AGOSTO 2021
45º Edição
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Indíce AGOSTO 2021
04 ....... O lado negro. A investigação na Dark Web | Sandra Moreira da Silva
08 ....... Cibersegurança | João Ferreira
12 ....... Critica Literária | António Ganhão
14 ....... Francisco |
Manuel António Araújo
16 .......Flores na Abíssinia ! Carla Coelho
18 ....... Cantinho do João ! João Correia
20 ....... Ré em causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
22 ....... E o mar logo ali | Ana Gomes
24 ....... Pano para mangas | Margarida Vargues
26 ....... Você corta a Etiqueta? | Margarida de Mello Moser
40 ....... Desenho Animado | Lícinia Quitério
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
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Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Há o lado negro das coisas…. O que precisa ser desmascarado, desvendado, afrontado e enfrentado. Este mês de Agosto em que tudo devia ser Azul como o Verão, temos tantos lados negros para mostrar, tantas notícias que chegaram até nós e toldaram o nosso Sol, nublaram o nosso mar, que não resistimos a partilhar convosco o que tudo isso nos fez sentir O azul do céu, e do mar, ainda que no fundo, será sempre mais azul se erguermos juntos a nossa voz, se erguermos sempre a nossa voz, se resistirmos sempre a obedecer apenas por obedecer. Este número fala de um Dark Side que não é da Moon, fala de Security, Violações de Direitos, de Lei Fundamental, e fala de Azul, de Resistência, de pequenas grandes revoluções dentro de nós e, porque a poesia e a música são sempre uma solução, porque escrever é empunhar uma arma que pode mudar muita coisa sem ferir, e porque só falar , falar não basta, fiquem e pensem connosco neste final de Agosto que queremos seja ainda azul e seguido de muitos Verões azuis. ( Agosto de um mês em que resistir é o lema)
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Sandra Moreira da Silva
O lado negro. A investigação n dark web. O advento da sociedade da informação trouxe consigo inúmeras vantagens. E, igualmente, desvantagens: o cibermundo criminal. Tendo-se evoluído para a sociedade digital, através da cibernética e da cultura do ciberespaço, que parece estar umbilicalmente ligada à actividade humana hodierna, deparamo-nos, principalmente desde a última década, com uma evolução exponencial do cibercrime, perante o qual todos estamos vulneráveis.
com membros de organizações criminosas. No fundo é a migração do agente encoberto/ infiltrado do mundo físico para o virtual. Este agente pretende, antes de mais, debelar a “transnacionalidade e a busca da autoria delitiva”¹ , na medida em que “as máscaras de identidades dos agentes” e a “trancendência das fronteiras físicas e temporais do cibercrime”² , se apresentam como as maiores dificuldades na investigação criminal digital.
Face à alta tecnicidade a que recorrem os cibercriminosos, torna-se especialmente difícil fazer prova dos ilícitos criminais, e, até, a montante, de saber quem são os seus agentes, graças às inúmeras possibilidades de anonimato que a rede faculta. Daí que faça todo o sentido que na investigação criminal se recorra a expedientes que permitam a identificação e recolha de prova, desde que tais recursos se compatibilizem com um processo penal condicente com o Estado de Direito.
O investigador recorre, então, ao hacking que é a aplicação da tecnologia, ou conhecimento técnico, para suplantar um obstáculo informático. O hacker é um termo genérico para o programador imerso na cultura dos hardware e software informáticos.
Dentro desses meios encontra-se o “agente encoberto virtual”. Este agente policial, ou terceiro sob a direcção da polícia, infiltra-se na web com o objectivo de descobrir a autoria de algumas práticas criminosas, ocultando e dissimulando a sua identidade, e estabelecendo uma relação de confiança
Um dos softwares utilizados pelos hackers é o malware. Entre os diversos tipos de malware existentes, interessam aqui, essencialmente, o Spyware³, os Worms e os Trojans (Cavalos de Tróia), por darem resposta mais eficaz aos objectivos específicos da/ na investigação. Cada um deles funciona de forma distinta, de acordo com as finalidades a prosseguir. Podem, também, ser utilizados em simultâneo, num único, de forma híbrida. Na incursão pela Dark Web, onde toda a informação é encriptada e, em
1. Neste sentido GALLEGO, Ascencio (2017), apud PELLUCI, F. (2020), “A actuação dos agentes encobertos e infiltrados nos canais abertos e fechados de comunicação em ambiente informático-digital”, Coimbra, Almedina, pág. 244. 2. Idem. 3. O spyware espia, os worms disseminam-se pelos computadores em rede e os trojans inserem malware nos computadores onde são adentrados.
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na
“Na incursão pela Dark Web, onde toda a informação é encriptada e, em princípio, anónima, (...) – são, frequentemente, as únicas formas de conseguir prova da pegada criminosa.”
princípio, anónima, a utilização destas duas figuras – inicialmente o agente infiltrado virtual e, quando determinado o suspeito, a utilização de programas que se aproveitam de vulnerabilidades dos sistemas informáticos – são, frequentemente, as únicas formas de conseguir prova da pegada criminosa. A metáfora do iceberg não é nova, mas é a mais representativa para explicar as divisões da internet e conseguir identificar, visualmente, aquilo que nos propomos tratar, daí que a chamemos à colação. O bloco de gelo que fica à superfície da água corresponderá à internet aberta, que todos conhecemos e à qual acedemos diariamente, designadamente através de motores de busca como o Google, Bing ou Yahoo. É a surface web – a World Wide Web.
funcionando como túneis, espalhados pelo mundo fora. Esses túneis, ie, computadores intermediários, permitem que apenas o último ID seja conhecido. Todavia, esse utilizador (nódulo de saída) desconhece quer o conteúdo da informação, quer a sua proveniência, daí que não lhe seja possível fornecer qualquer identificação acerca da origem da informação/mensagem. São várias as técnicas utilizadas pelos cibercriminosos como medidas antiforenses. Desde técnicas para evitar a detecção da autoria das mensagens, com anonimizadores, encriptação e estenografia, a outras que impedem o exame e análise de dados informáticos, inclusive por via remota, tornam verdadeiramente difícil a prova dos ilícitos perpetrados.
Já na parte submersa distinguemse duas partes: a que fica abaixo da linha de água, é a Deep Web, cujos conteúdos não são rastreados por estarem, por exemplo, em computadores corporativos, governamentais ou académicos, e, cujo aceso implica a introdução de passwords, ou inserção de links específicos, ou, são, ainda, páginas de instant messaging. E, abaixo desta, na parte mais funda, está aquela zona, à qual, para se aceder, é necessário um sofware específico, onde os utilizadores estão a coberto do anonimato total, e onde são cometidos uma diversidade de crimes: a Dark Web.
O haking e o malware são métodos de investigação, ocultos. O hacking é um conceito amplo de investigação intrusiva, com ou sem instalação de software, cujo objectivo é observar e controlar a actividade digital do suspeito. Enquanto, à partida, a actividade hacking se desenvolve on line, o malware pode fazê-lo offline. Este, consistindo em instruções que são executadas no computador do suspeito, sem o seu consentimento ou conhecimento, põe na disponibilidade do programador/ investigador/instalador do malware em causa, a confidencialidade de dados e do sistema informático, de forma a possibilitar a investigação e a condução a um processo criminal.
