Limites da Correria - Mainline

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REDUÇÃO DE DANOS PARA PESSOAS QUE USAM ESTIMULANTES

Rafaela Rigoni Joost Breeksema Sara Woods

www.mainline.nl Tradução e Revisão:

escolalivrereducaodedanos@gmail.com


O original desta obra foi publicado em inglês com o título Speed Limits – Harm reduction for people who use stimulants © MAINline © 2018, para a obra original Primeira edição Outubro de 2019 © 2019, para a presente edição MAINline Escola Livre de Redução de Danos Grupo AdoleScER: Saúde, Educação e Cidadania Capa: Odilo Girod Tradução: MS Soluções Linguísticas, Bernardo Lisboa Carvalho e José Arturo C. Escobar Revisão tradução: Bernardo Lisboa Carvalho e José Arturo C. Escobar Revisão Textual: José Arturo C. Escobar, Rafael Silva West, Anamaria Faria Carneiro, Ingrid Assunção Farias, Ivana Rodrigues Vaz, Priscilla Gadelha Moreira e Rafaela Rigoni Diagramação: Ipskamp Printers Impressão e encadernação: Cepe – Companhia Editora de Pernambuco

R572l

Rigoni, Rafaela Limites da correria : redução de danos para pessoas que usam estimulantes / Rafaela Rigoni, Joost Breeksema, Sara Woods ; prefácio à tradução inglesa José Arturo Costa Escobar ; prefácio da edição inglesa Daniel Brombacher ; tradução Bernardo Lisboa Carvalho e José Arturo Escobar. – Recife : Escola Livre de Redução de Danos, 2019. 169p. : il. Inclui glossário. Inclui referências. ISBN: 978-85-65785-02-0 1. DROGAS – ABUSO – PREVENÇÃO. 2. ESTIMULANTES – ABUSO – CUIDADO E TRATAMENTO. 3. DROGAS ILÍCITAS – FATORES DE RISCO. 4. DROGAS – PROGRAMAS DE REDUÇÃO – PERNAMBUCO. 5. DROGAS E JUVENTUDE – PERNAMBUCO – ASPECTOS SOCIAIS. 6. CIDADANIA – PERNAMBUCO – USUÁRIOS DE DROGAS. I. Breeksema, Joost. II. Woods, Sara. III. Escobar, José Arturo Costa. IV. Brombacher, Daniel. V. Carvalho, Bernardo Lisboa. VI. Título. CDU 178.8 CDD 362.293

PeR – BPE 19- 701

Impresso no Nordeste do Brasil


ÍNDICE Prólogo 4 Prefácio à tradução Inglesa

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Agradecimentos desta edição

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Prefácio da edição Inglesa

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Agradecimentos dos autores

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Glossário 15 1 Introdução 1.1 Redução de danos no mundo de hoje 1.2 Foco tradicional de evidência: prevenção de HIV para as PUDI 1.3 Objetivos do presente estudo

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2 Metodologia 2.1 Revisão da literatura 2.2 Sete casos de boas práticas 2.2.1 Envolvimento significativo

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3 Contexto 3.1 Estimulantes do tipo Anfetamina 3.1.1 Metanfetamina 3.2 Cocaína 3.3 NSP e Catinonas 3.4 Riscos e danos em potencial 3.4.1 Danos físicos 3.4.2 Danos à saúde mental 3.4.3 Danos sociais 3.4.4 Ambiente de risco

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34 4 Revisão da literatura 4.1 Kits para fumar com maior segurança 36 4.2 Prevenção de riscos sexuais 38 4.2.1 Chemsex 38 4.3 Intervenções focadas no gênero feminino 40 42 4.4 Salas de Consumo de Drogas 4.5 Autorregulação 43 4.6 Moradia Primeiro 45 4.7 Substituição 47 4.7.1 Substitutos baseados em plantas 47 4.7.2 Agonistas e antagonistas 48 farmacêuticos 49 4.8 Abordagem social e intervenções baseadas em pares

4.9 Centros de Convivência 4.10 Kits de testes de drogas 4.11 Intervenções online 4.12 Intervenções terapêuticas

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^60 5 Estudos de caso 5.1 Programa Atitude 61 75 5.2 Chem-Safe 5.3 Grupos de contemplação 87 5.4 COUNTERfit 98 5.5 El Achique de Casavalle 111 5.6 Abordagem social com Shabu da Karisma 121 135 5.7 Princehof, Ripperdastraat e Schurmannstraat 6 Conclusão 6.1 Lições da literatura e dos casos de boas práticas 6.2 Precisamos de uma redução de danos específica para estimulantes? 6.3 Recomendações para a continuidade das pesquisas e intervenções

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Epílogo

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Redução de Danos e Raça — descolonizando autonomias

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Referências Bibliográficas

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Prólogo

Um conjunto de motivações nos impulsionou para organizarmos essa tradução e publicação no Brasil, que foram desde o conteúdo do material, a importância desta revisão bibliográfica, o aprendizado com o pioneirismo da Organização Mainline de Amsterdã, a inclusão do Programa pernambucano “ATITUDE – Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus familiares” entre uma das 07 experiências internacionais destacadas, bem como a variedade do livro em apresentar práticas inspiradoras também no Uruguai, Canadá, África do Sul, Indonésia, Espanha e Holanda. Somado a isso, neste ano de 2019 completam-se os 30 anos de iniciativas de Redução de Danos (RD) no Brasil, que marca desde a bravura inaugural da prefeitura de Santos-SP em 1989, ao pioneirismo em Salvador-BA, em Porto Alegre-RS e a disseminação de ações nos quatro cantos do país nas últimas três décadas. É o momento de reconhecer esta história, de valorizar a diversidade pulsante das experiências, de agradecer às pessoas que fizeram, que fazem e as que irão fazer a redução de danos permanecer viva. É perceptível que é um período de severos ataques à democracia, à liberdade, aos direitos humanos, ao pacto civilizatório mínimo e, consequentemente,

se torna imprescindível visibilizar os avanços de políticas públicas no país, como o Sistema Único de Saúde (SUS), a reforma psiquiátrica, os milhares e variados Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os Consultórios na Rua, a vitalidade da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que podem não ter atingido os patamares desejados, mas continuam sendo patrimônios públicos da redução de danos no Brasil. Assim como as mais recentes e diversas inovações, tanto no campo dos movimentos sociais antimanicomial, antiproibicionista, feminista, antirracista e outros, como na criação de serviços públicos na garantia de direitos entre pessoas que usam drogas em situações de extrema vulnerabilidade social, ofertando alimentação, moradia, geração de renda, proteção à vida, sem condicioná-los à imposição da abstinência, demonstrados em exemplos inspiradores como os Programas “Corra pro Abraço”, na Bahia, e o “De Braços Abertos”, em São Paulo. Também nesse contexto, há 10 anos, quando começamos a formular o Programa Atitude junto com as pessoas que conviviam entre o consumo e o mercado de drogas, entre a pobreza e a violência, nas ruas da Região Metropolitana do Recife, no Agreste


e no Sertão pernambucanos, não imaginávamos que se tornaria um Programa estruturado, muito menos com importância internacional, mas percebíamos a necessidade de desenvolver uma redução de danos que também somasse esforços no enfrentamento do abismo da desigualdade social e dos efeitos bélicos da “guerra às drogas”. Assim como outras iniciativas latino-americanas, hoje, todas essas diversas experiências vão contribuindo a sedimentar uma prática que contribui na ampliação da vida, na medida em que também ameniza os impactos da pobreza, do encarceramento em massa e do genocídio em curso. E neste aniversário de 30 anos, no clima de defesa da democracia, da liberdade, dos direitos humanos, de reconhecer a história, de valorizar o presente e de olhar para o futuro, é que nasce a Escola Livre de Redução de Danos, em Pernambuco, no Nordeste brasileiro, que surge com propósito de estudar, ensinar, criar e difundir histórias, conceitos e práticas cotidianas do aprendizado entre pares, compreendendo que, onde houver pessoas que usam drogas dialogando, cuidando-se, organizando-se, haverá redução de danos.

Enfim, é com muita alegria que a Escola Livre materializa esta ponte Holanda-Brasil, AmsterdãRecife, para fazer a RD circular! E nos tempos de hoje, consideramos esta publicação como uma afirmação da democracia, do respeito às escolhas de vida, um instrumento de disseminação e celebração. Um produto com atestado de qualidade e que pode ser apreciado sem moderação, desejamos uma ótima leitura!

Rafael West Cofundador da Escola Livre de Redução de Danos Ex-Gestor do Programa Atitude (2011-2015) Integrante do Movimento Brasileiro de Redução de Danos (MBRD) Consultor no Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)

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Prefácio à tradução Inglesa

Este relatório de pesquisa nasce em meio a um tempo em que as práticas de Redução de Danos e toda a ciência nacional têm sido contestadas pelo Poder Executivo da República Federativa do Brasil, quinto maior país do mundo, considerando seu território, e a sexta maior população mundial. Os tempos obscuros de anti-intelectualismo e o ataque contra a ciência em sua essência como perspectiva norteadora de ações de Estado para o bem-estar populacional são características que acompanharam o nascimento deste trabalho de tradução e divulgação de práticas éticas e cientificamente comprovadas para a intervenção sobre pessoas que usam drogas estimulantes. A questão brasileira sobre drogas sempre foi de imensa disputa conceitual, entre a arcaica e higienista visão de mundo livre das drogas, e a realista e arqueológica constatação de que se vive um mundo em que pessoas fazem uso de substâncias diversas, e que estas merecem o acesso a práticas de cuidado amparadas por princípios humanistas, pelos direitos humanos e respeito pelas suas escolhas de vida. Decerto que a compreensão sobre o uso de drogas, enquanto uma questão cultural dos homens em sociedade, da qual compartilhamos, não implica em ignorar os prejuízos que os consumos abusivos e dependentes podem causar à sociedade e às próprias pessoas, individualmente. O anseio genuíno pelo cuidado a essas pessoas é um dos motivos desta publicação.

O debate brasileiro das políticas sobre drogas tem se dado em oposição entre as perspectivas jurídica-moral-biomédica versus a biopsicossocial-sociocultural, assim, o uso de drogas tem sido compreendido por parte da sociedade civil organizada, e até por órgãos governamentais, na forma de um reducionismo que dá extrema relevância ao papel neuroquímico das drogas e de mecanismos punitivos como forma de atenção ao tema, e pouca importância aos contextos culturais e socioeconômicos subjacentes às culturas de uso, ou ainda aos aspectos pessoais, isto é, às expectativas individuais, os níveis de conhecimento das pessoas sobre seus consumos, os posicionamentos e compromissos políticos dos governantes e legisladores, as vulnerabilidades das pessoas e dos territórios, etc. Este impasse tem provocado o sofrimento das pessoas, segregação e exclusão social, e pouco tem contribuído com a discussão madura e responsável sobre o problema das drogas. O Brasil, segundo as estatísticas mundiais, é o oitavo maior consumidor de cocaína entre dezenove países americanos (considerando o uso na vida), atrás de países como Estados Unidos, Canadá, Uruguai e Chile. Em comparação com vinte e cinco países europeus está atrás de dez países, tais como Espanha, Reino Unido e Irlanda (BRASIL, 2015). Os dados nacionais públicos atuais sobre consumo de drogas estimulantes como a cocaína, o crack e anfetaminas encontram-se no III Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira (LNUD) (BASTOS et al., 2018), realizado

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pela Fiocruz em 2015. O III LNUD mostra-nos que o uso na vida de anfetaminas de forma não prescrita no país ocorreu por 1,4% da população, o consumo de cocaína foi de 3,3% e o de crack foi 0,9%, o que representa crescimentos de uso de 13,8% para a cocaína e 28,5% para o uso de crack, desde o último levantamento em 2005 (BRASIL, 2010). Tais dados indicam uma desaceleração de crescimento do uso de crack observado entre 2001 e 2005 (75%) e também da cocaína (20,7%) para o mesmo período (BRASIL, 2010), conforme a série histórica dos relatórios da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD)1. Embora os consumos de estimulantes no Brasil como a cocaína, o crack e anfetaminas apresentem baixa prevalência, no entanto, representa um universo de milhões de pessoas entre a população. E apesar do número de pessoas com problemas decorrentes do uso de estimulantes, as estratégias de cuidado sob a perspectiva da redução de danos têm sido escassas ou mesmo inexistentes, se específicas para estes tipos de substâncias. Desse modo, a importância da tradução e disponibilidade deste material em língua portuguesa é inestimável, haja vista que o presente relatório nos concede uma série de casos de intervenções específicas para pessoas que usam drogas estimulantes, aprofundando o estudo em sete casos específicos entre dezenas de experiências ao redor do mundo investigadas pela organização Mainline. Limites da Correria: Redução de Danos para usuários de estimulantes – foi assim traduzido do original Speed Limits, numa escolha para adaptação cultural do título da pesquisa original. Enquanto speed limits literalmente significa “limites de velocidade”, pode ser compreendida como uma alusão às drogas denominadas speed, isto é, as anfetaminas, de efeitos estimulantes. Os autores nos trouxeram que o título busca lançar-nos à ideia das substâncias estimulantes como algo que pode nos manter numa correria desenfreada, sem espaços para a reflexão – e neste sentido, próxima ao status quo da sociedade atual – a não ser que desenhemos alguns limites de proteção, de redução de danos. Em “Limites da Correria”, buscamos fazer 1 No II LNUD a categoria Anfetaminas não foi estudada em específico, mas traz informações gerais sobre os consumos de estimulantes, estimado o uso por 3,2% da população, em 2005. (N. R.)

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a referência das terminologias Correria ou Corre de nossa cultura local pernambucana e urbana, a qual se refere às atividades do cotidiano, desde as correrias em função da realização de trabalhos, serviços e atividades diversas, ao corre da obtenção de drogas, compreendida como uma das atividades cotidianas das pessoas que usam drogas. Ademais, dentre os casos especificamente aprofundados, o Programa Atitude, serviço da assistência social implementado pelo Governo de Pernambuco em 2011, e que atende em grande maioria usuários de crack em vulnerabilidade social e em condições de ameaça, é particularmente uma experiência inovadora no país, cujos resultados e modos de monitoramento, bem como o impacto sobre as pessoas usuárias do serviço, têm sido alvo de pesquisas acadêmicas e reconhecimento nacional e internacional como boa prática de redução de danos e um modelo possível para a diminuição da violência e uso de drogas. Além, com práticas e atendimentos psicossociais capazes de remodelar as relações do indivíduo e da Rede de Atenção a certos determinantes sociais de saúde. A Escola Livre de Redução de Danos enseja que este documento possibilite novas formas de pensar a Redução de Danos para usuários de estimulantes, além de fomentar o debate sobre essa perspectiva em tempos de descrença e abandono de práticas humanizadas e cientificamente demonstradas. A desinformação e o preconceito com as pessoas que usam drogas, e a ampliação do cuidado, bem como a reinserção social, apenas podem ser conquistadas pela informação amparada em dados e boas experiências. É neste panorama que buscamos incidir, na crença sobre a potencialidade da pessoa humana, no seu desenvolvimento pessoal, na aposta da autonomia e na resiliência, que mergulhamos neste projeto como forma comemorativa e de resistência pelos 30 anos da Redução de Danos no Brasil. José Arturo Costa Escobar Doutor em Psicologia Cognitiva Cofundador da Escola Livre de Redução de Danos Diretor-Presidente do Grupo AdoleScER: Saúde, Educação e Cidadania Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Álcool e outras Drogas (Gead/UFPE)


Agradecimentos desta edição

Lidamos agora com o reconhecimento de cada pessoa, pela história e pela posição. Gostaríamos de agradecer a diversas organizações e instituições, que por caminhos diversos, potencializaram a consolidação desta pesquisa no Brasil. Uma série de benefícios coletivos e sociais está incorporada a esta publicação sobre redução de danos e suas práticas em todo o mundo. Ao estar acontecendo no espaço provocado pela invenção do Nordeste, trazemos à tona outro olhar e forma de falar, ao sair do espaço de caranguejos, mulheres e homens da lama, do rio, da mata, da favela, do asfalto e do mato. Agradecemos a nossa ancestralidade e a nossa construção guiada pelo bem viver de todas as pessoas, com provocação contínua ao novo e ao devir dos novos tempos. A quem se dispôs ao encontro e quebrou barreiras antes intransponíveis. Que nossos corpos ousem ser e expressarem sempre o que nós somos: humanos que acreditam na humanidade! A todos que fazem o Grupo AdoleScER, organização pernambucana com interface internacional e importante atuação que visa impactar no desenvolvimento de crianças e adolescentes, bem como em seus territórios e comunidades vulnerabilizadas na cidade de Recife, pela profissionalização, parceria e por gestar a Escola Livre de Redução de Danos e no gerenciamento deste projeto.

À Open Society Foundations, em nome Jonathan Cohen, Diretor do Programa de Saúde Pública, pelo incentivo financeiro para a concretização deste projeto e à Sarah Evans pela confiança, orientações pragmáticas e motivação, por acreditar em um ideal de saúde e bem-estar das pessoas. À Rafaela Rigoni, pelo apoio, orientações e interlocução para que tal tradução e conhecimento esteja disponível em língua portuguesa. À MAINline pelo valioso trabalho realizado, por compilar as diversas experiências possíveis e com evidências de resultados positivos que possam auxiliar as pessoas que usam drogas estimulantes. Aos profissionais e organizações das experiências deste livro, por acreditarem em perspectivas diferenciadas no cuidado e atenção à pessoa que usa drogas e pelo empenho na busca de transformação de realidades pessoais, coletivas e de um modelo de sociedade. À construção histórica do campo da redução de danos em Pernambuco, no Brasil e América Latina. Construímos formas e conceitos a partir de nossas vivências e territórios, abrimos espaços às vozes antes silenciadas e dissidentes de discursos arcaicos e hegemônicos, e hoje protagonizam voz e tornam visíveis as populações e estruturas sociais, assim, denunciando as desigualdades e potencializando o avanço da RD enquanto prática de cuidado, inserção e bem-estar social de forma individual e coletiva.

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Aprendemos com resistência em gestões públicas, quer seja na esfera municipal ou estadual, que a reforma psiquiátrica aconteceu no Brasil por diversos caminhos e forças, mas com decisões políticas e institucionais o processo de desenvolvimento e emancipação das pessoas é possível e já é uma realidade palpável no cotidiano. Tivemos a Rede de Atenção Psicossocial regularizada na rede municipal de Recife, a construção e inserção da política sobre drogas na assistência social e a abertura do Programa Atitude pelo Governo de Pernambuco, todas estas são ações realizadas com a construção integral entre movimentos e gestão pública, fato consolidado na criação, desenvolvimento e continuidade do programa que resiste na prática de redução de danos. Agradecemos a todas as pessoas envolvidas nessa trajetória intensa e cheia de desafios. Às pessoas que se inclinam para a continuidade e defesa inegociável do SUS no Brasil e toda força da luta antimanicomial e antiproibicionista, que consolidam e estão continuamente nas ruas, pelo cuidado em liberdade, autonomia e pelo bem-viver. À Marcha da Maconha de Recife, ao movimento inteiro e coletivo, organizado de forma diversa e ampliada, com presença cada vez mais prevalente das mulheres e jovens, assumindo o protagonismo e potencializando vozes sobre a descriminalização de todas as drogas, a toda nossa militância muito obrigada por continuar e por queimar toda hipocrisia deste mundo. A nós Antiproibicionistas, sigamos na construção do bem viver e foco na missão! Àquelas que fazem o Coletivo Antiproibicionista de Pernambuco uma instância potente, disparadora de reflexões e ações para a mudança coletiva do paradigma de Guerra às Drogas e de uma sociedade na qual a proibição seja história de uma época careta quando ainda não enxergávamos nossa potência. Ao Movimento Brasileiro de Redução de Danos, iniciativa que nasce da ação e potência de redutoras e redutores de danos no Brasil, consolidados pelas associações, organizações e espaços que pautam e constroem a redução de danos em todo Brasil nos últimos 30 anos. De usuária(o) para usuária(o), de redutor(a) para redutor(a), valeu por tudo! Por segurar a onda, por

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se escutar e, às vezes, não. Por estarem ao lado de quem nunca se viu na vida, e assim acolher uma bad trip, para conversar e “lombrar” por um tempão e, às vezes, não ter paciência alguma, mas de boa, pode sempre chegar outra pessoa, somos muitas. A você, que acreditou na redução de danos e se permitiu cuidar e ser cuidada(o). Encontrar alguém que não lhe julgue é sem igual, que fale com horizontalidade e respeito, muita gratidão a tantas pessoas que acreditam e fazem a redução de danos acontecer. Nós por nós! Aos precursores da RD no Brasil e em Pernambuco, por possibilitarem a discussão na sociedade e no Estado acerca de perspectivas humanistas sobre a questão das drogas. Agradecer nominalmente é um devir de letras e palavras, que são necessárias, apesar de inomináveis diante de tanto o que foi aprendido e plantado em todas as regiões do país. Os nomes na redução de danos, no nosso cotidiano, temos tantos e tantas. Na rua não se tem nome, nosso nome vai sendo dado com o tempo, com o vínculo construído. Sendo assim, vamos agradecer “a mulher do governo”, “o psicólogo da assistência”... O que seriam nomes então? E daí, qual nome a rua lhe dá? A doutora, o doutor, o cara do Caps, a mulher do consultório de rua, a moça educadora, Paulo, Ana, Priscilla, Márcio, Ana Glória, Luana, Rafael, Evaldo, Karen, Everaldo, Antônio, Melissa, Nery, Amanda, Rossana, Alda, Domiciano, Rose, Say, Luciana, Nelson, Tchê, Malu, Fatinha, Rúbia, Pri, Ana Lúcia, Vívian, Fátima, Otto, Juma, Carlos, Luís, Fernando, Apolo, Dênis, Tarcísio, Fernando, Rodrigo, Renato, Dartiu, Felipe, Valéria, Daniela, Anne, Paula, Sandra, Andréia, Mônica, Angélica, Karina, Luísa, Laisa, Laís, Nêmara, Bruno, Roberta, Flávio, Luísa, Estela, Naíde, Francisco, Leila, Fátima, José, Márcio, Janaína, Beatriz, Flávia, Thiago, Fran, Andreza, Sthefany, Marcela, Telma, Luís, Cláudia... E tantos nomes, grupos, associações, espaços de troca sobre horizontalidade, liberdade e autonomia, em todo canto deste continente, muito obrigada! Toda nossa gratidão. Nós usuárias e usuários de drogas vivemos e estamos fazendo POLÍTICA! Escola Livre de Redução de Danos


Prefácio da edição Inglesa

A redução de danos como um conceito, definido como “políticas, programas e práticas que têm como objetivo principal reduzir as consequências adversas de saúde, sociais e econômicas do uso de drogas psicoativas legais e ilegais sem necessariamente reduzir o consumo de drogas” (HRI, 2018), ganhou significativa importância mundial desde a Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGASS, United Nations General Assembly Special Session) sobre o Problema Mundial de Drogas, em abril de 2016. Isto se reflete em um aumento de entendimento comum e compromisso em níveis globais, regionais e nacionais sobre as políticas de drogas direcionadas à saúde. No entanto, o conceito de redução de danos ainda é amplamente entendido como uma estratégia que trata do uso de drogas injetáveis e dos danos e riscos associados com esta rota de administração. Os serviços para redução de danos para pessoas que usam estimulantes (PQUE) são menos comuns apesar do aumento constante no uso de estimulante em uma escala global. As apreensões de estimulantes do tipo anfetaminas aumentaram globalmente em 20% em 2016, segundo os dados mais recentes disponíveis. No mesmo período, a cota de anfetaminas apreendidas aumentou em 35% e as apreensões de metanfetamina atingiram a alta recorde de 158 toneladas, apresentando um aumento de 12%. A cocaína atingiu níveis sem precedentes de pureza e disponibilidade nos mercados globais com um aumento de 60% nas apreensões desde 2012, enquanto o cultivo de coca

na América do Sul também atingiu níveis históricos (UNODC, 2018). Estes desenvolvimentos preocupantes exigem respostas urgentes por parte dos governos, da sociedade civil e das organizações internacionais – inclusive no campo de redução de danos (RD). Um dos objetivos da Parceria Global em Políticas de Drogas e Desenvolvimento (GPDPD), implementado pela Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH em nome do Ministério Federal para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (BMZ), é buscar aprimorar a base de evidências para políticas de drogas orientadas para o desenvolvimento e a saúde. Em vista dos recentes desenvolvimentos nos padrões globais do uso de drogas, a GPDPD comissionou a Mainline com um estudo comparativo sobre a evidência existente e estudos de caso de programas de redução de danos para estimulantes, uma área ainda pouco pesquisada da política global de drogas para a qual existe uma grande demanda internacional. O presente estudo em duas partes “Limites de Velocidade – Redução de danos para pessoas que usam estimulantes” contribui significativamente para fechar a lacuna de conhecimento sobre quais intervenções de redução de danos são efetivas para pessoas que usam tais tipos de drogas. Este é o primeiro estudo a compilar abrangente e sistematicamente uma revisão de literatura em diversos tipos de estimulantes, rotas

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de administração e estratégias de redução de danos, juntamente com a apresentação de diferentes estudos de caso em um nível global, incluindo as regiões do Sul Global. Em sua primeira parte, o estudo examina amplamente a pesquisa e a literatura existentes sobre a questão de modo a construir os achados e as recomendações evidenciadas no “estado da arte” sobre o uso de estimulantes e as estratégias de redução de danos. A segunda parte apresenta sete estudos de caso em cinco continentes, focando nas experiências de aprendizagem e boas práticas, retratando intervenções em contextos bastante diversos em relação às suas estruturações legais, societárias e culturais. O estudo mostra claramente que a pesquisa e a base de evidência disponíveis sobre o uso de estimulantes e a estratégias apropriadas de redução de danos ainda são escassas. Existe uma clara necessidade de mais pesquisas comparativas acerca desta questão de modo a atender o atual aumento acentuado no uso de estimulantes, e assim assegurar que seja propriamente abordado por políticas de drogas baseadas em evidência e boas práticas de redução de danos já disponíveis. Esperamos que este estudo inovador sirva como um elemento muito necessário neste processo.

Daniel Brombacher Chefe de Projeto Parceria Global em Políticas de Drogas e Desenvolvimento (GPDPD), Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH

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Agradecimentos dos autores

É com imensa gratidão que agradecemos a contribuição de todas as organizações de redução de danos, às pessoas que usam drogas (PQUD) e os profissionais de redução de danos a este relatório. Obrigado por compartilhar conosco os seus tempos, dilemas e experiências. Além dos autores, dois outros pesquisadores contribuíram com capítulos no presente relatório. Dania Putri forneceu uma valiosa contribuição para o capítulo 4.7.1 em substituição a base de plantas. Já o capítulo 5.4, sobre o caso COUNTERfit, este foi escrito por Hayley Murray, que também conduziu boa parte das entrevistas para o caso. Gostaríamos de expressar nossa apreciação por suas excelentes contribuições.

Também devemos nossa mais profunda gratidão à Machteld Busz, diretora da Mainline, por revisar os capítulos do relatório e pela valorosa colaboração e orientação no decorrer do processo de pesquisa. A presente pesquisa teria permanecido um sonho se não fosse pelo apoio generoso da Parceria Global em Políticas de Drogas e Desenvolvimento (GPDPD, no Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH). Apreciamos enormemente a oportunidade de fornecer informações baseadas em evidência sobre a redução de danos para estimulantes.

Apoiado pela Parceria Global em Políticas de Drogas e Desenvolvimento (GPDPD) implementado pela Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH em nome do Ministério Federal para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (BMZ). http://www.gpdpd.org Isenção de responsabilidade: Este estudo reflete os resultados combinados de uma rigorosa revisão de literatura e as análises e descrições de boas práticas em sete casos de intervenção de redução de danos para pessoas que usam estimulantes em diferentes regiões do mundo. Os resultados não necessariamente refletem as posições do Governo Federal Alemão.

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Glossário

3-MMC 3-Metilmetcatinona (3-mefedrona) 4-MEC 4-Metiletcatinona 4-MMC 4-Metilmetcatinona AGU Advocacia Geral da União ARC Abordagem de Reforço Comunitário ARV Antirretroviral Ministério Federal para Cooperação e BMZ Desenvolvimento Econômico Agência Nacional de Narcóticos BNN (Indonésia) Caps AD Centros para Assistência Psicossocial para o Álcool e outras Drogas (Brasil) Centros de convivência CC Distrito para a melhoria da cidade CCID central (África do Sul) Autoridade Central de Drogas (África CDA do Sul) Centro de Referência para Assistência CRAS Social (Brasil) Centro de Referência Especializado CREAS para Assistência Social (Brasil) Pesquisa Canadense sobre Tabaco, CTADS Álcool e Drogas CVLI Crimes Violentos Letais e Intencionais Sistema de Informações e MonitorDIMS amento de Drogas (Holanda) DRA Liberadores de dopamina DRI Inibidores de recaptação de dopamina DSSR Direitos de saúde sexual e reprodutiva DST Doenças sexualmente transmissíveis EM Entrevista motivacional Estratégia Nacional sobre Dependência ENA Química (Espanha)

END

stratégia Nacional para Abordar o E Problema das Drogas (Uruguai) Estimulantes do tipo anfetamina ETA Flexível Assertiva de Tratamento FACT Comunitário (Holanda) GBL Gama-Butirolactona GC Gestão de contingência GF Grupo focal GHB Ácido gama hidroxibutírico Deutsche Gesellschaft für InternaGIZ tionale Zusammenarbeit Parceria Global em Políticas de Drogas GPDPD e Desenvolvimento Vírus da hepatite C HCV HIV Vírus da imunodeficiência humana HRI Harm Reduction International Homens que fazem sexo com outros HSH homens Vírus da hepatite B HVB Intervenções breves IB Comunidade Internacional de ICW Mulheres que Vivem com HIV Consórcio Internacional de Políticas IDPC de Drogas IEC Informação, Educação e Comunicação Rede Internacional de Pessoas que INPUD Usam Drogas Rede Internacional de Mulheres que INWUD Usam Drogas Instituto de Assistência Jurídica da LBHM Comunidade (Indonésia) Levantamento Nacional de Álcool e LENAD Drogas

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LGBT

ésbicas, L Gays, Bissexuais e Transexuais Levantamento Nacional Sobre o Uso LNUD de Drogas pela População Brasileira Intervenções baseadas em atenção MBIs plena (mindfulness) Serviços sociais médicos para usuários MDHG de heroína Ministério do Desenvolvimento Social MIDES (Uruguai) Mulheres que fazem sexo com outras MSM mulheres Plano Diretor Nacional de Drogas NDMP (África do Sul) NSP novas substâncias psicoativas Organização Mundial da Saúde OMS Organizações da Sociedade Civil OSC Organização de Obras de Saneamento OSE do Estado (Uruguai) P Profissional Rede Indonésia de Usuários de Drogas PKNI (Indonésia) PQUD Pessoas que usam drogas PQUE Pessoas que usam estimulantes PTS Programas de trocas de seringas Pessoas que usam drogas injetáveis PUDI PVHIV Pessoas vivendo com HIV/aids

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Rede de Atenção Psicossocial (Brasil) RAPS Redução de danos RD RENADRO Rede Nacional do Uruguai de Assistência e Tratamento às Drogas SACENDU Rede de Epidemiologia de Uso de Drogas da Comunidade da África do Sul SCD Salas de consumo de drogas Sistema nervoso central SNC Centro de Saúde da Comunidade de SRCHC South Riverdale (Canadá) Sistema Único de Assistência Social SUAS (Brasil) TB Tuberculose TCC Terapia cognitiva comportamental Transtorno do déficit de atenção e TDAH hiperatividade TEPT Transtorno de estresse pós-traumático TO Terapia ocupacional TSO Terapia de Substituição de Opiáceos UNGASS Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas US Usuário do serviço Ministério da Saúde, Bem-Estar e VWS Esportes (Holanda)


1 Introdução

Com frequência, quando pensamos em redução de danos (RD) para pessoas que usam drogas (PQUD), nós pensamos primariamente em prevenção contra HIV entre os usuários de heroína injetável, por exemplo, através de programas de trocas/ distribuição de seringas (PTS) (needle and syringe programmes), testes e tratamento de HIV, e tratamento com metadona. No entanto, a redução de danos é muito mais ampla do que isso. A meta da redução de danos é reduzir todos os danos associados com o uso de drogas. Estes podem ser danos à saúde, os quais certamente se estendem além do HIV, mas também inclui os danos sociais ou econômicos tais como crimes contra o patrimônio, corrupção, encarceramento excessivo, violência, estigmatização, marginalização ou assédio policial (IDPC, 2016). Devido à sua natureza pouco conhecida, este estudo é direcionado exclusivamente à redução de danos para aqueles que usam drogas estimulantes ilícitas de forma não injetável. Isto inclui engolir, cheirar, fumar e a administração retal (booty-bumping) de substâncias. Quanto aos estimulantes, são considerados especificamente: estimulantes do tipo anfetamina (ETA), cocaína e catinonas. As intervenções que atendem aos danos associados com o uso de estimulantes incluem as terapias de substituição; os serviços de kits de testes de drogas; suporte psicossocial; distribuição de preservativos, lubrificantes e instrumentos para o uso de drogas; serviços de prevenção a infecções

sexualmente transmissíveis; suporte para a geração de renda e empregabilidade; habitação, bem como a ampliação de serviços para pessoas que usam estimulantes injetáveis. Os modelos baseados em pares são mecanismos importantes para colocar as intervenções de RD em prática, especialmente para a prestação de serviços fora do horário comercial (IDPC, 2016). Ademais, o empoderamento de pessoas que usam drogas injetáveis (PUDI) para mudar a via intravenosa para outras rotas de administração mais seguras (tais como cheirar ou fumar) também é visto como uma importante intervenção de RD (IDPC, 2016). Uma vez que, com frequência, os grupos marginalizados de pessoas que usam estimulantes (PQUE) encaram comumente uma gama diversa de problemas sociais e de saúde, idealmente, as intervenções de RD devem oferecer um “serviço multidisciplinar e multiespecializado” (TNI, 2014).

1.1 Redução de danos no mundo de hoje

Em anos recentes, várias regiões no mundo testemunharam um aumento no uso de estimulantes. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2018, as substâncias do tipo anfetamina (ETA) são a segunda droga ilícita mais comumente usada – após a maconha – com uma estimativa de 34,2 milhões de usuários em 2017. A predominância mais elevada de ETA é vista na América do Norte e na Oceania, e apesar de uma falta de dados confiáveis na Ásia, o uso de metanfetamina é visto como preocupante em muitos países e no Leste e no Sudoeste da Ásia, e possivelmente também na Ásia Ocidental (UNODC,

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2018b; EMCDDA, 2018b). O surgimento de estimulantes sintéticos, e primariamente catinonas sintéticas, apresenta desafios adicionais (UNODC, 2018a, 2018b). O uso da cocaína, com uma estimativa de 18,2 milhões de usuários em 2017 em nível mundial também parece estar aumentando em algumas partes do mundo. Na América Latina, América do Norte e no Caribe, a cocaína tem uma longa presença (GOOTENBERG, 2009), e permanece como a droga de maior preocupação, após a maconha, para pessoas que buscam tratamento na América Latina e no Caribe (UNODC, 2018b). Na Europa, o uso de cocaína parece estar ressurgindo tanto em quantidade quanto em qualidade (pureza) (EMCDDA, 2018b). Isto pede por uma ampliação das medidas de redução de danos e de evidência para a sua efetividade. Observa-se que as práticas mais inovadoras de RD têm sido realizadas por organizações de base. Elas tendem a ter um profundo conhecimento do contexto e das necessidades das pessoas que usam drogas. Muitos desses programas de redução de danos, no entanto, não divulgam seus sucessos, apesar de terem excelentes práticas no campo. Os programas mundo afora tendem a serem projetos isolados, com algumas exceções exemplares que oferecem uma integração abrangente da RD junto aos sistemas de saúde. Nem todos os países oferecem redução de danos. Com frequência, em países com políticas de drogas mais progressistas, a RD é integrada dentro dos serviços nacionais de saúde e sociais, mas em países com regulamentos de drogas mais rígidos, os projetos de redução de danos sofrem com falhas estruturais, financiamento e/ou suporte político. Apresentam falta de sustentabilidade, de perspectiva em longo prazo e compromisso político, e em grande parte são financiados por doadores internacionais. Poucos projetos conseguem sobreviver a mudanças políticas e financeiras, deixando as pessoas que usam drogas em muitos países em circunstâncias adversas. Uma melhor documentação das práticas de RD bemsucedidas e inovadoras pode fornecer suporte a estes projetos, potencialmente fortalecendo o tão necessário suporte político e financeiro.

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1.2 Foco tradicional de evidência: prevenção de HIV para as PUDI

Globalmente, a maioria das intervenções de redução de danos é financiada sob as perspectivas da prevenção de HIV, focando em intervenções tais como troca de agulhas e seringas, testes e tratamento de HIV. Isto visa primariamente as pessoas que usam drogas injetáveis, infelizmente deixando de fora aqueles que fumam, cheiram ou ingerem suas substâncias. Os pesquisadores têm tradicionalmente preenchido a lacuna deixada pelos prestadores de serviço ao documentar algumas destas práticas, porém, a maioria do financiamento de pesquisa ainda é direcionada para a prevenção de HIV (e em uma menor extensão HCV/HBV) entre as PUDI. Os usuários dos serviços são geralmente pessoas que injetam opioides. E a redução de danos desta forma torna-se associada com o uso de heroína. Mesmo nos países onde a redução de danos para os usuários de heroína está integrada dentro do sistema de saúde, políticas sólidas de redução de danos para os novos grupos de pessoas que usam drogas (PQUD) (com frequência usando estimulantes) são escassas. Felizmente, nos anos recentes se observa um aumento, ainda que lento, dos projetos oferecidos e do corpo da literatura analisando estratégias de RD para drogas não-injetáveis e para estimulantes. Devido ao aumento de volume de estudos é que esta revisão sistemática da literatura sobre a redução de danos para o uso de estimulantes possui um grande valor.

1.3 Objetivos do presente estudo

Este estudo constrói e coleta a evidência existente sobre as intervenções de redução de danos para os usuários de estimulantes por vias não injetáveis. Considerando as diferenças sociais, culturais, políticas, legislativas e religiosas, parece improvável que uma única intervenção irá atender as muitas questões vivenciadas pelas pessoas que usam drogas estimulantes ao redor do mundo. Consequentemente, este estudo olha para drogas, rotas de administração, grupos de usuários, e tipos de intervenções específicas, além de variações contextuais.


O presente estudo: ◊ Fornece uma revisão de literatura global das atividades de redução de danos para as PQUE; ◊ Documenta, descreve e analisa sete exemplos de boas práticas de redução de danos para as PQUE em diferentes regiões do mundo; ◊ Contribui para a orientação no suporte à redução de danos para as PQUE; ◊ Estimula uma narrativa de redução de danos que se move para além do HIV, com orientação do foco sobre os direitos humanos e a qualidade de vida para as PQUE. No Capítulo 2 descrevemos nossa metodologia. O Capítulo 3 fornece mais informações sobre o contexto. Isto inclui as informações sobre os estimulantes, os riscos e os danos do uso de estimulantes, e o ambiente de risco nos quais se dão os consumos. O Capítulo 4 descreve os achados de nossa revisão de literatura, apresentando doze formas diferentes de intervenções de redução de danos para as PQUE. Por último, no Capítulo 5, descrevemos sete destas intervenções através de estudos de caso em profundidade, em diferentes regiões do mundo.

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2 Metodologia

Este estudo consiste de duas partes: uma revisão de literatura sobre a evidência da eficácia das estratégias de RD para as drogas estimulantes, e uma apresentação de sete exemplos de boas práticas de programas de redução de danos para PQUE em diferentes regiões do mundo. Compreendendo que as intervenções globais de redução de danos são múltiplas, e que programas semelhantes são executados em diferentes organizações ao redor do mundo, é que os setes casos que descrevemos constituem-se de bons exemplos sobre como colocar em prática intervenções sólidas de RD (para estimulantes). Nosso relatório apresenta a primeira visão geral abrangente e comparativa de evidência e práticas sobre a redução de danos para pessoas que usam estimulantes. Ele combina uma rigorosa revisão de literatura sobre diferentes estimulantes e rotas de administração com a descrição aprofundada de exemplos da vida real sobre boas práticas de redução de danos para pessoas que usam estimulantes pelo mundo.

2.1 Revisão da literatura

Revisamos a literatura acadêmica na base de dados da PubMed, SCOPUS, e da Scielo. Na PubMed e na SCOPUS acessamos uma gama de artigos indexados em inglês. Através da Scielo acessamos a literatura científica e acadêmica de países Latino-Americanos, tanto em espanhol quanto em português. Ademais, conduzimos uma rigorosa revisão das publicações de pesquisa; relatórios locais, nacionais e internacionais; estudos e avaliações; e

publicações de agências internacionais relevantes (ex., Harm Reduction International, EMCDDA, WHO, UNODC, UNAIDS, etc.), e também outros documentos não acadêmicos. Estes contribuíram para o estudo descrevendo os contextos locais e as abordagens inovadoras que ainda não foram publicadas em estudos acadêmicos. Através do Google Scholar recuperamos um material relevante não indexado. Incluímos estudos controlados e não controlados, quantitativos e qualitativos. Os seguintes principais termos de busca foram usados: “harm reduction” e “stimulants”, “psychostimulants”, “crack cocaine”, “cocaine”, “Amphetamine Type Stimulants”, “methamphetamine”, “amphetamine(s)”, “cathinone(s)”, “chemsex”, and “female”2. A literatura incluída considerou o período entre 1998 até 2018. Isto incluiu tanto os estudos relativamente recentes e aqueles produzidos em anos anteriores com a chegada e a propagação do uso de crack e a ascensão do uso de ETA em nível mundial. Encontramos mais do que 1500 publicações, as quais reduzimos para incluir apenas as mais relevantes na revisão. Os critérios de elegibilidade incluíram: descrições sobre a eficácia ou resultados de medidas de redução de danos para as drogas estimulantes; revisões sistemáticas ou meta-análises 2 Aqui optamos por manter os termos no inglês, considerando o rigor metodológico na forma da busca realizada pelos autores. Se traduzidos, os termos utilizados seriam: “redução de danos” e “estimulantes”, “psicoestimulantes”, “crack”; “cocaína”, “Estimulantes do Tipo Anfetamina”, “metanfetamina”, “anfetamina(s)”, “catinona(s)”, “chemsex”, e “gênero feminino”. (N. R.)

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sobre a redução de danos para estimulantes; e revisões não sistemáticas desde que produzidas por órgãos reconhecidos internacionalmente no campo da política de drogas. Os critérios de exclusão consistiram em: foco restrito aos danos, mas não sobre as estratégias de redução de danos; foco exclusivo ao tratamento orientado à abstinência, não focando diretamente na redução de danos; e insignificância ao foco da presente pesquisa. A literatura selecionada foi agrupada em 12 tipos de estratégias ou intervenções de redução de danos para as quais encontramos evidência de eficácia na redução dos danos ao uso de drogas estimulantes. Estas intervenções são os kits para uso fumado com maior segurança; prevenção de riscos sexuais; intervenções focadas no gênero feminino; salas de consumo de drogas; estratégias de autorregulação; moradia primeiro; substituição; abordagem social e intervenções baseadas em pares; centros de convivência; kits de testes de drogas; intervenções online; e intervenções terapêuticas. A evidência encontrada para estas intervenções encontra-se descrita no quarto capítulo.

2.2 Sete casos de boas práticas

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vontade de cooperar no estudo; e ser reconhecida como uma boa prática entre os profissionais de redução de danos e as PQUD em sua região. Os casos satisfazendo estes critérios foram então selecionados para se obter uma representação diversa de: tipos de intervenções de redução de danos; tipos de estimulantes (ex., anfetaminas, metanfetamina, cocaína fumada, e novas substâncias psicoativas); rituais de uso (contexto do usuário); populações-chave; aspectos relacionados ao gênero; tipos de política de drogas implementadas; e regiões geográficas (assegurando uma representação equilibrada entre o Norte Global e o Sul Global). Nossa seleção final de casos inclui: moradia primeiro3 para pessoas usando crack no Brasil; grupos de contemplação para pessoas usando metanfetamina na África do Sul; salas de consumo de drogas para pessoas usando crack nos Países Baixos; abordagem social para pessoas usando metanfetamina na Indonésia; centros de convivência para pessoas usando pasta base de cocaína no Uruguai; distribuição de kits para uso fumado com maior segurança para pessoas usando metanfetamina e/ ou crack no Canadá; e uma intervenção online para PQUE que praticam chemsex4 na Espanha.

