de casa. O trabalho tem se dividido entre organização interna e atendimentos às atingidas e aos atingidos - via contato telefônico, WhatsApp e reuniões virtuais com as famílias. Além disso, são realizadas atividades administrativas, elaboração de ofícios, documentos técnicos, comunicados e materiais informativos para as pessoas atingidas. A cada semana, são debatidos os assuntos apresentados como demanda pelas comunidades atingidas, mas também pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e pela Fundação Renova. Assim, a equipe da Assessoria Técnica, além de participar das reuniões internas, virtualmente, tem se dedicado ao assessoramento das famílias e ao aprofundamento dos principais assuntos tratados neste ano, como: violações de direitos em Mariana; continuidade dos danos gerados pelo rompimento da barragem de Fundão; projetos das casas; fiscalização de obras; impactos das obras nas comunidades do entorno; disponibilidade hídrica nos reassentamentos; ações do Plano de Adequação Socioeconômica e Ambiental (PASEA); disponibilidade de áreas nos reassentamentos coletivos; readequação dos lotes e desafetação das áreas institucionais; contaminação das áreas atingidas; garantia de direitos nos casos de descumprimento da Fundação Renova dos acordos judiciais; análise da situação dos herdeiros para a reparação; monitoramento dos atendimentos que envolvem os auxílios emergenciais e ajuizamentos individuais; e instrumentalização do MPMG para ajuizamento dos Cumprimentos de Sentença. A equipe responsável pelo Processo de Cadastramento tem se dedicado à elaboração de meios de compartilhamento de informações entre as equipes da Cáritas MG, de forma a subsidiar
a melhor assessoria possível às atingidas e aos atingidos, além de trabalhar na organização e no arquivamento de todo o histórico de cada núcleo familiar do cadastro 2018, consolidando um inventário que centraliza os diversos documentos do cadastro. Tem sido realizada também a análise de consistência e planejamentos dos fluxos de dados para aumentar a agilidade na produção dos dossiês. No que se refere ao atendimento direto às pessoas atingidas, tem sido construído um roteiro e formada a equipe do Cadastro para as Tomadas de Termo de Entidades, que começam a acontecer por videoconferência. A preparação para validação de cartografia social e de vistoria à distância também tem acontecido. Já foram realizadas 78 Tomadas de Termo por videoconferência. Em maio, 154 dossiês foram impressos, totalizando 192 dossiês prontos para entrega do Cadastro 2019. Por fim, neste período de distanciamento social, já ocorreram 61 disponibilizações de dossiês para a Fundação Renova (via FTP). Nesses 80 dias, a equipe da Assessoria Jurídica tem elaborado documentos que auxiliam os(as) atingidos(as) na Fase de Negociações Extrajudiciais (FNE) das indenizações, produzido documentos de declarações complementares ao dossiê e analisado as propostas de indenização, apresentadas pela Fundação Renova, para as pessoas que solicitaram o assessoramento jurídico gratuito da Cáritas. A Assessoria Jurídica também tem enviado ofícios de denúncia de descumprimentos e violações por parte da Fundação Renova ao MPMG. Além disso, são elaborados relatório de acompanhamento dos núcleos familiares e pareceres jurídicos. Essa equipe ainda tem mantido diálogo, via celular, com atingidas e atingidos assessorados, para tirar dúvidas e fazer repasses dos informativos institucionais da Cáritas. Há também o tempo dedicado à pesquisa e à formação continuada nas temáticas relacionadas à atuação da Assessoria na FNE. Por fim, a equipe tem se debruçado sobre a valoração dos dossiês, fazendo cálculos, a partir da Matriz de Danos dos(as) atingidos(as), em cima das perdas e danos declarados nos dossiês dos casos em acompanhamento. O horizonte continua a ser de incertezas. Não se sabe como ou quando a crise ocasionada pela pandemia terá um fim, mas os empenhos em prol de justiça para as famílias atingidas segue sendo o norte da Assessoria da Cáritas. Apesar de distantes fisicamente, atingidas e atingidos de Mariana, saibam: vocês não estão sós.
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10 coisas que você precisa saber sobre o andamento do Plano de Ações em Saúde de Barra Longa Por Aline Pacheco Silva (psicóloga) e Matheus Soares Ferreira (advogado), Assessoria Técnica AEDAS
1. Participação dos(as) atingidos(as) na reparação integral Atingido(a) como agente central na elaboração do Plano de Ações em Saúde: participação nas reuniões de Grupo de Base, reuniões de Câmara Técnica, construção da Feira da Saúde, protagonistas da 1ª Conferência Livre de Saúde dos Atingidos e Atingidas pela barragem da Samarco, participação nas Conferências Estadual e Nacional de Saúde. 2. Bases para a construção do Plano O Plano de Ações em Saúde de Barra Longa foi construído conjuntamente entre poder público e atingidos(as), por meio da utilização de estudos científicos, dados oficiais e relatos dos(as) atingidos(as). 3. Sobrecarga de demandas ao SUS Desde o rompimento, a população percebe mudanças em suas vidas e problemas relacionados à saúde. Diversos estudos foram realizados e indicaram o que a população já percebia: o SUS do município ficou sobrecarregado e precisou de verba extra para dar conta de toda a demanda. 4. O caminho da aprovação do Plano de Ações em Saúde O Plano de Barra Longa foi aprovado pelo CIF, após cumprir todo o caminho de acordos extrajudiciais: construção pela população, aprovação pela Câmara Técnica de Saúde, reuniões em território, auxílio do Ministério da Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde. 5. Direito à saúde O Plano de Ação em Saúde compreende a saúde em seu sentido pleno, ou seja, como algo que, para além da integridade física e mental, também diz respeito à qualidade de vida e ao bemestar social. Assim, para que a reparação à saúde seja integral, devem ser respeitadas as normas previstas na Constituição e as recomendações da Organização Mundial de Saúde. 6. Ação Civil Pública ajuizada pelo MPF O Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil Pública para requerer que a Justiça Federal de Ponte Nova condene a Fundação Renova a pôr em prática, imediatamente, o Plano de Ação em Saúde de Barra Longa. Com isso, o Ministério Público buscou que a reparação ao direito à saúde saísse do papel o quanto antes para evitar, assim, que a demora do processo por parte da Renova pudesse gerar ainda mais danos aos(às) atingidos(as).