Salienta-se que Dark Net não é sinónimo de Dark Web. Aquela é uma rede virtual, combinada e organizada por um grupo de utilizadores, que partilham ficheiros entre si (conexão peer-to-peer), e de forma anónima. Apenas esses utilizadores têm acesso aos conteúdos da rede. Esta rede insere-se na imensa Dark Web. A rede mais popular na Dark Web é a rede TOR, que foi criada para garantir o anonimato dos utilizadores, utilizando, para isso, a criptografia de dados, que são distribuídos através de uma rede de computadores, onde são retransmitidos a outros computadores,
Há três possibilidades de instalar malware: mediante utilização de um suporte físico como o USB; através de web browser e de download voluntário. Nem todo o malware implica a acção do utilizador. A conduta activa passa por clicar num link e, sem saber e querer,
Nem todo o malware implica a acção do utilizador. A conduta activa passa por clicar num link e, sem saber e querer,
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fazer a instalação do malware
Sandra Moreira da Silva
O lado negro. A investigação na dark web.
fazer a instalação do malware. Por exemplo, através de uma página web infectada, que pode ter sido criada especificamente para esse fim, ou não. Ou, através de um anexo no e-mail, no qual se clique para abrir. Ao abrir fazse o download automaticamente, e o malware instalado cumpre as ordens que lhe haviam sido dadas: recolhe informações, instala outros tipos de malware associados (que podem ler e gravar as teclas premidas para obter passwords [através de spyware, keeloggers], ou interceptar dados que lhe são enviados [através de sniffers], liga a câmara web e/ou microfone, para permitir o investigador assistir a conversas on line, por exemplo), permitindo, enfim, a monitorização de toda a actividade que passe pelo computador do utilizador suspeito. As possibilidades de recolha de prova através do hacking e do malware são, portanto, exponenciais. A regulação da prova digital está dispersa por três documentos: o CPP, a lei 32/2008, de 17/7 e a lei 109/20119, de 15/09. Esta confusa trilogia legislativa, agravada pelo Acórdão do TJUE de 2014 que veio determinar inválida a Directiva 2006/24/CE, (transposta através da Lei 32/2008), e as diferentes concepções na doutrina acerca do tema, não permitem concluir pela aplicabilidade legal face à prova digital obtida pelo malware, porquanto não existe norma habilitante para a sua utilização. Há, assim, uma lacuna a colmatar, o que só poderá suceder perante uma lei expressa a proferir pelo legislador, sob pena de inconstitucionalidade. Integrando-se o hacking do agente virtual nos métodos relativamente proibidos de prova do artº 126º n.º 3 CPP, e alicerçando-
se o processo penal português numa base dogmática assente na dignidade e integridade humanas, compreende-se que não se aceite a auto-incriminação da qual não se tem consciência, consubstanciando-se, assim, o princípio nemo tenetur ipso accusare. Direito este, no entanto, restritível. Respeitando-se o núcleo do direito atingido, observando-se o artº 18º n.º 2 CRP, a idoneidade ou adequação, necessidade ou exigibilidade e racionalidade ou proporcionalidade strictu sensu, a prova obtida poderá ser utilizada. Assim, desde que haja autorização expressa em lei; existência de um catálogo de crimes onde possam ser utilizados os meios; suspeita fundada da existência do delito; obediência à necessidade, subsidiariedade e adequação do meio e reserva jurisdicional, o meio de obtenção de prova estará constitucionalmente validado. Cremos que a utilização do hacking pelo agente virtual, precisamente porque o dano social parece ser superior à actividade do agente encoberto (sentido lato) no mundo físico, deverá ser precedida de autorização judicial. Tal exigência não se verifica na lei 101/2001, de 25/08, o que suscitou a discussão acerca da sua inconstitucionalidade material. No mundo virtual, porém, cremos ser um requisito a observar, salvo casos manifestamente urgentes, com posterior validação judicial. O malware, na medida em que permite uma vigilância na fonte (com possibilidade de accionar som e imagem, eventualmente externa ao computador) implica uma violação mais grave dos direitos do suspeito:
4. Neste sentido PRADILLO, Ortiz (2017) e TEMPERINI E MACEDO (2016), apud PELLUCI, Frederico, 2020, op cit., pág. 236.
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a inviolabilidade das comunicações, de forma a abarcar o “direito à autodeterminação comunicativa” a que se refere o acórdão do Tribunal Constitucional 403/2015, o direito à palavra, o direito à «integridade e confidencialidade dos sistemas técnicoinformacionais», que, poderá ser integrado no direito ao desenvolvimento da personalidade, a intrusão no domicílio, enfim, uma panóplia de direitos cuja violação dependerá das funções que forem inseridas no malware utilizado. Deverá, pois, o legislador, criar uma lei específica para a utilização do malware, com critérios objectivos, catálogo de crimes, permitindo ao juiz que autorizar, prévia e fundamentadamente, a medida, saber, exactamente, o que determina e em que termos. Dessa forma conseguirá verificar em concreto a extensão da intrusão nos direitos fundamentais do suspeito, aferir da adequação e proporcionalidade da medida em causa, e definir as funcionalidades necessárias do malware a utilizar, bem sabendo que não poderá utilizar-se informação que fira o núcleo da intimidade do suspeito. Quanto hacking, ele consubstancia, de facto, um meio oculto e enganoso. Tal já não acontece, todavia, com o malware. Pese embora o suspeito ao instalar o malware o faz
laborando em erro, a verdade é que não é pelo facto de ter feito o download de um ficheiro, ou, o que julga ser uma atualização de software, que se vai determinar à prática do crime. Não é o malware que influencia o seu animus criminis. O que implica que não se configure como meio enganoso, e, portanto, não se insira nos métodos proibidos do artº 126º CPP. É necessário que a lei a proferir seja expressa, coerente e com parâmetros e conceitos claros. Em regra, quando assim não é, corre-se o risco de incorrer no arbítrio e na injustiça, e, consequentemente, gerarse o descrédito na administração da justiça pelos tribunais. É, pois, imprescindível assegurar que se dá uma resposta adequada e eficaz aos problemas actuais. “Os Estados precisam adaptar sua maneira de prevenir e reprimir as acções delitivas, actualizando suas legislações processuais para englobar o uso da ciência e das novas tecnologias, sob pena de, com a utilização dos meios antigos e convencionais de investigação, não obter êxito em desmembrar os grandes grupos criminoso e punir os infractores.”⁴
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A CIBERSEGURANÇA NO JUDICIÁRIO: Prevenir e mitigar os ataques de Ransomware
João Ferreira No último ano o Mundo assistiu a uma pandemia no domínio da saúde pública que afectou a estrutura social de todas as Nações Todavia, antes desta e durante a mesma, uma outra pandemia se alastrou e aumentou em dimensão e gravidade as suas consequências: os ataques cibernéticos. Segundo o relatório anual do Centro Nacional de Cibersegurança de 2020, os ciberataques em Portugal aumentaram cerca de 79% no ano de 2020, sendo que as ciberameaças mais relevantes foram o Phishing/Smishing e o Ransomware. Se atentarmos ao facto de uma parte significativa dos ataques de Phishing/
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Smishing traduzir-se, em última instância, em ataques de engenharia social ou de tentativa de acesso ao sistema, visando obter informações sobre o sistema informático atacado ou visando explorar vulnerabilidades do mesmo, para um posterior ataque de Ransomware, entendemos a relevância cada vez maior deste tipo de ciberataque. Quando falamos de Ransomware, estamos, por natureza, perante um ataque visando a encriptação de dados, os quais apenas serão desencriptados, através da entrega da chave de desencriptação pelos
cibercriminosos, caso lhes seja paga em criptomoedas (v.g. Bitcoins, Ethereum e Monero) uma quantia por eles fixada. Este tipo de ciberataque tem evoluído, passando de uma fase inicial, em que visava particulares e eram exigidas pequenas quantias, para uma fase em que o alvo são empresas e, atualmente, serviços públicos ou empresas prestadoras de serviços públicos essenciais (v.g. hospitais, empresas de distribuição alimentar ou de energia), solicitando quantias avultadas. Por outro lado, passámos de ataques que se limitavam a encriptar dados e a fornecer as chaves de desencriptação em troca de uma determinada quantia, para ataques cada vez mais sofisticados que implicam uma fase inicial de entrada no sistema informático e a obtenção de todos os dados da entidade atacada. Esta evolução transmutou os ataques de Ransomware, passando os mesmos a ter uma natureza tripla: roubo de dados, encriptação de dados e venda dos dados. Por fim, estes ataques se numa fase inicial eram executados por hackers com especiais competências digitais, evoluíram para ataques massificados executados por atores com menores competências digitais, mas que adquirem na darkweb as ferramentas necessárias para executar tais ataques – o Ransomware as a Service. Esta proliferação de atores não só aumentou o nível de ameaça, como dificultou o seu controlo pelas autoridades nacionais, com a agravante que se tem vindo a acentuar a utilização destes ataques para fins de espionagem industrial e como instrumentos de eficácia comprovada de agressão entre Estados soberanos.