A seleção de casos de boas práticas foi guiada tanto pela revisão de literatura quanto pelas consultas iniciais com diversos parceiros. A literatura mostrou os tipos de intervenções nas quais focar, e em alguns casos, a região ou país onde a intervenção foi mais bem desenvolvida e/ou documentada. A consulta inicial com a nossa rede de organizações envolvidas na redução de danos, permitiu-nos engajar com projetos relevantes, independentemente de sua aparição na literatura. Isto provou ser muito valioso, uma vez que, com frequência, ações inovadoras (ainda) não apareceram nas publicações. No total, nós contatamos mais do que 50 diferentes projetos em torno de 30 países, usando um método de bola de neve partindo da rede de contatos da nossa equipe.

Métodos e instrumentos semelhantes foram aplicados a todos os casos para assegurar que os resultados fossem comparáveis e confiáveis. Para todos os sete casos, a equipe de pesquisa analisou os documentos locais e os estudos de eficácia do programa, aplicou um questionário estruturado coletando os dados do programa, e entrevistou em profundidade pelo menos 8 prestadores de serviço e 2 usuários do serviço. Em cinco dos sete casos, entrevistas em profundidade foram feitas in situ, juntamente com uma incursão em campo em maior profundidade. Para estes casos, dados adicionais foram coletados através de observações e discussões em grupo focal com as PQUE. As observações incluíram o contexto local, as atividades dos prestadores de serviço, a relação entre os usuários do serviço e os prestadores

Os critérios usados para selecionar os sete casos foram: evidência disponível sobre a eficácia, a sustentabilidade e/ou custo-benefício do projeto (preferivelmente por estudos prévios e avaliações, ou, de outro modo, por avaliações positivas de redes locais/regionais de redução de danos e de PQUD); o potencial dos projetos para replicabilidade;

3 Tradução a partir do original, em inglês, housing first, cujo paradigma considera o advento da moradia como aspecto crucial e primeiro para a reinserção social do usuário de drogas e outras pessoas em contextos crônicos de situação de rua, mesmo antes de intervenções outras como o tratamento ou organização individual para obter o benefício. (N. R.) 4 Referente à associação do uso de drogas para práticas sexuais, por exemplo, para o aumento da libido, do desempenho, prolongamento do ato sexual, entre outras. (N. R.)


de serviço, bem como quaisquer pontos específicos do programa considerados relevantes pelas PQUE. As discussões em grupo focal consistiram de cerca de 10 PQUE e nos permitiram obter informações em maior profundidade sobre as perspectivas dos usuários do serviço. As cinco incursões em campo aconteceram no Brasil, na África do Sul, nos Países Baixos, na Indonésia, e no Uruguai. Nos dois casos remanescentes – no Canadá e na Espanha – as pesquisas foram realizadas remotamente. As entrevistas foram feitas pelo Skype e por telefone, e a coleta de dados adicionais foi feita por correio eletrônico (e-mail), nenhuma observação em campo ou grupo focal foi realizada. Este método foi selecionado devido às restrições de tempo do presente estudo. Nós asseguramos que nos dois casos remotos fossem atendidos os seguintes critérios: suficiência de dados confiáveis disponíveis através de estudos revisados por pares e/ou relatórios internacionais; peritos locais com expertise; boa conexão de internet para as entrevistas pelo Skype; e disponibilidade da equipe e dos usuários do serviço para serem entrevistados remotamente. Para assegurar a comparabilidade e a confiabilidade, um conjunto de instrumentos bem estruturados e definidos foi aplicado a todos os sete casos. Os instrumentos para este estudo consistiram em: questionário online estruturado; entrevistas semiestruturadas com profissionais; diretrizes para as discussões em grupo focal; diretrizes para as observações; e perguntas de triagem para os programas. Para cumprir com as questões Éticas e as Diretrizes de Proteção de Dados, todos os programas assinaram um termo de consentimento permitindo a divulgação dos dados compartilhados, para assegurar uma descrição transparente e abrangente das boas práticas locais. Além disso, todos os respondentes – incluindo os participantes nos grupos focais- assinaram um termo de consentimento assegurando seu anonimato e tiveram o direito de se retirar do estudo em qualquer momento. Cada respondente recebeu um código e as organizações somente foram mencionadas mediante consentimento explícito. Todos os dados (anonimizados) foram armazenados em um servidor seguro e com backup, acessível somente pela equipe de pesquisa. As imagens no relatório foram selecionadas para assegurar o anonimato de todos os participantes.

2.2.1 Envolvimento significativo

Existe um reconhecimento crescente da necessidade de um envolvimento mais significativo dos membros da comunidade na programação da saúde pública. Por exemplo, a importância dos direitos humanos e o empoderamento da comunidade foram identificados como um habilitador chave na resposta ao HIV (UNDP; UNAIDS, 2012), e a nova orientação normativa para implementar programas abrangentes contra HIV e HCV junto às pessoas que injetam drogas (UNODC et al., 2017a). Grupos de advocacia de PQUD conduzidos por pares tais como a Rede Internacional de Pessoas Que Usam Drogas (INPUD, International Network of People Who Use Drugs) têm clamado por um envolvimento mais significativo das PQUD através da promoção da prática de “Nada sobre nós, sem nós” (JÜRGENS et al., 2008). Especialmente para os serviços que precisam considerar novos grupos de usuários, tais como pessoas que fumam crack ou metanfetamina, é de suma importância incluir os beneficiários de forma significativa. Um elemento chave na determinação da eficácia das intervenções estudadas para a presente pesquisa é, portanto, a experiência da população em questão. Uma vez que os membros da comunidade em si são peritos nos danos que eles vivenciam, é imperativo trabalhar com a comunidade não apenas para efetuar mudanças, mas também capturar fatores no ambiente sociocultural que têm sido instrumentais para a redução de riscos relacionados ao uso de substâncias dentro de contextos específicos. As perspectivas e motivações das PQUE são críticas no entendimento dos fatores que habilitam ou prejudicam as intervenções de redução de danos. Consequentemente, o presente estudo incluiu – na medida do possível – a perspectiva das PQUE, por exemplo, através de entrevistas e grupos focais.

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3 Contexto

As drogas estimulantes, também chamadas de psicoestimulantes são substâncias psicoativas que estimulam o cérebro e o sistema nervoso central. Os efeitos mais comuns dos estimulantes incluem o aumento do estado de atenção, estado de humor elevado, promovem o estado de vigília, o aumento da fala e da atividade motora e a redução da fadiga e do apetite. Elas aumentam a pressão sanguínea, a taxa de batimentos cardíacos e outras funções metabólicas (PINKHAM; STONE, 2015). Os estimulantes podem induzir sentimentos de energia, foco, confiança, vigilância, bem-estar, loquacidade e aumento do impulso sexual, mas também podem produzir nervosismo e ansiedade (GRUND et al., 2010). Globalmente, os dois estimulantes mais populares são as drogas legais cafeína e nicotina. Estas, no entanto, não serão abordadas no presente relatório, o qual foca principalmente no uso problemático de drogas estimulante ilícitas, a saber: estimulantes do tipo anfetamina (ETA), cocaína, e catinonas. O uso tradicional de estimulantes (leves) a base de plantas tais como a khat, a efedra, a kratom e a folha de coca estão excluídas do presente relatório, uma vez que não existem dados (confiáveis) sobre o papel que estas substâncias desempenham globalmente no uso problemático de drogas. Embora a MDMA seja uma anfetamina substituta e tenha propriedades estimulantes, seus efeitos são classificados mais corretamente como um entactógeno5. Além disso, 5 A MDMA também tem sido caracterizada como uma anfetamina psicodélica, “droga do amor” ou ecstasy. O termo

uma vez que o uso de MDMA é menos associado com as populações marginalizadas, o relatório não foca explicitamente na MDMA. Finalmente, os estimulantes de prescrição sintéticos tais como o metilfenidato (ex., Ritalina, Concerta) e a dexanfetamina (ex., Adderall, Dexedrina) ou o agente promotor de vigília, modafinil (Provigil) também não são discutidos no presente relatório. Além de substâncias lícitas e ilícitas, outra distinção pode ser feita entre as drogas tradicionais e novas drogas ilícitas (melhor conhecidas como novas substâncias psicoativas, ou NSP). Em 2017, 36% de todas as NSP no mercado global eram estimulantes (UNODC, 2018a). Os estimulantes tradicionais ilícitos incluem a anfetamina e a metanfetamina bem como o cloridrato de cocaína e a cocaína freebase. As NSP estimulantes discutidas no presente relatório são as catinonas6 (substitutas ou sintéticas), uma vez que está é a NSP estimulante mais comum e o entactógeno, cunhado pelo farmacólogo estadunidense David E. Nichols, se deve pelos efeitos na produção de sentimentos de contato com questões interiores e íntimas. O termo buscou ampliar a classificação dada como empatogênico, relativo à produção de estados empáticos, porém, cuja construção terminológica pode remeter errônea e negativamente à ideia de patogenia, ademais, a experiência com tais substâncias está além da promoção de empatia (NICHOLS, 1986). (N. R.) 6 Para referência ao leitor, essa classe de substâncias sintéticas têm sido divulgados na mídia brasileira como drogas canibais ou drogas zumbis devido a casos de agressividade extrema observados. A mídia veiculou serem estas “sais de banhos” ou “fertilizantes para plantas”, o que foi uma estratégia de venda para burlar os mecanismos legais, ou seja, não são realmente substâncias presentes em sais de banho de uso comum ou doméstico. (N. R.)

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uso problemático de catinonas sintéticas aumentou globalmente. Os capítulos seguintes discutirão as três categorias principais de estimulantes ilícitos: ETA, cocaína e catinonas. Em geral, usamos cocaína ao nos referirmos à substância seja na forma de sal ou base livre (freebase)7. Por uma questão de legibilidade, e reconhecimento das diferentes terminologias usadas mundo afora, bem como as opiniões sobre o uso de determinados termos usados, frequentemente usamos crack para nos referirmos em todo o relatório à cocaína freebase, que pode ser fumada. Da mesma forma, usamos estimulantes do tipo anfetamina ou ETA para nos referirmos a qualquer substância semelhante à anfetamina, e frequentemente usamos o termo meth ao invés do mais correto metanfetamina (methamphetamine).

3.1 Estimulantes do tipo Anfetamina

Os ETA88 são um grupo de drogas sintéticas poderosos estimulantes do sistema nervoso central (SNC) capazes de aumentar a atividade dos sistemas neurotransmissores de dopamina e noradrenalina e elevação de seus níveis no cérebro. As anfetaminas pertencem à família das fenetilaminas, a qual inclui os estimulantes, os entactógenos e alucinógenos, mas constituem também sua própria classe estrutural. Além de seu uso ilícito, as anfetaminas podem ser prescritas para uma variedade de condições, tais como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a narcolepsia (PINKHAM; STONE, 2015).

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efeito primário é de psicoestimulação. Isto exclui a MDMA, a MDA e compostos entactógenos semelhantes, mas inclui a metanfetamina e similares. Os nomes populares para estas substâncias também são usados inconsistentemente e variam entre regiões e grupos de usuários. No presente relatório, sempre que um nome popular localmente relevante for mencionado o mesmo será explicado no contexto. As anfetaminas estão disponíveis em variadas formas, tais como um pó branco ou esbranquiçado, em forma de pílula, como uma substância oleosa e em forma cristalina. Cada forma está associada com uma diferente via de administração. A forma freebase é mais comumente fumada, com instrumentos feitos com papel laminado ou vaporizada. As pílulas são usualmente tomadas oralmente, ao passo que o pó e os cristais podem ser cheirados e injetados. Entretanto, não existe associação direta entre a forma de apresentação e o modo de uso, e esses ainda podem diferir entre os grupos de uso, os indivíduos, a localização, e podem mudar com o passar do tempo.

A nomenclatura de muitos estimulantes, particularmente a dos ETA, pode ser confusa e é frequentemente usada inconsistentemente, tanto na literatura acadêmica bem como na linguagem do leigo. Para o presente relatório, ao se referir às anfetaminas ou os ETA, nos referimos à anfetamina, a dextroanfetamina e análogas e substitutas, cujo

Globalmente os ETA são a segunda droga mais comumente usada, com a maconha ocupando o primeiro lugar. Estima-se que cerca de 34,2 milhões de pessoas tenham usado uma substância do tipo anfetamina no último ano, alcançando entre 13 e 58 milhões, números que seguem crescendo (UNODC, 2018b). O Consórcio Internacional de políticas de Drogas (IDPC, International Drug Policy Consortium) (IDPC, 2016) informa que as organizações da sociedade civil, acadêmicos, ONGs e agências internacionais, todas reportam um aumento do uso de ETA em todas as regiões do mundo. A maior predominância do uso dos ETA se dá na América do Norte e na Oceania. Embora nenhum dado confiável esteja disponível, muitos países na Ásia reportam aumentos no uso de metanfetaminas (UNODC, 2018b; EMCDDA, 2018b).

7 O termo freebase se refere à forma de cocaína cristalizada possível de ser fumada em cachimbo (insolúvel em água). Frequentemente é transformada a partir do cloridrato de cocaína (cocaína aspirável, solúvel em água) usando água com amoníaco ou bicarbonato de sódio. O crack é sinônimo ao freebase, sendo uma gíria usada também nos EUA e na Europa. (N. R.) 8 São também conhecidas no Brasil por rebite ou bolinhas, comumente remédios anorexígenos, e a classe desses estimulantes não inclui crack e cocaína aspirável ou outros estimulantes como nicotina, cafeína ou xantinas. (N. R.)

Apesar da aceitação da RD como uma abordagem legítima em vários países asiáticos, o tratamento primordial da região para os usuários do ETA ainda está nos centros residenciais compulsórios focados na abstinência. Abusos de direitos humanos foram relatados em muitos desses espaços e a estratégia de internação compulsória carece de provas de eficácia (WHO, 2011). A maioria dos serviços de


RD disponível na região tem foco nas pessoas que injetam opioides. As pessoas que usam os ETA raramente usam os serviços de redução de danos, em grande parte porque elas não se identificam com o uso (problemático) de opioide, com frequência pertencem a diferentes redes de usuários, e desta forma, não consideram os serviços de RD como relevantes (WHO, 2011). Eles necessitam de mais informação e aconselhamento para levá-los a apreciar os potenciais riscos do uso de ETA e a tomada de decisão para mitigar os danos. Na maioria das outras regiões existem poucos programas de redução de danos específicos para as pessoas que usam ETA. Ademais, embora o uso dos ETA venha aumentando ao redor do globo, as intervenções específicas e a evidência dando suporte às mesmas permanecem subdesenvolvidas (PINKHAM; STONE, 2015). Em vista disso, a Harm Reduction International (HRI) produziu uma revisão global demonstrando como os programas de RD podem responder efetivamente para reduzir os danos associados com o uso dos ETA e oferecendo recomendações futuras (PINKHAM; STONE, 2015).

3.1.1 Metanfetamina

A metanfetamina é estruturalmente muito semelhante à anfetamina, mas é mais potente e seus efeitos usualmente duram mais. A metanfetamina pode vir em duas formas físicas, base e sal. A base pura é um óleo transparente, incolor e volátil, insolúvel em água, o qual pode ser facilmente aquecido e inalado. A forma de sal mais comum é o cloridrato de metanfetamina. No mercado ilegal, ela é frequentemente vendida em formas de pílula, pó ou cristalina. Com frequência o sólido cristalino é chamado de shabu no Sudeste Asiático, mas também é frequentemente chamado de ice (gelo) ou cristal (crystal meth) devido a sua aparência. Na Ásia Oriental e Sudeste Asiático é comum a metanfetamina em forma de tablete. Estas pílulas, geralmente chamadas de yaba, são tipicamente de baixa pureza e podem ter várias outras substâncias (psicoativas) além da metanfetamina. Ao passo que as pílulas podem ser ingeridas por via oral, ou às vezes trituradas e fumadas, os cristais podem ser triturados, dissolvidos e injetados, mas também podem ser fumados sem serem destruídos pelo calor. A metanfetamina em pó é usualmente adulterada com uma substância adicional tal como

cafeína, dextrose ou lactose, e pode ser ingerida por via oral, intranasal (cheirada) e injetada. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2017 (UNODC, 2017), a Ásia Oriental e Sudeste Asiático e a Oceania têm sido os principais destinatários das metanfetaminas traficadas ao longo dos últimos anos. Além disso, um tráfico intrarregional considerável ocorre na América do Norte, na Europa bem como na Ásia Oriental e Sudeste Asiático. A elevada predominância no uso de metanfetamina não é aparente apenas através de surtos de tráfico, mas também através de informações limitadas sobre as pessoas em tratamento pelo (ab)uso da droga. Por exemplo, em 2014 a Indonésia vivenciou uma enorme explosão de pessoas em tratamento para metanfetaminas. Em 2015 os peritos afirmaram que a metanfetamina era a droga mais usada na China, no Japão, em Macau, nas Filipinas e em Cingapura (UNODC, 2017). Na Europa, apenas na República Tcheca a metanfetamina (conhecida localmente como Pervitin) é tradicionalmente a droga problemática número um. Embora a maconha seja a droga mais comumente usada, seguida pela MDMA, o Pervitin é o que mais está relacionado ao uso de alto risco e problemático; caso que se repete por mais do que quatro décadas (EMCDDA, 2017a; PATES; RILEY, 2010). Em vários outros países europeus, nos anos recentes, o aumento do uso de metanfetamina foi testemunhado entre os homens que fazem sexo com outros homens (HSH) que usam a mesma em um contexto sexual (chemsex).

3.2 Cocaína9

A cocaína é extraída das folhas da espécie Erythroxylum coca. Esta planta é encontrada desde os Andes às regiões adjacentes na América do Sul. O estimulante possui uma meia-vida curta, aumentando os níveis de dopamina, serotonina e noradrenalina no cérebro. A cocaína assume várias formas, tais como o sal de cloridrato (pó de cocaína), freebase 9 A partir das definições explanadas neste subcapítulo, passaremos a definir o cloridrato ou sal de cocaína apenas como pó de cocaína, assim como a pasta base e a cocaína freebase como crack. Esta escolha será feita com base na ideia de delimitar mais precisamente a via de uso da cocaína, cheirada/injetada ou fumada, respectivamente, também delimitando a classificação atribuída pelos usuários para essas formas de apresentação da cocaína. (N. R.)

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(crack), ou extratos crus chamados de pasta de coca (paco, basuco, pasta base, PBC). O cloridrato de cocaína e a cocaína freebase são as formas usadas com mais frequência no oeste (DEGENHARDT et al., 2014). A pasta de cocaína é mais usada na América Latina. A cocaína pode ser usada de várias formas, seja cheirada, injetada, fumada ou ingerida por via oral. Tipicamente, o cloridrato de cocaína é cheirado, enquanto a cocaína freebase e a pasta de coca são fumadas. A pasta de cocaína é um produto cru, intermediário na extração do cloridrato de cocaína. As folhas de coca são tipicamente misturadas com produtos químicos tais como metanol, ácido sulfúrico e querosene. A pasta é um extrato cru que pode ser processado adicionalmente para produzir o cloridrato de cocaína. Comparada à cocaína freebase e ao sal de cocaína, a pasta de coca é relativamente barata e mais usada em países da América Latina. A cocaína freebase se torna adequada para fumar através do processamento do cloridrato de cocaína, normalmente com amônia ou bicarbonato de sódio. Esta forma de cocaína freebase obteve seu popular nome de rua, crack, devido ao som que faz ao ser fumada. Embora não haja estimativas precisas de sua predominância, é correto afirmar que a freebase está amplamente disponível nas Américas e cada vez mais na Europa. Usada principalmente pelos grupos marginalizados e as populações de rua, numerosos países europeus e das Américas do Norte, Central e do Sul têm reportado problemas ligados ao uso do crack (FISCHER et al., 2015a). Revisões abrangentes sobre a situação global das intervenções para o uso de cocaína freebase estão em falta (FISCHER et al., 2015a). De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2018 (UNODC, 2018a), com base nos dados de 2016, as estimativas são que 18,2 milhões de pessoas usaram cocaína no ano anterior. Isto representa 0,4% da população mundial entre 15 e 64 anos de idade (UNODC, 2018b). Estes números confirmam os dados de estudos anteriores (2012 e 2014), que estimam o número global de usuários de cocaína entre 14 e 21 milhões, algo em torno de 0,3 – 0,5% da população mundial (FISCHER et al., 2015). Nas Américas do Norte, Central e do Sul se estima que a predominância do uso de cocaína

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é ainda mais elevada, com estudos indicando uma taxa de predominância de 1,4% ou mais. Nas Américas, a cocaína é a segunda droga ilícita mais frequentemente usada, atrás da maconha. Mais da metade de todas as pessoas que usam cocaína se encontram no continente americano: 34% da população mundial que usa cocaína está na América do Norte. Em seguida estão 20% na Europa Ocidental e Central, e 17% nas Américas do Sul e Central, incluindo o Caribe. Os 30% remanescentes ainda não foram especificados no relatório (UNODC, 2018b).

3.3 NSP e Catinonas

Com frequência, as novas substâncias psicoativas (NSP) são classificadas juntas como se fossem um grupo homogêneo de substâncias. No entanto, substâncias tão diversas quanto as catinonas sintéticas, as novas drogas psicodélicas, canabinoides sintéticos, opioides sintéticos e outras. Os estimulantes (36%) formam o maior grupo de todas as substâncias recentes, seguidos pelos canabinoides (32%) e psicodélicos (16%) (UNODC, 2018a). Muitas NSP estimulantes pertencem ao grupo da catinona. Novamente, quando observamos o mercado europeu, as catinonas sintéticas são o segundo maior grupo de NSP monitoradas (após os canabinoides sintéticos) com 130 diferentes catinonas sintéticas registradas (EMCDDA, 2018b). A mais conhecida nesta classe é a mefedrona, também conhecida como 4-metilmetcatinona (4-MMC). A mefedrona foi sintetizada pela primeira vez em 1929, mas só se tornou amplamente disponível em 2007. Desde então ela foi reclassificada como uma droga ilegal em pelo menos 31 países (HRI, 2016). A catinona é a substância ativa em khat fresco, um arbusto norte-africano cujas folhas possuem um leve efeito estimulante quando mastigadas. A metcatinona é mais forte do que a catinona, tendo efeitos semelhantes, porém mais intensos. Outras catinonas recentes incluem 3-MMC, 4-MEC e a flefedrona, entre várias outras. O ambiente das NSP é uma paisagem em alteração constante, com novas substâncias aparecendo no mercado com grande frequência. Isto torna difícil (muitas vezes impossível) informar aos


usuários sobre os efeitos e riscos de determinadas substâncias, da maneira e no tempo adequado. Isto também se aplica às NSP estimulantes. Por exemplo, na Europa, até o final de 2017, o EMCDDA estava monitorando mais de 670 NSP. Quase 70% destas substâncias tinham sido detectadas nos 5 anos anteriores, com 51 novas substâncias somente em 2017 (EMCDDA, 2018b).

3.4 Riscos e danos em potencial

Como é possivelmente o caso para todos os danos relacionados ao uso de substâncias (ilícitas), muitas consequências negativas para a saúde e a vida social do usuário são mediadas pelo ambiente de risco no qual o uso acontece. Aspectos estruturais do ambiente de risco como desemprego, pobreza, falta de moradia, habitação instável e encarceramento, assim como substâncias adulteradas, (falta de) disponibilidade de serviços de redução de danos, legislação e políticas públicas sobre drogas, tudo isso pode ter um impacto negativo nas vidas das PQUD (EMCDDA, 2017). O mesmo é válido para as pessoas que usam drogas estimulantes. Existe uma quantidade considerável de literatura científica sobre o dano relacionado ao uso de estimulantes: está além do escopo do presente relatório reiterar ou recapitular suas conclusões. Neste capítulo, resumiremos as constatações mais importantes sobre as categorias de danos ligados, de modo mais forte, ao uso de estimulantes não injetáveis. Em prol da concisão, optamos por não diferenciar entre substâncias específicas, e preferimos focar nos danos que se aplicam aos estimulantes discutidos no presente relatório.

3.4.1 Danos físicos Vias de administração

As potenciais consequências negativas para a saúde associadas ao uso de drogas estimulantes dependem da substância e estão parcialmente relacionadas às vias de administração específicas. Padrões de consumo problemáticos e dependência, por exemplo, acontecem mais frequentemente entre as pessoas que injetam ou fumam estimulantes – independentemente da substância que eles usam (EMCDDA, 2018a). Os danos se tornam mais prováveis após um uso intenso, de alta dosagem ou de longo prazo (GRUND et al., 2010). No entanto, problemas agudos também podem ocorrer após o

uso ocasional e/ou de baixa dosagem de estimulante (EMCDDA, 2017b). Como ocorre com os opioides, a transmissão de doenças infecciosas (ex., vírus transportados pelo sangue como HCV e HIV) estão fortemente ligadas à injeção. Um risco adicional para as pessoas que injetam estimulantes é que, muitas vezes, elas injetam mais frequentemente, são mais propensas a compartilhar agulhas e seringas, com frequência possuem práticas de injeção mais caóticas e também se engajam mais frequentemente em atividades sexuais de risco, comparadas com as pessoas que injetam heroína (GRUND et al., 2010; FOLCH et al., 2009). Grund e colaboradores (2010) criaram uma visão geral da relação entre o uso (injetável) de estimulantes e HIV e HCV. Mais recentemente, o UNODC (2017) também publicou uma sistemática revisão da literatura sobre a relação entre o uso de estimulantes e HIV. O dano aos pulmões está fortemente ligado aos estimulantes que são fumados, especialmente o crack (GRUND et al., 2010). As pessoas que fumam estimulantes também podem transmitir doenças compartilhando cachimbos e outros materiais. Por exemplo, os cachimbos de metal e de vidro podem queimar a boca de uma pessoa, e a parafernália – especialmente aquela feita nas ruas – pode ter bordas afiadas, resultando em pequenos ferimentos (STRATHDEE; NAVARRO, 2010; HUNTER et al., 2012). As feridas orais e lábios rachados tornam as pessoas vulneráveis às doenças infecciosas. O HCV, presente na saliva ou no fluido nasal, pode ser transmitido compartilhando os cachimbos (GRUND, 2010). Estudos também têm demonstrado que fumar metanfetamina está associado com a transmissão de infecções de HCV e HIV entre as mulheres profissionais do sexo (STRATHDEE; NAVARRO 2010; OAEN, 2007). Cheirar cocaína e metanfetamina pode levar ao estreitamento dos vasos sanguíneos nasais, resultando em cartilagem danificada ou morta. Isto pode levar a um furo no septo e/ou colapso da válvula nasal (fraqueza ou estreitamento da válvula nasal que pode resultar em aumento da resistência ou mesmo o bloqueio do fluxo de ar) (GRUND et al., 2010).

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Riscos físicos Todos os estimulantes aumentam significativamente a pressão sanguínea e a frequência cardíaca. É um fato bem estabelecido que a cocaína é cardiotóxica (PHILLIPS et al., 2009). A cocaína pode causar danos estruturais irreversíveis ao coração, exacerbar as doenças cardiovasculares existentes, e até mesmo causar morte cardíaca súbita. O uso da cocaína está ligado a ataques cardíacos, batimentos cardíacos irregulares, falha do coração e outros problemas cardiovasculares (PHILLIPS et al., 2009). O uso combinado de cocaína e álcool leva a uma produção de cocaetileno no corpo humano. Este novo metabólito aumenta ainda mais a cardiotoxicidade (HERBST et al., 2011). O uso das ETA tem sido associado com a cárie dentária e as doenças dentárias, embora não esteja claro o quanto isso é um resultado direto do uso de (meta)anfetamina ou relacionado a uma dieta e higiene oral e dental pessoal deficientes (GRUND et al., 2010). Outro risco é causado pela sintetização incorreta de estimulantes – por exemplo, quando eles são produzidos em casa. Os estimulantes podem conter resíduos químicos tóxicos ou outras impurezas1010. Algumas destas impurezas estão associadas com altos níveis de morbidade e muitos problemas de saúde complexos, como a disseminação de vírus transmitidos pelo sangue, gangrena, e danos aos órgãos internos, assim como defeitos cognitivos, problemas de memória como demência, hemorragia de gangrena e parkinsonismo (GRUND et al., 2010; HEARNE et al., 2016). Overdose Embora overdoses fatais de estimulantes efetivamente ocorram, elas raramente são vistas entre as PQUD que frequentemente usam doses elevadas. Isto acontece, muito provavelmente, por conta do desenvolvimento de tolerância. Ataques cardíacos, arritmia e derrames são a causa mais frequente de overdose para as pessoas que usam cocaína (GRUND et al., 2010). As overdoses de metanfetamina podem levar a convulsões, 10 O Dr. Antônio Gomes de Castro Neto evidenciou em sua tese de doutorado que amostras de crack em Pernambuco, estado brasileiro da região Nordeste do Brasil, possuem diversos contaminantes em sua composição, além de cocaína, cuja média encontrada foi de cerca de 46%. Os adulterantes encontrados foram (média da concentração relativa): fenacetina (44%), procaína (38%), paracetamol (26%), benzocaína (23%), levamisole (20%), lidocaína (17%) e cafeína (17%) (CASTRO-NETO, 2016). (N. R.)

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ataques cardíacos, derrame, insuficiência renal e temperaturas corporais elevadas potencialmente fatais (MATSUMOTO et al., 2014). O uso combinado de cocaína com opioides, álcool e outros depressores está intimamente ligado às overdoses de cocaína, assim como o uso de cocaína está associado com o aumento das chances de overdoses de opioides (GRUND et al., 2010). Comportamento de risco Numerosos estudos identificaram comportamentos de risco tanto diretos (uso de substância) bem como indiretos (ex., sexuais) relacionados ao uso de estimulantes. Os riscos indiretos afetam – por exemplo – as taxas de doenças infecciosas tais como HIV, HBV, HCV e TB. Alegadamente, a predominância de doenças infecciosas é ainda maior entre as pessoas que usam crack em comparação com outras substâncias ilícitas (FISCHER et al., 2015a). O uso de metanfetamina, em particular, tem estado associado com o aumento dos comportamentos sexuais de risco, em parte pelo aumento do impulso sexual e por habilitar episódios sexuais mais prolongados (HUNTER et al., 2012). Discutiremos estes riscos e as formas de lidar com eles em mais detalhe no capítulo 4.2. Dependência Enquanto a vasta maioria das PQUE assim o faz ocasionalmente e sem muito risco, uma minoria desenvolve um padrão de uso pesado e frequente que produz uma dependência. Embora a dependência física de drogas estimulantes não seja comparável àquela de depressores tais como a heroína, o GHB ou o álcool, as PQUE podem e efetivamente vivenciam sintomas de abstinência. Estes incluem agitação, fadiga, aumento do apetite, sonhos desagradáveis ou intensos, distúrbios de sono, comprometimento cognitivo, sintomas (temporários) quase psicóticos, e distúrbios psicológicos. Tipicamente, estes sintomas começam algumas horas após o último uso e podem durar até vários dias (DEGENHARDT et al., 2014; FISCHER, et al., 2015a). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a abstinência de drogas estimulantes não é medicamente perigosa (WHO, 2011). Ainda assim, ao longo dos anos, tanto os pesquisadores quanto as PQUE têm procurado por substâncias que possam reforçar uma terapia de manutenção, reduzir o uso de estimulantes ou reduzir os efeitos adversos associados ao uso, semelhante ao papel da


metadona e da buprenorfina para as pessoas que usam heroína. Isto é detalhado no capítulo 4.7.

3.4.2 Danos à saúde mental

Estudos têm demonstrado elevados níveis de comorbidade psiquiátrica (ex., suicidalidade, depressão, TEPT, TDAH, distúrbios de personalidade) entre os usuários crônicos de estimulantes (GRUND et al., 2010; FISCHER et al., 2015b). O uso problemático de pó de cocaína e crack, por exemplo, tem sido associado com ansiedade, depressão, pensamentos paranoicos e aumento de agressividade (HAASEN et al., 2005). O uso de metanfetamina tem sido associado com pensamentos negativos sobre si mesmo, sintomas de depressão, sintomas psicóticos (tais como alucinações), aumento de agressividade e pensamentos paranoicos (ZWEBEN et al., 2004; MCKEITH et al., 2006). O uso crônico de anfetamina e cocaína também está associado com psicose, embora isto seja, normalmente, temporário e ocorra tipicamente após períodos de uso prolongado ou durante a abstinência (GRUND et al., 2010; MORTON, 1999). Sintomas pré-existentes semelhantes aos psicóticos podem piorar após o uso de estimulantes. Após o uso excessivo de estimulantes, somado à privação de sono resultante, algumas PQUE podem desenvolver uma condição conhecida como parasitose delirante. Um de seus sintomas, conhecido como formigamento, é a sensação de que insetos (às vezes chamados de coke bugs, amphetamitas ou ácaros de metanfetamina) estão rastejando sobre ou sob a pele da pessoa11. Coçar, beliscar ou cortar a pele pode resultar em lesões da pele que, por sua vez, podem ficar infeccionadas (GRUND et al., 2010).

3.4.3 Danos sociais

O uso problemático de estimulantes está associado com uma gama de problemas sociais e as pessoas em condições socioeconômicas mais vulneráveis podem ser mais propensas a ter problemas relacionados ao seu uso de substâncias. Tanto o uso de estimulantes quanto a associação com os mercados ilegais de estimulantes estão ligados à marginalização social e econômica, e ao aumento das taxas de crimes, tais como os patrimoniais e a violência (FISCHER et al., 2015). Como ocorre com outras substâncias ilícitas, a criminalização dos 11 No Brasil não há referenciais qualitativos para este tipo de experiência, tal como descrito no presente relatório. (N. R.)

estimulantes cria sua própria dinâmica, resultando em marginalização social e econômica. Isto dificulta o acesso aos serviços sociais, de saúde e de tratamento, diminuindo a absorção das pessoas em risco (STRATHDEE; NAVARRO, 2010). Embora seja necessário cautela ao sugerir ligações causais, as pessoas com uso problemático de estimulantes têm maior probabilidade de estarem desempregadas, terem um apoio social mais limitado e um estilo de vida caótico (GRUND et al., 2010). O uso problemático de estimulantes também está ligado a “problemas sociais e familiares, incluindo relações interpessoais deficientes, abuso ou negligência infantil, perda de trabalho, acidentes com veículos a motor, troca de sexo por dinheiro ou drogas, comportamento criminal ou violento e homicídio” (GRUND et al., 2010, p.202).

3.4.4 Ambiente de risco

Com base na influente obra de Norman Zinberg “Drug, Set and Setting” (1984), que sugeriu que os fatores ambientais desempenham um papel importante na capacidade das pessoas de manter controle sobre seu uso de drogas, Tim Rhodes introduziu o conceito de ambiente de risco para explicar a relação entre o uso de droga, os danos relacionados à droga e o contexto social (RHODES, 2002, 2009). Tanto o contexto (setting) de Zinberg quanto o ambiente de risco de Rhodes não são estáticos, mas uma complexa interação entre os indivíduos, as substâncias, e as variáveis sociais, culturais, econômicas e legais, dentre outras. Esta interação, portanto, se altera frequentemente. O uso de drogas, os danos associados, e as intervenções de redução de danos são todos situados ambientalmente, e contingentes sobre o contexto social, ou o ambiente de risco. Rhodes distingue dois níveis de ambiente de risco: micro e macro. O microambiente de risco considera as decisões pessoais, bem como a influência das normas e práticas no nível da comunidade (RHODES; SIMIC, 2005). O macroambiente olha mais para os fatores estruturais, tais como as leis, as ações militares, as condições econômicas e crenças culturais mais amplas (RHODES; SIMIC, 2005). Tradicionalmente, a maioria das intervenções de saúde pública tem focado em mudar os comportamentos de risco individuais. No entanto, o modelo de Rhodes mostra que o uso de substâncias não ocorre em um vácuo, mas em um ambiente

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social, cultural, econômico, jurídico, de medidas e políticas específicas. Manter o controle sobre o próprio uso e, desta forma, gerenciar tanto os danos individuais quanto os sociais, depende, em grande parte, de mecanismos sociais externos, incluindo rituais, controles sociais e outras regras (GRUND, 1993; ZINBERG, 1984). Não é uma característica de um tipo específico de usuário, e sim um processo dinâmico que depende de uma variedade de fatores e ambientes (FDTI, 2014). Aplicar o mesmo modelo às intervenções desloca a ênfase das PQUE individuais para o contexto social no qual as pessoas usam drogas (GRUND, 2017; RHODES, 2009). Isto implica que as intervenções de redução de danos para as PQUE sempre precisam levar em conta os ambientes de risco dos beneficiários (GRUND et al., 2010; RHODES, 2002).

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Revisão da literatura

BEM VINDO

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4 Revisão da literatura

Nas últimas décadas, houve um aumento da produção literária em torno das estratégias de redução de danos para o uso não injetável de drogas estimulantes. A maioria dos estudos é local, focando em um programa ou estratégia específica. Outros focam em regiões específicas ou cobrem regiões mais amplas, mas focam em estimulantes específicos. Além destas, poucas, mas valiosas revisões de estratégias de redução de danos para drogas estimulantes já se encontram disponíveis. Grund e colaboradores (2010), por exemplo, revisaram 91 estudos acadêmicos sobre os ETA e a cocaína entre 1990 e 2018. Estes foram, em sua maioria, publicados em inglês, mas os autores também incluíram alguns estudos alemães e franceses. Os autores descobriram que a maior parte da literatura disponível em torno do uso de estimulantes ainda foca nos danos dos estimulantes, ao invés de nas estratégias que visam reduzir os danos ou os riscos de usar estimulantes. Da literatura focada nos danos, a maioria dos artigos foca primariamente nas consequências médicas à saúde (vírus transportados pelo sangue e outras complicações de infecção, problemas neurológicos, complicações cardíacas e pulmonares, overdose e gravidez). A saúde mental e outros problemas associados com o uso de estimulantes são abordados muito brevemente. Algumas estratégias recomendadas pelos autores para reduzir os danos do uso de estimulantes incluem: “kits de crack” (kits para fumar crack com maior segurança), salas de consumo supervisionado, limitação de mistura

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de substâncias, oferta de intervenções breves e suprimentos para proteção de doenças sexualmente transmissíveis (GRUND et al., 2010). Fischer e colaboradores (2015a) focaram no uso e dependência de crack. Eles realizaram uma revisão sistemática dos estudos acadêmicos sobre a eficácia de intervenções secundárias de prevenção e tratamento para crack. Os autores consideraram os estudos entre 1990 e 2014, somente na língua inglesa. Eles observam que revisões abrangentes sobre o estado das intervenções para o uso de crack estão em falta, e que as medidas dirigidas de prevenção e tratamento visando especificamente o uso de crack têm, ainda, disponibilidade limitada. As agências internacionais e regionais também produziram revisões valiosas sobre as intervenções dirigidas ao uso de estimulantes. A Organização Mundial de Saúde (WHO, 2011) fornece uma visão geral de intervenções relacionadas aos ETA, focando nos usuários não problemáticos. A revisão declara que a maioria das pessoas que usam ETA (em torno de 90%) não exigem intervenções de tratamento intensivas, uma vez que seu uso é casual ou experimental. Neste contexto, as informações e o aconselhamento são as melhores medidas para ajudar as pessoas a considerarem os riscos em potencial do uso dos ETA e criarem suas próprias estratégias para reduzir os danos. As estratégias de intervenções de crise são ferramentas úteis para lidar com os momentos críticos de paranoia ou os sintomas de abstinência.


A Harm Reduction International (PINKHAM; STONE, 2015) oferece uma boa visão geral dos danos relacionados ao uso de anfetaminas, juntamente com uma descrição de respostas concretas de redução de danos. Os autores dizem que a redução de danos para anfetaminas segue os mesmos princípios fundamentais da redução de danos para as pessoas que usam opioides: devemos encontrar as pessoas onde elas estão, fornecer informações e atividades com base nas necessidades das pessoas, oferecer serviços móveis e de longo alcance para aqueles relutantes em visitar um programa de redução de danos, engajar os pares como membros de equipe, voluntários ou conselheiros, e encaminhar pessoas para outros serviços relevantes. Em relação à redução de danos para as pessoas que usam estimulantes, o relatório frisa a importância da hidratação e da higiene dental, desenvolver padrões de uso controlados, fazer uso de kits para fumar com maior segurança, desenvolver estratégias para lidar com a paranoia, delírios e ansiedade, e tomar decisões conscientes e informadas sobre o uso funcional de estimulantes para fins de trabalho ou sexuais (PINKHAM; STONE, 2015). As seguintes sugestões são acrescentadas para as pessoas que usam metanfetamina: ter uma dieta balanceada, descansar o suficiente, não passar mais do que duas noites sem dormir e entrar em um padrão regular de comer, beber e dormir. Também é visto como útil tornar as PQUE cientes dos sinais iminentes de sintomas do tipo psicótico, encorajando-as a procurar os amigos ou a família em caso de ansiedade, paranoia ou pânico para ajudá-las a se acalmar, e, finalmente, ajudar as PQUE a tratarem das questões de estilo de vida relacionadas ao uso de substância, tais como uma higiene oral e dental (DMS, 2017; TADF, 2016). O Observatório Europeu das Drogas e Toxicodependência (EMCDDA) oferece uma revisão sobre o uso de intervenções psicossociais para o tratamento de drogas em geral, que inclui o tratamento para estimulantes (EMCDDA, 2016). O EMCDDA também fornece um portal de melhores práticas para o tratamento de uso problemático. O portal apresenta intervenções que foram avaliadas positivamente em revisões ou diretrizes sistemáticas, com métodos específicos para avaliar a evidência. As melhores práticas, neste contexto, são aquelas para as quais “foram encontradas medidas precisas dos efeitos a favor da intervenção” (EMCDDA, 2018a). De acordo com este critério, as melhores práticas para o tratamento

de estimulantes encontradas pela EMCDDA focam nas intervenções psicossociais ou comportamentais e, em menor grau, nas intervenções farmacológicas, incluindo a terapia de substituição. As intervenções psicossociais, por exemplo, podem ajudar as pessoas a reduzir seus usos de cocaína, através da influência nos processos mentais e nos comportamentos de dependência. Os medicamentos (tais como o disulfiram e os antiparkinsonianos) também podem ajudar a reduzir o uso de cocaína, enquanto algumas drogas para tratar a depressão (como a fluoxetina e a imipramina) podem melhorar a adesão ao tratamento para as pessoas que usam metanfetaminas (EMCDDA, 2018a). Outras revisões são mais específicas, focando, por exemplo, em estratégias de substituição farmacêuticas para anfetaminas (PÉREZ-MAÑÁ et al., 2013; SHEARER; GOWING, 2004). O UNODC (2017) publicou recentemente uma revisão da literatura em cinco partes sobre os elos entre o uso de estimulantes (ETA, cocaína, e NSP) e os riscos de transmissão de HIV, bem como sobre o tratamento e prevenção de HIV, HBV e HCV. Esta revisão descreve várias intervenções de redução de danos que têm se provado eficazes na prevenção da transmissão de HIV. Estas incluem fornecer preservativos e lubrificantes, instrumentos de uso para injeção e uso fumado mais seguros (informações, aconselhamento, testes para doenças transmissíveis e tratamentos tais como a profilaxia pré- e pós-exposição, entre outros. Existe um aumento das evidências acadêmicas e não acadêmicas sobre o que é eficaz para reduzir os danos do uso de drogas estimulantes. Isto se deve ao aumento do volume de pesquisas, e ao aumento da necessidade prática, para a qual uma revisão sistemática da literatura de estratégias de redução de danos para as drogas estimulantes é de grande valor. Nossa revisão inclui as intervenções para diversos tipos de estimulantes, rotas de administração variadas e em diferentes regiões do mundo. Nós agrupamos os estudos em 12 estratégias de redução de danos: kits para fumar com maior segurança, prevenção de riscos sexuais, intervenções focadas no gênero feminino, salas de consumo de drogas, estratégias de autorregulação, moradia primeiro, substituição, abordagem social e intervenções baseadas em pares, centros de convivência, testes de drogas, intervenções online, e

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intervenções terapêuticas. Estas estão descritas nos capítulos seguintes.