7. Demora da Renova em fazer reparação é mais um dano à saúde! O Ministério Público Federal afirma que a conduta da Fundação Renova tem sido marcada pela prática proposital de fazer com que o processo de reparação demore e não chegue a lugar nenhum. Ele afirma que é obrigação da Renova, diante dos acordos assinados, cooperar para a efetiva reparação dos danos e que ela não deve se aproveitar da boa-fé dos(as) atingidos(as). Além disso, afirma que todos os(as) atingidos(as) têm direito à reparação, assim como à saúde da comunidade barralonguense em seu conjunto. 8. Danos à saúde e a obrigação de reparar O Ministério Público Federal afirma que o atraso no cumprimento das obrigações, por parte da Fundação Renova, é responsável por um profundo sentimento de humilhação e desgosto entre os(as) atingidos(as). Ressalta que o comportamento da Renova tem gerado uma sensação de desrespeito com os(as) atingidos(as), o que faz com que eles(as) gastem tempo e energia, e resultem em sofrimento e insegurança para a população de Barra Longa. Diante dessa realidade, o Ministério Público afirma que é uma questão de justiça a reparação dos danos sofridos pelos(as) atingidos(as) de Barra Longa. 9. Está nas mãos do juiz da 12ª Vara Ao tomar conhecimento da Ação Civil Pública, a Fundação Renova alegou que a Justiça Federal de Ponte Nova não seria a responsável pelo julgamento das questões relativas à reparação da saúde dos(as) atingidos(as) de Barra Longa. Com isso, o processo foi enviado a Belo Horizonte, para ser julgado pelo juiz da 12ª Vara Federal, que já estava responsável por tratar de toda a reparação do crime socioambiental cometido na bacia do rio Doce. 10. Luta da população atingida O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) proferiu decisão favorável aos(às) atingidos(as), ao anular a decisão original do juiz da 12ª Vara Federal, para determinar que os resultados dos estudos feitos pela AMBIOS, em Barra Longa, sejam levados em conta nas ações de reparação. Precisamos lutar, juntos(as), para que os acordos já firmados sejam respeitados. As decisões judiciais têm de levar em conta a realidade do território e da população atingida, afinal, é o(a) atingido(a) quem sabe dos seus problemas e quem constrói as soluções! O Plano de Ações em Saúde deve ser implementado já!
Editorial “Eu costumo dizer, e vi muitas pessoas dizendo na época: ‘o que seria de nós se o rompimento tivesse sido à noite?’ Vejo essa pandemia como uma barragem que se rompe à noite. A gente não sabe de onde vem, como vem, só tem a noção da forma de contágio. Então a gente fica meio perdido, é como se tivesse uma barragem rompendo durante a noite, a gente no escuro, sem saber pra onde correr.” Foi assim que Mauro Silva, morador de Bento Rodrigues, definiu a pandemia de Covid-19. Essa forma de enxergar o novo coronavírus percorre o rio Doce e chega até o Espírito Santo. Para Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência, “ser atingido durante a pandemia é reviver todo o sofrimento de 2015. Nós não sabíamos de nada, sabíamos ter uma lama de rejeito, mas não sabíamos a real gravidade. É assim esse quadro da pandemia. A gente sabe que essa doença está aí, a gente está vendo os nossos colegas, pessoas conhecidas, vizinhos sendo contaminados”. Uma doença sobre a qual ainda sabemos pouco, mesmo assim, possui um efeito grande sobre as nossas vidas. Por proteção à nossa própria saúde e daqueles(as) que nos rodeiam, temos de reinventar algumas comemorações, como aconteceu no Dia das Mães, no mês passado. Nesta edição, você confere uma matéria com algumas mães que contam como foi essa data para elas. Mas não foi apenas esse momento que precisou ser adaptado, nosso calendário se tornou incerto. Junho, normalmente, é mês de festa junina. Época em que a comunidade atingida de Mariana costuma retornar aos seus territórios para demarcar seu espaço e sua existência por meio das celebrações religiosas, pois, nas comunidades atingidas, a fé e a ação são formas de luta e resistência. Por entendermos a importância dessas festas para a luta dos(as) atingidos(as), trouxemos, nesta edição, um ensaio que resgata os registros dessas festas que fizemos ao longo dos quatro anos. Mas compreendemos que as religiões são múltiplas, assim como as histórias e as demandas das pessoas atingidas. Por isso, na capa, trouxemos o Pai de Santo Adão Bento, morador de Barroca, que é garimpeiro tradicional. Esses profissionais, há tempos, escutam negativas às suas reivindicações. No entanto, a pandemia também traz urgências a essas questões. Nesta edição do Jornal A SIRENE, você lerá sobre as luta dos(as) atingidos(as), que resistem a esse momento de incertezas. Embora fisicamente separados, essa força é coletiva. Ainda nas palavras de Luciana Souza de Oliveira, “ser atingida é, sobretudo, também, se colocar como um sujeito que se vê no outro, que busca força dentro de si, dentro do outro, para continuar sobrevivendo. Porque eu acho que é bem isso a palavra, ficar vivo, vivo e bem, vivo e com saúde”, reflete a atingida, moradora de Regência-ES.