que os sistemas de justiça constituem, a par dos sistemas de saúde e de fornecimento de serviços essenciais, os alvos preferenciais de tais ataques (veja-se, a título de exemplo, o ataque ao Superior Tribunal de Justiça no Brasil). Em sistemas de justiça cada vez mais digitais, esta ameaça é cada vez mais preocupante, uma vez que a sua natureza digital os torna mais vulneráveis aos ataques, sendo mais devastadoras as consequências dos mesmos. Sendo inevitável que o sistema de justiça em Portugal venha a ser vítima destes ciberataques – a questão não é se, mas quando e em que moldes – é necessário que o mesmo esteja estruturado de forma a dificultar a ocorrência dos mesmos e, principalmente, para minimizar as suas consequências. A defesa das plataformas digitais ao serviço da Justiça impõe-se como um imperativo absoluto: um Estado de Direito pressupõe um sistema de justiça a funcionar plenamente, sem ruturas, sem shut downs que coloquem em causa a administração da justiça; um sistema de justiça, assumidamente digital, assume-se como um volumoso e complexo repositório de dados pessoais, cuja integridade, segurança e confidencialidade, tem de ser salvaguarda a qualquer custo. A segurança destes sistemas coloca-se a dois níveis distintos, mas interdependentes: no plano da organização com medidas de prevenção dos ataques e medidas de recuperação do sistema e dos dados, após os ataques; no plano dos utilizadores destes sistemas, com a adoção de medidas de higiene cibernética.
Esta especial e acentuada apetência pelos serviços públicos essenciais não deixa incólume nenhuma área do Estado, sendo
Em resumo, as medidas de segurança cibernética a adotar têm de se basear nos três conceitos fundamentais.
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João Fer rei ra
A Cibersegurança no Judiciário Previnir e mitigar os ataques de Ransomware
No primeiro plano, os Estados deverão implementar sistemas de justiça digital centrados em 4 princípios estruturantes: Em primeiro lugar, os sistemas deverão implementar uma política de “Zero Trust Data Security”, isto é, os utilizadores devem ter permissão de acesso apenas para o estritamente necessário para realizar o seu trabalho e nada mais, sendo este sempre precedido de um procedimento de autenticação forte e resiliente. Por outro lado, os componentes do sistema a alocar para cada um destas utilizações deverá ser o estritamente necessário para executar tal finalidade. As permissões de acesso deverão ser reduzidas ao mínimo indispensável, exigindo-se aos usuários uma certificação de nível elevado, a qual terá de ser tanto maior quanto o nível de acesso que a mesma permite. Em segundo lugar, o sistema de justiça digital deve ser estruturado por forma a segmentar os diversos módulos que o compõem, de tal modo que ainda que sejam comunicantes, os mesmos sejam estanques entre si, levando a que uma vez comprometido um dos módulos tal não se comunique aos demais. Esta segmentação é importante, mesmo quando os mesmos estão alojados na cloud, devendo também aí haver sistemas redundantes de segurança e recuperação. Um sistema resiliente não comporta apenas a capacidade de resistir aos ataques cibernéticos, mas também a capacidade de rapidamente restabelecer o seu funcionamento, colocando em funcionamento, caso seja necessário, um sistema de backup totalmente operacional.
acessível aos cibercriminosos. Esta segurança é tanto mais importante, se atentarmos ao valor dos dados que um sistema de justiça digital comporta. Em quarto lugar, o sistema de justiça digital deve ser constantemente monitorizado, ao nível dos acessos e permissões requeridas, bem como todo o software de suporte deverá ser mantido e estar sempre atualizado. Qualquer sistema que esteja desatualizado comporta em sim mesmo um risco elevado de ser alvo de ataques cibernéticos, que aproveitando-se das vulnerabilidades não supridas por uma atualização do software do sistema, poderão aceder às configurações do administrador do sistema, e, desse modo, limitar ou impedir o acesso ao mesmo. Em resumo, as medidas de segurança cibernética a adotar têm de se basear nos três conceitos fundamentais: a confidencialidade, a integridade (garantia que os dados sejam consistentes, precisos e confiáveis ao longo da sua vida útil) e a disponibilidade (garantia de um bom funcionamento e acesso ininterrupto aos dados) do sistema. Estes princípios a nível organizacional, deverão ser acompanhados de medidas de higiene cibernética a adotar por cada um dos utilizadores, sejam Magistrados, funcionários ou mesmo utilizadores externos que, de algum modo, possam comprometer o sistema,
Em terceiro lugar, os dados que circulam pelo sistema devem estar criptografados, quer na fase de armazenamento, quer na fase da sua circulação, por forma a que caso haja roubo ou violação dos mesmos, o seu conteúdo não seja
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como sejam, por exemplo, os advogados e os agentes de execução. A este nível, exige-se ao utilizador que adote na sua prática diária, sempre que possível, um sistema de autenticação biométrica e/ou de dupla autenticação (“Two-Factor Authentication”), para acesso ao seu computador ou sistema e aos seus programas aí instalados, por forma a evitar o acesso indevido aos mesmos; utilização de senhas confiáveis, diferentes para cada uma das contas, misturando caracteres (maiúsculas e minúsculas), números e caracteres especiais, evitando sempre a inclusão nas mesmas de informações pessoais; utilização de gerenciadores de passwords; desconfiar de pedidos visando obter dados pessoais ou senhas, com ficheiros anexos, contendo manifestos erros de escrita, recorrendo ao contacto pelos canais formais da referida entidade para confirmação do teor do pedido formulado; análise do endereço de e.mail e seu confronto com o endereço fornecido nos canais oficiais do emitente; evitar descarregar ficheiros enviados por e-mails suspeitos ou existentes em sites inseguros e/ou desconhecidos, designadamente, cujo URL não comece por https://. O risco de um ataque cibernético ao nosso sistema de justiça é real, exigindo, a todos os intervenientes no sistema, a adoção de comportamentos digitalmente seguros. Nada fazer, comporta um preço demasiado elevado para o nosso Estado de Direito Democrático, que ninguém deve estar disposto a pagar.