4.1 Kits para fumar com maior segurança

Kits para fumar com maior segurança podem ser usados como uma estratégia de redução de danos tanto para crackcocaína quanto metanfetamina. Até a presente data, no entanto, os estudos sobre os kits para fumar com maior segurança ainda se concentram predominantemente apenas no uso de crack. O conteúdo dos kits para fumar com maior segurança para crack varia nos diferentes países onde ele é distribuído, mas um kit completo tipicamente contém: um cachimbo (usualmente uma haste de vidro resistente ao calor ou, alternadamente, um cachimbo de madeira); um bocal de borracha ou silicone; telas (feitas de aço ou latão); substâncias usadas para proteger os lábios (bálsamo para os lábios ou geleia de petróleo); informações sobre o uso de droga mais seguro (incluindo a prevenção de compartilhar os equipamentos e um descarte seguro); e informações sobre sexo e materiais mais seguros (preservativos e lubrificantes). Às vezes, os kits podem também incluir itens, tais como o ácido ascórbico, para preparar o crack para injeção12 ou itens para prevenir contra infecções ou a disseminação de vírus transportados pelo sangue (cotonetes com álcool, lenços para as mãos). Uma série de estudos verificou que a distribuição de kits para fumar com maior segurança aumenta as técnicas e práticas para fumar com maior 12 O uso injetável de crack não é uma realidade brasileira, mais comumente encontrada em outros países, como os Estados Unidos (SANTIBANEZ et al., 2005). Um único caso relatado no país por nós encontrado, inclusive, tratou-se do uso realizado por um americano (MELINA; SILVEIRA; FIDALGO, 2015). O uso injetável de cocaína se dá quando esta se encontra na forma de cloridrato de cocaína (pó de cocaína), muito comum nos anos 90, cuja forma de uso foi gradualmente substituída pelo uso fumado da cocaína na forma freebase ou pasta base (ambos chamados aqui genericamente de crack, outros autores atribuem nomenclatura generalista de cocaínas fumáveis) (MORAES et al., 2010), cujos efeitos na sua potência e velocidade são similares. Não podemos, entretanto, subestimar o uso injetável de crack, uma vez que este é possível de retornar à sua forma solúvel em água, como relatado por usuários de crack em Pernambuco, que de forma alternativa adicionam ácido bórico ao crack, obtendo o borato de cocaína, comumente cheirado (NAPPO et al., 2012), mas passível de uso injetável. (N. R.)

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segurança, e diminui substancialmente as práticas injetáveis (JOZAGHI; LAMPKIN; ANDRESEN, 2016; LEONARD et al., 2008; TI et al., 2012). Isto provavelmente ocorre porque o compartilhamento dos equipamentos de uso é mais provável quando as pessoas têm dificuldade de acessar os cachimbos de crack (de baixo custo), particularmente as PQUE jovens em situação de rua (CHENG et al., 2015). A disponibilidade de equipamentos de alta qualidade para fumar diminui a dependência das PQUE de equipamentos inseguros, reduzindo consequências negativas, tais como os cachimbos que explodem ou inalar partículas metálicas (PRANGNELL et al., 2017). A distribuição de cachimbos de crack através dos pontos de serviço de saúde aumenta a aceitação destes kits, diminuindo os problemas de saúde relacionados ao ato de fumar crack. Estudos demonstram que os kits para fumar crack com maior segurança ajudam a prevenir lesões na boca e nos pulmões (MALCHY; BUNGAY; JOHNSON, 2008; COLLINS et al., 2005; PORTER; BONILLA, 1993). Filtros reduzem a exposição a resíduos quentes, ajudando a reduzir as queimaduras na boca e na garganta (GRUND et al., 2010). Os cachimbos e os bocais (de borracha) podem reduzir os cortes e as queimaduras nos lábios, bem como reduzir o dano aos pulmões e a toxicidade (PINKHAM; STONE, 2015; GRUND et al., 2010; LEONARD et al., 2008). Não existe, entretanto, nenhuma evidência definitiva da eficácia de distribuir os kits de crack na prevenção da transmissão de doenças (como HIV e HCV) em si (HUNTER et al., 2012; MALCHY et al., 2011). Um fator importante para assegurar a eficácia da intervenção é adaptar os kits às preferências e necessidades dos usuários. Isto aumenta a aceitação de equipamentos para fumar com maior segurança e previne as PQUE de continuar a usarem cachimbos artesanais (POLIQUIN et al., 2017). Por exemplo, os cachimbos de vidro têm uma vantagem sobre os outros cachimbos uma vez que o vidro não dispersa alumínio, cobre, plástico ou quaisquer substâncias que poderiam causar danos adicionais. No entanto, eles não podem ser distribuídos em todos os lugares. Para alguns programas, os cachimbos de vidro podem ser caros demais. Além disso, o design da haste usada nos kits de crack não é ideal para fumar o cristal de metanfetamina. A metanfetamina se liquefaz quando aquecida, podendo ser inalada


se fumada com uma haste de vidro (HUNTER et al., 2012). Mesmo se designs alternativos de cachimbos são necessários, a fundamentação da intervenção também se aplica ao fumo de metanfetamina, já que muitos dos riscos associados com fumar crack são compartilhados. Também é importante cuidar das necessidades que fazem parte de um ambiente de macro-risco. Em alguns países, por exemplo, as PQUE podem evitar portar os cachimbos por medo de intervenção da polícia. Somente os bocais, nestes casos, podem ser uma boa possibilidade de redução de danos. Outra alternativa pode ser os vaporizadores pessoais, semelhantes aos cigarros eletrônicos (E-cigarettes) para os fumantes de tabaco, e outros meios de filtrar a fuligem e outras partículas. Vaporizadores podem reduzir adicionalmente os danos ao corpo e aos pulmões, uma vez que a vaporização e a filtragem podem reduzir a quantidade de produtos de combustão inalados (GRUND et al., 2010). Ao mesmo tempo, algumas comunidades de PQUD podem estar tão acostumadas ao seu próprio tipo de cachimbo que pode ser muito complicado se conseguir uma troca para instrumentos mais estéreis entregues por um programa de redução de danos. Uma boa alternativa de redução de danos estes casos é ensinar às PQUE métodos de redução de danos que podem ser usados com seus cachimbos artesanais e mais prejudiciais. Um desafio a ser superado, ao usar os kits para fumar com maior segurança como uma estratégia de redução de danos, diz respeito ao compartilhamento de instrumentos. Mesmo quando usam os kits, os usuários podem continuar a compartilhar os cachimbos por um número de razões individuais e sociais (POLIQUIN et al., 2017; MALCHY et al., 2011). Estas razões incluem: a falta de familiaridade com os serviços; o desejo e a compulsão de usar imediatamente; drogas ou cachimbos recebidos de presente; ou fumantes ocasionais que não portam os equipamentos corretos (ROY et al., 2017; VOON et al., 2016; CHENG et al., 2015; MCNEIL et al., 2015; TI et al., 2012). Além disso, nem todos os usuários reconhecem os riscos de compartilhar os equipamentos e podem considerar outros riscos, como sofrer uma overdose, mais importantes. O contexto de uso também impacta as práticas de compartilhamento em alto grau. O uso de metanfetamina, por exemplo, ocorre frequentemente em um cenário de grupo onde o

compartilhamento é comum, parte da cultura, e, não o resultado de uma incapacidade de comprar ou acessar suprimentos novos e limpos (HUNTER et al., 2012). Especialmente para os mulheres, com frequência o compartilhamento de cachimbos também é o resultado de relações de poder que as torna vulneráveis (BUNGAY et al., 2010a; MCNEIL et al., 2015). Lidar com estas questões exige mais do que apenas a distribuição de kits para fumar com maior segurança. Prangnell e colaboradores (2017) verificaram, por exemplo, que uma diminuição no uso de equipamentos inseguros não foi encontrada quando os cachimbos foram obtidos de fontes não relacionadas à saúde. As PQUE que obtiveram os cachimbos de um ponto de serviço de saúde relataram significativamente menos problemas de saúde relacionados ao fumo de crack (tais como dedos cortados, feridas ou cuspir sangue) do que aquelas usando cachimbos artesanais ou cachimbos obtidos nas ruas. Malchy e colaboradores (2011) sugerem que, quando a distribuição ocorre no contexto mais amplo dos serviços de saúde, melhores resultados são atingidos. O envio de mensagens de redução de danos deve acompanhar a distribuição de kits, para diminuir o compartilhamento dos equipamentos e o uso não seguro de drogas (MALCHY et al., 2011). Em um sentido mais amplo, a distribuição de kits para fumar com maior segurança foca somente no microrisco, e faz pouco para mediar os danos causados pelo macroambiente (GRUND et al., 2010). Desta forma, as estratégias integradas funcionam melhor: a distribuição de kits para fumar crack com maior segurança precisa estar integrada em objetivos mais amplos de redução de danos, como aqueles que “estimulam o acesso ao serviço de saúde e apoio psicológico, bem como a integração e segurança social”13 (POLIQUIN et al., 2017). Um dos países onde a distribuição de kits para fumar (crack) com maior segurança tem sido amplamente implementada e estudada é o Canadá. As diretrizes canadenses de melhores práticas (STRIKE et al., 2013; WATSON et al., 2017) encorajam os programas de trocas de agulhas e seringas (PTS) e outros programas de redução de danos para distribuir 13 A distribuição de kits representa importante estratégia de aproximação às PQUD, permitindo vinculação com as equipes de campo e os serviços de atenção e tratamento (SILVA et al., 2009). (N. R.)

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equipamentos para fumar com maior segurança, educar os participantes sobre as práticas para fumar com maior segurança, e fornecer opções para o descarte seguro dos equipamentos usados. Muitos programas de trocas de agulhas e seringas no Canadá também oferecem kits e educação para fumar crack com maior segurança (STRIKE; WATSON, 2017). No capítulo 5.4 nós descrevemos um programa canadense que trabalha com kits para fumar com maior segurança.

risco de saúde sexual deve cobrir: livre acesso a preservativos e lubrificantes, informações sobre ISTs e HIV, acesso de baixo limiar a teste e tratamento de HIV e IST, contracepção e teste e aconselhamento de gravidez, conversa sobre riscos sexuais, e desenvolvimento de um plano de autocontrole sobre comportamentos prejudiciais. Além disso, também é importante abordar a violência sexual e física, sexo transacional e comercial, relações abusivas, e outras questões relacionadas aos comportamentos sexuais (PINKHAM; STONE, 2015).

4.2 Prevenção de riscos sexuais

Alguns riscos sexuais, bem como as respectivas medidas de redução e prevenção de danos, se aplicam mais especificamente às PQUE. Os estimulantes tendem a secar as membranas mucosas e diminuem a sensibilidade, aumentando as chances de sexo mais longo e mais intenso. Portanto, as PQUE devem usar bastante lubrificante. Isto é especialmente verdade para as PQUE que fazem uso de estimulantes para facilitar e melhorar a atividade sexual, tais como as PQUE que praticam chemsex.

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Existe uma forte ligação entre o uso de drogas estimulantes e os riscos sexuais à saúde. Eles estão interrelacionados de numerosas formas: Estar sob a influência de uma droga pode levar à desinibição e, consequentemente, a atividades sexuais não intencionais que podem ter consequências negativas (ex., sofrimento mental, DSTs, gravidez); Engajamento em trabalhos sexuais para financiar o uso de drogas; Uso de substâncias para realçar o desempenho sexual e o prazer (chemsex); Usar substâncias como uma estratégia de sobrevivência para lidar com o sofrimento emocional decorrente de um problema de saúde sexual, tal como um diagnóstico de HIV.

Na Europa, os serviços de tratamento para uso de droga e os problemas de saúde sexual estão usualmente separados e raramente co-localizados, tornando mais difícil atender a ambas as questões ao mesmo tempo. Em razão da forte interrelação, o EMCDDA (2017) declara que a integração de serviços para o uso de drogas e de saúde sexual é necessária. Em qualquer caso, o conhecimento especializado deve ser compartilhado e os serviços encorajados a trabalharem juntos mais de perto. Além disso, um melhor entendimento dos comportamentos de risco e das necessidades de tratamento é necessário (EMCDDA, 2017b). Em certa medida, a prevenção de riscos sexuais não é diferente para as pessoas que usam drogas estimulantes do que para as populações usando outras drogas. Em qualquer caso, a prevenção ao

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4.2.1 Chemsex

O chemsex é um fenômeno relativamente recente que foi primeiro documentado no Reino Unido, logo seguido por outros países na Europa (Ocidental) (BOURNE; WEATHERBURN, 2017), e na Ásia. O termo chemsex é geralmente usado para definir a combinação intencional de sexo com o uso de determinadas drogas psicoativas, entre homens que fazem sexo com homens (HSH) (GIORGETTI et al., 2017; STUART, 2016; BOURNE et al., 2015; MCCALL et al., 2015). O chemsex usualmente ocorre em cenários como a casa de alguém ou em “chill-outs” durante as festas de sexo de múltiplos dias (PAKIANATHAN et al., 2016). Nos EUA e na Austrália, o chemsex é mais bem conhecido como farrear e brincar (party and play). Nestes cenários, as drogas ou chems – como elas são chamadas nesta cena – frequentemente incluem os estimulantes metanfetamina e mefedrona (4-MMC), bem como GHB/GBL e uma variedade de outras substâncias. Com frequência estas são usadas em combinação, para facilitar, reforçar e prolongar as sessões sexuais, que duram várias horas, às vezes até mesmo dias, com múltiplos parceiros sexuais. Algumas redes sexuais também experimentam com outras substâncias, incluindo estimulantes inovadores tais


como as catinonas 4-MEC e 3-MMC, bem como a anfetamina substituta 4-flúor-anfetamina (KNOOPS et al., 2015a). A maioria destes estimulantes pode ser injetada (slammed14, conforme é conhecido na cena de chemsex) (PUFALL et al., 2018; KNOOPS et al., 2015a). Substâncias são usadas para aumentar a euforia e a energia; para estimular a excitação sexual e a resistência; para reforçar a autoconfiança sexual, mas também para superar uma autoimagem negativa; para facilitar a transcendência de limites; para escapar de preocupações, sentimentos de rejeição, preocupações sobre transmissão em potencial de DSTs (BOURNE; WEATHERBURN, 2017; WEATHERBURN et al., 2017; BOURNE et al., 2015). Este desenvolvimento coincidiu com o crescimento dos chamados “aplicativos de rede sociossexual geoespacial” que aumentam a facilidade com que os participantes podem encontrar parceiros sexuais dispostos, em sua localização imediata e sob demanda, bem como as drogas que vão em conjunto (STUART, 2016; FRANKIS; CLUTTERBUCK,2017). Uma vez que o chemsex ainda é considerado um fenômeno emergente, não existe nenhum índice de prevalência confiável (STUART, 2016). Em geral, no entanto, os estudos populacionais de vários países indicaram que o uso de substância é mais alto entre os HSH do que entre a população geral (MELENDEZTORRES; BOURNE,2016). A pesquisa sugere que os HSH usam estimulantes mais comumente do que os não-HSH, e que os HSH com HIV positivo usam estimulantes mais frequentemente do que homens com HIV negativo ou que desconhecem seu status15. De modo semelhante, usar drogas diminui as chances de usar um preservativo entre os HSH (BOURNE et al., 2015).

14 O termo slamming significa fazer uso deliberado de drogas injetáveis em um contexto sexual com intuito de aumento da libido ou da performance sexual. (N. R.) 15 A cena chemsex entre mulheres (MSM, mulheres que fazem sexo com outras mulheres) não têm sido apresentada pela literatura acadêmica, assim como as iniciativas em saúde visando o desenvolvimento de estratégias de proteção contra DSTs. Atualmente, a prática é mais conhecida entre os HSH, talvez pelo fato de haver entre as mulheres a percepção de menor risco de infecções nas relações lésbicas, ausência ou baixa incidência de educação sexual para a modalidade e desenvolvimento de tecnologias de proteção contra DSTs durante o ato sexual, o que torna esse público vulnerabilizado e com certa invisibilidade ao tema (DE ARAÚJO et al., 2019; INPUD, 2019; WORKOWSKI; BERMAN, 2011; POWER; MCNAIR; CARR, 2009). (N. R.)

Tomar drogas antes ou durante o sexo também está ligado a um maior número de parceiros sexuais, níveis mais elevados de comportamentos sexuais de alto risco, e aumento de diagnósticos de DST (PUFALL et al., 2018). Isto não quer dizer que usar drogas durante a relação sexual seja necessariamente problemático: algumas pessoas declaram estar no controle de seu uso e de se ater a regras predeterminadas durante o sexo (BOURNE et al., 2015). Outros estudos também observam correlações entre o uso problemático de drogas entre os HSH e as questões de saúde mental, tais como ansiedade, psicose e sua incapacidade de fazer sexo sem usar drogas (MELENDEZ-TORRES; BOURNE, 2016). Existe uma preocupação de que o chemsex possa levar a um aumento da incidência de HIV, Hepatite C ou DST entre os HSH. No entanto, até agora, essa suposição não foi amparada por evidências suficientes (BOURNE et al., 2015; MELENDEZ-TORRES; BOURNE, 2016). Parece provável que a combinação de diversos fatores de alto risco contribui para um aumento de risco, tais como: muitos parceiros sexuais em rápida sucessão; uso inconsistente de preservativo; nem sempre fazer a classificação dos parceiros sexuais em soropositivos ou não(serosorting1616); intensa e prolongada atividade sexual levando a pequenas lesões retais ou penianas; uso de drogas injetáveis; e atividades sexuais de alto impacto (ex., “fisting”) (MELENDEZ-TORRES; BOURNE, 2016). Conforme muitos autores afirmam, existe uma necessidade urgente para desenvolver intervenções, visando reduzir os danos relacionados tanto a drogas quanto a sexo, para este grupo alvo específico, em um contexto de chemsex (TOMKINS et al., 2018; BOURNE; WEATHERBURN 2017; MELENDEZTORRES; BOURNE, 2016; STUART, 2016; KNOOPS et al., 2015). Recentemente foram descritas diversas abordagens orientadas pela redução de danos para o chemsex, e tantos os profissionais quanto as pessoas envolvidas em chemsex argumentam em favor de integrar as avaliações e referências sobre o chemsex em caminhos de cuidados existentes (BAKKER; KNOOPS, 2018; PUFALL et al., 2018; KNOOPS et al., 2015a). Um exemplo é fornecer serviços para o chemsex dentro de clínicas ou serviços de saúde sexual que sejam acolhedores aos HSH, em vez 16 Referente à prática de usar o status de HIV como um ponto de decisão na escolha do comportamento sexual, isto é, escolha do parceiro em função do estado sorológico, escolhendo, portanto, parceiros também soropositivos. (N. R.)

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de encaminhar os homens para os serviços de drogas existentes. Tais serviços especializados já começaram a emergir nos EUA, na Austrália e no Reino Unido (FRANKIS; CLUTTERBUCK, 2017; KNOOPS et al., 2015a). As recomendações também incluem oferecer contato direto com os usuários de chemsex, e fornecer informações imparciais sobre a redução de danos e promoção de saúde (sexual) (BOURNE; ONG; PAKIANATHAN, 2018). Muitos autores reforçam a importância de escrever em um tom de voz que seja relacionável aos usuários de chemsex, utilizando termos de gíria que são usados na cena de chemsex (BAKKER; KNOOPS, 2018; STARDUST et al., 2018). A organização holandesa de redução de danos, Mainline, desenvolveu uma série de materiais físicos de IEC (informação, educação e comunicação) focando sobre a melhora de autocontrole e fornecendo dicas de redução de danos, tais como práticas mais seguras de injeção, hidratação e como lidar com questões de saúde mental (BAKKER; KNOOPS, 2018). Estes materiais de IEC também são distribuídos para os profissionais de saúde sexual e para as localizações onde ocorre o chemsex, tais como clubes, bares e saunas. Tanto na Austrália quanto na África do Sul, “pacotes de sexo seguro” e “pacotes de uso seguro de drogas” (para os usuários de injetáveis bem como os de não injetáveis) têm sido distribuídos entre os pares de HSH durante as atividades de abordagem social (HUGO et al., 2018; STARDUST et al., 2018). Várias organizações têm organizado grupos de suporte (par). Na Holanda, estes visam principalmente manter contato com a cena, bem como a facilitação de apoio entre os pares, direcionado ou aos usuários de chemsex ativos ou aos homens que pararam com a prática (BAKKER; KNOOPS, 2018). Um programa australiano combina os elementos terapêuticos com um modelo de apoio entre pares para a redução de danos (BURGESS et al., 2018). No capítulo 5.2 descrevemos um programa espanhol que trabalha com uma intervenção online para os usuários de chemsex.

4.3 Intervenções focadas no gênero feminino

Comparadas com os homens, as mulheres encaram diferentes riscos e contextos de uso de drogas. As mulheres vivenciam um maior estigma, estão em maior risco

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de exposição à violência, estão mais sob a influência de seus parceiros em seus padrões de uso de droga e comportamentos sexuais, são mais definidas por seu papel parental, e mais prováveis de se engajar em trabalho sexual, aumentando, desta forma, o risco de exposição às infecções transportadas pelo sangue (ARPA, 2017; BUNGAY et al., 2010a; LIMBERGER et al., 2016). Apesar destas diferenças de gênero, os estudos e estratégias especificamente voltados para as PQUD do gênero feminino ainda estão incipientes, ainda mais no que concerne o uso de estimulantes. Os relatórios e estudos sobre as necessidades de PQUD do gênero feminino tendem a focar em três áreas principais: acesso aos cuidados, gravidez e criação dos filhos, e direitos sexuais e reprodutivos. O portal de melhores práticas do EMCDDA (2018a) fornece princípios orientadores sobre como responder a estas necessidades, independentemente da droga de escolha. No que se refere ao acesso a cuidados, os princípios orientadores incluem ter serviços específicos para as mulheres, que não façam julgamentos e sejam solidários, física e emocionalmente seguros, e promovam conexões sadias com os membros da família e outras pessoas significativas. Além disso, serviços especiais devem ser implementados para as mulheres grávidas e que criam filhos que usam drogas, incluindo cuidados obstétricos e ginecológicos, tratamentos para as doenças infecciosas, a saúde mental, o bem-estar pessoal e acolhimento de crianças e suporte à família. As mulheres engajadas em trabalhos sexuais podem precisar de medidas especiais para superar o acesso às barreiras de tratamento – tais como um horário de abertura vespertino e abordagem social com busca ativa. Intervenções de baixo limiar, acolhedoras às usuárias e sob medida para o gênero são recomendadas para aumentar o acesso aos serviços de saúde e sociais entre as mulheres profissionais do sexo que usam crack. Estas iniciativas podem também aumentar seu acesso à saúde reprodutiva em geral, e à estratégias preventivas focando em HIV/AIDS e outras infecções sexualmente transmitidas (MALTA et al., 2008). Intervenções focadas no gênero feminino reduzem os danos mais efetivamente para as mulheres usuárias de crack do que as intervenções neutras em relação ao gênero. Por exemplo, um estudo descobriu que


as intervenções focadas tanto no gênero feminino quanto na prevenção de HIV, neutra em relação ao gênero, foram bem-sucedidas na redução do uso de crack e no engajamento sexual de alto risco. No entanto, a intervenção específica para o gênero feminino teve melhores resultados em facilitar o emprego e a habitação, e na redução, em longo prazo, de sexo sem proteção (WECHSBERG et al., 2004). Outro estudo aponta a necessidade de se adaptar as intervenções focadas no gênero feminino para subgrupos específicos de mulheres. Os tipos de estimulantes usados, as rotas de administração ou combinação de drogas, influenciam os danos nas mulheres e sua resposta às intervenções. Por exemplo, as intervenções dos direitos de saúde sexual e reprodutiva (DSSR) foram avaliadas como capazes de diminuir os comportamentos de trocar sexo por drogas ou dinheiro nas mulheres que fumam crack. No entanto, a intervenção funcionou melhor para as mulheres que fumavam apenas crack do que para aquelas mulheres que fumavam e injetavam suas drogas (cocaína, heroína ou speedball). Aquelas que fumavam apenas crack também tiveram mais chances de diminuir seu uso de drogas (STERK; THEALL; ELIFSON, 2003). Além disso, as intervenções de redução de danos devem levar em conta o contexto específico e o ambiente de risco para as mulheres usando estimulantes, incluindo seus parceiros que usam drogas (SHANNON, 2011). A International Community of Women Living with HIV (ICW) (Comunidade Internacional de Mulheres que Vivem com HIV), a International Network of People who Use Drugs (INPUD) (Rede Internacional de Pessoas que Usam Drogas), e a International Network of Women who Use Drugs (INWUD) (Rede Internacional de Mulheres que Usam Drogas), defendem a remoção de qualquer legislação que torne apenas o uso de drogas a justificativa para a retirada dos filhos da custódia de seus pais, ou que busque punir as mulheres por usarem drogas durante a gravidez. Elas também promovem programas de apoio para mulheres encarceradas, assegurar serviços de DSSR acessíveis e baseados em evidência se encontrem disponíveis, pôr um fim à estigmatização, implementar a desagregação de dados baseados em gênero nas pesquisas, e aumentar o número de pesquisas (INPUD; ICW; INWUD, 2015).

No caso de mulheres grávidas ou que criam filhos e que usam estimulantes, existe um forte foco na redução de danos pela redução ou cessação do uso de drogas (WHO, 2014). No entanto, existem outras estratégias de redução de danos. Para as mulheres grávidas que usam metanfetaminas, por exemplo, algumas diretrizes incluem a melhora da nutrição, a diminuição do fumo de tabaco, a diminuição do álcool e do uso de outras drogas, promoção da saúde dentária e encorajamento da atividade física e de um tratamento pré-natal antecipado e contínuo (WRIGHT et al., 2012). No caso de mulheres que estão grávidas e que usam crack, Macedo e Machado (2016) chamam atenção para a necessidade de se reduzir o estigma e ações forçadas nos serviços sociais e de saúde. As políticas coercitivas desencorajam as mulheres que usam drogas de buscar um tratamento médico abrangente durante a gravidez. Os serviços sociais e de saúde precisam ser de baixa exigência e trabalhar para atender as necessidades das mulheres que fazem uso de substâncias (STONE, 2015)17. Com frequência, o uso de estimulantes durante a gravidez existe juntamente com outras circunstâncias de vida prejudiciais, tais como pobreza, violência, problemas de saúde mental, poliuso de substâncias, deficiências nutricionais, tratamento de saúde inadequado e experiências de vida estressantes. Engajar as mulheres em tratamento pré-natal em uma clínica comunitária próxima concede acesso aos recursos e referências para lidar com estes riscos, tanto para as mães quanto para suas famílias (WRIGHT et al., 2012). Em termos de tratamento, tanto o EMCDDA (2018a) quanto a OMS (2014) não recomendam a farmacoterapia para as mulheres grávidas que são dependentes de ETA ou cocaína. As mulheres que usam estimulantes e se engajam em trabalhos sexuais encaram riscos específicos, os quais devem ser considerados separadamente. Com frequência, as mulheres profissionais do sexo que usam drogas se engajam em comportamentos 17 Ademais, o investimento em políticas públicas assistenciais para os casos de pobreza ou diminuir a vulnerabilidade socioeconômica, bem como o investimento em serviços de treinamento parental para estas mulheres deve ser incentivado, haja vista que os casos identificados de problemas de desenvolvimento de crianças expostas ao crack no período perinatal se mostraram mais relacionados à pobreza, aos riscos ambientais e ao cuidado parental do que ao uso da substância (HURT et al., 2009; BEEGHLY et al., 2003; HURT et al., 2001; TRONICK; BEEGGHLY, 1999). (N. R.)

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arriscados (ex., sexo sem proteção com múltiplos parceiros) e sofrem violência física e sexual dos participantes18. Além disso, muitas não têm um bom acesso aos serviços de saúde ou ao apoio social. Em relação às metanfetaminas, seu uso pode aumentar a libido e a desidratação, levando as mulheres a manterem relação sexual por períodos mais longos, com um maior risco de lesões vaginais ou orais. Tais práticas sexuais estão ligadas ao elevado risco para HIV e outras ISTs (MCKENNA, 2014). Nas mulheres profissionais do sexo que usam crack frequentemente, as lesões labiais e bucais e o sexo oral sem proteção criam uma via de infecção em potencial (WALLACE et al., 1997). Logan e Leukefeld (2000) descobriram que tanto as mulheres que usam crack e trocam sexo por drogas ou dinheiro, quanto aquelas que não se engajam em trabalho/ transações sexuais, fazem sexo sem proteção frequentemente. Embora não atendidas em um capítulo de estudo de caso em separado, ambas as intervenções no capítulo 5.1 e 5.4 também oferecem serviços específicos ao gênero feminino, conforme descrito nestes capítulos.

4.4 Salas de Consumo de Drogas

As salas de consumo de drogas (SCDs) são instalações de tratamento da saúde profissionalmente supervisionadas, onde as PQUD podem usar substâncias em condições mais seguras e mais higiênicas (HEDRICH; DUBOIS-ARBER; KERR, 2010). As três metas primárias das SCDs são: reduzir a morbidade e a mortalidade fornecendo um ambiente seguro e treinando as PQUD em um uso mais seguro; reduzir o uso de drogas em público e melhorar a comodidade pública em áreas de cena de drogas a céu aberto, e; promover o acesso aos serviços sociais, de saúde e de cuidado/tratamento sobre drogas (EMCDDA, 2018c). Em 1986, a primeira SCD legalmente sancionada foi estabelecida na Suíça. Durante a década de 1990, a Alemanha, a Holanda e a Suíça foram os primeiros países no mundo que começaram a oferecer este 18 No caso específico de consumo de crack em Recife-PE, pesquisas da Fiocruz foram capazes de demonstrar os níveis de vulnerabilidade e exposição às violências entre as mulheres usuárias (SANTOS; ALMEIDA; BRITO, 2016). (N. R.)

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serviço. Embora permaneçam controversas, 80 salas de consumo de drogas legalmente sancionadas estão sendo oferecidas atualmente em onze diferentes países (EMCDDA, 2018c). A vasta maioria (78) destas instalações está localizada dentro da Europa. Os únicos dois países fora da Europa que oferecem serviços de SCDs são a Austrália e o Canadá, mas debates sobre a abertura de uma SCD estão acontecendo agora em muitos mais países. Estas discussões podem se estender (e com frequência o fazem) por um tempo muito longo. Por exemplo, na Dinamarca, a primeira SCD foi aberta em 2012, após mais de 20 anos de debate. Os ativistas locais de Copenhagen, que estavam operando uma SCD não oficial, lutaram por mais de duas décadas antes que um novo governo finalmente adaptasse a política, permitindo o estabelecimento legal de uma SCD em seu país (HOUBORG; FRANK, 2014). Tanto Portugal quanto a Irlanda estão planejando abrir SCDs no futuro próximo, e na Bélgica um estudo de exequibilidade de SCD foi apresentado no início de 2018 (EMCDDA, 2018c). Com frequência, a oposição pública se concentra em torno da convicção de que as SCDs podem atrair cenas de drogas a céu aberto e perturbação da ordem pública. Além disso, reconhecer o uso disseminado de drogas é normalmente considerado politicamente arriscado (SCHÄFFER; STÖVER, 2014). No entanto, uma recente revisão geral da literatura apresenta evidências de que as SCDs, na realidade, não levam a aumentos no uso de substâncias ou prática de crimes (BELACKOVA; SALMON, 2017). Uma sala de consumo de drogas típica proporciona aos seus usuários: equipamentos de injeção estéreis; serviços de aconselhamento antes, durante e depois do consumo de droga; tratamento de emergência na ocorrência de overdose; cuidados médicos primários e encaminhamento ao serviço social e de saúde apropriado e serviços de tratamento de dependência (EMCDDA, 2017c). Em dois inventários globais de SCDs, em 2014 e 2017, cerca de 90% das SCDs confirmaram oferecer encaminhamentos para instalações de cuidado/tratamento, provisão de agulhas e outras parafernálias e facilidades básicas, tais como café e chá (BELACKOVA et al., 2018; WOODS, 2014). Existem três diferentes formas de salas de consumo de drogas, que são distinguidas da


seguinte forma: integrada, especializada e móvel. As instalações integradas fazem parte de uma rede de serviços interligada e mais ampla e são o tipo mais comum, as SCDs especializadas somente oferecem serviços diretamente relacionados ao consumo de droga supervisionado, e as SCDs móveis oferecem serviços limitados, mas geograficamente flexíveis (SCHÄFFER; STÖVER, 2014; EMCDDA, 2018c). Embora as SCDs, em sua maioria, visem as PUDI, elas focam cada vez mais nas pessoas que fumam ou cheiram suas drogas (EMCDDA, 2017c). Em um inventário de 2017 entre 43 SCDs, 41 instalações ofereciam espaços para injeção segura, 31 (também) ofereciam espaços para fumar e 22 SCDs (também) facilitavam espaços para cheirar. 34 destas SCDs possibilitaram pelo menos dois meios diferentes de administração de droga (injetar, cheirar ou fumar), ou em espaços separados ou na mesma sala (BELACKOVA et al., 2018). Neste mesmo inventário, os estimulantes – incluindo as (meta) anfetaminas, crack, cocaína, e catinonas – parecem ser as substâncias mais comumente usadas, independentemente da rota de administração. Quase tão comum é o uso de heroína, seguida por uma combinação de opiáceos e estimulantes (speedballing). As substâncias menos populares entre as pessoas que visitam as SCDs foram outros opioides, produtos farmacêuticos e outras drogas (BELACKOVA et al., 2018). As evidências apoiando as SCDs para as PUDI estão bem-estabelecidas, em grande parte graças aos estudos científicos que acompanharam a abertura e o desenvolvimento das SCDs em Vancouver (Canadá) e em Sidney (Austrália) (EMCDDA, 2017c). Existem evidências de que as SCDs levam a reduções nos comportamentos de risco relacionados às doenças infecciosas, fatalidades por overdose, desordem pública, bem como a um aumento da adoção dos serviços de tratamento (STRATHDEE; NAVARRO, 2010). Existe menos evidências concretas sobre as SCDs para as pessoas que fumam drogas, embora diversos estudos tenham demonstrado que as salas para fumar supervisionadas são capazes de reduzir os danos e o comportamento de risco em usuários que fumam suas drogas (JOZAGHI; LAMPKIN; ANDRESEN, 2016; MCNEIL et al., 2015; DEBECK et al., 2011; COLLINS et al., 2005). Os danos, tais como a disseminação de doenças infecciosas, problemas de saúde mental e a exacerbação de

problemas sociais, podem ser reduzidos através de intervenções oferecidas nas SCDs, tais como a prevenção de compartilhamento de cachimbos, a distribuição de kits para fumar com maior segurança, a educação sobre o uso mais seguro de drogas, o acesso aos serviços de saúde e sociais, e o estímulo ao autocontrole. Muitos dos benefícios das instalações de injeção supervisionada também se aplicam às instalações para fumantes: elas fornecem um ambiente seguro e sem pressa; os usuários têm acesso a equipamentos estéreis; idealmente têm acesso a outros serviços de saúde e sociais (inclusive apoio psicossocial, serviços médicos, tratamento de dependência, etc.) (VOON et al., 2016). As SCDs têm um forte potencial para alcançar as PQUD de difícil acesso (EMCDDA, 2018c). A SCD pode conectá-las aos serviços de saúde e sociais, tais como assistência médica, tratamento de drogas, encaminhamentos aos serviços jurídicos, programas de habitação. De certo modo, as SCDs também lidam com os danos associados ao ambiente de risco mais amplo (MCNEIL et al., 2015; DEBECK et al., 2011; SHANNON et al., 2006). Uma revisão geral da literatura recente sobre as SCDs resume seis benefícios, baseados em evidências das SCDs: alcançar as PQUD de alto risco, prevenção de overdoses, reforçar as práticas de uso mais seguro de drogas, diminuição do uso público de drogas, facilitar o acesso aos serviços de tratamento e sociais, e a prevenção da transmissão de doenças infecciosas (BELACKOVA; SALMON, 2017). Além disso, particularmente as SCDs que fornecem espaços tanto para injeção quanto inalação provavelmente facilitam uma transição da injeção para formas menos arriscadas de uso, como fumar. Isto pode ter um impacto na qualidade de vida e melhorar a saúde das PQUD (VOON et al., 2016; MCNEIL et al., 2015; STRATHDEE; NAVARRO, 2010). No capítulo 5.7 descrevemos três programas holandeses oferecendo Salas de Consumo de Drogas (SCDs).

4.5 Autorregulação

A teoria de autocontrole foi desenvolvida por Gottfredson e Hirschi em 1990 e, desde então, tornou-se uma teoria importante para explicar não só o comportamento criminal, mas

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também alguns outros comportamentos, tais como jogos de azar e uso de substâncias. Autocontrole, ou autorregulação, é definido como o processo psicológico através do qual as pessoas controlam sua resposta aos pensamentos, sentimentos, impulsos, e necessidades (BAUMEISTER; VOHS; TICE, 2007). As pessoas com o autocontrole prejudicado são geralmente mais impulsivas, mais prováveis de correrem riscos e são menos capazes de resistir à gratificação imediata oferecida pelos efeitos fáceis, imediatos e prazerosos das substâncias. Isto se dá, em parte, pelo fato de elas serem menos capazes de considerar as consequências de longo prazo de suas ações (FORD; BLUMENSTEIN, 2013). O autocontrole prejudicado torna mais difícil, em primeiro lugar, resistir ao consumo de uma substância, ou consumir uma quantidade regulada ou predefinida. Existem muitos estudos sobre a impulsividade e o uso de substâncias, embora a maioria das pesquisa tenha sido feita em animais e adolescentes. Estes estudos geralmente mostram que a impulsividade está relacionada ao desenvolvimento de padrões de uso problemático de substância, tais como o uso compulsivo ou consumo imoderado, ou dependência (FORD; BLUMENSTEIN, 2013). Além disso, as pontuações mais altas nas medidas de autorregulação estão associadas com menos problemas no uso de álcool (CHAVARRIA et al., 2012). O uso de substâncias também pode disparar ações impulsivas, tornando ainda mais difícil para as PQUE obterem controle sobre seu uso. A autorregulação foi comparada a um músculo, no sentido que usá-la com frequência demasiada pode levar a uma diminuição do desempenho no final do dia, enquanto que, ao longo do tempo, praticar a autorregulação torna as pessoas melhor equipadas para assim proceder (BAUMEISTER et al., 2006). Demonstrou-se que a autorregulação desempenha um papel em se tornar e permanecer abstêmio (FERRARI; STEVENS; JASON, 2009). O modelo da dependência como doença (cerebral), que afirma que a dependência é uma doença crônica e recorrente, resultante dos efeitos prolongados das drogas no cérebro, tem, de um modo geral, desconsiderado o papel do ambiente (de risco) (GRUND, 2017; ZUFFA; RONCONI, 2015). De acordo com este modelo, as alterações na estrutura do cérebro eventualmente (e alguns argumentariam, inevitavelmente) levam à perda de controle e à dependência, caracterizadas pela busca e uso

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compulsivo de drogas, apesar das consequências danosas (VOLKOW, 2014; VOLKOW; LI, 2004; LESHNER, 1997). A teoria da doença é refutada tanto pela ampla variação nos padrões de uso de drogas, quanto pelos níveis variáveis de sucesso que as pessoas têm em controlar ou regular seu uso de drogas (GRUND, 2017). Isto vale para as pessoas que usam opioides, mas também é verdade para as pessoas que usam crack, cocaína, anfetamina e metanfetamina (HART, 2013; DECORTE, 2001; COHEN; SAS, 1993; GRUND, 1993; ZINBERG, 1984). O apoio à autorregulação e às estratégias dos usuários para obter ou manter controle sobre seu uso de drogas se articula com uma abordagem de redução de danos que visa regular o uso de drogas e empoderar os usuários (FDTI, 2014). Também se articula com uma abordagem bottom up (de baixo para cima) de redução de danos, que enfatiza a capacidade do usuário de controlar seu uso e reduzir seus riscos (ZUFFA; RONCONI, 2015). A abordagem de autorregulação deve focar no empoderamento das habilidades e competências dos usuários, dando suporte às estruturas comunicativas entre as PQUD, e promovendo culturas de uso mais seguro. Alguns dos métodos que as PQUD usam para controlar seu uso incluem: estabelecer regras para seu uso (ex., quantidade ou frequência de uso); o estado mental (ex., somente usar quando estiver se sentindo bem); o contexto (ex., usar somente com os amigos, não quando estiver no trabalho) (FDTI, 2014). Diversas estratégias estão sendo empregadas pelas próprias PQUD, mesmo quando elas não estão necessariamente convencidas dos riscos, tais como: sempre carregar seus próprios materiais; se recusar a compartilhar; avaliar os riscos visualmente (ex., se alguém tem lesões visíveis); ou perguntar às pessoas se elas têm HIV ou HCV (POLIQUIN et al., 2017; BOYD; TI et al., 2012; JOHNSON; MOFFAT, 2008). Disso se conclui que um modelo de autorregulação deve visar o desenvolvimento de mecanismos de controle e, com o envolvimento próximo dos pares, ajudar a circulação deles entre as PQUD (ZUFFA, 2014). Finalmente, tal modelo deve também facilitar as condições ambientais ideais, para ajudar as PQUE a maximizar sua habilidade em obter controle, minimizando as influências negativas. As intervenções baseadas em atenção plena (MBIs – Mindfulness Based Interventions) incluem uma gama de diferentes abordagens, tais como a


redução de estresse baseada em atenção plena e a terapia cognitiva baseada em atenção plena. Todas as MBIs são caracterizadas pelo desenvolvimento sistemático da capacidade de prestar atenção ao momento presente, com uma atitude não julgadora e de aceitação (CHIESA; SERRETTI, 2014). As MBIs têm se tornado cada vez mais populares para uma miríade de distúrbios e vários estudos indicam que elas podem ser eficazes na redução do uso de substâncias, como cocaína e metanfetamina, entre outras (ZGIERSKA et al., 2009). Em uma revisão sistemática recente, Chiesa e Serretti (CHIESA; SERRETTI, 2014) resumem como as MBIs podem ajudar no uso problemático de substâncias: aprendendo a não julgar e aceitar mais os eventos angustiantes, e mudando seus padrões de pensamento (a atitude em relação a eles), as PQUD podem aprender a lidar mais efetivamente com as situações emocionais desagradáveis, reduzindo a necessidade de usar uma substância para suprimir as emoções indesejáveis (CHIESA; SERRETTI, 2014). As MBIs também podem auxiliar no enfrentamento (ao invés da fuga) de qualquer tipo de experiência, por mais desagradável que seja, e ajudar a se tornar mais ciente dos processos que podem levar ao uso, observando estes pensamentos e sentimentos à distância (BREWER; ELWAFI; DAVIS, 2013). Finalmente, existem evidências de que as MBIs podem ser eficazes no tratamento de diversos distúrbios de saúde mental – incluindo o estresse, a ansiedade e a depressão. Estas estão todas intimamente relacionadas ao uso problemático de substâncias e à recaída. Isto também sugere que as MBIs poderiam ser especialmente úteis para as PQUD com comorbidades relacionadas a outros problemas de saúde mental (ZGIERSKA et al., 2009). Na segunda parte deste relatório, descrevemos um programa da África do Sul que trabalha com grupos de contemplação, estimulando a autorregulação, no capítulo 5.3.