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ANTÓNIO GANHÃO Critica Literária
BRANCOS DE MOÇAMBIQUE Da oposição eleitoral ao salazarismo à descolonização (1945 - 1975)
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BRANCOS DE MOÇAMBIQUE,
Fernando Tavares Pimenta, Edições Afrontamento, 2018.
Este livro aborda o papel dos colonos no processo
apoiante do regime e ex-secretário de estado de Salazar,
político de Moçambique, desde a oposição a Salazar
passa a oposicionista. Ao perceber que a guerra estava
até à independência do território. Essa oposição nasceu
perdida, por sua própria iniciativa, inicia negociações
do descontentamento com a ineficácia de Lisboa que
com elementos próximos da Frelimo com vista à
impunha sérios entraves ao desenvolvimento da colónia,
independência do território e criação de uma sociedade
impedindo a sua industrialização e comprometendo as
multirracial; mesmo contra Lisboa se tal fosse preciso.
legítimas expectativas da população branca, asiática,
A revolução de 25 de Abril pôs termo a esta iniciativa e
mestiça e negros assimilados. Os períodos eleitorais, onde
conduziu à independência do território, não sem antes
uma certa tolerância das autoridades permitia alguma
existir alguns recuos, tentativas de dilatar o processo no
organização de grupo e acesso mitigado à imprensa, eram
tempo ou mesmo uma intentona de cessação branca. Os
aproveitados pelos colonos para solicitar mais autonomia
ventos da história não estavam para aí virados. Portugal
na governação dos destinos de Moçambique, chegando
chegou demasiado tarde ao processo de autonomização
mesmo a ser proposto uma solução do tipo federativo,
do seu “ultramar” e perdeu a voz no momento negociar.
pilotada pela minoria branca, coajudada pelo resto da
Interessante também o papel de Mário Soares que assinou
população civilizada. Um processo que manteria uma
com Melo Antunes e Almeida Santos o que já havia sido
permanente ligação a Portugal.
acordado previamente com a Frelimo e mantido em segredo por Melo Antunes. O êxodo da população branca,
A caracterização destes movimentos ocupa parte
asiática e mestiça encerra o período do colonialismo
significativa do livro. Ficamos também a conhecer a sua
de povoamento português em Moçambique. Um livro
posição em prol da maioria negra e a tímida defesa do seu
que desfaz muitos dos mitos e mal-entendidos sobre a
acesso à cidadania (a população indígena representava
presença portuguesa em Moçambique.
97% da população em 1970), tendo-se destacado a ativista Sofia Pemba Guerra e, mais tarde, Almeida Santos. A repressão e deturpação dos atos eleitorais
Ao perceber que a guerra estava perdida, por sua própria iniciativa, inicia negociações com elementos próximos da Frelimo com vista à independência do território e criação de uma sociedade multirracial; mesmo contra Lisboa se tal fosse preciso.
fez com que se perdessem os laços com a elite negra que passou a desconfiar da presença portuguesa. O falhanço da Primavera Marcelista deitou a perder toda a esperança numa abertura ao diálogo por parte do governo de Lisboa, não deixando outra alternativa à Frelimo que não fosse a de recorrer à luta armada. A demonização deste movimento, apelidado pelo governo de Lisboa de terrorista, e a desmobilização dos oposicionistas, ditou a escassa representação branca na Frelimo, com trágicas consequências para a população de origem portuguesa no momento de negociar com este movimento os termos da independência de Moçambique. O papel do engenheiro Jorge Jardim merece também particular atenção; de
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Licenciatura em Românicas pela UC e Mestrado em Língua e Literatura Portuguesas pela UM Livros: -É Tão Cruel Ter Memória -A Emancipação da Literatura Infantil -A Cidade do Patriarca
-A Aldeia das Mulheres -O Rapaz que Lia Rimbaud -As Contrabandistas -A Escuridão de Maria Luísa -O Homem do Boné xadrez
MANUEL ANTÓNIO ARAÚJO
Francisco Lembro-me do seu avô. Tenho ideia de ser um homem grande que desenhava cavalos debruçado no balcão corredio da sua mercearia. Anos sessenta do século passado. Descíamos a rua que dividia a aldeia, vindos da escola, e parávamos na mercearia do senhor Tavares, o seu avô. O Francisco e eu aprendíamos a ler e a escrever na escola primária de Lebução e tínhamos os fins de tarde para nos encantarmos com os focinhos dos cavalos, desenhados com lápis viarco. O desenhador de cavalos. O primeiro homem que me fascinou ao desenhar o cavalo do padre Daniel, tal e qual, parecia mesmo ele, aquele cavalo de narinas ofegantes, como constava no desenho. Foi aqui, logo desde o começo, que comecei a olhar o Francisco com a inveja de eu não ter um avô assim, que me lançasse no mundo mágico das estórias, cheias de cavalos alados. Era uma inveja de criança, uma inveja admiração por eu não ter um avô assim. Fizemos a escola primária juntos, sentados na mesma carteira, na primeira fila, talvez por sermos dos mais pequeninos da classe. Mas, mal saíamos, ambos, rua abaixo, para o mundo encantado do seu avô! E por isso fui crescendo, sem nunca lhe ter dito que tinha muita sorte por ter um avô que o ensinava a desenhar. As amizades das crianças são assim, fora da esfera semântica das amizades dos adultos. Espontâneas, limpas, geralmente para a vida. Uma vez, na terceira classe, eu tive varicela, termo muito
distante da cultura telúrica das aldeias daqueles tempos, portanto tive bexigas. Não pude fazer a prova final da 3ª classe com os outros alunos. A Dona Odete, nossa professora, que tinha uns joelhos inesquecíveis quando os dobrava sentada à secretária, decidiu que eu fizesse a prova quando estivesse curado. Dirigi-me à escola para fazer a prova, acompanhado pelo Francisco que esperou por mim no recreio. A nossa amizade foi-se estreitando, atingindo um ponto alto quando os dois descemos do comboio na estação de Campanhã, em 1965, para seguirmos de autocarro para Arouca, onde estaríamos dois anos no colégio salesiano. Um mar de pequeninos rapazes ia saindo do comboio com malas maiores do que eles. Todos para Arouca. O Francisco e eu ocupámos dois assentos, eu ao lado da janela, ele ao meu lado. Quando os padres que nos foram buscar ao Porto distribuíram sacos de plástico para vomitar durante a viagem de milhões de curvas, tentámos ir constantemente a falar e a rir, sobretudo ele, distraindo-nos do enjoo e dos colegas que vomitavam ao nosso lado e choravam pelas mãezinhas. No colégio salesiano andávamos sempre os dois, falávamos das cartas que recebíamos da família, tentando mitigar as saudades. Um dia recebemos duas encomendas dos nossos pais (não me recorda se as recebemos no mesmo dia), ele um sobretudo que lhe chegava aos pés, eu um par de luvas de lã de ovelha. De vez em quando trocávamos. Ele emprestava-me o sobretudo que me cobria e eu emprestava-lhe as luvas. Felizes por cada um usufruir das coisas do outro, felizes
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por cada um ver no outro um pouco da nossa terra. No 2º ano reprovei. Nem sequer pude ir fazer exame de 2º ano ao liceu D. Manuel II. Passou uma tarde a dar-me ânimo, a prontificar-se para falar com o meu pai para que ele não me batesse. Mesmo tendo reprovado eu continuava feliz no colégio, mas ele preocupava-se e chegou a ir falar com o padre conselheiro para que fosse possível eu ir fazer exames com os outros ao Porto. Um dia zangámo-nos. A verdade é que o motivo da zanga nunca me saiu da cabeça e ainda hoje penso nesse gesto de humanidade que um menino de dez, onze anos foi capaz de ter: um nosso colega tossia muito. Nós jogávamos à bola e ele encostado ao portão que dava acesso ao campo de jogos, a tossir cavernosamente, muito magro, muito pálido, muito doente. Ora naquela semana cabia-me usar o sobretudo. Talvez fosse primavera, mas eu gostava de usar o sobretudo azul escuro. Disse-me para lhe dar o sobretudo. Recusei, cabiame andar com ele vestido a semana inteira. A meio da semana pede-me o sobretudo. Não aceitei. Ele explicou-me que ia emprestar o sobretudo ao nosso colega de tosse profunda, que tremia de frio e não parava de tossir. Eu, egoísta, talvez, exigi que ele me desse as luvas. Fiquei completamente descoroçoado quando ele me disse, vou emprestar o sobretudo ao Domingos (penso que se chamava assim o colega doente), vou também emprestarlhe as tuas luvas. São tuas, tens o direito de as reaver; pois bem, vais ter com o Domingos e tiralhe as luvas das mãos! Assim!
seu prazer em oferecer os desenhos aos amigos do seu neto. Este é o Francisco que conheço, que talvez poucos conheçam. Achei que devia mostrá-lo justamente porque se vai candidatar a um cargo importante e os eleitores devem conhecer o mais que puderem da vida dos candidatos.
Eu, na altura entusiasmado com a vida santa de um santo (São Domingos Sávio), achei que o acto do Francisco fora da mesma estirpe dos actos do santo (vocês não imaginam a capacidade dos salesianos em incutir nos seus alunos ideais de fé e de adoração. São Domingos Sávio e São João Bosco eram os nosso exemplos, os santos que devíamos seguir). Dois anos depois, ambos estamos no Liceu de Chaves. Um dia houve uma zaragata no recreio, num jogo de futebol. Alguém o agrediu por causa duma disputa de bola. O Francisco não sabia agredir, não sabia ser violento, defendia-se e ria-se. Depois ele foi para ciências e eu para letras e só a partir daí nos fomos separando fisicamente. Mas a amizade perdurou. Solidário, pacífico, brincalhão e com uma maturidade precoce, como no caso do sobretudo e do colega doente. Não me esqueço do avô que desenhava cavalos, do seu sorriso bonacheiro, da sua sensibilidade, do
Desenho de Rita Palma Pereira Escultora e Professora na Algarve International School.
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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ O nome é Abkar El Saud. Nasceu numa pequena aldeia no Afeganistão e com 15 anos decidiu trocar a agricultura a que a família se dedicava pela promessa de uma nova vida. Rumou a Cabul. Trabalhou nas obras, numa pequena mercearia e quando os norte-americanos entraram na cidade, apercebeu-se de que tinha chegado um novo negócio – a barbearia. E foi assim num subúrbio de Cabul. Primeiro na rua. Escolheu uma esquina, levou um espelho, um alguidar, uma tesoura e um banco. Sentou-se no banco aguardando os primeiros clientes. E eles chegaram. Não no primeiros dias, mas nos dias subsequentes. Cortar o cabelo, aparar o bigode, fazer a barba. Não pensou em trazer grandes inovações à sua crescente clientela. Mas com o tempo e o desenvolvimento de uma nova geração, Abkar percebeu que os clientes estavam a ficar mais exigentes. Queriam copiar artistas e desportistas, alguns locais, outros que viam na televisão e nas redes sociais. Entre os clientes surgiram também, com o tempo, alguns ocidentais. Entretanto a vida de Abkar tinha passado por algumas mudanças. Num Eid
que passou na aldeia casou com Larissa (assim chamada por causa de uma novela russa que os pais tinham visto) e trouxe-a para Cabul. Abkar achou que tinha muita sorte. Gostava de Larissa e ela gostava dele. É certo que o casamento foi decidido pelas respectivas famílias, mas não sem antes os dois terem sido escutados. O pai de Larissa tinha fama de progressista. Tinha recusado casar as filhas quando elas eram crianças. Isto apesar de ter tido uma proposta de um dos maiores pastores da aldeia (50 cabras e 15 ovelhas) quando ela tinha 12 anos. O pastor tinha um filho de 30 anos, Ahmed e cansado de o ter por casa a fazer pouco mais que nada, queria casálo com uma boa rapariga da aldeia. Mas o pai de Larissa recusou. Menos sorte teve a filha do seu vizinho do lado, uma vez que a sua família (pai e avô) tinham aceite casar Soraya, menina com 9 anos. Abkar não era político. Mas sempre lhe tinha parecido que as pessoas só deviam casar-se adultas e com alguém que escolhessem para marido ou mulher. Das poucas idas à aldeia que fizeram depois de casados Abkar e Larissa tinham a certeza de que não pretendiam voltar para lá e muito menos que os filhos, Momim e Akmena. Os campos agrícolas
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estavam semeados de papoilas, as crianças tinham fome e a sua ida à escola, sobretudo se fossem meninas, continuava a ser um desafio constante. A vida, aliás, corria-lhes bem em Cabul. Da rua a barbearia de Abkar passou para uma pequena loja, num prédio ao fim da rua onde também viviam. Larissa começou a trabalhar numa escola perto. Trabalhar no Estado era uma garantia de salário certo. Pequeno, mas seguro. Entretanto, para além de clientes mais jovens, Abkar começou também a cortar o cabelo a voluntários e soldados ocidentais. Depois, no dia 16 de Agosto de 2015, o casal abriu a segunda barbearia, três semanas depois de nascer o terceiro filho – Akum. Esta nova barberaria, localizada já em Cabul, trouxe um outro tipo de clientela – advogados, professores, médicos. Gente com outra instrução, outras conversas e carteiras mais recheadas. Abkar confessou à mulher uma noite enquanto lavavam os pratos do jantar que ambicionava para os filhos que tirassem um curso superior. Serem alguém. A mulher olhou-o muito séria e perguntou-lhe “e a Akmena?” Abkar olhou a mulher sem perceber onde ela queria chegar. Pois não era a menina a primeira da sua escola? Não lhe brilhavam os olhos quando mostrava os testes ao pai? Não ficava este, que na verdade pouco sabia de ler e escrever, a rebentar de orgulho com as suas classificações? E não dizia ela que queria ser juíza? Claro que Akmena iria para a universidade também. Assim Abkar e a mulher tivessem forças e amealhassem o necessário pecúlio. Deitado ao lado de Larissa já adormecida Abkar imaginava a sua vida futura. Uma enorme rede de barbearias espalhadas pelo Afeganistão e os três filhos formados, todos a viver num grande apartamento com piscina em Qasaba. O sono surpreendia-a com um sorriso nos lábios e encontrava-o desperto com entusiasmo sempre renovado. Tudo isto parece agora muito longe, uma outra vida. No dia 16 de Agosto de 2021 Abkar e a mulher tinham pensado fazer uma pequena celebração, para marcar o aniversário da barbearia. Pouco conhecedor de política internacional Abkar estava apreensivo. Afinal, os seus clientes militares iam-se embora e havia rumores de que
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os talibans iam voltar. Mas, no fundo, não acreditava nisso. O mundo, como sempre diz Larissa, não anda para trás, anda sim para a frente. Que ilusões se cultivam! O mundo anda para onde os poderosos lhe dizem para andar ou para onde o atiram quando lhe dão um pontapé com descaso. Por força do pontapé dado no traseiro dos afegãos, Abkar está agora sentado com a mulher e filhos à porta de uma tenda num campo de refugiados em lugar que ele próprio não conseguiu identificar com precisão. Espera estar na Europa, mas um outro homem disse-lhe que ainda tinham de atravessar o mar de barco para lá chegar. Ou ir a pé, por um caminho mais longo. Qualquer das hipóteses é de difícil concretização para a sua família de cinco pessoas, três das quais crianças. E, contudo, é precisamente por elas que tem de ter força para a fazer. Já passou o momento da raiva, da revolta, da incredulidade. Porque nos abandonaram? Porque nos atraiçoaram? Porque não nasci do outro lado do mar, naqueles países onde os políticos dizem mal uns dos outros, mas depois há eleições e alguém é eleito e isso é respeitado? Abkar gostava de ter nascido na França, viu algumas reportagens na televisão e pareceu-lhe um país bem simpático. As pessoas até vestem coletes amarelos para ir protestar e ninguém limpa as ruas com uma saraivada de balas. Mas não, não podia ter nascido num desses países que vive em paz e onde as crianças vão à escola e até lhes davam comida (isto tinha sido Larissa que lhe tinha contado, tinha ouvido uma senhora a falar com dois homens junto da enfermaria sobre esse assunto). Nos momentos mais difíceis nem consegue chorar. Quando se sente um pouco melhor faz planos frenéticos para abrir não uma, mas duas, três ou quatro barbearias (e também cabeleireiro para senhoras, um sonho que já começava a acalentar, antes da sua vida ter sido reduzida a estilhaços). A maior parte do tempo, quando não anda à procura de informações ou a tentar comprar comida no mercado negro, senta-se à porta da tenda ao lado da mulher, a ver os filhos brincar. Só aí encontra um sopro de esperança.