4.6 Moradia Primeiro

O uso problemático de estimulantes tem sido associado com a pobreza, o desemprego, o encarceramento, o desabrigo e a habitação instável (GRUND et al., 2010). Desta forma, as estratégias para lidar com estas questões têm a capacidade de abordar vários dos danos do uso problemático de estimulantes

(WHO, 2011). O desabrigo é abordado através das intervenções de moradia primeiro. Esse paradigma busca mover as pessoas para dentro de uma habitação permanente o mais rápido possível. Uma habitação permanente e estável é enfatizada como uma estratégia primária para cuidar das pessoas em situação de rua, pessoas com problemas de saúde mental, e pessoas que usam drogas. A ideia da habitação em primeiro lugar contrasta com a ideia do tratamento como sendo o primeiro passo, que exige que as pessoas passem por uma série de estágios, tais como se tornar abstêmio, antes que elas estejam prontas para habitação (BUSCHGEERTSEMA, 2013). Os oito princípios da moradia primeiro são: “habitação como um direito humano básico; respeito, calor e compaixão para todos os participantes; um compromisso para trabalhar com os participantes pelo tempo que precisarem; habitação em lugares espalhados, em apartamentos independentes; a separação de habitação e serviços; opção e autodeterminação do consumidor; uma orientação de recuperação; e a redução de danos” (BUSCH-GEERTSEMA, 2013). Basicamente, um fornecimento adequado de habitação estável é, por si só, uma intervenção de redução de danos (PAULY et al., 2013). Viver em uma habitação instável19 afeta o quão provavelmente as pessoas serão expostas ao uso de drogas, usarão drogas elas mesmas, quão prontamente elas acessam e permanecem em tratamento, e quão provavelmente elas serão encarceradas por uso de drogas (ZERGER, 2012). Uma habitação instável também tem sido associada com um maior e altamente arriscado uso de drogas e comportamentos sexuais de risco, (CHENG et al., 2014, 2015), assim como com um uso recente de drogas por injeção, incluindo a injeção de cocaína e metanfetamina, e níveis altos de fumo de crack (SHANNON et al., 2006). Viver nas ruas tem sido associado com uma probabilidade significativamente maior de compartilhar instrumentos para o uso de drogas, como cachimbos para fumar crack (BOYD et al., 2017). As pessoas em situação de rua são forçadas a usar suas drogas em público, e fumar 19 Uma habitação instável pode estar relacionada a ter dificuldades em pagar o aluguel, ameaças de despejo, mudanças frequentes, aglomeração, ou ficar com a família ou amigos. Nos estudos aqui mencionados, a habitação instável foi amplamente definida como viver de favor com amigos ou a família, em abrigos, ou nas ruas, enquanto desabrigo foi amplamente definido como viver em abrigos ou nas ruas. (N. A.)

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crack em público – em contraste com o uso privado, em casa – está ligado a um maior risco de overdose ou transmissão de HIV, HCV e outras doenças infecciosas (VOON et al., 2016). Além disso, as pessoas que usam drogas em público estão em maior risco de envolvimento com o sistema judicial penal (VOON et al., 2016). Uma habitação segura, acessível e de baixo limiar social tem provado ser crucial na redução dos danos relacionados ao uso de substâncias e na melhora da qualidade de vida e inclusão social (BOYD et al., 2017). Um estudo de 2011 demonstrou que os participantes de moradia primeiro foram significativamente menos propensos a abandonar os serviços, em comparação com os participantes de tratamento primeiro. Eles também eram muito menos propensos a usar (problematicamente) substâncias, muito embora na moradia primeiro eles não sejam obrigados a parar de usar drogas, como são na abordagem do tratamento primeiro (PADGETT et al., 2011). Outro estudo comparou os efeitos do tratamento nas pessoas que receberam uma habitação, sob a condição de ficarem em tratamento e permanecerem abstêmias, aos efeitos do tratamento nas pessoas que apenas receberam moradia primeiro (TSEMBERIS; GULCUR; NAKAE, 2004). Os participantes de moradia primeiro vivenciaram níveis expressivamente mais elevados de autonomia no programa e tiveram maior probabilidade de manter sua casa após um ano de tratamento. Além disso, muito embora o primeiro grupo tenha tido níveis mais elevados de participação no tratamento (já que isto era obrigatório) o estudo não encontrou uma diferença significativa no uso de droga entre os dois grupos. Programas com base nos princípios da moradia primeiro têm mostrado resultados bem sucedidos em muitas partes do mundo. Um estudo avaliando os projetos de moradia primeiro em dez cidades europeias averiguou que a maioria das pessoas, mesmo aquelas que usam drogas excessivamente, reteve sua casa no decorrer de um longo período de tempo (três anos ou mais). Muitas pessoas que usaram substâncias problematicamente disseram que diminuíram seu uso graças à habitação. Os participantes relataram uma maior qualidade de vida, redução de estresse e um aumento em segurança pessoal. Além disso, a habitação forneceu a base para a estabilidade, as rotinas diárias, a

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privacidade e uma vida menos estigmatizada (BUSCH-GEERTSEMA, 2013). Ter uma habitação estável também tem ajudado a reduzir o consumo de drogas no Canadá. Um estudo averiguou que 74% dos participantes dos programas de moradia primeiro disseram que seu uso tinha diminuído desde que se mudaram para dentro de uma habitação; 33% tinha parado completamente de usar de drogas, e 41% tinham reduzido seu uso (TORONTO SHELTER, 2007). No Brasil, o Braços Abertos, um programa oferecendo habitação às PQUD ajudou 65% dos participantes a diminuir seu consumo de crack (RUI; FIORE; TÓFOLI, 2016). No programa apresentado neste relatório como um estudo de caso (Programa Atitude), 38% dos participantes disseram que tinham abandonado o uso de crack após participar do programa (RATTON; WEST, 2016). Outros mencionaram que o programa os ajudou a ter um melhor controle sobre seu uso (OSF, 2017)20. O paradigma de moradia primeiro também foi avaliado positivamente na Holanda, ajudando os jovens com um uso problemático de drogas e com problemas de comportamento psicossocial a reduzirem seu consumo de drogas (KONIJN; DE VOS; LUCHSINGER, 2015). Os programas de moradia primeiro ajudaram os participantes a desenvolver rotinas saudáveis, comer de forma mais saudável e estabelecer padrões de sono mais estáveis, tanto na Holanda (KONIJN et al., 2015) quanto no Brasil (RUI et al., 2016). Finalmente, os estudos têm mostrado que ter uma casa estável pode encorajar as pessoas a escolherem rotas menos prejudiciais de administração de drogas. Em um estudo entre jovens que usam metanfetamina injetável no Canadá, a habitação foi avaliada como um fator importante para facilitar a cessação do uso injetável (BOYD et al., 2017). De modo semelhante, estudos nos EUA e na Índia avaliaram que uma situação de habitação estável 20 Em estudo recentemente realizado no Programa Atitude, pela equipe de monitoramento do próprio Programa e pela Secretaria de Planejamento e Gestão do Governo de Pernambuco, foi capaz de apontar variáveis sociais importantes que influenciam na mudança de padrão de uso de crack. Por exemplo, de um modo geral, permanecer no Programa foi uma variável importante para aumentar taxas de abstinência. No caso de abandono precoce, a permanência de 39 ou mais dias também aumentou as taxas de abstinência e de baixo uso de drogas (uso entre 1 a 2 vezes por semana). Características como o gênero, vínculo com o trabalho e vínculo familiar também foram capazes de influenciar a redução do uso de drogas (SANTOS et al., 2019a). (N. R.)


está associada com uma diminuição de injeção de drogas (SHAH et al., 2006; STEENSMA et al., 2005; MEHTA et al., 2011). No capítulo 5.1 descrevemos um programa brasileiro trabalhando com a perspectiva de moradia primeiro.

4.7 Substituição

A substituição é definida como a escolha consciente de substituir o uso de uma droga por outra, com base na “segurança percebida, nível de dependência em potencial, eficácia em aliviar os sintomas, acesso e nível de aceitação” (LAU et al., 2015). Ao longo dos anos, tanto os pesquisadores como as PQUE têm procurado por substâncias que possam apoiar a terapia de manutenção, reduzir o uso de estimulantes ou reduzir os efeitos adversos associados ao seu uso, semelhante ao papel da metadona e da buprenorfina para as pessoas que usam heroína. Bem parecido com a substituição para opioides, a implementação efetiva de programas de substituição para estimulantes pode ser contestada por diversas estruturas jurídicas, as quais às vezes permitem a substituição de substâncias e às vezes não.

4.7.1 Substitutos baseados em plantas

As pessoas têm relatado usar várias plantas diferentes para combater uma série de sintomas adversos do uso de estimulantes. As folhas do arbusto Khat (Catha edulis), que são tradicionalmente mastigadas pelos homens no Corno de África e no Iêmen, é um exemplo. Seu ingrediente de princípio psicoativo é o alcaloide catinona, quimicamente semelhante à anfetamina e conhecido por produzir efeitos parecidos com a anfetamina (KALIX, 1981). A catinona é a base química da classe da catinonas, a qual inclui a mefedrona e a metcatinona. Alguns a veem como um potencial substituto herbal para os estimulantes como a cocaína e a anfetamina, devido aos seus efeitos mais amenos (KLEIN; METAAL; JELSMA, 2012). A planta coca (Erythroxylum coca sp) é nativa da cordilheira dos Andes, na América do Sul; o alcaloide cocaína é extraído de suas folhas. A folha de coca carrega uma conotação negativa devido à sua associação com o comércio ilícito de cocaína. Apesar disso, os médicos têm feito experiências

com seu uso, como uma alternativa mais amena para as pessoas que usam cocaína. Esta prática de substituição foi documentada no Peru, na Bolívia, e no Brasil, mas ainda tem resultados inconclusivos (HENMAN; METAAL, 2009, 2014; HARRIS, 2011). Salvinorin A é o composto de princípio psicoativo encontrado na planta alucinógena Salvia divinorum, nativa da cordilheira de Oaxaca, no México. Embora sua aplicação prática permaneça limitada e em grande parte desconhecida, uma revisão de estudos pré-clínicos e clínicos entre 1999 e 2014 sugere que ela pode ter um potencial terapêutico para o tratamento de “distúrbios relacionados a psicoestimulantes” (SANTOS et al., 2014). Algumas PQUE optam por usar estimulantes baseados em plantas que sejam legais em seu país (tais como efedra, betel, kava, kratom, e outros) em detrimento dos estimulantes que não são. Isto também pode ser considerado uma prática de redução de danos, uma vez que tenta evitar os riscos sociais e/ou jurídicos associados com o consumo de substâncias controladas (WIECKO; THOMPSON; PARHAM, 2017). Um número crescente de estudos sugere que a maconha – em alguns casos fumada junto com a cocaína – pode ser eficaz em reduzir o desejo por, bem como substituir (parcialmente) o uso da cocaína (ESCOBAR, 2018; SOCÍAS et al., 2017; LUCAS et al., 2016, 2013; GONÇALVES; NAPPO, 2015; LAU et al., 2015; REIMAN, 2009; RIBEIRO; SANCHEZ; NAPPO, 2010; LABIGALINI; RODRIGUES; DA SILVEIRA, 1999). As experiências dos usuários demonstram que a maconha pode ajudar a minimizar os diversos efeitos colaterais do consumo de crack/ cocaína, em particular danos psicológicos tais como ansiedade, agressão e paranoia (FISCHER, et al., 2015b). A maconha também alegadamente alivia o desconforto durante os períodos de abstinência. Um estudo na Jamaica descreve as PQUD do gênero feminino que frequentemente ou regularmente fumam cigarros de maconha ou spliffs, ou aquelas que misturam a maconha com o crack, nos chamados seasoned spliffs21. O estudo relata os benefícios da maconha em prevenir a paranoia e a perda de apetite. A maconha também aparenta 21 No contexto pernambucano, a mistura de maconha com crack é chamada mesclado, e crack com tabaco, capeta. (N. R.)

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suavizar os efeitos do crack-cocaína, reduz os desejos e a abstinência, e diminui o engajamento em comportamentos de risco, ajudando a regular o uso de crack (DREHER, 2002). De modo semelhante, no Brasil, entre as pessoas que usam crack, o consumo de maconha é considerado uma forma de proteção contra os aspectos negativos do crack; ela é usada, por exemplo, como uma ajuda para dormir e superar os distúrbios alimentares, consequentemente aumentando a qualidade de vida das PQUE (GONÇALVES; NAPPO, 2015; ANDRADE et al., 2011; RIBEIRO et al., 2010). Um estudo de 2018 no Brasil acompanhou 62 pessoas que usam cocaína freebase durante quatro semanas, examinando o impacto da maconha sobre o desejo para crack. Os autores averiguaram que o uso da maconha foi fortemente correlacionado com as diminuições na ansiedade e também verificaram que o maior uso de maconha estava relacionado a experimentar menor desejo pelo crack (ESCOBAR, 2018). Em 2017, um levantamento longitudinal foi conduzido entre as PQUD em Vancouver, Canadá, demonstrando a eficácia do uso intencional da maconha na redução da frequência do consumo de crack (SOCÍAS et al., 2017). Dois outros levantamentos entre os pacientes de maconha medicinal canadenses e americanos relatam que muitos pacientes especificamente optam pela maconha como um substituto mais seguro para o álcool, drogas de prescrição, e drogas ilícitas como cocaína (LUCAS et al., 2016, 2013; REIMAN, 2009). Alguns estudos também têm demonstrado os efeitos da substituição de maconha para outros estimulantes. Por exemplo, os usuários de mefedrona têm relatado consumir maconha para o comedown22 (queda no humor) da mefedrona, tipicamente percebida como desconfortável (VAN HOUT; BRENNAN, 2011). Também é sugerido que compostos de canabinoides específicos, como o CBD, são responsáveis pelo potencial terapêutico da maconha na redução dos aspectos negativos do uso de estimulantes, já que o CBD e os compostos relacionados são conhecidos por terem propriedades ansiolíticas, antipsicóticas, e anticonvulsivas que podem, por sua vez, ajudar as PQUE a dormir e comer melhor e reduzir o comportamento impulsivo e potencialmente 22 Comedown é uma fase de abstinência de drogas que envolve a queda do humor e da energia que ocorre quando uma droga psicoativa, normalmente um estimulante, desaparece do sangue. (N. R.)

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arriscado (FISCHER et al., 2015b; PEDRAZZI et al., 2015). No entanto, apesar de existirem resultados positivos de alguns estudos de substituição de maconha, há impactos potencialmente negativos do uso da maconha, uma vez que ela fornece seus próprios riscos de saúde (mental). Por exemplo, em um estudo, diversos entrevistados mencionam vivenciar questões de saúde física ou mental após o uso de maconha, muito embora vários dos entrevistados prefiram a maconha ao álcool e outras drogas ilícitas, por perceberem que ela tem menores efeitos colaterais (LAU et al., 2015). Outro estudo mostrou que a maconha pode induzir – ao invés de reduzir – o desejo por cocaína em pessoas que usam problematicamente tanto cocaína quanto maconha (FOX; TUIT; SINHA, 2012). Além disso, a maconha permanece sendo uma substância ilícita na vasta maioria dos países, o que complica a formalização da substituição da maconha, gerando implicações negativas em potencial e consequências jurídicas para as PQUD, os profissionais e os serviços.

4.7.2 Agonistas e antagonistas farmacêuticos

Ao longo dos anos, houve numerosas tentativas de descobrir um agente farmacológico que possa auxiliar (ou tratar) as pessoas com dependência de estimulantes. A maioria, se não toda, a pesquisa focou em dependência de anfetamina, metanfetamina e cocaína. Corpus de pesquisa separados têm olhados os antagonistas por um lado e os agonistas pelo outro. Com os antagonistas, a ideia é descobrir uma droga que bloqueie os efeitos desejados dos estimulantes, a qual, teoricamente, levaria as PQUE a reduzir ou largar seu uso. Até a presente data, nenhuma substância forneceu resultados clinicamente significantes e algumas substâncias inclusive provaram ser contraproducentes (STOOPS; RUSH, 2013). A ideia por trás da terapia agonista (supervisionada) é substituir a droga ilícita com uma droga farmacologicamente similar que tenha efeitos comparáveis, mas que possa ser usada com maior segurança. Idealmente, a agonista tem um efeito mais prolongado, menor prejuízo/intoxicação e um potencial mais baixo de dependência (NUIJTEN, 2017; CASTELLS et al., 2016; SHEARER, 2008). Esta


abordagem pode ser aplicada tanto nas modalidades de tratamento que visam uma completa abstinência, quanto para fins de redução de danos, permitindo que as PQUE obtenham maior controle sobre o seu uso, reduzindo os danos relacionados ao uso e melhorando a qualidade de vida. Esta abordagem tem se provado eficaz para os usuários de opioides (NIELSEN et al., 2016) e tabaco (STEAD et al., 2012). Um grande número de experimentos clínicos avaliaram a segurança e eficácia de diversas intervenções farmacológicas – incluindo diversas classes de antipsicóticos, antidepressivos e muitas outras – para ajudar a tratar a dependência de anfetamina, metanfetamina, crack e cocaína, com resultados muito limitados. Uma meta-análise Cochrane23 sobre a evidência do tratamento de substituição para dependência de cocaína usando outras drogas estimulantes (ex., (lis)dexanfetamina, metilfenidato, modafinil, metanfetamina, and anfetamina) demonstrou muito pouco impacto sobre a retenção do tratamento quando comparado ao placebo, e alguma evidência de que as pessoas que usam cocaína permaneceram abstêmias por mais tempo quando comparado ao placebo. A dexanfetamina foi considerada um agonista potencialmente promissor para o tratamento da dependência de cocaína, especialmente para os poliusuários de heroína e cocaína (CASTELLS et al., 2016). Nenhuma evidência foi encontrada para o uso clínico de agonistas receptores diretos de dopamina (agonistas DA) que não possuem quaisquer propriedades psicoestimulantes (tais como a amantadina, a bromocriptina, a L-dopa, e o pramipexol) para as pessoas que usam cocaína (MINOZZI et al., 2015). Os agonistas indiretos de dopamina que possuem efeitos semelhantes aos da cocaína (ex., bupropiona, dexanfetamina), por outro lado, parecem relativamente promissores como substâncias substitutas para a dependência de cocaína (CASTELLS et al., 2016).

23 Uma revisão Cochrane é uma revisão sistemática da pesquisa em saúde e política de saúde que é publicada na Biblioteca Cochrane de Revisões Sistemáticas. A Biblioteca Cochrane é uma coleção de bancos de dados que contêm diferentes tipos de evidências independentes de alta qualidade para informar a tomada de decisões na área da saúde. Quando resultados dos estudos individuais são combinados para produzir uma estatística geral, isso geralmente é chamado de meta-análise. (N. R.)

Outra metarevisão revisou a literatura disponível para o tratamento tanto de anfetamina quanto de cocaína, comparando os liberadores de dopamina (DRAs, ex., anfetamina, metanfetamina) com os inibidores de recaptação de dopamina (DRIs, ex., metilfenidato e bupropiona). A revisão mostrou que os DRIs são mais eficazes que os DRAs no tratamento do uso de anfetamina, enquanto os DRAs parecem mais eficazes na redução do uso de cocaína. Especificamente, o metilfenidato reduziu substancialmente o uso de anfetamina, mas não o de cocaína, enquanto as dex-anfetaminas reduziram substancialmente o uso da cocaína. Curiosamente, não houve evidência da eficácia do uso de dexanfetamina para reduzir o uso da anfetamina (STOOPS; RUSH, 2013). Finalmente, existe alguma evidência, a partir de dois experimentos recentes, de que modafinil pode ser eficaz como um substituto para a cocaína, embora os experimentos anteriores tenham, às vezes, falhado em mostrar um impacto positivo (MORGAN et al., 2016; KAMPMAN et al., 2015). Os mesmos resultados inconsistentes são relatados a partir de estudos observando o uso de metilfenidato para o uso de cocaína (NUIJTEN, 2017). Parece provável que a eficácia da maioria dos agentes agonistas para o tratamento de dependência de estimulantes dependa do estimulante em particular que eles buscam substituir, bem como da dosagem, e da subpopulação específica de PQUE (se elas são usuários de uma única droga ou fazem poliuso, por exemplo) (NUIJTEN, 2017).

4.8 Abordagem social e intervenções baseadas em pares

A abordagem social “é um método de redução de danos direcionado ao cliente e baseado na comunidade que faz contato e fornece serviços sociais e de saúde às pessoas que usam drogas em seus ambientes ou territórios naturais” (KORF et al., 1999). A busca ativa na abordagem social ajuda a alcançar as pessoas que não procuram por conta própria os serviços de redução de danos. É um ponto de entrada nos serviços e para dentro da comunidade (INTERNATIONAL HIV/AIDS ALLIANCE, 2013). Muitas PQUE não buscam ajuda dos serviços de saúde pública por elas mesmas. Por

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isso o trabalho de abordagem social é fortemente aconselhado para aumentar o acesso ao cuidado para esta população (SOUZA; CARVALHO, 2014; HORTA et al., 2011). Aqueles que trabalham com abordagem social podem introduzir e conectar as PQUE a uma rede de saúde e instalações de bem-estar. Este é um papel importante do trabalho dos redutores de danos para reduzir os danos para os usuários de estimulantes (SOUZA; CARVALHO, 2014; BUNGAY et al., 2010b). Eles podem “fazer a ponte” entre duas culturas diferentes, operando como um tipo de tradução entre a linguagem e as necessidades dos usuários e a linguagem e os critérios dos profissionais. Os redutores de danos podem até mesmo acompanhar os usuários aos serviços para “fazer a ponte” com maior eficácia (SOUZA; CARVALHO, 2014). Às vezes, o trabalho de abordagem social é realizado por equipes multiprofissionais nas unidades móveis. As equipes multiprofissionais podem ser formadas por pares, enfermeiras, psicólogos, trabalhadores sociais e educadores físicos. As unidades móveis são tipicamente vans que contêm equipamentos básicos de enfermagem e tratamento, a partir das quais a equipe pode prestar serviços de redução de danos, tais como a distribuição de parafernália, teste rápido de HIV, aconselhamento, tratamento primário para lesões, etc. Estes serviços também podem promover o acesso ao tratamento de saúde e encorajar a formação de vínculo entre as PQUE e os prestadores de serviço (ENGSTROM; TEIXEIRA, 2016; MACEDO, MACHADO 2016). A abordagem social promovida pelos pares efetivamente engaja as PQUE (JOZAGHI; LAMPKIN; ANDRESEN, 2016) e outras populações marginalizadas e difíceis de alcançar (JOZAGHI; REID, 2014; CAMPBELL; MZAIDUME, 2001). A evidência mostra que a educação por pares – em um ambiente solidário, não estigmatizante e não incriminador – é o meio mais eficaz de compartilhar novos conhecimentos e habilidades entre as PQUD. É mais fácil confiar nos pares porque eles compartilham as normas, experiências, linguagem e background. Isto facilita a transmissão de uma educação e informações honestas de redução de danos (KORF et al., 1999; LATKIN, 1998). O trabalho de campo feito por pares é particularmente efetiva para a educação do uso mais seguro de drogas e a distribuição de parafernália (JOZAGHI, 2014).

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Um estudo americano, por exemplo, mostrou resultados positivos para as intervenções baseadas em pares para as pessoas que usavam crack e recentemente deixaram os serviços de tratamento. O trabalho de busca ativa ajudou a reduzir a frequência do uso de crack e do comportamento sexual de risco (COTTLER et al., 1998). Outro estudo mostrou que os pares foram capazes de reduzir o risco de contrair uma doença infecciosa tal como HIV, HCV, e TB entre as pessoas que fumam crack e/ou metanfetamina (JOZAGHI et al., 2016). Os projetos de busca ativa baseados em pares estimulam a inclusão social, encorajam o compartilhamento do conhecimento entre as PQUE e fortalecem as estratégias de prevenção. Por exemplo, eles podem aumentar a aceitação das PQUE de projetos como a distribuição de kits para fumar crack com maior segurança (DOMANICO; MALTA, 2012). Além disso, os pares são bons em identificar novas tendências e responder às mesmas rápida e efetivamente (POLIQUIN et al., 2017). O oferecimento do trabalho de busca ativa baseada em pares é um acréscimo atraente aos programas de saúde pública existentes, porque “ele estende o alcance temporal, espacial e social dos programas” (STRIKE; KOLLA, 2013, p.10). Os programas de pares podem auxiliar as PQUD em épocas e localizações não atendidas pelos programas existentes e estendem o alcance da redução de danos para aquelas pessoas que estão relutantes em participar de outros programas (STRIKE et al., 2002). Além disso, o emprego formal de pares ajuda a empoderar as PQUD individuais e suas comunidades, assim como a reduzir seus próprios danos relacionados às drogas. O aumento da autoconfiança e da autoeficácia ajuda as PQUD a advogar pelos direitos humanos e estimula a mudança sustentável na comunidade de uso de drogas (FDTI, 2014). O trabalho de campo também pode apoiar as PQUE para que evitem começar a injetar ou encorajar as pessoas que injetam a passar para rotas de administração não injetáveis. Isto pode ser feito através de informações sobre os riscos de injetar ou sobre os métodos mais seguros de usar (UNODC, 2017; PINKHAM; STONE, 2015). Em um estudo, as pessoas que injetavam metanfetamina frequentemente mencionaram que informações sobre redução de danos foram úteis na transição de injetar para fumar a droga (BOYD et al., 2017).


As pessoas que têm tolerância elevada e maior frequência e dose de uso, bem como aquelas que se associam com os injetores ativos e presenciam os estimulantes sendo injetados, têm um risco mais elevado de injetar suas drogas. Educar as pessoas sobre estes riscos é uma medida preventiva eficaz de conscientização (UNODC, n.d.). A distribuição de parafernália, como papel laminado, kits para cheirar com maior segurança ou cápsulas de gel, também é uma estratégia recomendada para prevenir a transição para injetar drogas (UNODC, 2017). Fumar é geralmente considerado uma melhor rota do que a injeção, já que há um menor risco de transmissão de doenças infecciosas como HIV e HCV, de overdose e de infecções bacterianas (DES JARLAIS et al., 2014). Na República Tcheca, a distribuição de cápsulas de gelatinas vazias foi bem sucedida em reverter a injeção de anfetaminas para seu uso oral entre algumas PQUD (PINKHAM; STONE, 2015; MRAVČ ÍK et al., 2011). Esta abordagem simples e de baixo custo tem contribuído para reduzir os riscos de doenças transportadas pelo sangue e de fumar com materiais tóxicos (PINKHAM; STONE, 2015). No entanto, as rotas alternativas podem apresentar seus próprios riscos, já que alguns estudos sugerem que, a longo prazo, o uso oral de drogas pode causar úlceras gástricas (MRAVČ   ÍK et al., 2011) e fumar pode causar sérias doenças no pulmão: vários artigos na medicina têm dado ênfase especial às complicações pulmonares (TERRA FILHO et al., 2004; WOLFF; O’DONNELL, 2004). A OMS defende a entrega de mensagens culturalmente claras e sensíveis para as pessoas que usam ETA, ao realizar trabalho de campo. Estas mensagens devem ser tanto baseadas em evidências quanto relevantes para seu contexto. As mensagens importantes e eficazes são: diminuir a quantidade e a frequência do uso de ETA, beber água, melhorar a dieta, conseguir repouso adequado, empregar estratégias para ajudar a controlar o consumo de drogas, monitorar seus próprios comportamentos e não usar drogas sozinho. Outras mensagens de aconselhamento incluem evitar misturar as ETA com outras drogas lícitas ou ilícitas, evitar a injeção, e usar preservativos (WHO, 2011). Estas recomendações se aplicam às pessoas que também usam outros estimulantes. No capítulo 5.6 descrevemos um programa indonésio que trabalha com uma intervenção de busca ativa.

4.9 Centros de Convivência

Os centros de convivência são um importante serviço de redução de danos de baixa exigência24, que é oferecido no mundo todo. Com frequência, as intervenções de apoio de pares são um componente importante dos centros de convivência (CC) (WILSON, 2015). Embora extremamente variados na estrutura e serviços oferecidos, os centros de convivência tipicamente oferecem apoio social na comunidade, particularmente para os grupos marginalizados, como as profissionais do sexo, as pessoas em situação de rua e as PQUD (HALL; CHESTON, 2002). Os CC também são definidos de acordo com três características comuns: eles são responsivos e flexíveis às necessidades da comunidade; eles respeitam a autonomia dos usuários do serviço em como eles querem viver e as mudanças que eles querem fazer; eles adotam uma abordagem holística considerando todas as necessidades de vida, tais como habitação, alimentação, higiene pessoal e atividades significativas. Na prática, isto significa que os CC oferecem um cenário social informal, respondendo a algumas necessidades básicas (ex., alimento, abrigo do frio, chuveiro e roupas limpas) e oferecem alguns serviços adicionais. Estes serviços podem ser tão básicos quanto oferecer uma oportunidade para contato social em um ambiente seguro, ou oferecer apoio (psicossocial) para melhorar o bem-estar ou trabalhar nas mudanças de vida (PAUL DOWLING CONSULTING, 2007). Os centros de convívio podem fornecer às pessoas em situação de vulnerabilidade – sejam elas PQUD, profissionais do sexo ou pessoas em situação de rua – um ambiente seguro e acolhedor, enquanto as estimulam a fazer uso dos recursos mais amplos da comunidade, ou fazer mudanças em suas vidas (PAUL DOWLING CONSULTING, 2007; HALL; CHESTON, 2002). BEM VINDO

Recomenda-se que os CC estejam sempre localizados próximos à comunidade de PQUD, e que 24 Alta ou baixa exigência refere-se a serviços com critérios de inclusão no tratamento com graus distintos de exigência ampliando a aceitação para pacientes interessados em cuidar de algum aspecto da saúde sem necessariamente tratar-se da dependência de drogas em si (FONSÊCA, 2012). A exemplo dos serviços de baixa exigência podemos citar a não necessidade de apresentação de documentação, abstinência, ou outros critérios para que o atendimento/acolhimento no serviço seja possível. (N. R.)

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os membros da comunidade estejam envolvidos na operação do programa. Os membros da comunidade devem participar das decisões sobre a localização, quais serviços oferecer, a equipe necessária, e os horários de atendimento. (UNODC et al., 2017b). Além disso, uma atenção cuidadosa deve ser dada ao engajamento com os vizinhos e líderes comunitários locais para assegurar a aceitação e o apoio para o CC no bairro (UNODC et al., 2017b). Uma revisão de 2015 sobre o impacto de centros de convivência verificou que os mesmos contribuem para uma melhoria geral do bem-estar e saúde global, assim como uma “uma gama de benefícios incluindo uma redução do uso de drogas e da troca de sexo por drogas, assim como melhorias na participação/ engajamento social, saúde mental, dias abrigados (embora nenhuma melhoria garantindo habitação permanente tenha sido encontrada) e acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutivo” (WILSON, 2015). Um estudo mais antigo sobre um CC baseado no Reino Unido frisou como os usuários do serviço vivenciam este espaço de assistência de diferentes formas. De modo geral, no entanto, o CC “desempenhou um papel importante para uma minoria significante no estado, funcionando como um local onde elas poderiam se encontrar com outras, encontrar um ombro amigo, ter acesso a um aconselhamento particular e serviços de informações e, para alguns, obter um grau de distância de seus ambientes caseiros” (CONRADSON, 2003). No capítulo 5.5 descrevemos um programa uruguaio oferecendo um centro de convivência.

4.10 Kits de testes de drogas

Enquanto a maioria das intervenções clássicas de redução de danos (tais como distribuição de agulhas e seringas e salas de consumo de drogas) visam principalmente as PQUD problemáticas, marginalizadas ou dependentes, medidas de redução de danos para as PQUD recreativas ou não problemáticas – que com frequência usam drogas do tipo estimulante em cenários de vida noturna – ficaram para trás (BRUNT et al., 2017). Os riscos e danos associados a este tipo de uso de drogas são diferentes. Por exemplo, o status ilícito dessas substâncias resulta em dosagens e conteúdos desconhecidos de pílulas, comprimidos,

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pós ou líquidos, aumentando o risco de overdose. Em resposta, o drug checking ou análise de substâncias foi desenvolvida como uma medida adicional de redução de danos (SPRUIT, 2001). Com frequência, implementar serviços de testes de drogas exige superar desafios legais, tais como a obtenção de uma licença para possuir e trabalhar com substâncias reguladas ou proibidas. Muitos países não aceitam os kits de testes de drogas como um argumento válido para emitir uma exceção (BRUNT et al., 2017). A pesquisa científica pode ser uma razão para emitir uma licença. O primeiro sistema de testes de drogas do mundo – o Drug Information and Monitoring System (DIMS) (Sistema de Informações e Monitoramento de Drogas) – foi fundado na Holanda em 1992. Iniciado como um projeto científico para monitorar os mercados de droga (ex., dosagem, composição, adulterantes e disponibilidade), desde então evoluiu para um sistema nacional de serviços de testagem, inseridas em institutos de prevenção e assistência à dependência (BRUNT; NIESINK, 2011). Outros sistemas de testes de drogas foram estabelecidos desde então nos países europeus, tais como a Áustria, Suíça, Bélgica, Espanha, Portugal e o Reino Unido (BRUNT, 2017; BRUNT et al., 2017). Os kits de testes de drogas assumem diferentes formas. Na Holanda, uma rede de amplitude nacional de serviços de testagem estacionárias – organizada pelas instalações de tratamento de dependência – realiza testes básicos e coleta amostras para serem encaminhados para uma agência centralizada para testes laboratoriais mais extensos. Em alguns países, laboratórios móveis são utilizados para testes no local (on-the-spot), como eventos de dança e festivais. A Energy Control na Espanha também aceita amostras de droga enviadas pelo correio (BRUNT, 2017). Além dos diferentes cenários nos quais operam os serviços de testes de drogas, os métodos e análises usados também variam. A precisão e a confiabilidade dos resultados dependem do método usado e, consequentemente, também a extensão da redução de danos (BRUNT,2017). Brunt descreve estas diferenças sucintamente: “De forma simples, você quer meramente demonstrar a presença ou ausência de um componente principal em uma amostra de droga ou você quer fornecer ao consumidor informações quantitativas sobre todos


os compostos em uma amostra de droga?” (BRUNT, 2017). Não existe nenhuma resposta conclusiva sobre qual tecnologia atualmente disponível é a mais adequada para a análise de substâncias como uma intervenção de redução de danos (HARPER; POWELL; PIJL, 2017). Os fatores a considerar incluem se as técnicas disponíveis também quantificam as substâncias presentes nas amostras de teste, mas também, de modo mais prático, se recursos financeiros e humanos suficientes estão disponíveis. As técnicas variam de reagentes colorimétricos simples e baratos (mas imprecisos) ou testes microcristalinos, à técnicas mais sofisticadas tais como a cromatografia líquida ou gasosa, mobilidade de íon ou espectrometria de infravermelho e de Raman; difratometria de raio X; e cromatografia de camada fina, entre muitas outras (BRUNT, 2017; HARPER et al., 2017). De uma perspectiva de custo-benefício e para fins de redução de danos, Harper et al. (2017) recomendam espectroscopia de infravermelho ou de Raman manual. Além disso, Brunt (2017) menciona a opção de quantificação usando a espectroscopia de infravermelho com transformada de Fourier, que é usada na Holanda. Conforme mencionado, existem várias formas nas quais os testes de drogas podem contribuir para a redução de danos. Ela pode facilitar a tarefa de alcançar e informar as jovens PQUD ou as pessoas que usam NSP. Com frequência, estes grupos jamais estiveram em contato com os serviços de prevenção antes e podem ser difíceis de alcançar com as mensagens de prevenção tradicionais e amplas (BRUNT, 2017; GINÉ et al., 2017a; FERNÁNDEZ-CALDERÓN et al., 2014; GAMMA et al., 2005). No caso de adulterantes nocivos ou de perigosas substâncias falsas, os serviços de testes de drogas podem criar respostas de saúde pública direcionadas e oportunas e alertas de saúde específicos à questão. Muitos (jovens) usuários desconfiam das mensagens de prevenção oficiais do governo. Eles podem estar mais inclinados a acreditar – e serem persuadidos por – contato pessoal com pessoas fornecendo conselhos de redução de danos sob medida, com base nos testes científicos de amostra de drogas (BRUNT, 2017; GINÉ et al., 2017b). Em alguns casos, os serviços de testes de drogas podem levar os indivíduos a decidir não usar, caso sua amostra contenha substâncias

indesejadas ou desconhecidas (tais como NSP como adulterantes de drogas comumente usadas, como MDMA ou LSD), ou adulterantes perigosos (BRUNT, 2017; GINÉ et al., 2017a; MARTINS et al., 2017; FERNÁNDEZ-CALDERÓN et al., 2014). Alguns críticos argumentam que os serviços de testes de drogas podem ser duvidosos e fornecer um falso senso de segurança, já que a ausência de adulterantes perigosos não garante que o uso em si esteja livre de danos. No entanto, uma parte da crítica pode ser rebatida usando ferramentas avançadas de kits de testes de drogas em combinação com a provisão de educação de prevenção e redução de danos sob medida, incluindo informações sobre os riscos de usar e de misturar substâncias (BRUNT, 2017). Em uma escala mais ampla, utilizar as informações obtidas dos serviços de testes de drogas, disseminando informações objetivas sobre os riscos à saúde de novas substâncias específicas pode criar uma conscientização entre as PQUD, assim como entre aqueles vendendo as substâncias. Bases de dados online acessíveis e atualizadas e informações sobre droga fáceis de ler podem informar as PQUD e promover estratégias de uso responsável (MÓRÓ, 2014). Os exemplos incluem websites tais como Erowid, TripSit.me, Bluelight.org e a base de dados RedNet. Os testes de drogas e a identificação correta das drogas também podem desencorajar os usuários (experientes em internet) de consumir essas drogas e até mesmo resultar na remoção destas substâncias do mercado (BRUNT, 2017). Isto foi observado online, bem como em festivais, com os usuários relatando sua intenção de não consumir a substância verificada, quando sua amostra contivesse adulterantes ou provasse ser uma substância completamente diferente (MARTINS et al., 2017). Além disso, campanhas de alerta de alcance nacional sobre amostras específicas (tais como pílulas de ecstasy contendo a substância muito mais prejudicial PMA em vez de MDMA, ou amostras passando por cocaína sendo, na verdade, heroína) têm tido efeitos semelhantes, potencialmente salvando vidas (BRUNT et al., 2017). Isto não quer dizer que todos os usuários cumpram suas intenções, ou que fornecer informações sempre levará a mudanças no comportamento. Por fim, os serviços de testes de drogas podem desempenhar um papel importante no monitoramento de tendências de drogas, obtendo os dados

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diretamente dos usuários, incluindo os dados sobre os padrões de consumo, experiências, efeitos colaterais, práticas de usuário, etc. (GINÉ et al., 2017b). Isto é especialmente útil em uma era onde novas substâncias psicoativas, inovadoras e mais potentes aparecem no mercado em rápida sucessão (BARRATT; EZARD, 2016; BRUNT, 2017; GINÉ et al., 2017b). Os serviços de testes de drogas podem até mesmo ser usados para monitorar os mercados não tradicionais e difíceis de alcançar, como aqueles na dark web (VAN DER GOUWE et al., 2017), tornando possível monitorar um mercado em rápida evolução e implementar prevenção, educação e intervenções específicas de redução de danos (BRUNT et al., 2017).

4.11 Intervenções online

Diversos termos são usados de modo intercambiável e inconsistente para se referir a qualquer tratamento que ocorra online, sem contato face a face com um prestador de serviço. Tais intervenções baseadas em tecnologia incluem: intervenções baseadas em computador, intervenções online ou baseadas na internet, intervenções de aplicativos de telefone, ou intervenções baseadas em smartphones ou celulares. Uma intervenção online de tratamento de droga foi definida como um programa baseado na internet que oferece uma intervenção de tratamento de droga especialmente desenvolvida e estruturada. Ela é, portanto, diferente dos websites mais genéricos fornecendo informações e educação sobre substâncias (EMCDDA, 2009). No entanto, as intervenções online não lidam apenas com o tratamento de drogas. Em um sentido mais amplo, as intervenções online foram definidas como “uma oferta profissional em prevenção seletiva que é fornecida via internet, inclui elementos interativos e fornece um feedback individual às jovens PQUD. Estes serviços online podem ser totalmente automatizados e autoguiados ou incluir contatos com um profissional4 (STEFFENS; SARRAZIN, 2015). As intervenções online podem ser intervenções não guiadas e isoladas (stand-alone) ou agregadas (blended), onde elas são um componente adicional a um tratamento usual (BOUMPARIS et al., 2017). A primeira é facilmente acessível e tem a capacidade de alcançar uma quantidade quase infinita de PQUE ao mesmo tempo. As intervenções adicionais

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(blended), por outro lado, usualmente recebem suporte de profissionais de saúde mental ou de tratamento de dependência e, portanto, são mais limitadas na sua capacidade. Elas são geralmente mais usadas para as formas de tratamento orientadas à abstinência. Para as finalidades deste capítulo, usaremos intervenções online para nos referir a qualquer uma das intervenções mencionadas acima. As intervenções online podem ser usadas para superar obstáculos de acesso ao tratamento, alcançando, desta forma, grupos de usuários que, de outro modo, seriam difíceis de alcançar. O acesso às intervenções mais convencionais pode ser limitado por um número de razões, incluindo a falta de acesso devido à distância geográfica, mas também em razão do estigma, falta de confiança, falta de anonimato, falta de disponibilidade do serviço, barreiras financeiras, ou a exigência da abstinência como um objetivo do tratamento (BOUMPARIS et al., 2017). As intervenções online podem ser uma solução para estes obstáculos. Elas geralmente são de baixo custo e podem ser acessadas a qualquer momento, exigindo apenas acesso à internet (STEFFENS; SARRAZIN, 2015). Uma diretriz de 2015 lista as recomendações-chave para o desenvolvimento de intervenções online para as pessoas que usam substâncias (ilícitas) (STEFFENS; SARRAZIN, 2015). Ela é, em sua maior parte, dirigida às pessoas jovens e ao uso de NSP, mas é aplicável de modo mais amplo e pode ser um recurso útil para aqueles interessados em desenvolver intervenções semelhantes. Existe uma forte base de evidência para a eficácia de intervenções de tratamento online para uma variedade de questões de saúde mental, como ansiedade, depressão e outras condições (STEFFENS; SARRAZIN, 2015). Além disso, a eficácia das intervenções de tratamento online tem sido estabelecida para as pessoas que usam álcool e nicotina problematicamente. Existe evidência particularmente forte para intervenções de autoajuda online, baseadas em terapia cognitiva comportamental (TCC), que visam controlar e/ ou reduzir o uso do álcool (BOUMPARIS et al., 2017; SCHAUB et al., 2016; STEFFENS; SARRAZIN, 2015). Alguns estudos foram publicados sobre seus efeitos também para o uso de maconha. A maioria dos estudos definiu a eficácia da intervenção em termos de uso reduzido de droga ou retenção


do tratamento, mas eles não incluíram outros parâmetros (STEFFENS; SARRAZIN, 2015).

programa offline de prevenção existente, na TCC e na terapia motivacional (TAKANO et al., 2016).

Existe pouca evidência sólida sobre a eficácia das intervenções de tratamento online para as PQUE. Uma meta-análise recente sobre os experimentos clínicos randomizados – comparando as intervenções online com as condições de controle – para as pessoas que usam substâncias ilícitas (opioides, cocaína, anfetaminas) mostrou um pequeno, mas significativo efeito. Ao observar todas as substâncias agrupadas, a revisão verificou que as intervenções online tiveram alguma medida de sucesso na redução do uso de substância. No entanto, a única categoria de substâncias que não apresentou qualquer efeito significativo foram os estimulantes (BOUMPARIS et al., 2017).

Conforme mencionado no início deste capítulo, as intervenções online são mais amplas do que oferecer um (adicional ao) tratamento de droga online. As práticas de redução de danos podem consistir em fornecer uma plataforma online, onde as PQUD podem fazer perguntas sobre o uso de drogas ou fornecer referências para serviços de assistência ou sociais mediante solicitação. Até o momento, nenhum artigo científico pode ser encontrado que foque especificamente na redução de danos online (para as PQUE). No capítulo 5.2 descrevemos um programa espanhol com uma intervenção online para os usuários que praticam chemsex.