AZUL FUNDO DO MAR O mesmo é diferente do azul que estamos habituados a ver à superfície, por incrível que pareça, e tudo devido à refracção da luz que, àquela profundidade, torna todas as cores diferentes à percepção humana. Por outras palavras, o vermelho, o verde, o azul, entre outras cores, a trinta e tal metros de profundidade assumem um tom diferente. Nem mais bonito nem mais feio do que à superfície, mas apenas diferente. Mas enfim, tudo isto em jeito de introito ao filme “Le Grand Bleu” no qual dois mergulhadores de apneia competem na senda de uma vitória esmagadora que imponha ao outro a certeza de quem era, afinal, o melhor de entre os dois. O filme tem um início esmagador, com os dois mergulhadores, crianças no mediterrâneo, já a competir um com o outro na tentativa de apanhar as moedas propositadamente atiradas para a água por turistas.
Um dos mergulhadores, Jacques Mayol, assiste à morte do seu pai, escafandrista profissional, enquanto este trabalha no mar, pois, aquele equipamento, à época, tinha tudo o que era necessário para derivar num grandessíssimo desastre. O rapaz, desde esse momento, pouco ou nada falou de tão grande que foi o trauma, mantendo, todavia, um magnetismo especial para com os animais marinhos, como se estes lhe reconhecessem o direito a pertencer ao mar, face ao drama que vivenciou. O filme desenrola-se neste registo, com a competição a desenvolver-se até um momento em que um dos dois morre vítima da profundidade, o que sucede inevitavelmente como se tal estivesse escrito nas estrelas. Neste caso, não nas estrelas do céu, mas sim nas estrelas do mar e, neste caso não com Jacques Mayol mas com o seu amigo e rival, Enzo Maiorca
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CANTINHO DO JOÃO João Correia
Nem mais bonito nem mais feio do que à superfície, mas apenas diferente.
o qual, felizmente ou infelizmente, não vivenciou o drama que aquele foi forçado a vivenciar não ganhando assim o direito a existir nas profundidades proibitivas reservadas ao conjunto limitado de pessoas que, de uma forma ou outra, pagam um preço em sangue para o fazer. Jacques Mayol, no final do filme, consciente que o mar o deixou sem rival para competir e sem o amigo para se divertir, mergulha de novo e durante a noite até à profundidade equivalente a muitas atmosferas, onde permanece em apneia desaparecendo apenas quando vê um golfinho, não para regressar à superfície, mas sim para o seguir não se sabe para onde, mas certamente para aquele local em que apenas os que ganham o direito a existir no mar se dirigem.
O filme de Luc Besson relembra-nos a justiça implacável do mar, os traumas de infância de quem perde um pai em circunstâncias drásticas, a competição entre dois amigos que se adoram mas que, mesmo assim, não permitem a sua superação pelo outro, a resistência humana, os seus limites e por fim, a certeza de que o mar, no final, vence sempre como se de uma inevitabilidade maior se tratasse. O azul fundo do mar é como uma vertigem azul que nos embriaga e vicia cada vez que a ele nos dirigimos como se lhe quiséssemos pertencer e no qual, este se vê forçado a nos mostrar que para ele, somos apenas, a na melhor das hipóteses, visitas com hora de regresso marcada. Descontentes por o nosso anfitrião nos expulsar, mas, todavia, gratos quando este nos deixa regressar.
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira
Bella Ciao quem não conhece deveria, quem não ficou a conhecer por causa de uma série espanhola que por aí andou e vai continuar, deveria tentar conhecer, quer o som, quer a razão desta música. Não é só um ritmo que nos entra na cabeça e nos toma conta da mente, se repete insistentemente e obriga-nos a cantar com ela, é mais, muito mais que um ritmo ou uma melodia do século passado. Dizem-na saída da cultura italiana, contam que terá surgido nas plantações de arroz, no final do séc. XIX. Mas, se foi um cântico de trabalho rural, tornouse um cântico de resistência durante a segunda guerra Mundial e que todos ouvimos como sendo um cântico de resistência a ditaduras venham elas de onde vierem ou com que tendência trouxerem. Foi cantada a muitas vozes, vinda de todas as tendências todas elas contra o “invasor”. Se na altura o invasor era o Fascismo, não deixa de ser fascismo a ditadura, a tentativa de domínio, de uns sobre outros, venha ela de onde vier, .... nasça ela em que filosofia nascer. Chamem-lhe fascistas, de esquerda, árabes ou vietnamitas, salazaristas ou selvagens ... são ditaduras, são extremismos, são tendências de domínio do próximo, são atentados à dignidades dos seres, de todos os seres que nascem livres
na sua essência ou, pelo menos, assim deveriam ser e permanecer. Confesso que me arrepia como um apelo que não abarco totalmente, mas que me desafia a resistir, impelindo-me a uma luta não pacífica, mas que terá de, necessariamente, surtir efeito contra o que pretende ser dominante por razões sem razão. Às vezes parece-me um hino, um hino que todos deveríamos ter a coragem de cantar quando as circunstâncias apelam à resistência, à desobediência, ao pensar pela nossa cabeça e ao exigir de quem foi eleito que reconheça o verdadeiro soberano. É um hino dos Partisans (membros da resistência)”, afirma Carlo Ghezzi, da Associação Nacional dos Partisans da Itália. E sinto-me membro da resistência. Voltemos atrás na história desta “Bella Ciao”. Por quem era formada a resistência? Contra quem? Pelas diversas correntes do antifascismo em que democratas-cristãos, comunistas, socialistas, monarquistas e republicanos, entre outros se congregaram nas suas ideias diferentes, vontades diferentes e superaram suas discrepâncias perante a necessidade de combater “o invasor”. O Invasor é exatamente todo o que atenta contra a dignidade de outro ser.
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BELLA CIAO (ou de como me sinto partisan)
Shamsia Hassani -Afghanistan Femme street artist
porque escolhemos quem nos representa nacional e internacionalmente.
Estou a falar do Afeganistão? Estou. Estou a falar de violência doméstica? Estou. Estou a falar de tráfico de seres humanos? Estou. Estou a falar de exploração sexual, assédio moral? Estou! Estou a falar de maus-tratos a animais? Estou. Estou a falar de corrupção, desonestidade, oportunismos? Estou! De tudo isto e não por esta ordem de importância. Se o comandante da resistência era um monárquico, não era por isso que ele era comandante da resistência, mas sim porque ele e os que com ele resistiram eram livres e tinham a enormíssima obrigação de defender a liberdade e mais, sentiam que a tinham. Não teremos nós essa mesma obrigação? Não sentiremos nós esse apelo? É por isso que me apetece fazer desta canção sem tendências uma bandeira de hoje, acordar memórias e vontades, dizer-vos que não basta ler noticiários e partilhar em redes sociais, há um apelo ao nosso querer e poder de verdadeiros soberanos
Deixemo-nos de esquerdas e de direitas, de supremacias e sabedorias. O que está a ocorrer hoje em dia é um enorme retrocesso, uma precipitação fatal na falta de conhecimento e de cultura, um alastrar de laxismo, de indiferença. Pensemos por exemplo, que o Mundo é um enorme estádio de futebol, e que o nosso clube é o da Liberdade. Ainda há dias quando o meu Sporting jogou me arrepiei com o som do Estádio e as canções de força e apoio. Pensemos então que o Mundo é um enorme Estádio em que nos batemos pela Liberdade, pelos Direitos, e pode ser esta Bella ciao seja una bandiera di libertà se é que precisamos de uma, nós que nascemos para ser livres. Já foi cantada durante uma Missa em Génova... a uma só voz... arrepiante. Sejamos Livres e Fortes para combater todas as ditaduras, todos os extremimos, sem medos porque o Medo dá força aos Tiranos. Confesso-me uma Partisan.
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U M A L E I T U R A DA C ONST I T U IÇÂO It’s time you’ll never get back, Marianne adds. I mean, the time is real. The money is also real. Well, but the time is more real. Time consists of physics, money is just a social construct. Sally Rooney, Normal People, 2018, Faber
E O MAR LOGO ALI Ana Gomes
Com a liberdade criativa que a “Justiça com A” nos dá, vamos imaginar que Marianne foi para Trinity College, em Dublin, mas estudar outra coisa. Tinha devorado com todos os sentidos os DVDs de “Cosmos” com doze anos e daí até procurar outros conhecimentos e se especializar em Física passaram mais dez. Ainda que mantendo a imaginação a 100%, Marianne não encontrou muitas respostas e espanta-se de cada vez que a prima Olívia lhe apresenta uma solução para qualquer problema do nosso tempo. Nada de especulação, fórmulas ou equações. Olívia é portuguesa e acabou por se doutorar em Direito Constitucional, coisa que a prima não alcança, o que sucede
exatamente com Olívia quando Marianne lhe tenta explicar as últimas tendências de investigação na sua área. - Estás a ver as leis fundamentais da Física, aquelas que são agora reconhecidas e aceites por todos? Assim é a Constituição, a lei fundamental de um país que todas as outras leis devem respeitar, ainda que, no caso português, a própria Constituição integre as normas da Declaração Universal dos Direitos Humanos e as normas europeias. Contém os princípios materiais adotados pela nossa sociedade política, como por exemplo o respeito e garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais como o direito à vida, à integridade física ou à liberdade.
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- Bom, os juristas passam anos a estudar, mas esses princípios são muito diferentes dos da Física, estes muito mais fáceis de entender, são reais. As primas têm mantido contacto só à distância nos últimos dois anos e finalmente encontraram-se no início de agosto, prosseguindo a última conversa que tinha sido interrompida abruptamente no skype. - Fiquei a pensar na tua observação... Trouxe-te a Constituição. Não te assustes. Qualquer criança que saiba ler compreenderá a maioria do texto que te vou apresentar. Lê o artigo 12.º, n.º 1. Princípio da universalidade.
- Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição. – Agora, artigo 13.º, n.º 1. Princípio da igualdade.
ou de aplicação judicial de medida de segurança.
- Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
3. Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
- Saltamos para o artigo 17.º, é sobre o regime dos direitos que vêm a seguir.
a) Detenção em flagrante delito;
Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (…)
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
- Percebes? Continua. Artigo 19.º, n.º 1.
c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
- Sim. Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição. O artigo 21.º (direito de resistência) interpela Marianne: - Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública – segue em frente, sem expressão de dúvida. - Agora, entras no capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais (artigos 24.º a 47.º). Lê em voz alta o artigo 27.º. - 1.Todos têm direito à liberdade e à segurança. 2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
- Isto significa que, em Portugal, ninguém pode ser privado da liberdade noutras circunstâncias que não estas ? - Exatamente. Vê o artigo 31.º. Olívia dá uma ajuda na leitura. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente (…) Agora, salta para o art.41.º. - A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional – art. 44.º. Marianne está temporariamente confusa porque muito do que ouviu na abertura dos telejornais portugueses dos últimos meses parece não ter correspondência com as normas que acabou de ler.
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
Amanhã podemos passar à leitura dos artigos sobre as competências dos vários órgãos para estabelecer as outras regras infraconstitucionais, como as dos artigos 165.º e 198.º, mas fica para amanhã. E para o dia seguinte, a norma que nos pode salvar, assim se realce a importância do Direito: as leis de revisão constitucional terão de respeitar:
g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
(…) d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – artigo 288.º.
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente (…)
Sem ilusões, Marianne remata:
e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
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- Well, dear, law is just a social consctruct.
PANO PARA MANGAS Margarida Vargues
Em miúda sonhava viver num prédio alto! Havia qualquer coisa de fascinante no acto de “varandar” apenas para observar o que se passava na rua ou para trocar dois dedos de conversa com quem estacionasse por baixo da varanda Mas de onde me vinha este desejo? Não faço a menor ideia! Os meus avós paternos viviam numa casa térrea, a mesma onde também eu morava e que agora visito ao fim-de-semana – a casa e os meus pais, pois os avós há muito que se finaram. Quanto aos maternos habitavam, também, num rés-do-chão. E eu ... bem, eu tinha a mania das alturas, por isso consegue-se imaginar o meu desgosto quando os meus pais resolveram ir de armas e bagagens para a cidade e a casa que escolheram era num rés-dochão?