Algumas intervenções dirigidas às PQUE estão atualmente disponíveis e parecem ter resultados positivos, embora poucas tenham sido avaliadas rigorosamente. Um estudo clínico de 2015 que avaliou um tratamento comportamental online (chamado de Sistema de Educação Terapêutica) mostrou que esta intervenção teve resultados mais significativos (melhorando a retenção do tratamento e aumentando as chances de abstinência) para as pessoas cuja substância de uso primário era um estimulante, comparada a outras substâncias tais como o álcool, a maconha, e os opioides (COCHRAN et al., 2015). No entanto, isto pode não ser devido à sua natureza online, mas em função da intervenção combinar dois dos tratamentos baseados em evidência atualmente mais eficazes para a dependência de substâncias: a abordagem de reforço comunitário e gestão de contingência (CAMPBELL et al., 2014). Diversas intervenções online já foram dirigidas para as pessoas que usam cocaína e estimulantes do tipo anfetamina (TAIT et al., 2015, 2014; SCHAUB et al., 2012; SCHAUB; SULLIVAN; STARK, 2011). Todas estas intervenções são baseadas em terapia cognitivo-comportamental (TCC). Outra intervenção de tratamento online dá apoio aos participantes com problemas de uso de cocaína que já estão em tratamento de metadona (CARROLL et al., 2014). Outras intervenções incluem um programa japonês de prevenção de recaídas baseado na internet denominado “e-SMARPP” baseado em um

4.12 Intervenções terapêuticas

Embora muitas intervenções terapêuticas sejam usadas predominantemente em cenários de tratamento, onde a meta é chegar na abstinência, elas também podem ser ferramentas poderosas em um ambiente de redução de danos. Estas intervenções podem auxiliar as pessoas em lidar com questões de saúde mental e outros problemas associados ao uso de drogas estimulantes, elas podem dar suporte às pessoas para desenvolverem estratégias de autorregulação, e as pessoas podem se beneficiar das intervenções terapêuticas em um cenário de tratamento de droga. Dado o escopo limitado desta revisão, vamos discutir apenas as intervenções visando atender as questões (agudas) de saúde mental, e as questões mais diretamente relacionadas ao uso de estimulantes (tais como lidar com o desejo/fissura e gerenciar o uso). A comorbidade25 é relativamente comum entre as PQUE e existem fortes associações entre o uso de substâncias e distúrbios de saúde mental, tais como o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), ansiedade, distúrbios depressivos, TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) e distúrbios 25 Comorbidade é a presença de uma ou mais doenças ou distúrbios adicionais, ocorrendo simultaneamente com uma doença ou distúrbio primário. Neste caso, quando as doenças de saúde mental e o uso problemático de substâncias ocorrem juntos. (N. A.)

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alimentares. O Capítulo 3.4 contempla a relação entre as questões de saúde mental e o uso de substâncias em maior detalhe. As PQUE também podem vivenciar problemas agudos de saúde mental26 como resultado direto de seu uso de estimulantes. O uso de estimulantes pode ocasionar ou exacerbar diversos problemas de saúde mental, tais como ansiedade, distúrbios alimentares, depressão, paranoia, interrupções do sono e episódios psicóticos. Para sintomas mais severos, a OMS indica intervenções de crise por profissionais da saúde mental. Estas intervenções começam fazendo uma avaliação de risco e avaliando a necessidade de tratamento (psiquiátrico) adicional (WHO, 2011). A equipe trabalhando com as PQUE em um cenário de redução de danos pode aplicar várias técnicas simples para dar assistência às PQUE sofrendo de pensamentos paranoicos, ansiedade ou alucinações. Dicas úteis são: manter-se calmo e reconfortar a pessoa; levar a pessoa para um local sossegado e tranquilizador e tentar voltar sua atenção para alguma outra coisa; validar a experiência das pessoas evitando reconhecer que suas alucinações sejam reais (caso você esteja certo que elas não sejam); ajudar as pessoas a reconhecer as formas nas quais a paranoia e a ansiedade podem estar associadas com seu uso de drogas (PINKHAM; STONE, 2015). Em alguns casos, as pessoas que usam estimulantes podem vivenciar episódios psicóticos agudos e podem se tornar agressivas, por exemplo, no caso da Síndrome de Delírio Excitado (SDE)27. Esta condição médica relativamente rara, caracterizada por agitação, aflição aguda e morte súbita, exige intervenção imediata de profissionais médicos, com frequência precisando de sedação (TAKEUCHI; AHERN; HENDERSON, 2011). É importante não arriscar sua própria segurança como um prestador de serviço, caso uma situação pareça ser perigosa. Diversas intervenções baseadas em evidência no tratamento de drogas também podem ser aplicadas 26 Uma doença mental aguda é caracterizada por sintomas significantes e estressantes, exigindo uma intervenção imediata. Pode ser uma primeira experiência de doença mental, um episódio repetido ou o agravamento dos sintomas de um problema de saúde mental contínuo. (N. A.) 27 Mais recentemente observada nos casos de pessoas que consumiram “sais de banho”, cujos componentes pertencem à classe das catinonas, principalmente, provocando casos de surtos psicóticos violentos e comportamentos “canibais” (N. R.)

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em circunstâncias de redução de danos. Suporte na retirada da droga é uma estratégia que pode ser aplicada por profissionais de saúde para ajudar as pessoas que usam ETA e querem (temporariamente) parar de usar. No caso de metanfetamina, por exemplo, é provável que as pessoas experimentem sintomas de abstinência, tais como períodos de sono prolongado, aumento de apetite, irritabilidade e ansiedade. Outros podem vivenciar sintomas mais severos, como depressão clínica, oscilações de humor, incapacidade de sentir prazer, áreas doloridas e dores, distúrbio de sono, concentração e memória fracas (JENNER; LEE, 2008). Algumas estratégias de suporte são: dizer a pessoa o que esperar durante a abstinência, inclusive a provável duração e os sintomas comuns, fornecer materiais por escrito, já que a pessoa pode ter dificuldades de memória e concentração durante a abstinência, auxiliar na avaliação do que ajudou e o que não nas abstinências anteriores, e auxiliar na identificação de apoios sociais chave (JENNER; LEE, 2008). Além disso, as pessoas também podem aprimorar seu autocontrole, focando em atividades agradáveis e que distraem, mantendo-se próximas de pessoas solícitas, e mantendo uma dieta e rotina saudáveis (PINKHAM; STONE, 2015). Também é possível explorar a necessidade de encaminhamento para intervenções de saúde mental para acompanhamento contínuo. As intervenções como a terapia cognitiva comportamental (TCC), a gestão de contingência (GC), a entrevista motivacional (EM), a terapia de família, e as intervenções breves (IB), são consideradas intervenções chave no processo de tratamento e recuperação para o uso de cocaína e metanfetamina. Elas podem ajudar as pessoas a identificar os problemas relacionados à droga e a se comprometer com uma mudança, aumentar a adesão ao tratamento, reduzir os danos relacionados à droga (por exemplo, pela inclusão da família) (EMCDDA, 2016). O portal de melhores práticas do EMCDDA recomenda, especialmente, as IB e as intervenções psicossociais como estratégias de redução de danos para estimulantes (EMCDDA, 2018a). A TCC, a EM e as IB são tipicamente usadas em tratamentos sem internação. A principal meta é ajudar as pessoas a obter ou manter a abstinência e prevenir recaídas (BISCH et al., 2011; WHO 2011; GRUND et al., 2010). Na Austrália, um


modelo estruturado de aconselhamento breve, desenvolvido especificamente para as pessoas que usam anfetaminas regularmente, demonstrou, além do aumento da abstinência, melhoras de curto prazo na depressão e melhoria da gestão de risco no fumo de tabaco, no poliuso de drogas, use injetável de risco, atividade criminal e distúrbio psiquiátrico (BAKER et al., 2005). Um estudo inglês, no entanto, verificou que as intervenções breves não têm efeito significativo sobre a abstinência nos usuários jovens e regulares de MDMA e crack, quando comparadas a um grupo semelhante que recebeu apenas materiais com informações sobre risco à saúde por escrito (MARSDEN et al., 2006). A Abordagem de Reforço Comunitário (ARC) é uma intervenção comportamental que visa mostrar que uma vida sem uso pode ser muito mais gratificante do que uma vida com o uso de substâncias. A ARC também foi aplicada no tratamento de pessoas que usam estimulantes. Existe forte evidência de que uma combinação de ARC com incentivos (tais como vouchers para troca por itens de varejo, ou outro suporte de tratamento) pode ajudar as pessoas a parar de usar cocaína, embora a manutenção a longo prazo ainda possa ser desafiadora (SECADESVILLA et al., 2008; ROOZEN et al., 2004; HIGGINS; SIGMON; WONG, 2003). A ARC também ajuda as pessoas que usam tanto cocaína quanto opioides a se engajar mais significativamente em atividades não relacionadas às drogas. O planejamento e reforço de atividades sociais, vocacionais e recreativas específicas não relacionadas às drogas são, provavelmente, componentes cruciais desta abordagem (SCHOTTENFELD et al., 2000). Por fim, o modelo Matrix, um modelo de tratamento especificamente projetado para as pessoas que usam estimulantes, que combina diferentes intervenções terapêuticas, tem se provado eficaz no tratamento para o uso da cocaína (RAWSON et al., 2004, 1995), bem como da metanfetamina (MAGIDSON et al., 2017).

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Estudos de caso

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5 Estudos de caso

Neste capítulo, sete casos apresentam exemplos práticos aprofundados de algumas das intervenções de redução de danos cobertas na revisão de literatura. Os casos selecionados representam uma gama diversa de: tipos de intervenções de redução de danos, tipos de estimulantes, contextos sociais e culturais, aspectos de gênero, tipos de política de drogas implementados, nível de integração no sistema de assistência à saúde, ligações com outros serviços (de redução de danos), recursos disponíveis e regiões geográficas. Os seguintes sete casos serão apresentados: ◊ Programa Atitude, uma intervenção de moradia primeiro para os usuários de crack (cocaína freebase) no Brasil; ◊ Chem-Safe, uma intervenção online para os HSH que usam cristais de metanfetamina e NSP, entre outras drogas, em cenários de chemsex na Espanha (e outros países onde se fala espanhol); ◊ Grupos de contemplação promovendo a autorregulação e atenção plena entre os usuários de Tik (ou seja, cristais de metanfetamina) na África do Sul; ◊ Distribuição de kits do COUNTERfit para fumar com maior segurança para os usuários de crack e metanfetamina no Canadá; ◊ Centro de Convivência El Achique para os usuários de crack (pasta base) marginalizados no Uruguai; ◊ Trabalho de abordagem social de Karisma para os usuários de Shabu (ou seja, cristais de metanfetamina) na Indonésia;

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◊ Princehof,

Ripperdastraat e Schurmannstraat, três salas de consumo de drogas para os usuários de crack (cocaína freebase) e heroína, na Holanda.

Para os fins do presente estudo, nós estudamos os documentos relevantes e falamos com diversos profissionais e usuários do serviço envolvidos nas intervenções. Conforme mencionado anteriormente, os entrevistados assinaram um termo de consentimento, os dados foram armazenados com segurança, e as citações foram anonimizadas no relatório, conforme as mais recentes Diretrizes de Proteção de Dados. Sempre que um usuário do serviço é citado, este é referenciado como US, e os profissionais são referenciados como P. Todos os sete casos serão apresentados de acordo com a mesma estrutura, fornecendo um insight de seu contexto social, as origens da intervenção, os detalhes práticos sobre como eles operam, incluindo a equipe e as finanças – na medida em que estas informações se encontravam disponíveis, os sucessos práticos e os desafios, as metas futuras, e na conclusão, algumas lições aprendidas.


5.1 Programa Atitude Um exemplo de moradia primeiro no Brasil “Nas ruas eu não tinha segurança. Eu estava em uma área de risco, sem habitação e sem respeito. Agora eu tenho outra vida. Estou morando aqui, e estou vendo meus filhos. Minha vida mudou muito” — US10. “Nosso principal objetivo é que as pessoas desenvolvam sua autonomia, que possam se integrar na sociedade, e seguir sua vida, com melhor qualidade de vida” — P6.

O Programa Atitude é um programa governamental de redução de danos do estado de Pernambuco, Brasil. Fundado em 2011, o programa faz parte de uma política Estadual para reduzir os crimes altamente violentos e letais (CVLI), e busca auxiliar as pessoas que usam crack e outras drogas que se encontram em situações violentas e vulneráveis, bem como suas famílias. O programa trabalha para aumentar a qualidade de vida das pessoas, promover a proteção social, reduzir a criminalidade, e prevenir o encarceramento. Em 2017, o programa realizou 154.626 atendimentos28 a 3019 pessoas29 em 4 diferentes municípios: Recife, Caruaru, Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho. O programa trabalha com uma abordagem de assistência nivelada, oferecendo quatro diferentes serviços: trabalho de campo ou abordagem social30 (Atitude nas Ruas), centro 28 Por atendimento compreenda-se a o ato de atender uma pessoa usuária do serviço. Cada usuário pode ter múltiplos atendimentos. Assim, a contagem de atendimentos se refere ao número total de vezes em que uma pessoa foi atendida em qualquer um dos serviços do Programa. (N. R.) 29 Nesta informação cabe uma errata em relação à informação veiculada no relatório original, o qual informou o número de atendimentos como se fossem o número de pessoas atingidas, criando assim uma distorção exagerada de indivíduos atendidos pelo Programa. A informação do número de pessoas alcançadas e acompanhadas individualmente, deste modo, foi incluída. (N. R.) 30 No contexto da política pública na qual o Programa Atitude se normatiza, a Abordagem Social é um serviço da Proteção Social Especial de Média Complexidade que é ofertado com a finalidade de assegurar trabalho social de abordagem/campo e busca ativa, identificando nos territórios a incidência de situações de risco pessoal e social, violação de direitos e configurando-se como

Imagem 1: Recife, Caruaru, Jaboatão dos Guararapes, e Cabo de Santo Agostinho, Brasil.

de convivência e acolhimento noturno (Centro de Acolhimento e Apoio), acolhimento intensivo (diurno e noturno) (Centro de Acolhimento Intensivo), e espaço de moradia independente (Aluguel Social)31. Um serviço de acolhimento um canal de identificação de vulnerabilidades pessoais e sociais (BRASIL, 2013). (N. R.) 31 Os serviços ofertados estão tipificados de acordo com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), seguindo as especificações de serviços de Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidades, assim, o Atitude nas Ruas refere-se ao Serviço de Abordagem Social; o Centro de Acolhimento e Apoio

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intensivo em separado existe especificamente para as mulheres, acolhendo especialmente as mães (ou grávidas) e os transgêneros do gênero feminino. O Programa pode fornecer um aluguel social para os usuários que estão prontos para ter uma vida mais autônoma e se integrarem mais na sociedade. Tanto para as PQUD, quanto para o governo e as ONGs envolvidas, o Programa Atitude é um grande sucesso entre as pessoas que usam crack no estado de Pernambuco. Os usuários do serviço apreciam particularmente sua relação com os profissionais, a abordagem de baixa exigência e a possibilidade de ter um espaço seguro, ajudando-os a ficarem mais estáveis e organizados e desenvolver controle e autonomia em suas vidas.

Brasil

O Brasil é o quinto maior país por área e o sexto mais populoso no mundo. Situado na costa leste da América do Sul, tem uma população de mais de 208 milhões de habitantes. O país é bastante multicultural e etnicamente diverso devido à forte imigração de diversos lugares no mundo. Sua língua oficial é o Português do Brasil. De 2004 a 2014, os níveis de pobreza diminuíram de 25% da população para 8,5%. A extrema pobreza32 caiu de 12 para 4% ao longo do mesmo período (GÓES; KARPOWICZ, 2017). Apesar de ser classificado como um país de renda superior-média, o Brasil ainda é uma sociedade altamente desigual. O Brasil ocupa o quarto lugar entre os mais violentos, quando comparado a outros países LatinoAmericanos. A violência é maior entre os cidadãos jovens e negros. As taxas de homicídio ficam acima de 25 por 100 mil habitantes no Brasil, e 70% das vítimas são cidadãos negros. Entre os jovens (entre 12 e 21 anos de idade) a taxa de homicídio fica acima de 81 por 100 mil habitantes e, proporcionalmente, os jovens negros morrem duas vezes e meia mais do que os jovens brancos (WAISELFISZ,2012). Imagina-se que o tráfico de drogas e os conflitos com a polícia contabilizem uma grande parte da refere-se ao Serviço de Acolhimento Institucional do tipo Casa de Passagem; o Centro de Acolhimento Intensivo refere-se ao Serviço de Acolhimento Institucional do tipo Acolhimento Institucional (BRASIL, 2014), e; o Aluguel Social refere-se a um Benefício Eventual (BRASIL, 2018). (N. R.) 32 Lares cuja renda é menor do que $3,10 por dia definem pobreza, e menor que $1,90 definem extrema pobreza (em dólares americanos). (N. A.)

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violência, principalmente nas grandes cidades (RODRIGUES,2006). O Brasil possui 26 estados. O programa de moradia e acolhimento estudado neste capítulo está operando em quatro municípios no estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil.

Uso de substâncias no Brasil

O Brasil possui uma longa história de uso de estimulantes, com a cocaína em pó estando no mercado pelo menos desde a década de 1970. Naquela época, a cocaína era usada principalmente pela população de renda média e alta. O primeiro alarme público relacionado a esta droga, no entanto, teve início nos anos 80, quando o uso injetável tornou-se popular e atingiu a população das periferias. A cocaína foi a droga preferida para injeção para virtualmente todas as populações de usuário na época (CAIAFFA; BASTOS, 1998), e o uso injetável aumentou drasticamente os níveis de transmissão de HIV/Aids, devido ao compartilhamento de seringas e outros materiais (BARBOSAJÚNIOR et al., 2009). O uso injetável diminuiu, mas uma nova “epidemia” surgiu com a introdução do crack no mercado nos anos 90. O crack se espalhou particularmente nas localidades e populações excluídas. Até o final do século XX foi dominante entre os jovens e adultos desabrigados. Algumas PUDI e ex-usuários também mudaram para esta droga. Algumas grandes cidades no Brasil encaram o surgimento das cracolândias33: grandes áreas abertas onde as pessoas que usam crack se reúnem para comprar, vender, usar drogas e, muitas vezes, para viver. A maioria das cidades não tem uma cena de cracolândia, mas não são menos afetadas pelo crack. Devido ao preconceito e à violência, as pessoas que usam crack tendem a se esconder dentro de espaços menos visíveis e em grupos menores. Este também é o caso para as pessoas que usam crack que são auxiliadas pelo

33 Cracolândia é uma combinação de crack + land (terra), ou terra do crack. O termo se originou como uma denominação popular para uma região no centro da cidade de São Paulo, onde tem ocorrido um intenso tráfico de drogas, uso de drogas e prostituição, todos altamente focados em crack. O termo é usado correntemente para denominar um local (aberto) onde o crack (e outras drogas) é usado e vendido, com grande concentração de pessoas. (N. A.)


Programa Atitude34. O uso de crack normalmente acontece em espaços mais ocultos, devido ao preconceito e a repressão da comunidade e da polícia. “Nossos usuários sofrem violência de várias fontes: da polícia, da comunidade, dos vendedores de droga” — P3. Para evitar a violência e o julgamento, as pessoas tendem a usar crack em locais abandonados, mangues, banheiros públicos, e espaços com menor circulação de pessoas. A mídia reforça a imagem do usuário de crack como marginal, ladrões e vagabundos, demonizando a substância e seus usuários. A cena de rua inclui o uso de crack e, ultimamente, também o retorno ao uso de cola. Devido à crise financeira e ao aumento da pobreza, algumas pessoas passaram a cheirar cola, já que ela é muito mais barata do que o crack. As pessoas geralmente fumam crack em cachimbos artesanais feitos de tubos plásticos, alguns fumam em latas de refrigerantes ou cerveja. Além do crack, as drogas mais usadas na cena de rua são cola, loló35 e álcool. Um estudo em quatro capitais de estados brasileiras, nos serviços públicos de pacientes internados e ambulatórios, averiguou que o crack era a segunda droga mais usada pela população buscando tratamento, logo depois do álcool. Enquanto 78% buscava tratamento para o álcool, 51% o fazia por causa do uso de crack (FALLER et al., 2014). Em muitos serviços ambulatoriais de tratamento de drogas, as pessoas que usam crack são a maioria (HORTA et al., 2011). Um estudo nacional averiguou que aproximadamente 40% dos usuários de crack no Brasil são des-

34 Vale ressaltar que nas regiões onde o Programa Atitude atua, cidades de Pernambuco, inexiste o fenômeno da cracolândia, entretanto, cenas de uso público têm sido mapeados pelas equipes do Atitude nas Ruas para intervenções em saúde e assistência. (N. R.) 35 Loló é o nome popular de uma substância de fabricação caseira, preparada com clorofórmio e éter. É barata e fácil de preparar. Loló é usado como um inalante, colocado em um pequeno pedaço de tecido e inalado através do nariz ou da boca. Também é usado diretamente, inalando de uma lata ou garrafa através da boca ou das narinas. (N. A.)

abrigados ou se encontram em situação de rua36, mas menos do que 5% se encontram em abrigos (FIOCRUZ, 2013). Estudos regionais encontraram situações ainda piores. No Rio de Janeiro, por exemplo, 76% das pessoas usando crack estavam desabrigadas ou em situação de rua por pelo menos um ano e 25% estava em situação de rua por seis anos ou mais (REDES DA MARÉ, 2015). A violência é um desafio diário para as populações desabrigadas ou em situação de rua que usam drogas. Além disso, mais da metade das mulheres que usam drogas no Brasil relataram terem estado grávidas uma ou mais vezes, desde que começaram a usar crack (FIOCRUZ, 2013). Esta população tem muito poucos ou nenhum serviço específico para cuidar de suas necessidades, menos ainda de uma perspectiva de redução de danos. A pesquisa local tem mostrado que, em vez de se tornarem vulneráveis por causa do uso de droga, a maioria dos usuários de crack em situação de rua já se encontrava em uma situação vulnerável, que se agravou com seu uso de crack (RUI et al., 2016). Com frequência, educação, emprego e relações familiares são áreas de preocupação para os indivíduos que usam drogas e buscam tratamento (FALLER et al., 2014). A falta de documentação e uma ficha criminal também atrapalha as chances dos usuários para melhorar a qualidade de vida através de estudo e emprego (REDES DA MARÉ, 2015). Este contexto sugere que o uso problemático de crack no Brasil é um problema social, que precisa de soluções estruturais. Além do tratamento para a droga e a assistência relacionada, as pessoas precisam de programas que promovam segurança e estabilidade, também para aqueles usuários que não queiram ou não sejam capazes de se tornar abstêmios.

Política de drogas e redução de danos

Na América Latina, o Brasil foi o primeiro país a desenvolver estratégias de redução de danos para os usuários de crack, tais como o trabalho de busca ativa e kits para fumar com maior segurança. 36 Estar em situação de rua significa não ter um lugar de moradia permanente, mesmo podendo ter um teto sobre sua cabeça. Pode ser, por exemplo, passar o dia na rua, mas dormir no sofá na casa de amigos ou em acomodações emergenciais/temporárias. Estar vivendo na rua significa não ter alternativa, a não ser dormir precariamente nas ruas e parques. (N. A.)

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No início da década de 1990, o país tinha políticas muito repressoras em relação ao uso de drogas, herdadas de seu período de Ditadura Militar (19641985) (CARVALHO, 2006). A epidemia de HIV/ AIDS entre as PUDI estimulou o desenvolvimento da redução de danos. Durante a década de 1990, o país desenvolveu uma abordagem de redução de danos para o uso injetável de cocaína, com poucos recursos e baixo apoio da comunidade. Os primeiros programas brasileiros de redução de danos, em sua maioria fornecendo agulhas e trabalho de campo, foram operados por organizações não governamentais (ONGs), apoiadas por doadores internacionais e pelo governo local.

vários programas e estratégias de redução de danos, conduzidos pelo governo e ONGs, têm aparecido pelo país. Em 2018, no contexto de uma crise política com escândalos de corrupção e o impeachment contestado da antiga presidente, a Secretaria Nacional de Políticas de Drogas aprovou uma nova resolução afirmando a abstinência como o principal objetivo das políticas de drogas do Brasil. A Secretaria Nacional de Políticas de Drogas também se posicionou contra a legalização e evita o termo redução de danos (CONAD, 2018). Ainda é incerto como isto pode impactar os serviços de redução de danos ao redor do país, incluindo o Programa Atitude.

O Brasil tornou-se um país de vanguarda ao adotar estratégias de saúde pública (BUENO, 2007). Ele é considerado um exemplo na implementação de políticas de redução de danos entre os países em desenvolvimento (MESQUITA, 2006). Em 2003, o Ministério da Saúde do Brasil reformulou sua política de prevenção e tratamento referente ao álcool e outras drogas, declarando oficialmente suporte político nacional para estratégias de redução de danos pela primeira vez (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003). Incentivos financeiros foram dados aos hospitais públicos, Centros para Assistência Psicossocial para o Álcool e outras Drogas (Caps AD), unidades móveis e assistência primária à saúde, para trabalhar com redução de danos. Estes incentivos foram cruciais para aprimorar a sustentabilidade. Em vez de ser realizada apenas por ONGs e trabalhadores terceirizados, a redução de danos começou a ser realizada também por servidores públicos. Em 2006, outra reforma na política de drogas estabeleceu que o uso da droga não é uma razão para alguém ser preso, muito embora a pessoa possa ser penalizada com tratamento opcional, aconselhamento e/ou trabalho comunitário (BRASIL, 2006). No entanto, uma vez que a lei não define as quantidades claras permitidas para a posse, fica a critério da polícia decidir se um dado caso concerne o uso ou o comércio de drogas.

Origens do Atitude

Em 2010, o “Plano Integrado de Enfrentamento Crack e Outras Drogas” foi lançado pelo governo nacional, focando na integração entre prevenção, assistência e segurança (BRASIL, 2010). O plano governamental, no entanto, ofereceu principalmente incentivos financeiros aos serviços orientados à abstinência. Apesar do escasso suporte financeiro,

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As atividades que iriam posteriormente formar o Programa começaram em 2007. Naquela época, as cidades de Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes tinham centros para jovens que sofreram casos de violência. Os centros para jovens forneciam alimentação, oficinas, auxílio financeiro e ajuda com geração de renda. Os casos de uso de drogas eram encaminhados aos Caps AD. Quando os centros formaram as equipes de abordagem social, elas começaram a alcançar uma população em situação de rua, que usava drogas e sofria ameaças de morte, devido à cena de uso e ao tráfico de drogas. “Precisávamos fazer alguma coisa, porque estas pessoas estavam morrendo. Não necessariamente por causa do uso, mas por causa do uso problemático atrelado à cena do tráfico. […] Nós dizemos que não importa o quão pequena uma dívida seja, chega uma hora em que não é mais possível pagar. O traficante não quer mais o dinheiro, mas a vida da pessoa” — P1. Em 2010, com o apoio do governo Estadual e Nacional, três Centros de Referência para Usuários de Drogas (CRAUD) foram criados, como projetos pilotos de um ano. Estes eram centros ambulatoriais com um acolhimento noturno e uma equipe de campo. “No CRAUD recebíamos as pessoas na casa das 8 da manhã às 8 da noite. Começamos a escutar dos usuários que estavam envolvidos em tráfico de drogas que, quando chegava a hora de fechar o serviço, eles não queriam ir embora. Eles não


podiam ir embora. Eles tinham medo de morrer. E nós achávamos difícil fechar o serviço. Esta população não estava sendo amparada em nenhum outro lugar, era uma população que — até então – se encontrava à margem” — P2. No final do período piloto do CRAUD, em 2011, a equipe migrou para casas localizadas em áreas estratégicas, com elevadas taxas de violência relacionada às drogas e, mais especificamente, homicídios relacionados às drogas. Estas áreas eram as áreas metropolitanas ao redor da capital, Recife, e a área rural da região Agreste de Pernambuco. E assim nasceu o Programa Atitude da forma que se encontra organizado hoje. Ao trabalho de abordagem social e os serviços de convivência, o programa acrescentou um acolhimento intensivo (dia e noite) e espaço de moradia independente. Atualmente, o Programa Atitude trabalha em quatro municípios no Estado de Pernambuco: Recife, Caruaru, Jaboatão dos Guararapes, e Cabo de Santo Agostinho. O Programa faz parte de uma política Estadual de Segurança Pública chamada Pacto pela Vida, que busca reduzir a incidência de crimes violentos letais e intencionais (CVLI) em Pernambuco. Mais de 40% dos participantes do programa já sofreram uma tentativa de assassinato. Estas estão relacionadas à dívidas de traficantes de drogas, lutas de gangues e vulnerabilidade geral de rua. Muitos deles sofrem ameaças de morte e aqueles que ainda vivem nas ruas sofrem violência e brutalidade constante da polícia. Além disso, 30% dos usuários do serviço já tentaram suicídio no passado (RATTON; WEST, 2016). “Devemos fazer esta reflexão sobre a redução de danos e como ela é diferente aqui dos, digamos, países desenvolvidos, onde o foco é muito mais sobre a saúde. […] Nossos usuários não estão morrendo por conta dos danos causados pelas drogas. Nossos usuários estão morrendo por conta da violência, e eles morrem diariamente. É claro, precisamos prestar atenção à saúde, mas também precisamos olhar a violência, e como a guerra às drogas vem matando as pessoas” — P4. O Programa Atitude é totalmente financiado pelo governo do Estado. Diferente da maioria dos programas contra drogas – os quais estão ligados às Secretarias de Saúde -este está ligado à

Secretaria de Desenvolvimento Social37. Em 2015, o programa sofreu cortes de orçamento devido à crise financeira no país. O orçamento anual de cerca de €4 milhões (R$ 16.742.202,80) foi reduzido para cerca de €3 milhões (R$ 12.874.865,72)38. Alguns serviços tiveram que ser suspensos, enquanto outros foram reduzidos. O programa não podia pagar os trabalhadores em dia e teve que demitir mais de 100 pessoas. Lentamente o programa se recuperou, mas até 2018, nem todas as atividades haviam sido retomadas39.

Na prática

Atitude trabalha com uma abordagem de assistência nivelada oferecendo quatro diferentes serviços: trabalho de campo (equipes de abordagem social de rua, Serviço de Abordagem Social), centro de convivência e acolhimento noturno (Casa de Passagem), acolhimento intensivo (dia e noite) (Abrigo Institucional), e espaço de moradia independente (Aluguel Social). Além dos abrigos mistos, um acolhimento intensivo especificamente para as mulheres existe em Recife, acolhendo especialmente as mães e seus filhos de até 2 anos, mulheres grávidas, e os transgêneros do gênero feminino. Os diferentes serviços são integrados, mas os usuários não precisam necessariamente passar pelos serviços de abordagem social ou centro de convivência para obter acesso ao acolhimento intensivo ou aluguel social. O nível de assistência que um usuário do serviço irá receber depende de suas necessidades e capacidades. Quando uma PQUD é nova no programa, é estabelecido um plano de suporte individual (Plano Individual de Acompanhamento/Atendimento)40. Este plano irá acompanhar a PQUD através dos diferentes serviços e pode ser modificado de acordo com as 37 Atualmente, no ano de 2019, com a criação da Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas, o Programa Atitude migrou para o âmbito dessa secretaria, mas mantendo-se ligada às políticas públicas da Assistência Social. (N. R.) 38 €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.) 39 Segundo SANTOS et al. (2019b), mesmo no cenário de adversidade, foi investido na qualificação das equipes e dos processos de trabalho, com gradual crescimento numérico no número de atendimentos e pessoas acolhidas, recuperando os investimentos no Programa. Em 2018 o valor total aproximado investido foi de R$ 17.900.000,00 (€4.248 milhões), superando os demais anos anteriores. (N. R.) 40 Para maiores esclarecimentos sobre este instrumento consultar as “Orientações técnicas para elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA) de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento” (BRASIL, 2018). (N. R.)

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necessidades e desejos da pessoa. Dado o foco deste estudo de caso na habitação, vamos descrever os abrigos e o espaço de aluguel social do Atitude de forma mais elaborada do que os outros serviços em oferta. O serviço de abordagem social foca nas PQUD vivendo ou ficando nas ruas. Os redutores de danos41 vão para as áreas com um maior nível de CVLI relacionados às drogas. Eles oferecem água, preservativos, informações sobre como reduzir os danos das drogas, e encaminhamentos aos locais42 onde as pessoas podem obter uma ajuda adicional. A equipe de campo também sensibiliza os serviços locais para trabalhar com uma abordagem de redução de danos. Além de estender a mão aos usuários, eles também podem auxiliar as famílias dos usuários, e ajudar a reconstruir ou fortalecer as relações familiares, focando no possível apoio que a família pode oferecer ao usuário do serviço. Muitos usuários conhecem e acessam o Programa Atitude através do serviço e abordagem social. Os quatro centros de convivência e acolhimentos noturnos (Casa de Passagem) trabalham em regime de 24/7 e cada um dá assistência a cerca de 30 usuários durante o horário diurno, e 15 no pernoite. Durante o dia, os usuários podem tomar o café da manhã, fazer duas refeições quentes e um lanche. Eles também podem dormir, tomar banho, lavar suas roupas, assistir TV, jogar um jogo, fazer uso de assistência à saúde e se juntar a um dos muitos grupos e oficinas oferecidos pelo programa. Aqueles que permanecem no acolhimento recebem uma cama em quartos compartilhados, armários para guardarem seus pertences pessoais, e um lanche extra à noite. No acolhimento noturno, as pessoas mais vulneráveis, em função de ameaças violentas ou saúde, têm prioridade. Os quatro acolhimentos intensivos (Abrigo Institucional) também trabalham em regime de 24/7 e cada um dá assistência a cerca de 30 pessoas. Os usuários do serviço podem ficar por até 6 meses. Nos acolhimentos intensivos os usuários têm uma rotina que, em geral, inclui: tarefas domésticas, saídas 41 Formados por equipes de Redutores de Danos: motorista, psicólogo, assistente social e educador social. (N. R.) 42 Aos serviços de saúde e assistência social, serviços de abrigamento, serviços de proteção à pessoa, redes de serviços com a Rede de Atenção Psicossocial (Raps). (N. R.)

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terapêuticas, e participação nos grupos e oficinas. O agendamento de tarefas domésticas é organizado no início de cada semana. Equipes são encarregadas de diferentes partes da casa (quartos, jardim, banheiros, cozinha). Além das razões práticas, estas responsabilidades ajudam os usuários do serviço a desenvolver habilidades de manutenção doméstica (housekeeping), trabalhando para a possibilidade de uma vida mais autônoma e sadia. “Uma vez que muitas delas ficaram vivendo nas ruas por um bom tempo, elas acabam perdendo um pouco da experiência em tarefas domésticas. E aqui, com as tarefas semanais, as equipes têm uma responsabilidade diária pela manutenção de uma parte da casa. Toda semana elas podem escolher o que elas querem fazer. Isto estimula sua autonomia e aprimora suas capacidades domiciliares para quando elas deixarem o programa” — P9. Um serviço de limpeza limpa as áreas da casa que não são dedicadas aos usuários do serviço. Os acolhimentos intensivos possuem poucas regras: não brigar, não roubar, não fazer sexo (uma vez que os quartos são compartilhados), não consumir de drogas ilícitas ou álcool dentro da casa, e fumar cigarros apenas nas áreas para fumantes. A maioria dos quartos é compartilhada por quatro a oito pessoas. Normalmente os serviços possuem um animal de estimação. Muitos usuários veem o acolhimento como um lar acolhedor: “Eu gosto das meninas que moram aqui, da casa, das conversas que temos, do aconselhamento que recebo. Tudo que eu gostaria de ter na minha própria casa, mas não tenho, eu tenho aqui dentro” — US16. Enquanto permanecem no acolhimento, os usuários do serviço podem deixar a casa, mas as saídas devem ser acordadas com seus gerentes de caso. Os membros da equipe avaliam, junto aos usuários do serviço, se eles podem sair e dão conselhos sobre evitar as áreas e comportamentos de risco. Após uma saída, os usuários precisam voltar para o serviço na data e hora acordadas. As saídas podem, por exemplo, ser agendadas para visitar a família, ter um encontro, trabalhar, estudar, ir a um serviço de assistência, tratamento de drogas, ou para usar drogas. Muitos participantes disseram usar maconha para combater a fissura de crack.


“Pedimos pelas saídas para irmos aos Caps AD, ao centro de assistência à saúde, trabalhar, visitar a família, os filhos […] E existe também a ‘saída de redução de danos’. Esta é, para muitas de nós, usar maconha. Então conseguimos meia-hora, vamos, usamos e voltamos” — US13. Ao sair para usar drogas, os usuários do serviço, em sua maioria, usam nas ruas. Quando eles têm dinheiro, alguns preferem alugar um quarto em um hotel barato. A equipe do Programa Atitude entende que o uso de drogas na rua expõe os usuários a riscos. No entanto, as salas de consumo de drogas não são legalizadas no Brasil, e o programa corre o risco de ser fechado caso permita o uso de drogas em suas dependências43. Um dos serviços únicos que Atitude tem para oferecer é um acolhimento intensivo para mulheres e seus filhos e transgêneros do gênero feminino que usam drogas, focando naquelas que estão ameaçadas pela violência e que são mães (ou grávidas). Crianças de até 2 anos podem viver com suas mães na casa. Durante sua residência no acolhimento, a equipe trabalha para fortalecer o autocuidado, a ligação mãe-filho, as relações familiares e a autonomia. “Meu filho estava morando com uma tia minha e agora que eu estou aqui eu posso finalmente tê-lo comigo. Isto me dá muita força, me ajuda muito!” — US14. Uma advogada trabalha em tempo parcial na casa, para ajudar as mulheres que querem recuperar a guarda de seus filhos. A maioria dessas guardas foi tirada devido à negligência e/ou uso de crack. A advogada também tenta evitar a perda da guarda dos filhos e pode ajudar com quaisquer acusações criminais que as mulheres possam ter. Nos centros de convivência e acolhimentos noturnos e acolhimentos intensivos, os usuários do serviço podem participar de uma série de grupos 43 Apesar de ter sido demonstrado o benefício do uso de maconha para conter o comportamento de fissura entre usuários do Programa Atitude (ESCOBAR, 2018), não existe um alinhamento profissional no Programa quanto a essa abordagem ou substituição, tanto por questões legais no país quanto por descrença dos profissionais quanto ao tema, inclusive desligamentos de usuários dos serviços já foram relatados por aqueles que utilizaram da estratégia, dentro ou fora dos serviços. (N. R.)

temáticos. A participação é voluntária, mas os grupos geralmente são cheios. Os grupos podem discutir: redução de danos; vida em comunidade e convivência; família (realizada em conjunto com os familiares); cultura e reflexão (debatendo música, poesia e textos); trabalho com autoestima e autocuidado; e troca de habilidades (acesso à habitação e acesso a serviços de atendimento além do Atitude). O programa também oferece oficinas educativas. Elas vão desde aprender a ler e escrever até a aquisição de habilidades que possam ser usadas nos mercados de trabalho formal e informal. Às vezes, os usuários que já estão no espaço de aluguel social e possuem uma habilidade específica (capoeira, artesanato, serviços de cabeleireiro) são convidados e pagos para ministrar oficinas. Além disso, a equipe oferece atividades externas, como ir a um cinema, teatro, visitar um lugar turístico ou desfrutar de instalações esportivas públicas. Essas atividades de lazer são um incentivo para que os usuários do serviço ocupem outros espaços da cidade e desfrutem de atividades que não envolvem uso de drogas. Outro grupo semanal é a assembleia de usuários, que permite uma participação significativa: “Todas as quartas-feiras há uma assembleia de uma hora onde os usuários do serviço discutem questões importantes para eles. Eles dirigem a assembleia, apresentam suas propostas e lideram a agenda. […] É um espaço de administração em conjunto. Eles propõem mudanças, sugerem oficinas, falam sobre cronograma, relacionamento com a equipe e propõem regras de convivência” — P3. De acordo com a equipe e os usuários, a maioria das questões trazidas pelos usuários do serviço são implementadas. Em um espaço de moradia independente, Atitude oferece moradia com aluguel de até 600 reais (cerca de €130) durante seis meses, renováveis por mais seis meses. As casas podem ser apenas para o usuário, para o usuário com sua família, ou casas com três a quatro usuários. Além do aluguel (geralmente incluindo tudo), o programa oferece um kit básico: uma cama, uma geladeira, um fogão e uma cesta básica de alimentos todos os meses. Os usuários do serviço escolhem a casa e o bairro em que querem morar, com base na segurança e na família ou nas relações de amizade. Lugares onde eles foram

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ameaçados ou lugares que representam um risco excessivo de voltar ao uso problemático de crack são geralmente descartados. As casas precisam ficar em uma região onde haja atendimento básico à saúde e outros serviços fundamentais, saneamento básico e, no caso de crianças morarem lá, escolas próximas. Durante o espaço de aluguel social, o apoio se concentra em reforçar a auto-organização e autonomia: “Estimulamos a geração de renda e a colocação no mercado (estágios), pedimos a eles que procurem uma casa para quando o programa não estiver mais disponível e se organizem para que possam pagar o aluguel. [...] Tentamos levar a responsabilidade de volta para eles, para construir autonomia” — P7. Geralmente, as pessoas que entram no espaço de aluguel social já estão trabalhando informalmente, vendendo salgados ou bebidas nos semáforos,

cuidando de carros ou fazendo faxina. A equipe ajuda os usuários a se engajarem ainda mais no mercado de trabalho, ajudando-os a organizar seus currículos, se candidatar a vagas de emprego e se reintegrar à comunidade. “Já estamos economizando dinheiro e vamos alugar nossa própria casa. Vendemos água no semáforo. Se a cada dia economizarmos 20 reais, no final do mês teremos dinheiro para o aluguel” — US7. No espaço de aluguel social, a equipe e os usuários do serviço têm reuniões semanais para discutir sua organização pessoal e seus planos. As questões que surgem podem variar do tipo de mobília que deve ser comprada e como cozinhar sua própria comida, a como lidar com a solidão e as novas responsabilidades diárias.

Equipe e finanças Número de funcionários envolvidos Serviços

Recife

Jaboatão dos Guararapes

Cabo de Santo Agostinho

Caruaru

Acolhimento

27

25

25

25

Aluguel social

2

2

2

2

Acolhimento temporário/noturno

28

29

28

29

Abordagem social

6

6

6

6

Total

248

O Atitude é totalmente financiado pelo governo estadual e funciona através de uma parceria públicoprivada. Os recursos são transferidos do governo, através do Programa Atitude, para Organizações da Sociedade Civil (OSC), que gerenciam os serviços e recursos. A lei brasileira limita os gastos com pessoal em até 50% do orçamento dos convênios públicoprivados. O restante do orçamento é destinado para a execução dos serviços, pagamentos de aluguel, carros, combustível, alimentos, manutenção e outras coisas. As três OSCs que atualmente gerenciam programas do Atitude são Cercap (Centro Brasileiro de Reciclagem e Capacitação Profissional, em Caruru), IEDES (Instituto Ensinar de Desenvolvimento Social, em Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho) e CPD (Centro de Prevenção às Dependências, em Recife). Cada um dos quatro serviços de aluguel social emprega um psicólogo ou um assistente social e um motorista em tempo integral. 68

Cada acolhimento intensivo emprega: um coordenador e um supervisor em tempo integral, um funcionário administrativo em tempo integral, dois psicólogos em tempo integral e um assistente social por 30h por semana, quatro educadores sociais (dois para o dia e dois para o turnos da noite, trabalhando 12/36), dois cuidadores para os turnos da noite, quatro vigilantes (dois para o dia e dois para o turno da noite, trabalhando 12/36), três cozinheiros (um em tempo integral e dois trabalhando 12/36), dois auxiliares de limpeza (trabalhando 12/36), e um motorista (em tempo integral). Neste serviço também são ofertadas 50 horas mensais de oficinas ministradas por oficineiros44, incluindo aí desde atividades de qualificação profissional e arteeducação, por exemplo. 44 Os oficineiros são profissionais que não fazem parte do quadro de funcionários, assim, os serviços são pagos fora do orçamento previsto para pessoal. Atividades de cozinha, artesanato, pintura, saúde, etc., são algumas entre várias atividades disponibilizadas. (N. R.)


Recursos financeiros do Atitude em 201745 Recursos financeiros do Atitude em 201745 Serviços

Recife

Jaboatão dos Guararapes

Cabo de Santo Agostinho

Acolhimento intensivo

R$ 1.968.851,69

R$ 1.820.780,35

R$ 1.820.799,61

R$ 1.873.105,75

Aluguel Social

R$ 243.335,29

R$ 184.804,69

R$ 184.804,69

R$ 167.525,04

Acolhimento temporário /noturno

R$ 1.831.054,19

R$ 1.933.340,10

Abordagem social

R$ 297.097,50

R$ 297.097,50

R$ 297.097,50

R$ 297.097,50

Segurança social e taxas de emprego

R$ 1.011.110,19

R$ 986.809,09

R$ 970.926,74

R$ 990.660,79

Total previsto por serviço

R$ 4.340.338,67

R$ 4.236.022,64

R$ 4.167.845,30

R$ 4.252.556,60

R$ 1.865.143,50

Total previsto Total investido por serviço

Caruaru

R$ 1.914.828,31

R$ 16.996.763,21 R$ 4.008.019,53

R$ 3.488.087,89

Total investido

Os acolhimentos temporários e noturnos têm equipes semelhantes aos acolhimentos intensivos, menos os motoristas e tendo quatro educadores sociais a mais. Outra diferença é no quantitativo de horas de oficinas ofertadas por esse espaço de 30 horas mensais. Cada cidade tem duas equipes de abordagem social, e cada equipe é formada por um psicólogo em tempo integral ou assistente social, um educador social em tempo integral e um motorista em tempo integral.

R$ 3.944.861,98

R$ 3.833.634,85 R$ 15.274.604,25

(R$ 259,9) anuais por pessoa auxiliada (mais de uma vez – 1147 PQUE) por ano e €7,40 (R$ 32,50) por pessoa abordada sem mais encaminhamentos (9149 PQUE). Os custos per capita foram calculados descontando pessoas que foram auxiliadas em mais de um serviço no Atitude (com exceção do Atitude nas Ruas).

Parcerias

Em 2017, o orçamento total para Programa Atitude foi de R$ 15.274.604,25 (cerca de €3.500.000)46. Cada acolhimento intensivo atendeu, em média, 187 pessoas por ano. O custo médio por pessoa por ano nesses serviços foi de cerca de €2.377 (R$ 10.018). Para o mesmo ano, cada serviço de aluguel social auxiliou, em média, 16 pessoas por ano. O custo médio por pessoa auxiliada/ano foi de €2.940 (R$ 12.388). Para o acolhimento temporário/noturno, estes números envolveram 609 pessoas auxiliadas e um custo de €735 (R$ 3.097) por pessoa/ano. Para a abordagem social, os custos caem para €61,5

Uma boa quantidade de comunicação acontece entre os diversos serviços do Programa Atitude. Quando um serviço não tiver vaga e houver uma situação urgente, o primeiro passo é encaminhar para outro serviço do Atitude em uma cidade diferente. Há também um fluxo constante de usuários do serviço entre os diferentes níveis do programa. Isso acontece porque os usuários do serviço podem atingir níveis mais independentes de assistência, ou porque não conseguem lidar com a autonomia necessária para um determinado nível e precisam de um serviço com um limite mais baixo de autonomia. Pode ser também que os usuários deixem o programa e voltem semanas, meses ou anos depois. Muitos participantes que entrevistamos passaram por diferentes serviços do Atitude.

45 Os valores presentes foram atualizados e diferem, deste modo, daqueles apresentados no relatório original, nos quais se apresentou os valores previstos. (N. R.) 46 1 € = R$ 4,2134 (Reais brasileiros). (N. R.)

Além desta rede interna, o Atitude também trabalha conectando os usuários com outros serviços da Rede na cidade e região. Antes do Atitude ser implementado em uma cidade, o município deve

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ter um mínimo de serviços disponíveis: Um Centro de Atenção Psicossocial para a Saúde Mental, um Centro de Referência para Assistência Social (CRAS), um Centro de Referência Especializado para Assistência Social (CREAS) e Atendimento Básico à Saúde. A parceria com CRAS e CREAS é útil para que os usuários acessem benefícios sociais, organizem documentos pessoais (como documentos de identidade, certidão de nascimento, título de eleitor) e tenham acesso a cursos profissionalizantes. Normalmente, os usuários do serviço não possuem documentos, por isso precisam organizá-los no início de sua trajetória. Para cursos profissionalizantes, o Atitude também tem parcerias com Institutos Federais em algumas cidades (como em Caruaru). Alguns dos cursos disponíveis são: lavanderia profissional, recreação em festas e eventos, mecânica, design de moda, padaria, culinária, ou vendas. A equipe tenta adequar os cursos disponíveis através de serviços públicos ao interesse dos usuários do serviço. Os usuários que se beneficiam de cursos profissionalizantes geralmente são aqueles em um acolhimento intensivo ou em um aluguel social, pois se encontram melhor organizados e trabalhando sua independência financeira. Para quem não sabe ou tem dificuldade de escrever e ler, o programa Paulo Freire oferece oficinas dentro dos serviços do Atitude. Além disso, a equipe encaminha os usuários para cuidados primários à saúde, hospitais, Caps AD, unidades de emergência, ortopedia, pneumologia, gastroenterologia, testes e aconselhamento para HIV, sífilis e hepatite, e dentistas. “Recebemos muitos pedidos para clínico geral e dentista. Quando as pessoas param de usar drogas, a dor de dente costuma ser muito forte. [...] Eles não mantiveram uma boa higiene pessoal e – como dizem os dentistas – o uso prolongado de crack pode desgastar o esmalte dos dentes. Eles também costumam ter dores de estômago. Quando começam a reorganizar sua vida, dormem no serviço, comem, diminuem o uso de crack, então começam a sentir dor” — P5.

Os principais desafios cooperativos estão no judiciário e na polícia. Particularmente, no caso de mães que usam drogas, os juízes tendem a tirar a custódia das mães, a menos que estejam completamente abstinentes de drogas: “Tirar as crianças de uma mãe [...] deveria ser o último recurso. Tentamos defender isso. […] Os juízes, para a maioria deles redução de danos não existe. Eles acham que uma mãe não pode, de forma alguma, ser uma usuária de drogas. Isso é realmente irrealista” — P8. Parcerias com a polícia também são muito desafiadoras. Os usuários do serviço auxiliados pelo programa de abordagem social frequentemente relatam espancamentos e ataques surpresa por parte da polícia. Os agentes da polícia têm uma lista de serviços sociais e de saúde que precisam visitar em suas áreas, como parte de seu trabalho com a comunidade, e os centros de atendimento e os acolhimentos do Atitude estão incluídos nesta lista. Alguns policiais entram nos serviços e se sentam para conversar e jogar com os usuários. Outros policiais, no entanto, entram com metralhadoras e se recusam a conversar com os usuários do serviço. E alguns nem sequer visitam os serviços. Vários policiais questionam o trabalho que está sendo feito no Atitude, já que não há abstinência forçada. De acordo com a equipe do Atitude, os policiais ainda precisam ter uma compreensão adequada do que é redução de danos e mudar seu comportamento em relação às PQUD e ao Programa.

Sucessos e desafios

De acordo com os usuários do serviço e a equipe, o programa tem sido muito bem-sucedido. Em uma avaliação prévia do programa, os usuários do serviço declararam que Atitude os ajudou a aumentar o autocuidado, a organização e o bem-estar, fortalecer as relações familiares, diminuir o consumo de crack e a ansiedade, aumentar a sociabilidade e a proteção contra a violência e trouxe a sensação de ser bem-vindo e respeitado (RATTON; WEST, 2016). Em nossas entrevistas, todos esses sucessos foram mencionados pela equipe e pelos usuários do serviço e, além disso, os usuários mencionaram que Atitude os ajudou a aumentar o controle sobre o uso de crack47 e a aumentar a geração de renda. 47 Em Santos et al. (2019a) foi possível demonstrar através da técnica de árvore de decisão que a permanência dos usuários no

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Embora o Atitude não se concentre no uso de droga propriamente dito, a segurança que ele promove levou muitos a diminuir o uso de crack ou usar crack de forma mais controlada48. De acordo com os participantes, ter um lugar para ficar ajuda a diminuir o uso compulsivo do crack (OSF, 2017). Dos 93% que foram identificados como usuários frequentes de crack antes do início do programa, 36% interromperam o uso de crack e 64% diminuíram o consumo (RATTON; WEST, 2016). Um uso mais controlado do crack também foi mencionado pelos participantes do nosso estudo: “Atitude me ajudou a me organizar melhor [...] perdi meu emprego, perdi quase todos os dentes por causa do uso de crack. Quase morri, morri de fome, roubei e menti muito para conseguir drogas. Hoje ainda uso drogas, mas faço isso de forma completamente diferente. Primeiro eu me organizo. O dinheiro que recebo vai primeiro para todas as necessidades que tenho: comida, roupas, perfumes, materiais de trabalho. E só uso duas vezes por mês. […] Uso sabendo que no dia seguinte não terei que ir trabalhar ou acordar cedo. Porque eu sei que ainda estarei sob influência e cansado, e não posso ajudar meus participantes desse jeito” — US4. De acordo com a equipe, a habitação desempenha um grande papel nas oportunidades que as pessoas recebem: “Vemos que a droga consegue desempenhar um papel diferente em suas vidas. Não têm mais o papel principal. É aí que a gente vê que essa é uma questão social, não é uma questão de droga [...] Se você tiver outras escolhas, outras oportunidades, sua vida não vai girar em torno das drogas. Quando você cuida da sua própria casa, experimenta o prazer de cozinhar o seu próprio almoço e convidar seu filho para o almoço, isso muda tudo” — P7.

Programa nas casas de Acolhimento Intensivo é o principal critério promotor de redução do padrão de consumo de drogas, ampliando usos baixos e abstinência, assim, indicando o papel da proteção social e da moradia na organização dos usuários em relação ao uso de drogas. (N. R.) 48 Evidência demonstrada nos estudos de Ratton e West (2016), Santos et al. (2016), Escobar et al. (2015), e mais recentemente em Santos et al. (2019a). (N. R.)

Imagem2: Compartilhando fotos durante visita da equipe no aluguel social

Ter uma casa também trouxe aos usuários do serviço uma sensação de calma, por terem um espaço seguro e poderem assumir responsabilidades: “Tudo começou a andar como deveria depois que entrei no aluguel social. Tenho meu porto seguro, minha casa. Eu chego, tomo banho, ligo a TV… Tenho meu espaço, minha tranquilidade. Tenho responsabilidades e sou feliz. O aluguel social me mostrou que posso manter uma casa” — US6. Os usuários do serviço de aluguel social, em geral, desenvolvem um bom relacionamento com o bairro e sentem-se orgulhosos de poder cuidar de si e, em alguns casos, de seus filhos. Para alguns, no entanto, o isolamento relativo de morar em uma casa, em vez de um abrigo ou nas ruas, e as responsabilidades crescentes que resultam disso, podem ser um desafio. Em um caso, um usuário estava se sentindo muito solitário e a equipe ajudou aumentando os turnos de trabalho e as atividades sociais, além do trabalho. Às vezes os usuários têm dificuldades em cuidar de uma casa e se manter financeiramente. Alguns pedem para voltar para os abrigos para se sentirem mais seguros. Depois de ter enviado os usuários das habitações sociais de volta aos abrigos, muitas vezes, a equipe do Atitude agora mudou sua perspectiva. A partir de experiências anteriores, disseram os funcionários, eles aprenderam que é

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melhor ajudar os usuários a lidar com as dificuldades enquanto permanecem no aluguel social, de modo a aumentar sua autonomia. Aconteceu também, no entanto, que as pessoas nas habitações sociais recaíssem no uso descontrolado do crack e acabassem vendendo os móveis e/ou abandonando o programa. Essas situações podem ser muito desafiadoras. Quando os usuários do serviço vendem seus móveis, eles são dispensados do programa. Às vezes as pessoas voltam depois de uma semana ou duas pedindo para voltar ao abrigo ou outro serviço. A equipe decide, caso a caso, se isso é possível e se o usuário do serviço precisa retornar os objetos vendidos ou não. Como todos os objetos são propriedade do governo, o programa é responsabilizado por quaisquer perdas, mas ao mesmo tempo, eles precisam lidar com a realidade de seus usuários do serviço. Além disso, os beneficiários do acolhimento intensivo mencionaram que o programa os ajudou a diminuir seu uso, aumentar o autocuidado e aprender formas diferentes de gerar renda. Ocupando-se de artes e ofícios, vendendo bebidas não alcoólicas e salgados no semáforo, lavando carros ou limpando casas, tais atividades deram às pessoas outra perspectiva sobre o que elas podem fazer com seu tempo. As oficinas oferecidas pelo Atitude ensinaram às pessoas como produzir coisas e vendê-las também; por exemplo, como usar técnicas de venda e calcular um preço justo de venda: “Hoje em dia consigo sobreviver das minhas palavras. Aprendi a falar com as pessoas. Pego alguns sacos de pipoca e vou ao semáforo para vendê-los. Digo “bom dia” para as pessoas, tenho o meu argumento de venda. É uma maneira de manter meu consumo de droga sem fazer nada de errado, sem roubar” — US3. Um desafio, ainda, é entrar no mercado formal49. Em abril de 2018, a taxa de desemprego no Brasil era de 13%. Além disso, empregos formais correspondem a cerca de um terço do mercado. No final de 2017, apenas 36% da população economicamente ativa tinha empregos formais, enquanto 25% eram 49 Dados governamentais do monitoramento do Programa Atitude mostram que 98% dos usuários dos serviços quando ocupam postos de trabalho esses se concentram no mercado informal e apenas 2% no mercado formal. (N. R.)

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trabalhadores autônomos e 12% trabalhavam informalmente (IBGE, 2018). Muitas PQUE não possuem educação formal suficiente para competir por vagas no mercado formal. Em uma pesquisa anterior, 97% dos usuários em acolhimentos intensivos declararam que sua saúde melhorou depois que eles participaram do programa (RATTON; WEST, 2016). Outro benefício que os participantes mencionaram, em todos os níveis do programa, foi que o Atitude os ajudou a reconstruir as relações familiares. Especialmente para as usuárias, o fortalecimento do vínculo com os filhos foi mencionado como uma conquista importante50. Tanto para as usuárias quanto para os funcionários, esse processo de reaproximação estava geralmente relacionado ao desenvolvimento do autocuidado em primeiro lugar: “Iniciamos o processo de autocuidado incentivando-as a começar a cuidar de si mesmas. Não apenas em termos de higiene, mas olhando para si mesmas e pensando sobre o que querem, qual é o propósito delas dentro da casa, por que elas participam do programa. Elas começam a pensar sobre isso; a gente consegue ver as mudanças [...] Quando começam a se importar consigo mesmas, o cuidado com os filhos também aumenta” — P9. Muitas mulheres também costumavam estar em relacionamentos abusivos, e sua participação no programa ajudou-as a construir e se envolver em relações mais saudáveis. A equipe discute essas questões, tanto em grupos quanto individualmente. Apesar dos sucessos, algumas mulheres têm dificuldade em se relacionar com seus filhos, mesmo quando expressam o desejo de ter as crianças perto delas. Às vezes seus filhos ficaram em abrigos por muito tempo e o relacionamento precisa ser reconstruído. Pode ser também que elas não passem o fim de semana com as crianças quando podem ou não tenham paciência para cuidar dos filhos quando estão por perto. Segundo a equipe do Atitude, muitas mulheres já tiveram a experiência de ter tido alguém ajudando a cuidar de seus filhos e tendem a buscar isso no serviço. Nestes casos, a equipe tenta trabalhar sua autonomia. Quando as 50 Ademais, a vinculação com filhos e a família foram capazes de aumentar os níveis de baixo uso (39,9%) de drogas e abstinência (34,4%) em cerca de 74% dos casos (SANTOS et al., 2019a). (N. R.)


mães precisam limpar o banheiro e cuidar do bebê ao mesmo tempo, por exemplo, a equipe as ajuda a desenvolver estratégias para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, sem depender de outra pessoa. Pode ser tão simples quanto fazer a atividade quando a criança está dormindo.

Imagem 3: Centro de Acolhimento Intensivo Mulher

Um último desafio importante que o programa enfrenta é a falta de vagas. Mesmo quando os serviços estão funcionando na sua capacidade total, ainda existem pessoas que precisam dos serviços, mas não podem entrar. A equipe tenta trabalhar com prioridades, dando preferência a casos mais graves de vulnerabilidade, saúde e violência. Encontrar prioridades entre uma população que já é extremamente vulnerável é percebido como uma tarefa difícil. Um desafio adicional é que, desde a crise financeira de 2015, alguns serviços foram fechados, como o acolhimento intensivo masculino de Recife (ficando apenas o feminino), e funcionários foram demitidos. Isso afetou diretamente o trabalho da equipe, e muitos acham que a demanda é muito maior do que aquilo que eles podem oferecer. A equipe tenta auxiliar mais pessoas do que a capacidade atual e tenta encontrar serviços alternativos que permitam aos usuários ficar por um período mais longo do que a norma usual.

Seguindo em frente

A equipe e os beneficiários do Atitude aguardam o crescimento do programa. Tanto a equipe quanto os usuários gostariam que o Atitude se expandisse para ajudar menores de idade. Há muitos usuários de crack menores de idade, em situações muito

vulneráveis, que precisam de ajuda, mas atualmente não têm um lugar para ir. Planos para ajudar pessoas com menos de 18 anos, a partir de uma perspectiva de redução de danos, são um desafio. De acordo com o Sistema Judiciário, menores não podem decidir por si mesmos o que é melhor para eles, e assim, a abstinência é a melhor abordagem. O Atitude ainda está fazendo pressão nesse sentido. O programa também tem planos para melhorar sua rede de empregos para os usuários do serviço51. Eles estão em busca de parcerias com empresas, que poderiam contratar pessoas e talvez consigam deduções fiscais em troca. Esse tipo de parceria tem que ser desenvolvida pelo governo na Secretaria de Política de Drogas, e o programa espera que essa função esteja funcionando em breve. Outro plano importante é desenvolver uma melhor parceria com a polícia, para que os policiais possam apoiar as atividades do programa nas ruas e nos serviços. É um paradoxo que o estado apoie a redução de danos e, ao mesmo tempo, perpetue a violência contra PQUD. Um dos principais objetivos do Atitude para o futuro é garantir que o programa possa manter suas atividades e aumentar seu orçamento e suas vagas. “Eu realmente gostaria que o programa crescesse, porque vemos que o programa os ajuda. E vemos que existem tantas outras pessoas que poderiam fazer parte do programa e ser ajudadas, mas não são, porque não há vagas” — P9. Além de mais vagas para os usuários do serviço, a equipe também gostaria de ter mais recursos humanos disponíveis para poder dar maior suporte aos usuários. Usuários do serviços também gostariam que o programa oferecesse mais casas, mais vagas em abrigos e no centro de atendimento, para beneficiar mais pessoas. Todos conhecem 51 Prevendo a dificuldade de inserção dos acolhidos pelo Programa Atitude, o Governo do Estado sancionou a Lei 15.209 de 17/12/2013, na qual as empresas prestadoras de serviços terceirizados, contratadas por órgãos e entidades do Poder Executivo Estadual, deveriam prever no edital da licitação pelo menos 2% (dois por cento) da mão de obra contratada, por empresas que possuam 100 (cem) ou mais empregados, fossem advindos de beneficiários que são ou foram acompanhados pelo Programa Atitude (entre outros serviços). Entretanto, a lei nunca foi regulamentada e por isso não tem efeito até o período atual. (N. R.)

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muitas outras pessoas usando crack que poderiam se beneficiar do Atitude e, em geral, avaliam o Atitude como o melhor serviço disponível. Os desafios aqui são a resistência de alguns municípios e também a política. “Ainda temos que enfrentar a resistência de alguns municípios. Em um caso, o município diz que o Atitude trouxe usuários de crack para a cidade. Mesmo que nossos dados mostrem que a maioria dos usuários que ajudamos na área é de lá” — P2. A atual mudança na direção da política nacional também está preocupando a administração e a equipe. O programa foi estabelecido por um decreto, mas no caso de uma mudança política radical, eles temem pela revogação do decreto ou uma redução drástica do orçamento. Todos estão, contudo, lutando para manter a esperança.

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LIÇÕES APRENDIDAS

1

Seja receptivo e promova a autonomia. Os usuários do serviço precisam ser respeitados em seus limites e apoiados em suas possibilidades.

2

Ter um programa de habitação integrado ajuda a manter contato com os usuários do serviço e se adaptar às suas necessidades de apoio, na vida e no uso de drogas, já que estas se desenvolvem ao longo do caminho.

3

Acredite nas pessoas que você ajuda e construa serviços com a participação delas.


5.2 Chem-Safe Um exemplo de intervenção online para pessoas que praticam chemsex na Espanha “[A consulta da Chem-Safe] evidentemente mudou minha vida – parei de consumir estimulantes regularmente e, acima de tudo, meu consumo de álcool caiu muito. Às vezes tomo estimulantes, mas não tenho mais a necessidade de fazer bobagens o tempo todo. Se eu puder fazer sexo, eu faço. E se eu não puder, não faço, e é isso aí. Estou muito mais calmo agora” — US2.

Em 2012, os profissionais que atuavam nos campos do uso de drogas e da saúde sexual perceberam, pela primeira vez, o fenômeno do chemsex entre as comunidades LGBT da Espanha. A partir de 2016, a evidência científica confirmou essas observações. À semelhança de outras grandes cidades europeias, o chemsex tem aumentado em grupos específicos de homens que fazem sexo com homens (HSH) nas grandes cidades da Espanha, particularmente Madri e Barcelona. Chemsex é a combinação intencional de sexo com o uso de certas drogas, principalmente em ambientes privados entre HSH (GIORGETTI et al., 2017; STUART, 2016; BOURNE et al., 2015; MCCALL et al., 2015). Trata-se de um fenômeno complexo, envolvendo o uso de drogas, problemas relacionados a doenças infecciosas, associações com questões psicossociais e psiquiátricas, orientação sexual, bem como a associação com práticas (sexuais) de risco. Em resposta ao aumento em chemsex na Espanha, a Energy Control – um programa da ONG espanhola Asociación Bienestar y Desarrollo (ABD) – iniciou um projeto online, chamado Chem-Safe, em 2017. Seu objetivo é fornecer informações objetivas e conselhos às pessoas que usam drogas em um contexto sexual, incluindo algumas informações específicas para pessoas vivendo com HIV (que podem estar em tratamento antirretroviral) (ABD, 2017). Todas as informações e conselhos são baseados nos princípios da prevenção e redução de danos. Além disso, o site tem como objetivo conectar ONGs que atuam em diferentes campos. O site chem-safe. org foi lançado em janeiro de 2017, em colaboração

Imagem 4: Espanha

com várias organizações que trabalham nos campos dos direitos LGBT, PVHIV e redução de danos. Em abril de 2017, um serviço online de aconselhamento e apoio foi adicionado. Mais tarde naquele ano, um blog também foi adicionado ao site.

Espanha

A Espanha é um país de grandes dimensões no sul da Europa. A Espanha faz fronteira com o Mar Mediterrâneo (e Marrocos) ao sul, o Oceano Atlântico e a França ao norte e Portugal a oeste. Seu território inclui as Ilhas Baleares no Mediterrâneo e várias ilhas, incluindo as Ilhas Canárias, na costa

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Imagem 5: Ilustração principal na primeira página do site

da África. É o lar de aproximadamente 46 milhões de habitantes. A Espanha é uma monarquia constitucional e uma democracia, com uma constituição que data de 1978. O país sofreu sob a ditadura do general Franco até 1975, depois da qual o país lentamente retornou à democracia. A Espanha é uma nação altamente descentralizada, composta por 17 comunidades autônomas e duas cidades autônomas. Cada comunidade autônoma tem seu próprio governo, parlamento e recursos. É importante ressaltar que os sistemas de saúde e educação estão sob responsabilidade dos governos autônomos. Dentro do país, diferentes nacionalidades, como basca, catalã, galega e andaluz são reconhecidas e, além do espanhol, outras línguas também são reconhecidas oficialmente. A economia espanhola depende fortemente da indústria do turismo. Recebendo um número recorde de 82 milhões de turistas em 2017, foi o segundo país mais visitado do mundo pelos turistas (LA MONCLOA, 2018). A Espanha foi um dos países da Europa mais afetados pela crise econômica iniciada em 2008. As pessoas continuam afetadas pela insegurança no mercado de trabalho e as taxas de desemprego de longo prazo estão entre as mais altas, em comparação com outros países na Europa ou a OECD (OECD, 2018a). A população jovem é afetada de maneira especial, com taxas de desemprego que variam entre 57% em 2014 e quase 40% no final de 2017 (OECD, 2018b). A Espanha também está entre os países mais desiguais da Europa (atrás apenas da Sérvia, Bulgária,

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Lituânia e Romênia), com 34,5 pontos no índice de Gini, que mede as diferenças na desigualdade de renda. Desde 2014, o PIB do país cresceu, mas a desigualdade econômica aumentou. A Espanha é o segundo país da UE onde a desigualdade mais cresceu desde a crise econômica, e onde continuou a aumentar apesar dos anos recentes de crescimento econômico (OXFAM INTERMÓN, 2017).

Uso de substâncias na Espanha

Na Espanha, a prevalência do uso de substâncias tem se mantido relativamente estável nos últimos anos, embora a prevalência das substâncias mais consumidas – maconha e cocaína, respectivamente – esteja acima da média europeia. Substâncias são consumidas principalmente por pessoas abaixo de 35 anos (EMCDDA, 2017d). No entanto, a população abordada neste capítulo – HSH, que pratica chemsex– tem um perfil diferente. Na Espanha, a prática do chemsex é mais comumente referida como uma sessão. É um fenômeno relativamente novo no país e, por esse motivo, a literatura científica é limitada. A atenção da mídia sensacionalista, por outro lado, não tem sido pouca. Apesar da cobertura desproporcional da mídia, estudos científicos e entrevistas em nosso estudo concordam que o fenômeno ainda é relativamente pequeno e concentrado principalmente nas maiores cidades do país: Madri e Barcelona. Além de seu tamanho, é provável que seu status como destinos turísticos populares para os turistas LGBT os conecte mais ao resto da Europa (ZARO et al., 2017). A maioria dos HSH que pratica chemsex na Espanha


são homens solteiros e altamente qualificados com uma idade média de 35 anos. A grande maioria (quase 80%) usa aplicativos geoespaciais – como Scruff e Grindr – para entrar em contato com outros homens. Os homens também se conectam através de sites, bares e clubes (ZARO et al., 2017). Uma pesquisa recente entre pessoas que praticam chemsex mostrou que as substâncias mais consumidas entre os grupos são poppers (85%), GHB (71%), Viagra (70%), álcool (69%), cocaína (63%), ecstasy (61%), mefedrona (56%), metanfetamina (42%) e cetamina (ou ketamina) (40%) (ZARO et al., 2017). Dos estimulantes, cocaína e mefedrona são mais frequentemente inalados, embora 10% dos entrevistados neste estudo também tenham informado injetar mefedrona. A metanfetamina é, em grande parte, fumada (57%), mas também inalada (19%) e injetada (11%) (ZARO et al., 2017). Os entrevistados concordam que a metanfetamina, mais conhecida como Tina, e a mefedrona são os estimulantes mais utilizados nas cenas de chemsex, sendo a metanfetamina mais comum em Barcelona e a mefedrona mais comum em Madri. As páginas informativas no site Chem-Safe que são mais frequentadas pelos visitantes são aquelas sobre metanfetamina, mefedrona, GHB e cetamina, o que sugere ainda que estas são as substâncias mais usadas. De acordo com um estudo recente sobre o chemsex, injetar estimulantes, ou slamming, é incomum entre os homens (ZARO et al., 2017). A maioria dos entrevistados neste estudo de caso concorda com esses dados. Isso se deve, em parte, ao fato do uso injetável ainda estar conectado a usuários de heroína marginalizados da década de 70, especialmente para usuários mais velhos. As pessoas mais jovens que praticam chemsex a veem como algo mais erótico e ligado a drogas e sexo. “A população mais jovem que não reconhece injetar drogas como algo marginal ou ‘típico de um viciado’ começou a erotizá-las, vendo-as como algo associado ao desejo e sexo. Portanto, essa concepção de marginalidade e exclusão associada ao uso injetável se perdeu. A tal ponto que hoje, dentro da cena de chemsex, às vezes é concebida como algo estético, não como algo ligado à exclusão social” — P5.

Aqueles que praticam o slamming raramente compartilham materiais injetáveis (12%). Contudo, os equipamentos para cheirar são compartilhados com frequência (85%). Recentes estudos científicos têm notado diversas ligações entre problemas (mentais) de saúde, por um lado, e o uso de aplicativos de geolocalização, participação em atividades sexuais em grupo, o poliuso de novas substâncias psicoativas como a mefedrona, por outro lado. Os pesquisadores observam uma alta prevalência de transtornos psiquiátricos (mais especificamente, ansiedade, depressão e transtornos de adaptação), mas também psicose relacionada com o slamming da mefedrona (BALLESTEROS-LÓPEZ et al., 2017; FERNANDEZ-DÁVILA; FOLCH; ROCA,2017; OCÓN, 2017; CAUDEVILLA-GALLIGO, 2016; DOLENGEVICH-SEGAL et al., 2016; FERNÁNDEZDÁVILA, 2016).

Política de drogas e redução de danos

A Estratégia Nacional sobre Drogas da Espanha concentra-se na redução da oferta e procura, que inclui prevenção, redução de riscos e danos, tratamento e reintegração social. Lançada no início de 2018, a Estratégia Nacional sobre Dependência Química (ENA) 2017 – 2024 baseia-se nas Estratégias Nacionais sobre Drogas anteriores (ex., a Estratégia Nacional sobre Drogas 2009 – 2016) e em vários Planos de Ação sobre Drogas. O objetivo é criar uma sociedade mais saudável e informada, reduzindo tanto a demanda por drogas quanto a prevalência de dependência química. Seu segundo objetivo principal é criar uma sociedade mais segura, por meio da redução da oferta (MINISTERIO DE SANIDAD SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD, 2018). Em nível nacional, o Conselho Espanhol para Dependência de Drogas e Outras Dependências é responsável pelo desenvolvimento e implementação de todas as políticas relacionadas a drogas e dependência química. A Delegação do Governo para o Plano Nacional sobre Drogas é o coordenador nacional da política sobre drogas, e está sob a égide do Ministério da Saúde, Serviços Sociais e Igualdade. Ele coordena as instituições envolvidas no fornecimento da estratégia de drogas nos níveis da central administrativa, comunidades regionais/autônomas e locais. Cada comunidade autônoma também tem seu próprio comissário de drogas (EMCDDA, 2017d). O consumo de drogas

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não é considerado crime na Espanha, embora o uso em público seja uma ofensa séria, sujeita a multas. A esmagadora maioria dos infratores da lei de drogas é acusada de infrações relacionadas com a posse; em 80% dos casos, isto está relacionado à maconha (EMCDDA, 2017d). A redução de danos é um dos principais objetivos da ENA. A Espanha tem uma grande rede pública de prestadores de serviço de redução de danos que oferece, por exemplo, atividades de prevenção à superdosagem, agulhas e seringas esterilizadas, testes para infecções relacionadas a drogas, vacinas contra hepatite A e B e cuidados de emergência e assistência a pessoas que usam drogas injetáveis (EMCDDA, 2017d). O tratamento de substituição com opioide também está disponível nacionalmente e as comunidades autônomas da Catalunha e do País Basco oferecem salas de consumo de drogas (EMCDDA, 2017d).

Origens do Chem-Safe

Por volta de 2012, os profissionais que atuavam nos campos da saúde sexual, redução de danos, atendimento à dependência química, prostituição masculina e comunidades LGBT começaram a perceber que os HSH estavam usando cada vez mais substâncias em contextos sexuais. Durante as consultas sobre HIV e DST, os pacientes relataram o uso de drogas (injetáveis) durante o sexo e mencionaram experimentar efeitos adversos do uso de drogas. Essas observações foram solidificadas com a publicação de diversos artigos científicos em 2016 e 2017. Chemsex é considerado um fenômeno complexo, tendo ligações com práticas de risco (sexuais) e, por sua vez, com a transmissão de doenças infecciosas como o HIV e o vírus da hepatite C (HCV). Lidar com a condição de ter sido recentemente diagnosticado com HIV pode ser difícil. De acordo com vários entrevistados, alguns homens lidam com isso mergulhando na cena de chemsex; alguns imediatamente dão início ao slamming, mesmo que não tenham usado drogas anteriormente. Isso também está associado à baixa adesão ao tratamento entre PVHIV, e os HSH que participam do chemsex frequentemente enfrentam problemas de autoestima, dificuldade de aceitar a própria orientação sexual ou homofobia internalizada, solidão e isolamento social vinculado ao fato de

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ser HIV (soro)positivo (ABD, 2017). Além disso, os entrevistados também notam muita ansiedade, depressão, transtornos do humor e, em alguns casos, episódios psicóticos. Esses dados confirmaram o que já havia sido notado em outras grandes cidades europeias, como Berlim, Londres e Amsterdã, e cada vez mais também por profissionais na Espanha. As instituições de saúde pública pareciam ter pouco conhecimento sobre, ou serviços para, este fenômeno emergente, e este subgrupo de HSH. Por essas razões, em 2016, a Energy Control propôs criar uma plataforma para informar este grupo alvo, bem como conectá-lo a várias organizações acolhedoras (baseadas em Barcelona, Madri, Valência e País Basco) que trabalham em áreas complementares, como os direitos LGBT, promoção da saúde (sexual), tratamento do HIV, diversidade de gênero e sexual, inclusão social e redução de danos. Em consulta com onze ONGs e outras organizações, a Energy Control coordenou o desenvolvimento de um site informativo sobre chemsex. Seu propósito é fornecer informações objetivas sobre substâncias, interações de drogas, riscos, assim como dicas de redução de danos para essa população de alto risco. O site é direcionado aos HSH que usam drogas em um ambiente sexual e é baseado em uma abordagem de redução de danos e prevenção, mas pode ser útil para qualquer um que use drogas em um contexto sexual. Uma pequena parte do site destina-se a profissionais e inclui vários artigos e estudos científicos recentes, bem como links para informações adicionais. O site chem-safe.org foi lançado em janeiro de 2017. Em abril de 2017, foi adicionado um serviço online de aconselhamento e apoio, que pode ser obtido preenchendo um formulário de solicitação no site. O Dr. X, que é o coordenador do projeto e trabalha (como voluntário) neste projeto, responde à maioria das perguntas por e-mail. Perguntas mais complicadas podem ser respondidas por videoconferência. A população alvo consiste principalmente em homens adultos. A maioria tem aproximadamente 35 anos ou mais, embora um entrevistado tenha mencionado ter contato com um garoto de 16 anos que também praticava chemsex. 50 anos de idade é frequentemente mencionado como o limite superior. Segundo os entrevistados, a maioria vem


da classe média ou alta e tem uma situação de trabalho estável. Ao mesmo tempo, eles também veem que esta estabilidade está ameaçada pelo seu envolvimento em chemsex, levando a uma deterioração econômica, social e relacionada ao trabalho. Os entrevistados acrescentam que outras questões importantes para este grupo são mais de natureza psicológica; por exemplo, homofobia internalizada e sorofobia (que não aceita a própria homossexualidade e status de HIV, respectivamente), bem como depressão, ansiedade e estresse relacionado à orientação sexual e status de HIV (soropositivo). Os usuários de chemsex enfrentam problemas complexos, em parte porque as questões relacionadas ao uso problemático de drogas, sexo e algumas das questões acima, como a intimidade, estão fortemente interligadas.

Tina. […] Claro, eu gostava do sexo, mas sentia falta do vínculo emocional…. Usava drogas para me livrar dos bloqueios na minha cabeça, para poder experimentar coisas novas. Eu queria, ao menos, ter uma conexão emocional com as pessoas com quem eu fazia sexo, para não me sentir mal depois” — US3. Este grupo é visto como sendo de difícil acesso por várias razões: porque não consideram as suas próprias práticas arriscadas, porque o chemsex ocorre em ambientes privados, mas também porque a maior parte das práticas de redução de danos é frequentemente dirigida a pessoas marginalizadas, que usam heroína, e porque os homens muitas vezes se deparam com profissionais que não estão familiarizados com o fenômeno.

Na prática

Panfletos, cartazes e cartões postais foram distribuídos em vários contextos – ONGs, profissionais da saúde que trabalham em unidades de HIV, centros especializados de saúde sexual, unidades de saúde mental, centros de dependentes de drogas e centros primários de atenção à saúde – para promover o site Chem-Safe. Panfletos e cartões postais também foram distribuídos por pares trabalhando como educadores durante atividades de divulgação em locais de diversão noturna, como saunas gays, clubes de sexo e bares. No entanto, os entrevistados mencionam que muitas pessoas que trabalham com possíveis usuários do chemsex em ambientes noturnos relutam em distribuir materiais relacionados a drogas porque, na lei espanhola, o dono de um clube pode ser responsabilizado caso o uso de drogas ocorra em seu estabelecimento. Ainda assim, outros colaboram ativa e abertamente e veem o benefício adicional de informar os visitantes de seus clubes, bares, saunas e outros locais, e alguns distribuem materiais como folhetos e cartões postais, mas não querem ficar associados explicitamente ao site Chem-Safe (ABD, 2017). Imagem 6: Primeira página de folhetos distribuídos

“Com a Tina eu fiz coisas que talvez eu não quisesse fazer, mas que eu estava fazendo porque naquele momento eu achava que queria. E então no dia seguinte você se arrepende. Bem, isso é típico da

Além disso, banners foram colocadas em sites específicos (como um site para trabalho sexual masculino, telechapero.com) e em aplicativos dedicados ao contato gay e sexo (como Grindr e Scruff). O site também é promovido ativamente durante os treinamentos sobre chemsex, ministrados pelo coordenador do projeto ChemSafe aos profissionais que trabalham com o grupo

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Pessoal envolvido Função/Cargo

Quantos

Salário/tempo gasto

Coordenador do Projeto

1

Tempo parcial, voluntário

Enfermeiros de HIV e DST, consultores de saúde sexual, pessoal de >11 apoio a LGBT, peritos em redução de danos e prevenção de drogas, etc.

alvo. Além disso, aulas on-line foram ministradas a universidades espanholas e latino-americanas em cursos sobre saúde pública e sexualidade. Em julho de 2017, um blog foi adicionado ao site, chamado se abra le sesión (que se abra a sessão). Este é um encaminhamento explícito ao chemsex, que é chamado de sessão em espanhol. O objetivo do blog foi atrair mais visitantes para o site. Uma entrevista com o famoso artista mexicano-espanhol Alaska foi especialmente eficaz para atrair mais visitantes.

Tempo parcial, voluntário

uma gama de serviços variados para os usuários do serviço: atendimento psicológico e social, atendimento psiquiátrico e médico, prevenção da saúde sexual, terapia sexual, intervenções de redução de danos, intervenções comunitárias, etc. Isso facilita um intercâmbio eficaz de colaboração entre especialistas de diferentes perspectivas e áreas de trabalho complementares.

Das 159 solicitações recebidas em 2017, cerca de 87% referiram-se a pedidos de usuários de chemsex para mais informações sobre drogas, sexo, chemsex e doenças infecciosas, dos quais 4% vieram de profissionais da saúde. 11% foram pedidos de informações ou colaboração com ONGs, institutos de pesquisa ou instituições governamentais (ABD, 2017). Imagem 7: Principal ilustração do blog Chem-safe

Das solicitações de usuários do serviço (US), a maioria pode ser respondida rapidamente por e-mail. Várias solicitações são mais longas e complexas, em cujo caso os usuários do serviço são convidados a fazer uma consulta por telefone ou videochat ou, se possível, entrar em contato com uma organização em sua cidade de residência. Alguns usuários do serviço precisaram de mais uma intervenção depois da consulta. “Essas intervenções têm sido úteis para encaminhar usuários problemáticos do chemsex a organizações específicas no mundo real” — P1. Diferentes entrevistados têm ideias diferentes sobre os objetivos do Chem-Safe. Isso se deve, em parte, ao quão próximos eles estiveram envolvidos desde o início, e em parte devido aos objetivos de suas próprias organizações e as formas como elas respondem ao chemsex. As diferentes associações envolvidas no projeto Chem-Safe oferecem

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As conexões são um objetivo importante do ChemSafe para muitos entrevistados. Às vezes, essas conexões são estabelecidos diretamente pelo site e, às vezes, mais indireta e/ou informalmente através de contatos individuais. Os profissionais frequentemente mencionam que colaboram com outras instituições que trabalham em torno do tema do chemsex, permitindo-lhes mais facilmente encaminhar os usuários do serviço para lá, e trazer os usuários do serviço de volta para eles. Como chemsex é considerado um fenômeno complexo, envolvendo vários níveis de assistência e necessidades de US, e a garantia do acesso de usuários do serviço a serviços complementares é considerado muito importante. “O mais importante são as conexões. Garantir que os participantes não abandonem os check-ups: o psicólogo, o psiquiatra, o médico [...] Acredito que,


para começar a tratar os usuários de chemsex, precisamos tanto deste programa de ligação quanto de um programa de redução de riscos. O programa tradicional de tratamento não funciona para usuários do chemsex” — P2. Em alguns dos projetos parceiros do Chem-Safe, os usuários do serviço têm a opção de se voluntariar e contribuir. Como diz um profissional, isso torna o projeto “mais bidirecional, mais recíproco. E, no final, dá melhores resultados no longo prazo” — P5. Um entrevistado menciona que o objetivo varia de acordo com os US: enquanto alguns querem parar completamente de usar drogas, outros podem apenas querer abandonar as substâncias que geram mais problemas para eles, ou simplesmente para serem informados sobre formas de reduzir os riscos. Os entrevistados concordam, em geral, que o objetivo fundamental é a melhoria da qualidade de vida dos usuários do serviço. A maioria dos usuários do serviço encontrou o Chem-Safe por estar com problemas de saúde relacionados ao uso de substâncias, conforme explicado pelo seguinte usuário do serviço: “Eu costumava combinar metanfetamina com Viagra e álcool. Uma vez levei um grande susto: Fiquei sem fôlego e tive palpitações no coração. Comecei a procurar informações e acabei encontrando o ChemSafe. Consultei-me por telefone com o Dr. X, que basicamente me falou sobre as interações e seus efeitos, porque é com isso que eu devia me preocupar. Não teve impacto direto no meu padrão de consumo. Mas, com o tempo, parei de usar estimulantes. Isso me fez perceber o que eu estava fazendo e como estava sendo autodestrutivo. Fazia parte de um processo pessoal. Não é como, digamos, ah, graças a essa consulta, vou parar de usar drogas agora, ou vou parar de fazer sexo com drogas. É algo mais profundol” — US2. Segundo vários entrevistados, o objetivo final é melhorar a qualidade de vida dos usuários do serviço. “Tudo era muito confuso. Quando você está usando muito, você não dorme por uma semana, você come como um merda. […] Depois que eu falei com o Dr. X, ele me deu alguns conselhos e, na verdade, eu diminuí muito o uso das drogas. Estou mais

tranquilo agora, mais relaxado. [...] Eu me sinto melhor, não com um humor tão ruim o tempo todo. Estou comendo melhor, dormindo muito mais. Estou fazendo mais coisas, sendo mais produtivo. E estou me conectando mais. Como eu lhe disse, eu era muito obsessivo. Quer se tratasse de falar, falar e falar, ou de ser todo obcecado por sexo. Agora consigo passar o tempo assistindo um pouco de televisão e lendo os jornais” — US1. Uma entrevistada, que trabalha como enfermeira especializada na unidade de HIV de um hospital, propositalmente coloca cartazes da Chem-Safe em seu consultório, para garantir a seus pacientes que o chemsex é um assunto que eles podem discutir abertamente. Segundo ela, é muito importante perguntar diretamente aos pacientes se eles estão envolvidos em chemsex. Se estiverem, ela se senta com eles e eles examinam o site da Chem-Safe juntos, para saber mais sobre as substâncias e os riscos. Em termos de redução de danos, tanto os profissionais quanto os US entrevistados mencionam que, apesar da falta de uma avaliação adequada, eles notam que o Chem-Safe ajudou os usuários a mudarem alguns hábitos, reduzirem e/ou terem mais controle sobre seu uso de substâncias, tornando-se mais informados sobre os riscos de combinar substâncias, vias de administração e sobre os riscos da transmissão de DSTs e HIV. “Nós vemos mudanças no comportamento das pessoas. Um cliente meu que nunca se importou com seu uso de drogas e interação com seus ARVs, agora nos pergunta primeiro. Recentemente ele me perguntou: ‘Neste Natal vou praticar chemsex. Estou tomando isso e isso e isso. Você pode me dizer se eles interagem com os meus ARVs?’ Eu avalio isso positivamente: Chem-Safe criou uma consciência entre nossa população alvo” — P5. “As informações [no Chem-Safe] são bem reais. No começo, eu era totalmente desinformado. Eu não fazia ideia. Estava preocupado, mas tinha essa tendência autodestrutiva e, apesar de ler essas mensagens sensacionalistas alarmantes sobre a metanfetamina, a única coisa que fizeram foi incentivar ainda mais minha capacidade de autodestruição. [...] Ter informações mais

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verdadeiras me ajudou a realmente entender o que eu estava fazendo e parar de fazer isso” — US2.

trabalhar em questões relacionadas a chemsex é parte de seu trabalho regular.