Anos mais tarde acabei por arrendar um nono andar com varandas, mas e eu tinha tempo para delas usuifruir? Acho que só varandei durante o inverno para ver como estava o tempo lá fora e, amiúde, constatar que não poderia sair de casa a não ser que tivesse um barco – as chuvas e as marés assim o ditaram nesse ano. Ironias do destino... Além disso, quem é que se punha a conversar de um nono andar? Só de megafone em punho! Hoje já não alimento esse desejo e de cada vez que ajudo a minha vizinha do primeiro andar a levar o carrinho das compras para cima, dou graças por permanecer cá em baixo. Por vezes chego a pensar que ela carrega ou pedras ou um defunto por baixo
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CRÓNICAS DO R ÉS DO CH ÃO das alfaces e dos ovos que vejo à superfície. Não prima pela simpatia, é verdade, mas daí a ter um vizinha homicida... Parece, então, que estou destinada a um rés-dochão – pelo menos por ora! E não é que morar junto à rua tem mais que se lhe diga? Passando a expressão, dá pano p’ra mangas! A minha rua é um microcosmo! Há de tudo por aqui, especialmente especialistas altamente especializados em resolver os mais especiais problemas do país e do mundo. Qualquer uma destas criaturas é digna de um lugar na Assembleia da República, na Casa Branca ou em Bruxelas de preferência numa poltrona confortável, pois já não vão para novos e os ossos começam a queixar-se. Eu não sei como há coisas no nosso país que estão mal. Confesso que não sei, pois nos metros quadrados que separam a janelas do meu escritório e do meu quarto e a esplanada do outro lado da rua há solução para tudo. Tudo, mesmo! Há dias, já depois de ter passado o camião vassoura, a esplanada atravessou a rua e parou a conversar junto de uma destas minhas janelas. Aquilo que seria uma despedida prolongou-se por tempo indeterminado. As conversas são como as cerejas, vêm umas atrás das outras e o cesto devia estar bem cheio. Sempre seguindo a estrutura problema-solução, chegaram ao assunto do dia: A VACINA – assim, com maíusculas para não haver confusão, pois tal como a gripe que se erradicou, todas as vacinas que levamos em miúdos e ao longo da vida parecem ter sumido do plano. Os ânimos ficaram, a certo momento, exaltados e daí começou a destacar-se uma voz que identifico como a de um vizinho do prédio ao lado. Os decibéis roçavam o volume estratosférico das colunas Kadoc nos áureos já longínquos anos 90.
O espectáculo prometia e resolvi abrir uma garrafa de vinho para desfrutar – do néctar e do debate. Fui buscar um queijinho e deixei-me ficar ali, como se estivesse a assistir a uma radio-novela. A solução para a vacinação foi encontrada nesta tardia conversa: vacinar todas as pessoas - a nível mundial – em simultâneo. Mas o que é isso de vacinar uns em Janeiro, outros em Abril e ainda uns quantos em Outubro? Por isso é que isto não melhora! (Sr. Vice-Almirante, tem aqui uma tropa de elite para a sua taskforce. Duvido é que saibam onde espetar a agulha na hora certa.) Todo este discurso fez-me lembrar quando, há uns anos, entrei num táxi em Lisboa - daqueles com a Nossa Senhora fluorescente pendurada no retrovisor, o galo de Barcelos da meteorologia colado no tablier, uma dúzia de cassetes entaladas entre o cinzeiro e as mudanças e as almofadas de crochet a decorar o espaço entre o vidro traseiro e as cabeças dos passageiros - e o gentil motorista resolveu os problemas do país na corrida entre o Marquês de Pombal e o Cais do Sodré, especialmente quando eu, ávida das tais soluções, larguei a enfática bomba “Ahhh a falta que faz cá um Salazar...” Encontrada a solução para o problema do momento, dispersaram-se entre repenicados beijinhos e promessas de outros serões. Terminei o vinho, lavei a loiça e fui-me deitar. Apenas não percebi se a acta foi lavrada ou se vai haver um abaixo-assinado, porém a solução está encontrada sem que para isso tivesse sido feito qualquer plano ou gasto um cêntimo do que todos os meses pagamos ao estado. Ahh valentes! Vacinação para todos já, e em simultâneo!
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O m u p e n rn d o a de sp a ra
Até que a imagem é divertida: cortando a etiqueta, de pernas para o ar ... Se não fosse trágico, podia ser mesmo um bom programa. Temos que reaprender a viver, a conviver, com proximidade social e, até, com proximidade física. As regras, mais do que nunca são importantes e, mais importante ainda, saber quebrá-las. Voltamos sempre ao mesmo:
o a r
Bom senso é a alma do negócio mas, pasmese, estamos rodeados de maus negócios e invadidos por falta de senso. Zás-trás - levámos aquela murraça no estômago há mais de ano e meio. Alguém se recompôs? Eu, não. E olhando à volta - não, ninguém se recompôs. É, pois, preciso agir, reagir, interagir. Vamos a isso, então. A sugestão passa por recomeçarmos por etapas. Há pessoas com umbigos maiores do que outras, o que não quer dizer que não possamos demorar o nosso olhar naqueles umbigos pequeninos, que até os próprios têm dificuldade em encontrar.
E, se nada disto resultar, façam como o Paco Ibañez, um cantor da minha juventude que vos desafio, aqui, a ler, e depois a ouvir. Porquê? Porque a poesia e a música são sempre uma solução. “Érase Una Vez” , de Paco Ibañez
Podemos, pois, começar por aí, e pelos que olham mais para os outros, mais pelos outros.
“Erase una vez Un lobito bueno
Quase sempre estão ali tão ao lado, tão perto, na família, no trabalho, na vizinhança, na mesma rua ...
Y había también Un príncipe malo Una bruja hermosa Y un pirata honrado
Al que maltrataban Todos los corderos
Todas estas cosas Había una vez Quase sempre um pequeno gesto quase vale a vida. E faz a diferença. E, depois de termos aprendido tanta desinfecção, tantos cuidados, podemos tocar o próximo.
Cuando yo soñaba Un mundo al revés”
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MARGARIDA DE MELLO MOSER.
VOCÊ CORTA A ETIQUETA?
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LICÍNIA QUITÉRIO
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ELA É UM DESENHO ANIMADO. VAI DESENHANDO COM OS BRAÇOS TUDO O QUE CONTA. COMPROU UM QUEIJO GRANDE, PIRAMIDAL, CORTOU-LHE O BICO, ESTÁS A VER, A MÃO EM RASOIRA, DEPOIS EM QUARTOS, ASSIM, COM A MÃO EM CUTELO ARRASTANDO-SE SOBRE A MESA, OS HOMENS A FAZEREM-LHE A PINTURA DAS PAREDES EXTERIORES, NEM QUEIRAS SABER, OS VIDROS TODOS SALPICADOS, AS DUAS MÃOS A ASPERGIREM A INVISÍVEL TINTA NA MINHA DIREÇÃO, UMA PORCARIA, ESTÁS A VER, E AS PINGAS PELO CHÃO, O BRAÇO DESENHANDO CÍRCULOS AO LONGO DO CORPO, ESTÁ UM CALOR, E LOGO VESTI ESTA T-SHIRT, ABANA-SE, SÓ COM A MÃO, COMO SE LEQUE SEGURASSE, MAIS MAGRA EU?, OLHA LÁ BEM, AMBAS AS MÃOS AGARRANDO AS GORDURAS SOBRANTES DA CINTURA, OS NETOS É QUE NÃO PARAM, AOS SALTOS, AOS SALTOS, ESTÁS A VER, O RABO A SALTAR NA CADEIRA, ABRE A MALA, FECHA A MALA, ABRE A MALA, ONDE TENHO A LIMA?, UMA UNHA FALHADA, RAIOS, LEVA A UNHA AOS DENTES, RÓI DE UM LADO, RÓI DO OUTRO, ESFREGA-A NO TECIDO DAS CALÇAS, ESTÁ MELHOR, MAS SE TIVESSE UMA LIMA, ESTÁS A VER, AS MÃOS NA FUNÇÃO COM A LIMA QUE NÃO HÁ, ZUCA-ZUCA, GOSTEI DE TE VER, TENHO DE IR, OS HOMENS VOLTAM À TARDE PARA TRATAREM DO TELHADO, ESTICA OS BRAÇOS, SOBE OS CALCANHARES, ESTÁS A VER A PORCARIA.
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