Os dados de utilização do site só foram reunidos no primeiro ano – de janeiro de 2017 a janeiro de 2018. O site recebe uma média de mais de 10.000 visitas por semana, a maioria das grandes cidades da Espanha, embora 12% das visitas tenham vindo da América Latina. Seu coordenador também realiza de duas a três videoconferências semanais com os usuários do serviço, o que é uma indicação de sua utilidade. O site funciona, assim, como um possível encaminhamento para consultas mais personalizadas, que por sua vez podem funcionar para encaminhar os usuários do serviço para cuidados apropriados off-line. Os temas das consultas incluíam a interação entre antiretrovirais (ARV), outros fármacos e drogas; efeitos adversos; diretrizes para uso de substâncias; riscos de transmissão do HIV; dependência de substâncias; e overdose e toxicidade (ABD, 2017).

“Realmente não há verba. Existem muito poucos meios. As pessoas estão se empenhando bastante e possuem muito profissionalismo, mas não há apoio econômico das instituições públicas” — P5.

Equipe e finanças

A criação e o lançamento do site foram inicialmente financiados por um laboratório farmacêutico (ViiV Healthcare). €8.752 (R$ 36.875,6852) foram gastos na criação do site, cujos custos incluíam recursos humanos; ilustração e design de cartões postais, cartazes e folhetos; custos de impressão; e os custos de cinco dias úteis (ABD, 2017). A Energy Control recebeu um total de €14.000 (R$ 58.987,6053) do seu único doador por um período de dois anos. Esse dinheiro cobriu a maior parte das despesas iniciais, mas não sobrava nada para a coordenação do site, nem a criação de conteúdo adicional. O coordenador do projeto estima que seriam necessários cerca de 25 mil euros anuais (R$ 105.335,00) para apoiar esse projeto. Atualmente, o coordenador do projeto executa esse projeto em seu tempo livre, o que é uma fonte de frustração e prejudica o andamento do projeto. Todos os entrevistados – tanto profissionais quanto usuários do serviço – mencionam que falta apoio financeiro. Nenhuma das organizações recebe especificamente para trabalhar com chemsex, embora em algumas organizações o financiamento seja transversal ou integrado, o que significa que 52 €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.) 53 €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.)

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Segundo o coordenador do projeto, nenhuma verba foi disponibilizada, apesar de ter sido reconhecido positivamente pelos ministérios relevantes. Por um lado, os entrevistados entendem que verba é algo complicado, uma vez que a Espanha ainda está passando por uma crise econômica, e outras verbas públicas – como para pesquisas sobre Alzheimer – também diminuíram. Por outro lado, os entrevistados temem que os preconceitos atuem, uma vez que políticos e formuladores de políticas acreditam que chemsex só afeta homens gays, e não é um problema da saúde pública. Outro problema mencionado por vários entrevistados é que, na Espanha, primeiro você precisa provar que existe um problema para o qual você tem uma solução funcional, para depois tal ação ser avaliada para financiamento. “Até agora, tudo dependeu da boa vontade das pessoas envolvidas” — P2. “Eu faço isso porque gosto do trabalho e porque é necessário, mas às vezes também fico cansado. Gostaria de ter mais tempo, mas estou pessimista. O apoio deveria vir de instituições de saúde pública. No entanto, na Espanha, a menos que haja dados, eles não querem ouvir falar disso” — P1.

Parcerias

O grupo de trabalho para a criação do ChemSafe consistiu em 12 organizações, incluindo a Energy Control. O projeto está aberto a todas as organizações LGBT. “A ideia era: nós [Energy Control] somos especialistas em drogas, vocês são especialistas em questões de LGBT e HIV e sexualidade; vamos trabalhar juntos” — P1. O Chem-Safe continua a colaborar com várias organizações em várias cidades da Espanha, para promover, por exemplo, a conscientização do projeto, mas também para encaminhar participantes (referência e contra-referência). Estas organizações


Imagem 8: Organizações parceiras de Chem-Safe (excluindo Energy-Control)

incluem três associações de HIV/direitos civis, duas associações LGBT, a unidade de HIV em um hospital e vários centros de saúde primários. Muitas dessas organizações oferecem assistência a usuários problemáticos de chemsex que o ChemSafe – como um projeto online – não pode oferecer. Além disso, muitos dos parceiros do site ChemSafe também colaboram com outras instituições (públicas) de saúde. Os entrevistados mencionam que, embora sintam que em um mundo ideal haveria um tratamento integrado para usuários do chemsex, já ficarão felizes se, por exemplo, uma enfermeira que trabalha com pacientes soropositivos em um hospital souber que pode encaminhar pacientes para centros de tratamentos de droga que não julgam e que acolhem a população LGBT. Em alguns casos, os participantes serão acompanhados fisicamente até os centros de tratamento de dependência.

e aconselhamento para HIV, hepatite e tuberculose, habitação (social) e outras intervenções estruturais, tratamento comportamental e outras intervenções psicossociais. Alguns entrevistados sugerem que oferecer mais treinamentos seria oportuno, já que muito poucos profissionais (incluindo profissionais médicos que trabalham com PQUD e peritos em drogas) sabem qualquer coisa sobre o chemsex. A atenção (direta) médica voltada para esse grupo alvo também é vista como deficiente, ex., quando os usuários do serviço apresentam problemas agudos, como episódios psicóticos, problemas de saúde ou uso muito elevado de substâncias.

“É importante trabalhar em uma rede. No final, o problema é tão sério que precisamos do apoio de todas as instituições (ONGs e instituições públicas). Então, trabalhar com parceiros é muito importante para alcançar objetivos. E sabemos, por experiência, que prestar atenção integral a saúde dá bons resultados” — P5.

Chem-Safe pode ser considerado um sucesso visto que é uma intervenção pioneira, combinando instrução, prevenção, e estratégias de redução danos, visando um novo grupo de risco. Além disso, Chem-Safe conseguiu criar uma intervenção que abordasse as inúmeras questões associadas ao chemsex, apesar do pouco conhecimento disponível sobre formas eficazes de fazer isso.

Por meio da rede Chem-Safe, diversos serviços para PQUD estão disponíveis, incluindo, entre outros: agulha e seringas, kits para fumar com maior segurança, tratamento com substituição de opiáceos, salas de consumo de drogas, centros de convivência, testes

“Eles se sentem muito sozinhos, não há apoio. A internet pode informar, mas eles precisam de mais atenção” — P2.

Sucessos e desafios

“O que me agrada muito no Chem-Safe é que ele apresenta o uso de drogas como algo multidimensional. Ou seja, não é somente a droga, mas também é você e o seu contexto que afetam o

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consumo e que, juntos, podem levar ao abuso ou à dependência” — US3. Na falta de serviços integrados ou especializados para usuários do chemsex, a colaboração estreita entre organizações diferentes e o estabelecimento de novas colaborações, redes e iniciativas são considerados como parte do sucesso. “Em vez de criar novos recursos para demandas específicas, concretas e variáveis, a sinergia entre as linhas de trabalho existentes otimiza os recursos, enriquece os profissionais e contribui para a integração” (ABD, 2017). O fato de alguns usuários mais antigos do chemsex estarem hoje contribuindo para uma organização envolvida no projeto Chem-Safe também é mencionado como um sucesso por um entrevistado. As partes envolvidas na colaboração estão todas comprometidas, o que também é confirmado pelo fato de várias partes (web design, ilustração, desenho gráfico, supervisão, redação etc.) terem contribuído para o projeto com muito mais tempo e esforço do que o valor previsto no orçamento e efetivamente pago. A reunião de diferentes tipos de organizações permite o acesso a esse grupo de usuários de chemsex, o que, de outra forma, seria difícil de alcançar. Isso ainda é auxiliado pelo tom de voz sem julgamento do site Chem-Safe e pelo fornecimento de informações objetivas. “O que é positivo é a maneira pela qual as informações são apresentadas: em nenhum momento o tom de voz é de julgamento preconceituosa ou tenta ser assustador. São informações limpas e sobretudo verdadeiras, apoiadas por uma equipe médica” — P6. O site Chem-Safe permite que muitas pessoas acessem informações confiáveis, de forma anônima e confidencial. Isto é considerado particularmente importante quando os pessoas sentem-se envergonhadas ou são estigmatizadas devido à sua orientação sexual, status de HIV, ou uso de drogas. Os visitantes do site podem acessar as organizações associadas diretamente, clicando nos banners do próprio site, se sentirem a necessidade de fazer perguntas mais diretas ou se acharem que estão com problemas. Embora não haja informações estatísticas disponíveis sobre como isso afetou os usuários do serviço, tanto os profissionais quanto os usuários

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do serviço mencionam que isso ajudou os usuários do serviço a se tornarem mais conscientes de seus padrões de consumo e contribuiu ativamente para um uso de drogas menos prejudicial, mais controlado ou reduzido. “Cara, claro, por exemplo, as interações com drogas e HIV, o que eu posso e não posso tomar, até que ponto, se posso misturá-las ou não. Eu já tinha algumas informações para cada droga específica, mas eram informações gerais, e [Chem-Safe] coloca isso em um contexto sexual. Por exemplo, quando você toma GHB, cuidado com Tina e separe suas doses de G em pelo menos uma hora. Mas também, efeitos adversos, duração, potência, interações. Isso me ajudou a entender quando e como eu posso tomar alguma coisa e a que horas. Antes eu costumava ser assim: Isso parece bom; vou tomar” – US3. Além disso, o mero fato de que o site é consultado ativamente é uma indicação de seu sucesso, assim como os vários pedidos de consulta mais aprofundada, incluindo videoconferência como uma ferramenta de intervenção. Um entrevistado, embora ainda crítico do projeto, reconhece que é o maior recurso online em espanhol, e que alcança uma audiência na América Latina também. De acordo com os entrevistados, a maioria dos desafios gira em torno da falta de recursos e, como resultado, não ter uma equipe paga de funcionários e não ter tempo suficiente. O blog do site é um caso em questão: é considerado uma forma útil de atrair mais pessoas para o site; contudo, somente quatro postagens foram publicadas no blog em 2017 e, até agora, somente uma foi feita em 2018. Esse é o resultado de não se ter uma equipe paga, e apenas um membro da equipe trabalhando nesse projeto voluntariamente. Ele, que além de ter seu emprego regular, é responsável pelo fornecimento de consultas e treinamentos online para profissionais, assim como de alimentar o conteúdo do blog. Todos os entrevistados consideraram o apoio financeiro e político escassos. Com exceção da Catalunha, onde chemsex é considerado um problema de saúde pública, no resto da Espanha não existe verba disponível. O apoio político está igualmente ausente em todos os níveis. Esta falta de interesse é explicada, por vários entrevistados, como


tendo a ver com o fenômeno estar principalmente associado aos HSH. “Eu acho isso preocupante. Lembra muito de quando o HIV apareceu. No início, afetava apenas os homossexuais, e ninguém se importava com nada. E só quando atingiu os heterossexuais as instituições começaram a se preocupar com o assunto. O que eu acho que pode estar acontecendo é que as instituições talvez não se alarmem até que o chemsex afete a população heterossexual” — US3. Chem-Safe enfrentou vários outros desafios. O site recebeu críticas sobre alguns dos conteúdos disponíveis, ex., nas expressões que foram usadas ou aspectos que estavam faltando. Outras críticas foram consideradas menos justas pelos entrevistados, por exemplo, por serem patrocinadas pela indústria farmacêutica. Além disso, alguns membros da comunidade ativista espanhola LGBT/ HIV criticaram a Energy Control por envolver-se em “uma área que não é a sua” (ABD, 2017). “Parte da comunidade LGBT é muito fechada em dogmas, como “o chemsex só acontece entre pessoas gays, então precisamos de um médico gay para isso”. Há um pouco de auto-estigma aí também” — P1. Além disso, entre alguns membros da comunidade LGBT, o uso de drogas ainda é estigmatizado. Embora o sexo não pareça mais ser um tabu, as drogas ainda o são, o que torna difícil para as organizações trabalharem na prevenção e redução de danos nas saunas, clubes gay e nos clubes de sexo. “Todos acham correto ter clubes de sexo onde você pode fazer fisting e urinar (golden shower), mas ninguém pode falar sobre drogas. As drogas são um tabu, não apenas na comunidade gay, mas também em saunas gay, clubes de sexo gay” — P1. Atingir a população certa continua sendo um desafio, por vários motivos. Conforme mencionado anteriormente neste relatório, nos casos de uso público de substância, o proprietário de um estabelecimento pode ser responsabilizado também, o que significa que alguns proprietários relutam em recomendar ou informar seus participantes, tornando a distribuição dos folhetos problemática. Além disso, um site pode não alcançar

a população-alvo inteira. Como um entrevistado explica, os homens que praticam o chemsex tem maior probabilidade de usar um aplicativo de celular em vez de visitar um site. Uma sugestão de melhoria seria aliar-se mais estreitamente com aplicativos bastante usados para contatos gay, como Scruff e Grindr, não adicionando banners, mas, por exemplo, adicionando uma opção de menu clicando em chemsex. Finalmente, alguns entrevistados consideram um grande desafio alcançar homens que não estejam cientes de que podem estar se arriscando e sentindo-se no controle e podem não desejar informações sobre uso de substâncias e os riscos associados. Atingir esse grupo é um grande desafio, ao qual os entrevistados não têm uma resposta imediata, mas o fato de que muitas instituições oficiais, como as clínicas, estão desinformadas sobre chemsex, não ajuda. Uma sugestão que foi mencionada foi manter grupos de discussão mais informais sobre o assunto.

Seguindo em frente

Tanto a seção de conteúdo do site como o blog precisam ser atualizados regularmente. Manter uma presença ativa e contínua nas redes sociais pode ajudar a conectar-se melhor também aos usuários do chemsex, assim como ajudar a identificar rapidamente tendências e padrões novos no uso de substâncias. Como chemsex é um fenômeno relativamente novo, que ainda está em desenvolvimento, isto é importante para fornecer uma resposta adequada e precisa. Mais pesquisa estatística, quantitativa também ajudaria nesta área, assim como melhoraria a compreensão do impacto específico do site Chem-Safe. Outra área que precisa melhorar é a escala de disseminação. Muitos entrevistados mencionam que mais disseminação de informações equilibradas, tanto distribuindo materiais informativos como fornecendo reuniões/conversas interativas, é necessária para criar mais conscientização sobre este assunto, por ex., nas ruas, centros de saúde, locais com vida noturna e, em geral, entre a comunidade LGBT. Muitos entrevistados, profissionais e usuários do serviço, declaram que uma abordagem bem sucedida, orientada para a redução de danos para o chemsex, necessitaria da integração íntima de muitos serviços diferentes. Mas, na ausência de uma abordagem como essa, a colaboração mais próxima entre as diferentes entidades, incluindo os

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serviços de assistência médica do estado (tais como hospitais, clínico geral e clínicas de saúde) é muito importante. Finalmente, apesar da falta de recursos financeiros e humanos, a entidade coordenadora, Energy Control, está comprometida em manter o projeto Chem-Safe, o que é uma proteção potencial para sua sustentabilidade.

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LIÇÕES APRENDIDAS

1

Um primeiro passo importante na criação de um projeto como o Chem-Safe é começar com um estudo de campo para descobrir exatamente o que está acontecendo: é muito importante saber quem está envolvido, que substâncias estão sendo usadas e como eles injetam (slam) suas drogas, por quais problemas de saúde eles passam e quais as soluções possíveis e os recursos já disponíveis (dentro do setor de saúde pública).

2

Estabeleça uma rede de diferentes (tipos de) organizações, de opinião semelhante e cooperativas, incluindo serviços públicos de saúde, que ofereçam serviços complementares para a população-alvo. Uma vez que o chemsex problemático é uma questão multifacetada, que requer a abordagem de muitos elementos diferentes ao mesmo tempo, é importante poder encaminhar participantes para serviços acolhedores.

3

Apresente as informações sobre drogas, sexo, e riscos associados de uma forma direta e não julgadora, em uma linguagem que o grupo alvo use. Combine o fornecimento de informações objetivas de saúde com a opção de contato direto com um profissional de mente aberta, que possa consultar e encaminhar os usuários do serviço.


5.3 Grupos de contemplação Um exemplo para a autorregulação na África do Sul “Entre o estímulo e a resposta existe um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher nossa resposta. Em nossa resposta está nosso crescimento e nossa liberdade” — Viktor Frankl no O Homem em Busca de um Sentido54. “O único resultado que devemos buscar é que as pessoas sejam, na maioria das vezes, empoderadas e livres para tomar decisões informadas e conscientes sobre o tipo, a frequência, o método e a finalidade de “Quando você decide usar, você decide usar. Faça seu uso de drogas, para optarem por usar ou não uma lista com os benefícios do uso. Talvez não haja usar drogas” — Shaun Shelly, fundador original dos benefícios. Se for assim, ou você muda suas drogas, grupos de contemplação. Grupos de contemplação são sessões em grupo para usuários de substâncias com um foco específico na redução de danos. Eles foram desenvolvidos em 2012 e, desde então, têm sido oferecidos em formatos ligeiramente diferentes em quatro locais diferentes, em duas cidades (Cidade do Cabo e Durban) na África do Sul. Os grupos consistem em oito a doze sessões, dirigindo-se ao autoconhecimento, ao estabelecimento de pequenas metas e às perspectivas futuras. A experiência demonstrou que eles funcionam particularmente bem entre usuários de estimulantes. É um serviço de redução de danos barato e de baixa exigência, que também pode ser executado em um ambiente mais orientado para a abstinência. A intervenção foca em fortalecer as pessoas em sua capacidade de escolher vidas mais saudáveis e mais felizes. Isto é feito através do apoio na autorreflexão, compreendendo a si mesmo agora e no futuro (próximo), conhecendo os gatilhos, e definindo como o usuário quer que seja o seu relacionamento com as suas substâncias de eleição. Ela visa tornar as pessoas mais conscientes sobre suas vidas e se responsabilizar pelo seu uso de drogas. 54 Viktor Frankl (1905-1997) foi um neurologista e psicólogo judeu da Áustria. Em seu livro, “O Homem em Busca de um Sentido”, ele escreveu sobre suas experiências em um campo de concentração e a importância de encontrar sentido em todas as formas de existência. (N. A.)

Imagem 9: Cidade do Cabo e Durban, África do Sul

ou muda seu modo, ou diminui sua tolerância por algum tempo, ou encontra outra coisa para fazer” — P1. Conforme descrito no “Contemplation Group Facilitators Manual” (Manual de Facilitadores de Grupos de Contemplação) (SHELLY; MACDONNELL; SEDICK, 2017):

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A finalidade principal do grupo é incentivar o participante a: ◊ Avaliar sua situação atual; ◊ Ajudá-lo a decidir-se que áreas devem melhorar na sua vida; ◊ Deixá-los decidir que mudanças precisam ocorrer para que essa melhoria aconteça; ◊ Avaliar e tomar decisões informadas a respeito de seu uso de drogas (e de tratamento de TB e de HIV).

África do Sul

A África do Sul é o país localizado mais ao sul do continente africano. De acordo com a base de dados das Nações Unidas, o país tinha uma população de 56.7 milhões de pessoas em 2017 (dados da ONU de 2017). A África do Sul é uma sociedade heterogênea e socioeconômica desigual. De acordo com o Índice de Gini do Banco Mundial, na medição da desigualdade, a África do Sul é o país mais desigual no mundo. A constituição reconhece 11 idiomas oficiais, sendo três os mais comuns isiZulu (23%), IsiXihosa (16%), e Afrikaans (13,5%). Embora o inglês seja somente o primeiro idioma de 10% da população, é uma segunda língua comum e usada extensamente na mídia, nos negócios e no governo (ALEXANDER, 2018). Em 2015, 55,5% da população (30,4 milhão pessoas) viviam abaixo da linha da pobreza. Embora isto fosse uma redução desde 66,6% em 2005, os números da pobreza têm crescido em anos recentes, de 53,2% em 2011 (STATS SA, 2017). A África do Sul tem 9 províncias. Os grupos de contemplação estudados neste capítulo estão/ estavam funcionando em três organizações diferentes, baseados principalmente na Cidade do Cabo, na província ocidental do Cabo. Entretanto, em uma das três organizações – Tratamento de TB e HIV – funcionam também os grupos de contemplação em Durban, em Kwazulu Natal.

Substâncias usadas na África do Sul

As duas drogas mais usadas na África do Sul são álcool e Dagga (isto é: Cannabis). A África do Sul não tem pesquisas regulares nacionalmente representativas sobre o uso de drogas. Entretanto, a Rede de Epidemiologia de Uso de Drogas da Comunidade da África do Sul (SACENDU) coleta regularmente

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dados das pessoas que estão sendo tratadas com a ajuda financeira do governo, assim como os centro de reabilitação privados em todo o país. Levando em conta que os dados de tratamentos não são representativos da população total de PQUD, pois muitos jamais chegam a ter acesso a instalações de tratamento e o limite para isso pode ser maior para alguns grupos de usuários do que para outros, este capítulo é, em grande parte, baseado em dados da SACENDU. De acordo com a SACENDU, na segunda metade de 2016, Dagga era a primeira ou segunda droga mais problemática entre 35 e 51% dos pacientes. Em quase todas as regiões monitoradas, Dagga é a principal droga de escolha entre pessoas com menos de 20 anos. Neste mesmo período, o álcool era alegadamente a primeira droga de escolha entre 18 e 47% dos pacientes em tratamento (SACENDU, 2017). Uma outra droga extensamente usada na África do Sul é o depressor Mandrax (isto é: Metaqualona) (RIGONI, 2016). Esta droga é usada principalmente por homens e é popular desde os anos 70, em todo o país. Outro depressor que tem sido cada vez mais usado, desde o início deste século, é a heroína. A heroína é consumida em folha de alumínio, mas nos últimos anos, também houve um aumento nas pessoas que a injetam. Na África do Sul, a heroína é mencionada também como Nyaope. A qualidade da heroína varia. Além do mais, Whoonga/Cocktail (ou seja, heroína de baixo teor misturada com Dagga e outros ingredientes) é fumada com bastante frequência em Pretória e na região Gauteng (RIGONI, 2016). Whoonga é usada principalmente por africanos negros. No Cabo Ocidental, o principal problema com drogas é tik (ou seja, metanfetamina). Nesta província, sua produção, distribuição e uso têm aumentado, desde que chamou atenção em 1998 (RIGONI, 2016). Da mesma forma, Versfeld (2013) descreve como Tik chegou em uma comunidade local da Cidade do Cabo com um estrondo, em 2002. Embora não tenha nem mesmo sido registrada como uma substância problemática, Tik foi a substância principal para metade das pessoas nos centros de reabilitação no Cabo Ocidental em 2007 (VARSFELD, 2013). Essa porcentagem havia diminuído para 29% em 2016 (SACENDU, 2017). Além disso, em quase todas as


outras províncias – fora do Cabo Oriental, onde o uso de Tik também é bastante comum – o uso de Tik como substância primária de escolha é baixo, variando de 1 a 6%. Ao contrário de Mandrax, Tik é também usado amplamente por mulheres (VERSFELD, 2013). Tradicionalmente, Tik é fumado através de Lollies (isto é, cachimbos de vidro), mas exatamente como a heroína, também houve um aumento no uso injetável de Tik em anos recentes.

de elite, que fazem uso dos serviços do Atendimento à TB e HIV, cheiram pó de cocaína. Embora Cat (ou seja, metcatinona) esteja disponível em todo o país e tenha sido relatada na maioria das instalações para tratamento no final de 2016 (SACENDU, 2017), ela não apareceu como uma droga significativa nas vidas dos usuários do serviço neste estudo de campo.

Desde o fim do apartheid, em meados dos anos 90, o acesso a todas as drogas aumentou imensamente, principalmente entre as comunidades negras e pardas (RIGONI, 2016). Embora Mandrax, Tik e a heroína estejam atualmente amplamente disseminadas em comunidades mais pobres, a cocaína permanece sendo a droga da população mais abastada, e o número de admissões a tratamentos, com cocaína sendo a principal droga problemática, permanece baixo em todo o país, variando de 1 a 5% (SACENDU, 2017). Apesar de tudo, o serviço de baixo limiar no Atendimento à TB e HIV de Durban relata que cerca de metade de seus usuários do serviço usam Rock (literalmente “pedra”, ou crack), além de heroína. Eles fumam Rock em cachimbos de vidro, diferente dos Lollies usados para fumar Tik.

Em geral, os serviços e políticas de drogas na África do Sul têm se baseado predominantemente na abstinência e redução da oferta. Contudo, com o passar dos anos, uma mudança gradual ocorreu no sentido de apoiar a redução de danos, tanto no território quanto nos documentos das políticas.

As organizações incluídas na pesquisa de campo para este estudo de caso fornecem serviços para as PQUD marginalizadas, que muitas vezes têm dificuldades em assegurarem suas necessidades básicas, como acesso a cuidados de saúde primários, emprego e habitação. Do ponto de vista dessas organizações, os dois estimulantes que desempenham um papel significativo na vida de PQUD marginalizadas e problemáticas são Tik e Rock. Tik é usado predominantemente na Cidade do Cabo, e Rock em Durban. Um trabalhador social na Cidade do Cabo relata que provavelmente cerca de 95% dos usuários do serviço usam Tik, mas para muitos crack é uma substância secundária, seguida da heroína. Quando indagados, os profissionais e usuários do serviço confirmaram a alta prevalência do poliuso de substâncias, muitos combinando Tik ou Rock com heroína. Entretanto, isto também pode ser devido ao fato de que todos que relataram isso estavam relacionados ao Atendimento à TB e HIV na Cidade do Cabo e Durban, onde uma grande proporção de usuários do serviços faz uso de seus serviços de Terapia de Substituição de Opiáceos (TSO). Além do mais, alguns trabalhadores sexuais

Política de drogas e redução de danos

No Plano Diretor Nacional de Drogas (NDMP) 2013-2017, a Autoridade Central de Drogas (CDA) já reconheceu a necessidade de uma mudança para lidar com o problema das drogas, passando da redução da oferta para “uma estratégia baseada na necessidade de prevenir o risco do abuso/ dependência da substância” (CDA, 2013). Contudo, embora o plano abordasse a necessidade de soluções e prevenção baseadas na comunidade, a definição e inclusão da redução de danos permaneceu vaga. Até esta data, as maiores atividades de redução de danos na África do Sul permanecem financiadas por doadores internacionais, o que afeta bastante a sustentabilidade desses programas. Atualmente, as políticas local e nacional parecem apoiar mais as iniciativas de redução de danos, embora com uma certa hesitação. Através de provas empíricas de sua eficácia, o apoio em TSO e PTS está aumentando lentamente em alguns setores. Por exemplo, a capital Pretória, na província de Gauteng começou a financiar um Programa de Uso de Substâncias Orientado para a Comunidade desde 2016, que funciona com uma abordagem de redução de danos e inclui serviços de TSO e PTS desde 2017. Nesse meio tempo, contudo, alguns partidos permanecem em grande oposição. Embora ainda no estágio de rascunho, e com temor de que não venha a se concretizar no final, também parece que o NDMP 2018-2022 incorporará algumas grandes mudanças no sentido de aceitação da redução de danos.

Origens dos grupos de contemplação

Os grupos de contemplação foram desenvolvidos na Hope House, uma organização Cristã que

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oferece aconselhamento, suporte à dependência e treinamento às pessoas na Cidade do Cabo. Por muitos anos, a Hope House ofereceu um centro ambulatorial de baixa exigência nos Cape Flats, um subúrbio pobre da Cidade do Cabo. Embora a organização tenha favorecido e continue a favorecer uma resposta às drogas baseada em abstinência, este local mudou para uma abordagem de redução de danos em 2012. A transição incluiu a introdução dos grupos de contemplação. “A redução de danos era uma necessidade, mais do que algo que pensávamos que podíamos tentar. Estava se tornando cada vez mais evidente que a abstinência não iria funcionar” – P2. Os usuários do serviço da Hope House geralmente fumavam Tik e Mandrax. Mais tarde, a heroína ficou mais popular, assim como o seu uso intravenoso. Os usuários do serviço viviam em uma comunidade de baixa renda, em geral em situação de rua, comum histórico socioeconômico muito baixo, em um ambiente com taxas altas de crimes e gangues. Muitas pessoas simplesmente não estavam prontas para a abstinência, e o serviço teve que abandonar sua abordagem de punição ao uso de drogas para ter algum impacto nas vidas dos usuários do serviço. Eles introduziram os grupos de contemplação: “Com o programa baseado na abstinência […] eles (ou seja, os usuários do serviço) tinham muito pouca escolha. Eles eram empurrados para a abstinência e havia uma linguagem muito estigmatizante. Já com os grupos, eles começaram a ter uma escolha: “Eu quero mudar mesmo, o que eu quero mudar, se eu mudar, quais são os parâmetros, quais são os pontos negativos?” E uma vez que eles passaram a ter uma escolha, a decisão deles de se envolverem com o terapeuta tornou-se muito maior. Porque não havia certo ou errado. Era a escolha deles e nós os apoiaríamos da melhor maneira que pudéssemos” — P2. Embora este centro de consultas ambulatoriais da Hope House não esteja mais funcionando, uma transição semelhante aconteceu no TB Hospital DP Marais, na Cidade do Cabo. Até 2014, o hospital mantinha uma política de tolerância zero ao uso de substâncias entre seus participantes, e toda a comunicação era baseada na abstinência. No entanto, uma quantidade significativa de seus

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pacientes utiliza substâncias, continua a fazê-lo durante e/ou após o seu tratamento, e a adesão ao tratamento entre esses pacientes é baixa. Dos 31% de pacientes que apresentaram inadimplência no tratamento, 90% também apresentavam uso de álcool e drogas, indicado em seus arquivos (VERSFELD; MAC DONNELL, 2016). Assim, o hospital realizou um estudo e um projeto-piloto, buscando mudar sua resposta ao uso de drogas, melhorar a aderência ao tratamento e abordar os obstáculos à conclusão do tratamento, de 2014 a 2016. Embora nem o pesquisador envolvido nem a equipe do hospital se orientassem pela redução de danos no início da trajetória, o apoio a essa abordagem cresceu à medida que o piloto progredia, tanto entre o pesquisador e a equipe de Terapia Ocupacional (TO) do hospital, quanto entre alguns membros da equipe médica. Durante o projeto-piloto, o hospital fez várias mudanças, incluindo melhorar o processo de inscrição de pacientes, para obter, de maneira simples, uma melhor compreensão do uso de substâncias relevante para o tratamento, apoio para a equipe do hospital responder ao comportamento, e não ao fato de um paciente usar substâncias, treinamentos para sensibilizar os funcionários, e a introdução de grupos de contemplação (VERSFELD; MAC DONNELL, 2016). Nestas sessões em grupos, os pacientes são estimulados a refletirem sobre o uso de drogas e o tratamento da TB de maneira solidária e sem julgamentos. Esses grupos ainda estavam funcionando em 2018, dentro do contexto da TO no hospital, embora adaptados à sua situação. “Ainda são oito sessões, mas eu as adaptei muito para torná-las mais interativas, por causa dos níveis diferentes de função de nossos pacientes diferentes. Nós adicionamos várias atividades, com mais jogos, então é mais interessante e envolve todo mundo” — P4. Por fim, a TB HIV Care Association (Associação de Tratamento de TB e HIV) começou a oferecer grupos de contemplação em seus centros de atendimento em Durban e na Cidade do Cabo, ao longo de 2017, em relação aos seus projetospiloto de TSO. A TB HIV Care Association é uma organização que trabalha para prevenir, encontrar e tratar a tuberculose e o HIV em comunidades de três províncias da África do Sul. Embora os grupos


tenham sido desenvolvidos tradicionalmente para usuários de Tik, eles também funcionam bem para usuários de heroína que têm acesso à metadona. Além disso, supostamente, a maioria dos usuários de heroína nos programas também usava Tik e/ ou Rock. Mais uma vez, os grupos são formados com a intenção de fortalecer os usuários a tomar suas próprias decisões sobre como melhorar sua saúde e sua vida em geral. Além disso, adaptações foram feitas a fim de torná-los mais adequados às demandas locais, tais como a adição de mais sessões na Redução de Danos na Cidade do Cabo e tornálos mais práticos e interativos (e menos textuais) em Durban. Todos os grupos de contemplação descritos aqui fazem parte de um serviço mais amplo. A metodologia dos grupos, assim como seu contexto mais amplo, são discutidos na seção seguinte.

Na prática

O forte foco nas necessidades do indivíduo e a receptividade às necessidades e à capacidade do grupo fazem com que os detalhes de cada grupo mudem. No entanto, alguns fundamentos básicos podem ser definidos. Segundo seu fundador, estes fundamentos são: ◊ Estimular a atenção plena e, assim, aprender a acolher os gatilhos e a estar presente e no momento; ◊ Respeito às metas e melhorias individuais, para que as pessoas possam explorar suas próprias escolhas. O grupo é um espaço seguro, onde todos são iguais; ◊ Reconhecer pequenas melhorias. As pessoas não precisam identificar-se como (ex-)usuário de drogas ou dizer por quanto tempo elas estão “limpas”. Objetivos pequenos e de curto prazo, mesmo que apenas neste mesmo dia, podem ser discutidos. “E se tudo correr bem, a prática nos ensinou que o grupo se tornará uma (segunda) família. O conceito é um pouco parecido com entrevistas motivacionais, onde muito poucos profissionais realmente conhecem todos os detalhes técnicos do método. Embora seja útil saber, esses detalhes não são essenciais para implementar a prática. É uma filosofia subjacente, uma base para a qual voltar como praticante” — P1.

Assim, os grupos de contemplação proporcionam espaço para reflexão, concentram-se no indivíduo e oferecem apoio na criação de um senso de identidade e futuro diferente daquele de um usuário problemático de drogas. Isso ajuda as PQUD a estarem cientes de seus sentimentos e dilemas e perceberem que são muito mais do que usuários de drogas. Originalmente, o grupo foi organizado para consistir em oito sessões. No entanto, na Hope House eles foram oferecidos com o fim em aberto. Eles são desenvolvidos de tal forma que os grupos continuam tendo valor durante um segundo ou terceiro ciclo. Para os grupos do hospital de TB, foram feitos alguns ajustes para focar na adesão ao tratamento da TB. Além de algumas mudanças de conteúdo, os grupos permaneceram com oito sessões diferentes. Na TB HIV Care, onde os grupos ainda estavam em desenvolvimento em 2018, eles expandiram o grupo de contemplação para doze sessões, adicionando quatro novos temas ao pacote: 1. Por que estou aqui, para onde estou indo? • Auxiliar a pessoa a compreender por que vieram para o grupo, dar um sentido de futuro e incentivá-las a participar por seus próprios motivos pessoais. 2. Atenção plena • Dar uma compreensão básica da atenção plena, explicar as vantagens de ser mais atento, ensinar técnicas básicas de atenção plena e passar pela “roda da consciência”. 3. Registro em diário • Explicar por que o registro em diário é útil, ensinar como usar melhor um diário, começar ou adicionar ao diário. 4. Riscos e recompensas • Ajudar a identificar os riscos de se usar drogas e pôr um plano em andamento para reduzir os riscos e identificar os prós e os contras para permanecer o mesmo, mudar ou parar o uso de drogas. 5. Introdução à análise funcional • Estimular pensamentos sobre circunstâncias de uso, discutir a ligação entre pensamentos, sentimentos e uso, explicar gatilhos e ações automáticas em resposta. 6. Resolução de problemas • Aprender a melhor forma de resolver problemas e desenvolver um senso de responsabilidade.

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7. Matriz de ganhos • Ajudar a avaliar o uso de drogas, tomar decisões em torno da mudança no uso de drogas e estabelecer metas claras, também encorajar a autoeficácia e a identificação das necessidades. 8. Olhar para frente • Ajudar a desenvolver objetivos de curto prazo, ajudar a dar prioridade a estes objetivos e ajudá-los a identificar um propósito na vida. 9. Comportamentos que ajudam • Identificar os comportamentos que não são tão úteis e compreender porque estes comportamentos se desenvolveram e quando eles ocorrem, também identificar comportamentos mais úteis. 10. Levantamento de inventário • Ajudar a avaliar os próprios comportamentos mais e menos úteis e aprender como eles se relacionam uns com os outros. 11. Quem eu sou – o que eu represento? • Ajudar a entender o que é importante para alguém, ajudar a entender os próprios valores e onde estão seus limites. 12. Você tem a força • Mostrar que as pessoas têm aptidões e vincular estas ao empoderamento, para fazer mudanças positivas na vida.

alcançar a meta. O que então fazíamos era olhar para o motivo pelo qual não conseguíamos. Quais eram os desafios? Valia a pena alcançar? E não era eu, como facilitador, quem fazia as sugestões. Meu papel é fazer com que o resto do grupo sugira formas de alcançar essa meta para a pessoa, ou fazer com que alguém os ajudasse e dizer, ‘ok, hoje ou esta semana, vou ajudar você nessa meta’. Desta forma, criamos apoio entre os usuários, levando-os a desenvolver suas próprias formas de começar seus objetivos ou alcançar suas metas” — P8.

As sessões podem ser frequentadas separadamente e são voluntárias, mas um certificado pode ser obtido ao frequentar todo o programa. Para cada sessão existem materiais para dar suporte ao facilitador no grupo. Os facilitadores podem trabalhar com planilhas separadas para cada sessão, nas quais o propósito e a metodologia são descritos. Além disso, folhas de metas foram desenvolvidas para distribuir aos participantes, para que eles acompanhem as metas que definiram e suas conquistas. Nesta folha, os objetivos de redução de danos são lembrados, ressaltando que a abstinência não é o único objetivo possível. À medida que o núcleo do programa evolui em torno de objetivos individuais, uma atenção cuidadosa é dada ao progresso de cada pessoa, durante cada sessão.

“Às vezes as planilhas não são suficientes para que os participantes compreendam. Também, você deve se lembrar, elas estão em inglês e a maioria de nossos participantes são da tribo que fala Zulu, assim você tem que traduzir do inglês para o Zulu e passar mais tempo nas atividades […] você tende a individualizá-la de forma que atenda às necessidades de cada cliente […] Para que eles compreendam as coisas, eles precisam fazê-las, fisicamente. Necessitam escrever as coisas, precisam de atividades. […] Isso os ajuda a compreender. Ao contrário de quando você senta e quando você fala sobre o assunto” — P3.

“No ano passado, estabelecemos metas semanais e incentivamos o grupo a se responsabilizar por essas metas e por quando os participantes não estavam participando. O que eu realmente gostei foi que eles eram honestos quando não conseguiam

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Como foi mencionado, os facilitadores e seus grupos podem adaptar os grupos de acordo com suas situações e capacidades. Cada um dos facilitadores neste estudo de caso deu realmente seu próprio “toque” aos grupos. “Pessoalmente, acho que (pontos fortes pessoais) é a sessão mais importante. Eu sigo a perspectiva dos pontos fortes em todo o trabalho que faço. Em qualquer negativa, há sempre uma positiva, e trata-se de fazer o pessoal compreender que, embora eu esteja consumindo substâncias e destratando as pessoas, e tudo o mais, existe uma força que possivelmente pode nos ajudar no futuro. Assim nós conectamos as forças agora ao modo que elas vão nos ajudar no futuro” — P8.

O facilitador de um grupo prestou atenção cuidadosa à meditação consciente no começo do grupo, reforçando realmente a importância de estar no agora e em introspecção. Um outro facilitador colocou mais ênfase em tornar os grupos divertidos, envolvendo todos de uma maneira prazerosa. Em seu grupo, eles utilizaram gravuras de redução de danos para familiarizar todos com o conceito de


redução de danos e lentamente levá-los no sentido da conscientização das oportunidades de redução de danos em suas próprias vidas. Assim, os grupos são bastante flexíveis em sua resposta ao estilo do facilitador e às necessidades do grupo, desde que o facilitador permaneça consciente do propósito do grupo, e do progresso dos participantes.

Imagem 10: Sala de grupos de contemplação em Durban

Com exceção da avaliação pragmática do progresso com todos os participantes, que ocorre durante as sessões do grupo, os grupos também podem ser avaliados em seu resultado. Um manual de entrevista, para antes e depois dos grupos, foi desenvolvido com esta finalidade. Nessas entrevistas os participantes são, entre outras coisas, solicitados a falarem sobre seu comportamento relativo ao consumo de drogas e suas perspectivas ao utilizar drogas. O manual foi desenvolvido com a intenção de entrevistar antes de começar os grupos, após completar os grupos, e 90 dias mais tarde, mas uma avaliação mais simples também pode ser suficiente. Por exemplo, o hospital de TB pede que seus participantes respondam a 7 perguntas após completarem os grupos de contemplação. Embora seu comportamento real não tenha sido monitorado, os entrevistados avaliaram os grupos muito positivamente e informaram ter mais consciência e mudanças positivas de comportamento. Na ocasião deste estudo de caso, a TB HIV Care ainda não havia avaliado suas sessões de grupo, exceto por avaliações cara-a-cara (não

gravadas) com seus participantes, e as avaliações da Hope House não estavam mais disponíveis.

Equipe e finanças

Basicamente, tudo que você necessita para esta intervenção é um cômodo que seja seguro e privado, e um ou dois facilitadores. Embora seja bom que o facilitador tenha algum treinamento psicológico, o grupo pode ser facilitado por um terapeuta, um conselheiro ou par. Contanto que o facilitador possa dirigir e apoiar o grupo sem preconceitos. Entre outros, o facilitador deve ser capaz de abordar a ambivalência, ajudar os participantes a verem um futuro positivo, jogar luz nas discrepâncias, enfatizar a escolha livre, e identificar e responder aos riscos (SHELLY; MAC DONNELL; SEDICK, 2017). A tabela abaixo demonstra quem facilita os grupos nas três organizações diferentes neste estudo de caso. Na Hope House, os grupos de contemplação ficavam no centro de suas atividades. Em 2014, estes (e outros) grupos funcionaram junto com aconselhamento individual, pelo custo anual de €44.382,0255 (R$ 186.999,2056). A grande maioria dos custos eram custos da equipe de funcionários. Os custos com materiais incluíram aluguel, eletricidade, impressão, telefone e internet, materiais de leitura, reembolsos de transporte, refrescos e recompensas da contingência para PQUE. Além disso, com a intenção de expandir o funcionamento de grupos de contemplação na TB HIV Care e nos outros locais na África do Sul, o fundador dos grupos desenvolveu uma visão geral conceitual básica do orçamento em 2018. Neste plano, os custos dos grupos foram separados de outros serviços, reduzindo os custos em comparação com a Hope House. De acordo com este conceito, dois grupos de contemplação podem funcionar duas vezes por semana, sob a supervisão de um psicólogo, pelo custo anual de €26.076,7857 (R$ 109.871,9058). Os custos com materiais neste plano orçamentário coincidem, na maior parte, com aqueles da Hope House. As diferenças são que o orçamento conceitual exclui custos de gestão e reembolsos de transporte, enquanto inclui despesas para uma revisão de aprendizagem entre pares. 55 56 57 58

€1 = R$ 16,02 (Rand Sul Africano) (N. A.) 1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.) €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.) €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.)

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Pessoal envolvido Hope House

DP Marais

TB HIV Care

Um facilitador e um co-facilitador eram responsáveis pelos grupos. O facilitador era geralmente um conselheiro de grupo.

Dois terapeutas ocupacionais são responsáveis pelos grupos. Eles organizam os grupos em conjunto. Cada sessão um facilita e o outro co-facilita.

Um conselheiro facilita os grupos. Em Durban, estão treinando dois estudantes para assumir isso. Além disso, possíveis planos de treinar pares para, eles mesmos, facilitarem os grupos.

Custos anuais Anos

Localização

Custos da equipe

Custos materiais

Custos Totais

2014

Hope House

R$ 126.559,79

R$ 60.439,41

R$ 186.999,20

2018

Conceitual

R$ 50.221,54

R$ 59.650,36

R$ 109.871,90

Financiadores Hope House

DP Marais

TB HIV Care

Hope House, onde os grupos formaram um núcleo essencial de suas atividades, foi financiada por verbas nacionais através do departamento de desenvolvimento social, loterias e algumas doações privadas.

Dois terapeutas ocupacionais são custeados através do Departamento de Saúde do Cabo Ocidental, como parte do atendimento do hospital de TB.

Até 2018 financiados pelo projeto Bridging the Gaps, financiando pessoal e uma sala de reuniões, através de uma combinação de doadores internacionais. Em 2018 a municipalidade começou também a apoiar os grupos financeiramente, através de um subcontrato com o Distrito Central de Melhorias da Cidade (CCID).

As três organizações que trabalham com grupos de contemplação eram/são financiadas de modo diferente.

Parcerias

Por último, como pode ser dito para muitos outros – senão todos – serviços, os grupos de contemplação são mais eficazes quando são parte de uma oferta mais ampla da redução de danos, cuidados com a saúde e serviços sociais. À parte das sessões do grupo, as pessoas também podem ser convidadas para aconselhamento individual, e – durante os grupos – o facilitador avalia os “membros do grupo para intervenções apropriadas de acordo com necessidades individuais como parte da equipe multidisciplinar” (SHELLY; MAC DONNELL; SEDICK, 2017). Entre o final de 2012 e 2015, na Hope House, um conselheiro era o principal responsável pelas sessões do grupo, que incluíam não apenas a contemplação, mas também habilidades para a vida,

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artes, esportes e terapia, e um segundo conselheiro teve responsabilidade predominante sobre as sessões individuais. Tudo foi oferecido de maneira integrada. “Eles foram incentivados a terem sessões individuais, juntamente com suas sessões de grupo. E a maioria deles aceitou. […] E tudo era baseado em contemplação, não apenas os grupos. Nossas sessões de aconselhamento tinham muito a ver com a motivação para mudar: qual é a sua motivação para mudar? O que você pode e não pode mudar? […] Em suas comunidades, eles não tiveram necessariamente as opções para mudar coisas grandes. Não conseguiam, você sabe, mudar de cidade ou, de repente, estudar em Varsity. Estas opções simplesmente não estão disponíveis, por causa da situação socioeconômica. Assim, trabalhamos muito em torno das mudanças no estilo de vida, sobre as quais eles tinham controle. E, por definição, seu uso de substâncias caía nessa categoria, porque aquilo era algo que eles poderiam mudar” — P2.


Todos os quatro locais neste estudo do caso oferecem várias sessões de grupo diferentes, assim como suporte e aconselhamento individuais. As pessoas podem, por exemplo, receber apoio social para obter uma nova carteira de identidade, encontrar um emprego ou referências para um acolhimento de habitação. No hospital de TB e na TB HIV Care, as PQUD podem ganhar um pouco de dinheiro em programas ocupacionais. No hospital, os pacientes podem ganhar algum dinheiro, passando roupa ou lavando carro para os funcionários do hospital; na TB HIV Care, há limpeza três vezes por semana, durante as quais uma equipe de PQUD sai para limpar as ruas. No hospital de TB, os grupos de contemplação são parte das sessões de TO. Os pacientes que ficam no hospital para seu tratamento de TB – normalmente por vários meses – podem frequentar essas sessões, economizar um pouco de dinheiro através dos trabalhos mencionados acima, conseguir ajuda de um assistente social, fora o tratamento médico que recebem de médicos e enfermeiros. Além do apoio social e ocupacional acima mencionado, na TB HIV Care as PQUD têm acesso a serviços como testes de HIV e TB, encaminhamentos para tratamento de TB e HIV, preservativos e agulhas esterilizadas. Para aqueles que combinam seus estimulantes com a heroína, há a possibilidade de receberem a metadona. Embora, na ocasião deste estudo de caso, o tratamento com metadona ainda fosse um programa-piloto, e não esteja confirmado se isso irá continuar no final de 2018. Eles também trabalham juntos com vários outros serviços. Por exemplo, na Cidade do Cabo, por referência, PQUD podem conseguir trabalhos em jardinagem e restaurantes, através de um projeto chamado Street Scapes. Além disso, a TB HIV Care colabora com o Central City Improvement District (CCID), que não só encaminha PQUD para seus serviços, como também ajuda a encaminhá-los para um abrigo ou clínica. Há diversas clínicas de desintoxicação com as quais a TB HIV Care trabalha em parceria, e das quais eles até recebem atualizações relevantes. De antemão, os funcionários da TB HIV Care ajudam as pessoas a se prepararem. “Se eles quiserem começar em um centro do tratamento, nós os ajudamos a desenvolver

habilidades para a mudança de substância antes de irem a um centro do tratamento” — P8.

Sucessos e desafios

Embora os sucessos dos grupos de contemplação sejam difíceis de provar em uma maneira quantitativa e seus efeitos não possam ser considerados separados das outras intervenções com que são integrados, tanto as PQUE quanto os profissionais relatam múltiplos resultados positivos. Com o objetivo de ser o mais flexível, individual e realista possível, os sucessos do grupo dizem respeito a dar pequenos passos, passando lentamente da contemplação para a ação, ou mesmo apenas desafiando as ideias inculcadas de alguém. “Isso realmente me ajudou. Ajuda a mapear onde você quer estar. Não é imediato, é uma coisa passo a passo. É tudo por fases. Ajuda a traçar onde você quer estar na próxima semana. […] Nenhum outro lugar ajudou-me exclusivamente a me concentrar em mim mesmo e onde quero estar. Fazem com que você se faça aquelas perguntas. […] Nós não gostamos disso no início, mas nós tivemos que fazer isso no programa. Os grupos e o programa mais amplo me disseram como administrar meu uso de drogas. Sem eles, eu não estaria aqui. Para mim foi vital. Antes eu nunca tinha ouvido falar de administrar minhas drogas” — US1 (e US2). “Vi mudanças no estilo de vida, retomadas de contato com as famílias, rompimento com as gangues com as quais se envolveram por anos, com eles assumindo a responsabilidade por quaisquer problemas que tiveram com a lei. […] Os grupos lhes dão uma oportunidade de parar e pensar no que querem” — P6. “Alguns deles deixaram de usar substâncias. Outros mudaram sua dosagem. Passaram de injetar para fumar. […] Vimos também, como disse, muito desenvolvimento em termos da reconexão com a família. Estabelecendo objetivos que são realistas, eles têm feito, e eles querem que nós os mantenhamos responsáveis por isso” — P8. Além do mais, os grupos provaram ser uma intervenção eficaz de baixo limiar em uma cultura que tende a uma abordagem voltada para a abstinência. As diretrizes da intervenção oferecem apoio aos membros da equipe em como trabalhar

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com uma abordagem contemplativa de redução de danos, apoiando, desse, modo uma transição para estruturas menos coercivas de tratamento e suporte. O sucesso mencionado acima nos leva automaticamente a um dos desafios da intervenção. Embora os grupos forneçam excelente contemplação e apoio na redução de danos, uma ausência geral de compreensão da redução de danos e uma abordagem coerciva da abstinência em outros serviços de PQUE podem interferir com a eficácia dos grupos. Por exemplo, quando usuários do serviço eram estimulados a refletir e tomar decisões individuais sobre como queriam usar, mas seu médico, enfermeiro ou conselheiro dizia a eles que a abstinência era o único caminho. Um outro desafio é se manter sincero ao objetivo dos grupos, enquanto permanece flexível e receptivo às necessidades do grupo. Algumas partes das sessões do grupo podem ser difíceis para o facilitador oferecer, como a orientação da meditação ou dirigir o grupo nas sessões individuais de pontos fortes. Por outro lado, os participantes do grupo podem querer sessões mais ativas e menos discursivas. Até mesmo a palavra Contemplação pode ser difícil de trabalhar, e em algumas das sessões fala-se muito, de modo um pouco cansativo, sobre as diretrizes. Na prática, os grupos trabalharam em torno disso, por exemplo, adicionando mais componentes interativos às reuniões e mudando alguns dos idiomas usados. Entretanto, isto requer reflexão e avaliação cuidadosas, para que a essência do grupo seja mantida.

Seguindo em frente

Antes de tudo, e mais importante, em conversas, várias PQUE expressaram não somente o valor dos grupos de contemplação no passado, mas também seu interesse para mais destes grupos no futuro. “Nós precisamos ter um sentido de que pertencemos a algum lugar, precisamos ter um sentido de propósito. Mesmo que odiemos mudança, mesmo que não gostemos da mudança inicial. Você precisa também sentar-se consigo mesmo e dizer a si “quer saber, você fez merda nesse caso, você fez mesmo, agora, siga em frente” — US3.

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Em um grupo focal com dez usuários de Tik, um interesse geral pelos grupos de contemplação é expresso, e alguns tópicos concretos, tais como como lidar com a raiva e melhorar relacionamentos na família são mencionados. Em uma entrevista posterior, duas PQUE expressam não apenas um interesse em participar dos grupos futuros, mas também em facilitá-los. “Eu espero que haja mais, porque eu sei o que significou para mim e gostaria que outras pessoas experimentassem isso. E se realmente acontecerem mais desses grupos, acho que US1 e eu, tendo sido os pioneiros e tendo a experiência e o relacionamento com usuários de drogas, nos disponibilizamos para esse tipo de grupos seja de qual forma for. […] Nós queremos nos envolver (US2). Eu gostaria que os grupos continuassem, porque realmente acho que talvez eu pudesse fazer um pouco mais com outros grupos de contemplação, porque eu meio que escorreguei nas coisas que aprendi naquela época. […] Eu pisei na bola lá (US1). Sou totalmente a favor desses grupos de contemplação ou qualquer outro grupo que possa adicionar valor e positividade aos usuários de drogas […] Eu gostaria de transmitir conhecimento e experiência a outros usuários de drogas como um facilitador (US2)” — US1 e US2. No hospital de TB os terapeutas ocupacionais pretendem continuar oferecendo as sessões de grupo como parte de seu programa de OT. Além disso, a investigadora que estava envolvida no começo dos grupos de contemplação no hospital menciona que ela – junto com uma equipe pequena – está explorando as possibilidades para expandir os grupos de contemplação para as clínicas de TB e para uma das principais instalações de tratamento de drogas na Cidade do Cabo. Tal expansão aumentaria bastante a continuidade dos serviços e os resultados da redução de danos para PQUD, espera-se. Embora as partes pareçam interessadas, é principalmente uma questão de recursos, não só para a implementação dos grupos, mas também para uma transição maior para uma compreensão organizacional de redução de danos e a monitoração e avaliação do processo. Na TB HIV Care, ainda se espera para ver se os grupos de contemplação poderão continuar a ser oferecidos no contexto de TSO, pois este é um projeto-piloto, cuja avaliação estava prevista


para o final do verão de 2018. Apesar desta insegurança financeira, a organização visa oferecer os grupos estruturalmente em Durban e Cidade do Cabo. Em ambos os locais eles continuam a trabalhar no desenvolvimento do conteúdo dos grupos e na Cidade do Cabo estão procurando uma maneira de oferecer os grupos de uma forma aberta, acessível e integrada. Um financiamento recente de um programa estruturado, do qual os grupos de contemplação fazem parte através da municipalidade da Cidade do Cabo, fornece alguma oportunidade de proteger sua continuidade estruturada e integração com outros serviços.

LIÇÕES APRENDIDAS

1

Tudo que você necessita para esta intervenção é um espaço seguro e um facilitador. Ele não tem que ser um psicólogo, também pode ser uma PQUD (par). Isso, contanto que o facilitador seja capaz de apoiar a dinâmica de grupo e as contemplações individuais, independentemente de qual fase a PQUD estiver.

2

Os grupos são abertos e flexíveis por um lado, tornando-os de baixa exigência. Por outro lado, podem alimentar um sentimento forte de grupo, onde um sentido de família pode surgir e onde os usuários assumem a responsabilidade pelo comportamento uns dos outros. Embora a experiência tenha demonstrado que ambos podem existir simultaneamente, isso pode exigir algumas manobras e ajustes enquanto cada grupo se desenvolve.

3

Esses grupos podem ser um bom ponto inicial de redução de danos em ambientes mais voltados para abstinência. Embora o impacto dos grupos com certeza melhore quando é integrado com outros serviços, os grupos também podem funcionar de forma complementar com os serviços de tratamento de abstinência, sendo econômico e não tão delicado politicamente.

Uma ambição específica para os grupos, que vale a pena mencionar, é o plano de trabalhar mais com avaliação de pares, com a intenção de ter pares trabalhando e testando o programa na próxima fase de desenvolvimento. Além disso, os grupos começarão a funcionar em Pretória como parte de seu Programa Comunitário Orientado para o Uso de Substâncias. E qualquer organização interessada em realizar grupos de contemplação pode pedir as diretrizes do grupo, as planilhas para cada sessão separada, diretrizes pré/ pós-entrevista, folhas de meta ou apoio individual de aconselhamento, quando necessário.

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5.4 COUNTERfit Um exemplo sobre kits para fumar com maior segurança no Canadá “Essa noção de que a qualidade do que você usa para fumar é importante, porque afeta sua saúde, é um nível de envolvimento quando as pessoas não estão pensando em tratamento. Há uma mensagem não tão sutil de que você é importante, sua saúde é importante. O que você faz, mesmo que seja criminalizado ou estigmatizado, é importante para nós e achamos que você merece algo melhor” — P2.

Este capítulo destaca uma prática de redução de danos que visa atender melhor as pessoas que fumam estimulantes, especificamente crack e metanfetamina, em Toronto, Canadá. O COUNTERfit é um programa de redução de danos do Centro de Saúde da Comunidade de South Riverdale (do inglês, South Riverdale Community Health Centre – SRCHC) que oferece uma variedade de diferentes programas destinados a atender às necessidades sociais e de saúde das PQUD, de várias maneiras e em vários locais. Especificamente, veremos o programa do COUNTERfit de distribuição de kits para fumar crack e metanfetamina com maior segurança.

Canadá

O Canadá, o segundo maior país do mundo, tem uma população de 37 milhões de habitantes e está geograficamente dividido em dez províncias e três territórios governados por três níveis de governo: federal, provincial e municipal. A população é predominantemente urbanizada, sendo que 82% está concentrada em cidades grandes e médias ao longo da fronteira entre o Canadá e os EUA. O país é conhecido como uma das nações mais etnicamente diversas e multiculturais, com aproximadamente 22% dos canadenses se identificando como imigrantes. Isso resulta em uma população com várias origens étnico-culturais, dois idiomas oficiais no nível federal (inglês e francês) e diversidade religiosa. 4% da população se identifica como aborígene (um grupo definido por populações Inuit, Metis e Primeiras Nações) (STATISTICS CANADA,

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Image 11: Toronto, Canadá

2017). Pouco menos de 5 milhões de canadenses vivem abaixo da linha da pobreza, com crianças, famílias monoparentais, aborígines, pessoas com problemas mentais e físicos, imigrantes recentes e PQUD representando a maioria desse grupo (STATISTICS CANADA,2017). O Canadá possui um programa nacional de assistência médica, no qual todas as províncias e territórios financiam e prestam assistência médica básica a todos os seus cidadãos, embora não seja incomum que os canadenses tenham assistência médica adicional. Um em cada três canadenses vive na província de Ontário, a


cidade mais populosa desta província é Toronto, com pouco menos de 3 milhões de habitantes. Toronto é considerada uma das cidades mais diversificadas do mundo, com 49% da população se identificando como uma minoria visível59.

Uso de substâncias no Canadá

A Pesquisa Canadense sobre Tabaco, Álcool e Drogas (CTADS) é uma pesquisa da população canadense acima de quinze anos de idade (residentes dos três territórios e instituições excluídas). Os dados complementam estratégias e programas nacionais e provinciais que visam abordar as tendências do uso de drogas. A pesquisa mais recente de 2015 indicou que 13% dos canadenses (3,7 milhões) usaram uma das seis substâncias a seguir no ano passado: maconha, pó de cocaína ou crack, ecstasy, speed ou metanfetaminas, alucinógenos ou heroína. O ano de 2015 testemunhou um aumento de 2% no uso em relação ao ano anterior (STATISTICS CANADA, 2016). Em geral, os canadenses entre 15 e 24 anos tiveram uma taxa de prevalência maior do que aqueles com mais de 24 anos de idade, e as taxas de uso dessas seis substâncias foram maiores entre homens do que mulheres (15% a 10%) (STATISTICS CANADA, 2016).

do COUNTERfit usam drogas estimulantes, sendo cocaína a droga mais usada (SRCHC, 2014). Em 2012, 93% das pessoas que usavam cocaína fumavam crack, enquanto um terço (33%) injetava e quase a metade (48%) cheirava cocaína (SRCHC, 2014). Além disso, essa pesquisa revelou que a maioria dos usuários de serviços (cerca de 90%) estavam envolvidos no uso de várias drogas. As combinações mais utilizadas envolviam álcool, crack e maconha. Atualmente, o Canadá vem enfrentando uma crise de opioides – cerca de 4.000 pessoas morreram no ano passado devido a uma overdose de opioides. 72% dessas mortes acidentais envolveram fentanil, um analgésico sintético 50 vezes mais potente do que a heroína (SPECIAL ADVISORY COMMITTEE ON THE EPIDEMIC OF OPIOID OVERDOSES, 2018). Em todo o país, a cocaína tem sido contaminada com fentanil e as pessoas que fumam crack estão nos grupos mais vulneráveis, já que estão, sem saber, fumando o mortal opioide, e não o estimulante que acreditam ser. Para ajudar a manter a comunidade segura, o programa de redução de danos do COUNTERfit emitiu um alerta para os usuários dos serviços e destacou os seus kits gratuitos da Naloxona.

Concentrando-se na categoria de uso de estimulantes, 1% da população relatou ter usado um estimulante em 2015, o que foi semelhante à estatística de 2013. Especificamente, a prevalência do uso de pó de cocaína ou crack foi de 1,2% e o uso de speed/metanfetaminas foi de 0,2% da população total. Não houve diferença na prevalência entre homens e mulheres que usam estimulantes (STATISTICS CANADA, 2016). Aparentemente as PQUD não se limitam necessariamente a um método de administração. Em uma pesquisa realizada em 2014 entre as PUDI em quatro cidades do país, incluindo Toronto, mais da metade dos entrevistados indicou que eles fumaram ou injetaram crack nos últimos seis meses (SRCHC, 2014). Especificamente em Toronto, mais de três quartos (78,7%) de PUDI também fumaram crack nos últimos seis meses (ibidem). De acordo com uma pesquisa de 2014, aproximadamente 73% dos usuários dos serviços 59 Pessoas, exceto povos aborígenes, não caucasianos ou de cor não branca. (N. A.)

Image 12: Logomarca da COUNTERfit

Política de drogas e redução de danos

Em 2016, o Ministério da Saúde reformou a Estratégia Antidrogas Canadense para se tornar a Estratégia Canadense sobre Drogas e Substâncias. Essa estratégia nacional baseia-se em quatro pilares: prevenção, tratamento, redução de danos e segurança, e é apoiada por estudos baseados em evidências (GOVERNMENT OF CANADA, s.d.). A abordagem de redução de danos garante que existam

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medidas de apoio que reduzam as consequências negativas do uso de drogas. Também procura melhorar a saúde dos usuários de substâncias e conectá-los a outros serviços de saúde relacionados a drogas. O governo canadense promete reduzir os danos associados ao uso de substâncias aumentando o acesso à Naloxona, que reverte as overdoses de opioides, agilizando o processo de solicitação para comunidades que desejam abrir salas de consumo de drogas supervisionadas, apoiando intervenções de redução de danos de primeira linha para diminuir o risco de contrair infecções transmitidas sexualmente e por via sanguínea, que podem ser passadas pelo compartilhamento de equipamentos de uso de drogas (como canudos, agulhas, cachimbos e hastes) e desenvolver medidas de redução de danos que tenham como alvo as populações indígenas do Canadá. Além disso, eles apoiam pesquisas contínuas sobre redução de danos por meio da Iniciativa de Pesquisa Canadense sobre o Uso Indevido de Substâncias (CRISM), que é um consórcio que atravessa o país e se concentra na tradução de conhecimento e implementação de pesquisas sobre o uso de drogas (CANADIAN INSTITUTES OF HEALTHCARE RESEARCH, 2017).

Origens do COUNTERfit

O programa COUNTERfit é localizado fora do SRCHC, na parte leste de Toronto. Estabelecido há mais de quarenta anos, o SRCHC está empenhado em fornecer serviços de atenção primária de saúde e programas de promoção da saúde para os residentes do extremo leste de Toronto. Uma das áreas de foco mais conhecidas do SRCHC é a redução de danos, como exemplificado pelo reconhecido e premiado programa COUNTERfit. Através do COUNTERfit, o SRCHC é um dos três locais em Toronto selecionados para oferecer salas de consumo de drogas injetáveis supervisionadas. O programa de redução de danos COUNTERfit foi o primeiro programa no Canadá a atender às necessidades de pessoas que usam drogas não-injetáveis, sendo a primeira agência do país a distribuir kits para fumar crack e metanfetaminas com maior segurança. O COUNTERfit teve seu início em 1998, como resposta às taxas alarmantes de HIV em grandes centros urbanos canadenses, em Toronto, Vancouver, Montreal e Ottawa. Ao contrário de Vancouver, na British Columbia, onde a população que consome

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drogas injetáveis está fortemente concentrada em um bairro específico e definido (East Hastings), as PUDI de Toronto estão mais espalhadas, distribuídas em diferentes regiões por toda a cidade. Tornou-se aparente que um modelo de distribuição, ao contrário de um modo centralizado de unidade de saúde, atenderia melhor à comunidade que consome drogas. Em resposta a isso, foram criados serviços de busca ativa para atender PUDI onde eles estão localizadas em toda a área do centro da cidade. Através do Departamento de AIDS de Ontário e do Ministério da Saúde e Cuidado em Longo Prazo, formou-se uma comissão para descobrir quais os bairros de Toronto com maior procura de serviços de redução de danos. Esse comitê identificou South Riverdale como uma comunidade que necessita de serviços de redução de danos para as PUDI. O programa de redução de danos do SRCHC tinha apenas um redutor de danos em tempo integral, o falecido Raffi Balian, no final de 1998. No ano seguinte, o programa de redução de danos do SRCHC foi formalmente nomeado como COUNTERfit, uma alusão à obtenção dos materiais de injeção (da gíria em inglês “fits”) em um balcão (do inglês “counter”). O programa- piloto começou em 1999 e foi executado por voluntários até 2010, quando recebeu financiamento da cidade. Até 2000, uma equipe de três redutores de danos distribuiu quase 40.000 agulhas esterilizadas e coletou cerca de 30.000 usadas por ano. Em 2006, o COUNTERfit expandiu seus serviços de busca ativa para sete dias por semana, incluindo noites, com seus serviços de entrega itinerantes. Atividades focadas nas mulheres iniciaram-se em 2007 e expandiram-se para um café da manhã de acolhimento para mulheres, um ano depois. Em 2008, um grupo de culinária e um programa para tratar de luto e perda começaram. O programa COUNTERfit cresceu de sete usuários de serviços em 1998 para 818 em 2007 e 1.163 em 2015, além de 2.000 pessoas que usam os serviços anonimamente. Em junho de 2013, o COUNTERfit divulgou um memorial para as PQUD, o primeiro desse tipo na América do Norte. Em 2017, o programa teve mais de 22.000 visitas de usuários e distribuiu cerca de 49.000 kits seguros para fumo. Nesse mesmo ano, o SRCHC também celebrou o recebimento da permissão federal da Health Canada para abrir uma sala de consumo de drogas injetáveis supervisionada e, assim, nasceu a primeira


Zona Livre de Guerra Contra as Drogas (do inglês, Drug War Free Zone) em Ontário. Das cerca de 30.000 pessoas que usam drogas injetáveis na região de Toronto na virada do século 21, 70% relataram também fumar crack, indicando uma significativa sobreposição de pessoas que usam drogas injetáveis que também inalam estimulantes. Com essas informações e conhecimento, em 2000, o COUNTERfit começou um trabalho de campo e intervenções de redução de danos com os fumantes de crack. Especificamente, havia um projeto-piloto de avaliação de necessidades para usuários de inalação que fumam cocaína (já que esta era, e ainda é, a droga preferida pela maioria dos usuários de serviços de inalação do COUNTERfit) chamado de Coalizão de Uso Mais Seguro do Crack (SCUC). Composta de agências de saúde de rua, como o SRCHC, a Rede de Redução de Danos do HIV/AIDS e a Força-Tarefa de Redução de Danos, essa foi uma coalizão que perguntou às PQUD nas ruas da parte leste da cidade que tipo de serviço e suprimento elas gostariam de receber, distribuindo cachimbos de metal estéreis montados por voluntários e pedindo feedback. O envolvimento da comunidade no desenvolvimento de kits para fumar crack com maior segurança foi um sucesso, e quase imediatamente, esses kits foram adotados pelo SRCHC e outras agências de Toronto. Especificamente, essa ferramenta de avaliação e pesquisa que perguntava às pessoas quais eram suas necessidades, para obter equipamentos mais seguros para o uso por inalação, levou à produção do cachimbo de vidro pirex que é distribuído atualmente nos kits seguros para fumo do COUNTERfit. Antes dos cachimbos de metal serem desenvolvidos pelo programa-piloto, os usuários de estimulantes fumavam crack em vários cachimbos tóxicos improvisados, retratados na imagem acima. O problema desses itens era que eles tinham bordas dentadas e aqueciam extremamente rápido, queimando e cortando os lábios e boca dos usuários. Mostrar as lesões dos usuários de estimulantes provocadas por esses cachimbos nocivos foi o suficiente para elaborar o argumento epidemiológico para o Ministério da Saúde e Cuidado em Longo Prazo de que havia uma necessidade de proteger essa população contra a contaminação de vírus contagiosos como o HIV e a Hepatite B e C, e que

isso poderia ser feito através da distribuição de piteiras individuais e hastes de vidro pirex.

Image 13: Exemplos de cachimbos tóxicos que as pessoas usavam antes dos kits seguros para fumo terem sido lançados: latas, garrafas de energético, garrafas de água, inaladores, antenas de carro.

Na prática

Atualmente, o COUNTERfit oferece uma variedade de programas de redução de danos destinados a atender às necessidades sociais e de saúde de PQUD. Especificamente, há três maneiras pelas quais as PQUD podem acessar materiais seguros para fumo: no escritório do COUNTERfit (local fixo), por um serviço de entrega após o expediente (serviços de busca ativa itinerantes) e nas residências de usuários treinados em suas redes (serviços-satélites nas comunidades ou agências). Por meio dessas três vias, o COUNTERfit distribuiu 400.000 seringas e 67.500 hastes para fumar crack em 2017. Todos esses serviços são gratuitos para os usuários dos serviços. Todos os serviços do COUNTERfit oferecem a opção para cadastrar os usuários, com a intenção de rastrear quais serviços estão sendo utilizados. Isso é importante para os relatórios, mas ainda mais para identificar os membros da comunidade que estão fazendo distribuição secundária a partir de sua área local. Por exemplo, isso lhes dá a opção de emprego potencial com esses usuários dos serviços no programa Satélite. No local fixo do COUNTERfit, os usuários dos serviços podem acessar suprimentos de redução de danos, informações, orientação com foco na redução de danos e encaminhamentos confidenciais a outros serviços de saúde e sociais e apoios, tais como tratamento, desintoxicação, conselheiros e abrigos.

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O local fixo e seus serviços estão abertos das 9h às 17h durante a semana e as tarefas são realizadas pelos colaboradores, assistentes e voluntários do COUNTERfit. O perfil dos usuários do local fixo é heterossexual, do gênero masculino, com 50 anos ou mais, desabrigados ou subalojados60, vivendo da ajuda da assistência social, com um histórico de pequenos delitos e uso diário de crack – embora o cristal de metanfetamina (conhecido popularmente como crystalmeth, ice ou glass) e opioides também sejam usados. Em um estudo de 2014, foi relatado que o local fixo é o serviço mais utilizado do COUNTERfit (SRCHC, 2014). Conversamos com um participante que faz visitas diárias ao local fixo para obter seus suprimentos seguros para o fumo, desde que eles abriram, há 20 anos. Durante esse período, ele viu o programa desenvolver uma abordagem holística em relação a questões para as PQUD e crescer em termos de usuários de serviços e programas oferecidos. Pessoalmente, esse programa o ajudou a desenvolver suas competências sociais, de aprendizagem e de liderança, tornando sua ligação a esse serviço “uma das melhores coisas que já aconteceu” — US1. Outro usuário dos serviços que participou deste estudo de caso começou a visitar o local fixo para obter materiais seguros para uso por via injetável, para o grupo de amigos dele que injeta. Ele estava “cansado de vê-los usar agulhas sujas e decidiu agir” — US4. Ele se familiarizou com os materiais necessários para uma injeção mais segura, incluindo treinamento em administração de Naloxona no caso de uma overdose de opioides. Enquanto isso, ele descobriu que também poderia obter materiais seguros para fumo, embora o faça com muito menos frequência do que coleta materiais para sua rede, já que ele, como a maioria dos usuários de crack, não compartilha seu cachimbo com outros. É impressionante que, apesar de terem suas vidas salvas pela Naloxona e continuarem a usar os kits seguros para o uso por via injetável do COUNTERfit, nenhum de seus contatos expressou qualquer interesse em fazer um contato pessoal com o local fixo, algo que ele atribuiu à preguiça, timidez, paranoia ou vergonha. O acesso a esse serviço tornou sua rede mais segura e mais saudável e o ajuda a dar suporte a seus amigos que injetam.

60 Termo utilizado pelos entrevistados. (N. A.)

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O programa móvel do COUNTERfit oferece materiais para redução de danos, principalmente kits seguros para fumo e injetável, para usuários que ligam durante as noites e fins de semana, quando o local fixo está fechado. Esse serviço está disponível durante todo o ano, das 18:00 às 00:00 durante a semana e das 12:00 às 00:00h nos fins de semana e feriados. Os usuários do serviço podem solicitar tanto agulhas estéreis quanto equipamentos para fumar, gratuitamente, na unidade itinerante, e os redutores de danos tentam entregar o pedido dentro de 15 a 30 minutos após o recebimento de uma chamada. Os locais de entrega não precisam ser um endereço residencial, já que muitos dos usuários que ligam são desabrigados. A equipe também entrega os suprimentos em bares ou em pontos de encontro nas ruas. A unidade móvel proporciona um local acessível e de poucos obstáculos para que as pessoas acessem materiais de redução de danos, apoio e informações nos locais onde vivem e se reúnem. Todos os pacotes de materiais vêm com folheto de instruções de redução de danos, telefones do serviço itinerante e, se solicitado, um diário de encontros ruins. Este último é um recurso que permite que profissionais do sexo escrevam seus encontros negativos com os participantes e compartilhem com outros para avisá-los. Cerca da metade dos participantes não solicitam itens como piteiras quando recebem novos materiais, reafirmando a ideia de que os usuários não gostam de compartilhar seus cachimbos com outras pessoas. Dois assistentes de abordagem social itinerantes foram entrevistados sobre suas experiências pessoais com o programa. Um participante viu sua função como “fornecer qualquer coisa que eles precisem para usar drogas com segurança e ajudar a prevenir a propagação de doenças” — P4. Um outro acredita que “todos devem oferecer o que puderem à sociedade” — P5. Além de distribuir kits seguros para fumo, os provedores de serviços de abordagem social itinerantes também coletam agulhas usadas. Essa necessidade foi ilustrada por um assistente de abordagem social: “O que você faz quando se está em uma cadeira de rodas e quer se livrar das agulhas, mas não pode sair de casa? Nós atendemos a essa necessidade” — P4.


Como resultado, a comunidade que não usa drogas apoia esse serviço, que garante que as agulhas usadas sejam descartadas adequadamente. Normalmente, os redutores esperam as chamadas em casa e têm suprimentos disponíveis e fazem entregas na área de captação mais próxima, embora os dois usuários do serviço itinerante com quem falamos disseram que fazem entregas fora da área de campo predefinida com frequência.

Image 14: Área de trabalho de campo

Os profissionais acharam difícil descrever as características (por exemplo, idade, gênero, etnia) dos usuários que faziam as ligações, já que as PQUD podem vir de “todos os segmentos da sociedade” e que o uso de drogas “não tem limites, ninguém é imune a ela” — P5 e P4. As PQUD têm a opção de permanecer como usuários anônimos dos serviços, mas a maioria dos materiais de entrega é registrada no programa, para acompanhar os números de distribuição e os usuários do serviço. Isso ajuda o COUNTERfit não apenas a rastrear seus materiais, mas também monitorar o paradeiro de seus participantes. Por exemplo, a equipe pode acompanhar se um usuário de serviço regular não é ouvido em algum momento e agir de forma adequada. Quando esse programa foi oferecido pela primeira vez em 1999, os assistentes iam para as casas de seus participantes com suprimentos, mas agora, a gestão exige que os usuários que ligarem saiam e encontrem os assistentes em seus carros. A exceção para isso é se o usuário que faz a ligação for um novo cliente, e os assistentes sentirem a necessidade de entrar e demonstrar como os materiais devem ser usados com segurança e fornecer material para redução de danos. O material de redução de danos

relacionado ao uso por via fumada está disponível mediante solicitação, caso contrário, somente equipamentos de uso seguro são entregues. Por motivos de segurança, o local de entrega é sempre compartilhado com uma fonte externa. No entanto, os redutores de danos sempre se sentiram seguros durante o trabalho e explicaram que as pessoas ficam felizes em vê-los chegar. O programa também conta com dez locais-satélites baseados na comunidade, que são administrados por pessoas treinadas e com experiência de campo. O financiamento paga os assistentes dos locaissatélite e um organizador que coordena a entrega de suprimentos e supervisiona os assistentes dos locais-satélites. Todos os assistentes dos locais-satélites são participantes de longo prazo do programa COUNTERfit e são pessoas que usam drogas ativamente (STRIKE; KOLLA, 2013). Esses pares pagos precisam fazer dez sessões de treinamento todo ano sobre uma variedade de assuntos, incluindo uso correto e distribuição de suprimentos para redução de danos, noções básicas de educação para redução de danos, protocolo básico de troca de agulhas, controle de overdose, eliminação de conflitos, prevenção de suicídio, e tópicos de treinamento sugeridos pelos próprios assistentes dos locais-satélites. No programasatélite, os ajudantes fornecem suprimentos para redução de danos (como materiais para fazer sexo seguro e injetar e fumar com mais segurança), informações e apoio a partir de suas próprias casas. Nesse contexto, os locais-satélites podem ser o primeiro ponto de contato onde novos participantes aprendem sobre práticas de redução de danos, o programa COUNTERfit ou o próprio SHCRC. Eles ampliam o alcance geográfico e temporal e a cobertura do local fixo para novas redes de participantes (ibidem). Esses locais também podem ajudar a ser pontos de entrada de baixo limiar para os sistemas sociais e de saúde mais formais, através da construção de conexões com usuários de locais-satélites que atualmente não usam os serviços de atenção primária. Além disso, esses serviços oferecem uma oportunidade de ensinar técnicas adequadas de fumar em tempo real aos usuários do serviço, pois eles também oferecem ambientes para o uso. Além disso, os locais-satélites são capazes de fornecer serviços contínuos, já que, como Strike e Kolla (2013) descobriram, muitos dos assistentes ensinam seus cônjuges e amigos

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próximos a prestarem serviços quando eles próprios não estão disponíveis (quando estão dormindo ou em um treinamento, por exemplo). Em 2013, o programa-satélite distribuiu quase 20% de todos os equipamentos de uso seguro do COUNTERfit para usuários de injetáveis e fumantes e 20% de seus preservativos (ibidem). Dados sobre kits para fumo ou dados posteriores não estavam disponíveis no momento da publicação. Três em cada dez locais-satélites são baseados em serviços. Isso significa que os serviços-satélites do COUNTERfit são formados por meio de parcerias com programas auxiliares no bairro de South Riverdale que trabalham com PQUD, mas não têm financiamento para o programa de redução de danos. O assistente de um local-satélite vai até uma outra organização, um provedor de abrigo social, por exemplo, e faz conexões, encaminhamentos e/ou distribui suprimentos. Não importa onde o serviçosatélite esteja estabelecido, essa parceria é muito benéfica para ambas as partes: “[os ajudantes] são contratados porque já estão fazendo o trabalho e distribuição para sua rede social e são já líderes. Sobre isso, o COUNTERfit incentiva e apoia” — P1. Ao representar o COUNTERfit através dos serviços itinerantes ou satélites, todos os colaboradores e voluntários são orientados a levar um crachá oficial do COUNTERfit, mostrando, na maioria dos casos para a polícia, que eles podem carregar os materiais mais seguros, usados e novos, para o uso de drogas por via injetável ou fumada, como parte de seu trabalho. A programação no COUNTERfit vai além da distribuição, são oferecidos vários outros programas gratuitos que se concentram no desenvolvimento da comunidade – um especificamente para mulheres e um para todos os usuários dos serviços. O Programa de Redução de Danos para as Mulheres do COUNTERfit foi criado para atender às necessidades e desafios únicos das mulheres que usam drogas ilícitas e mulheres que trabalham no comércio sexual. O programa conta com um assistente dedicado que organiza o Café da Manhã de Acolhimento para Mulheres e o Círculo das Mulheres.

Image 15: Kits seguros para o uso de crack, incluindo informações sobre o COUNTERfit, preservativos, lubrificantes, lenços antissépticos, pacotes de hastes de latão (5 por pacote), palito de bambu

O Café da Manhã de Acolhimento para Mulheres é realizado semanalmente em um único espaço estritamente para mulheres no último andar do SRCHC, onde dez a quinze mulheres podem se socializar, tomar café da manhã, consultar uma enfermeira ou conselheira e obter suprimentos de saúde e redução de danos, educação, apoio e encaminhamentos. As participantes podem permanecer no grupo pelo tempo que quiserem. Uma coordenadora do programa entrevistada observou que muitas mulheres tendem a usar sozinhas ou dependem de seus parceiros para usar drogas ou material similar, deixando-as vulneráveis a práticas possivelmente arriscadas. De acordo com a coordenadora, conectar mulheres umas às outras em um ambiente social e de apoio as empodera de uma maneira que lhes permite desenvolver vozes mais fortes, tanto dentro quanto fora do grupo. O Círculo das Mulheres é um programa em que as mulheres se voluntariam para montar kits seguros para o uso de drogas e sexo seguro, enquanto participam de discussões e grupos de apoio. O programa consiste em dois grupos separados, de cinco mulheres em cada grupo fechado, que alternam a reunião a cada duas semanas. Exemplos de kits que essas mulheres criam e distribuem são: kits grandes para injetáveis, kits de uma única dose injetável e kits para heroína fumada (chasing the dragon61), 61 Refere-se à ingestão de heroína pela inalação dos vapores que resultam quando o produto é aquecido – tipicamente em uma

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com papel alumínio e piteiras. Uma mediadora com experiência pessoal de uso de drogas obtém todos os suprimentos para essa sessão, supervisionando o empacotamento adequado dos kits, inserindo os kits em um banco de dados e checando-os para garantia de qualidade. O programa também oferece às dez mulheres nos dois grupos educação sobre saúde sexual, teste de DSTs, kits de teste de gravidez gratuitos e pílulas anticoncepcionais de emergência, itens de necessidades básicas e de higiene (tampões, absorventes, roupas íntimas etc.), orientação, defesa e encaminhamentos para diversos apoios sociais e de saúde. Conforme observado na introdução, o Canadá tem uma população significativa de grupos indígenas. A programação do COUNTERfit para mulheres apoia e homenageia essas mulheres marginalizadas com o recém-desenvolvido Grupo de Apoio Aborígine para as PQUD. Esse grupo oferece às mulheres que usam drogas – muitas das quais foram criadas em escolas residenciais do Canadá – o espaço para discutir como a colonização teve um impacto nelas e na saúde delas, fornece acesso a medicamentos tradicionais e recursos para reconectá-las à sua cultura por meio de cerimônias. O programa Common Ground do COUNTERfit é um programa que implementa grupos e atividades que visam atender às necessidades sociais, de saúde e de defesa de PQUD, reduzindo o isolamento social, construindo redes de apoio social entre pessoas com experiências semelhantes, aumentando a autoestima, criando oportunidades para a expressão criativa e desenvolvimento de habilidades. Esse programa oferece o seguinte: um grupo de acolhimento semanal de cozinha comunitária, onde os membros compartilham informações nutricionais e de redução de danos, discutem questões de insegurança alimentar enfrentadas pela comunidade e preparam e compartilham uma refeição juntos; o Projeto de Educação e Ação de Luto e Perdas, que inclui um grupo fechado de apoio de 12 a 16 semanas para mulheres que usam drogas e que tiveram filhos afastados pelo Serviço de Auxílio Infantil. Quando as mulheres completam esse programa, elas são incentivadas a participar do grupo mensal em andamento, com foco em metas educacionais e direcionadas para a ação. Há também o Projeto folha de papel alumínio, com auxílio de uma chama, geralmente um isqueiro (STRANG; GRIFFITHS; GOSSOP, 1997). (N. R.)

Memorial dos Usuários de Drogas, que foi criado para comemorar e homenagear os membros da comunidade que morreram devido a overdoses de drogas, pobreza, violência e complicações decorrentes do HIV e Hepatite C, que usa iniciativas artísticas comunitárias para facilitar o luto, apoio dos pares, defesa e sensibilização do público em torno de mortes evitáveis, resultantes de estratégias de drogas punitivas. O COUNTERfit também publica sua própria revista, a revista Total Hype, produzida para e por PQUD com conteúdo enviado pela comunidade, com a intenção de fornecer informações sobre redução de danos, permitir a expressão criativa e construir a autoestima.

Equipe e finanças

A maior parte do financiamento do COUNTERfit vem do Ministério da Saúde e Cuidado em Longo Prazo de Ontário, com algum apoio financeiro vindo do governo municipal de Toronto. Embora as diretrizes de melhores práticas, aprovadas nacionalmente, indiquem que todos os serviços públicos de saúde provinciais devem fornecer equipamentos mais seguros para o uso por via injetável e por inalação, nem todas as unidades públicas de saúde de Ontário o fazem. Embora todas as unidades públicas de saúde sejam obrigadas provincialmente a executar programas de troca de seringas e agulhas, fazer além disso é facultativo. Assim, o Ministério da Saúde e Cuidado em Longo Prazo criou um programa provincial, o programa de Distribuição de Redução de Danos de Ontário, para fornecer e comprar – exclusivamente – todos os equipamentos de inalação em um local central para que programas como o COUNTERfit possam encomendá-los diretamente e não passar por uma unidade pública de saúde. Dessa forma, a distribuição de kits seguros para fumo parte 100% do governo provincial. Atualmente, a maioria das 30 unidades públicas de saúde de Ontário distribui kits seguros para fumo, mas não são todas (CBC NEWS, 2007). A província de Ontário permitiu recentemente a distribuição generalizada de cachimbos para o uso de cristais de metanfetamina em unidades públicas de saúde, em maio de 2018. Essa é uma ótima notícia para a comunidade maior, mas, na prática, o COUNTERfit vinha usando parte de seu orçamento

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Equipe envolvida Cargo

Número

Período integral/meio período Pago/voluntário

Coordenador de projetos

2

Período integral

Pago

Redutor de danos (trabalhador de campo)

2

Meio período

Pago

Assistente de projetos

1

Período integral

Pago

Redutor de danos (par)

10

Meio período

Pago

Organizador de locais-satélites

1

Meio período

Pago

Promotora de redução de danos à saúde das mulheres

1

Período integral

Pago

Redutor de danos – emergencial

1

Meio período

Pago

Assistente do Programa Common Ground

1

Período integral

Pago

Assistente do serviço fixo

1

Meio período

Pago

para comprar cachimbos (um cachimbo feito sob medida, desenvolvido com base no feedback de usuários de cristal de metanfetamina) de seu fornecedor de hastes de vidro pirex para fumar crack. O programa de redução de danos do COUNTERfit é composto por mais de 75 voluntários e 20 membros da equipe, cujos salários são financiados pelo governo provincial através do Departamento de AIDS e pelo governo municipal de Toronto através de seu Fundo para a Saúde Urbana. Custa aproximadamente 324.675 euros (R$ 1.367.985,65)62 por ano para manter esse programa de redução de danos, que atende aproximadamente 150 pessoas por dia. Embora os trabalhadores de campo sejam pagos pelo trabalho, eles mesmos devem cobrir 60% de seus custos relacionados aos veículos próprios, como gasolina, o que é uma grande preocupação financeira para os entrevistados. Os programas de busca ativa e satélites do COUNTERfit são serviços de custo relativamente baixo, pois não há custos relacionados a aluguel e manutenção, apenas os dos suprimentos e salários dos assistentes. Especificamente, os custos operacionais para os serviços-satélite incluem o salário do trabalho-satélite (162 euros por mês por assistente, equivalente a 683 reais), equipamentos de redução de danos e contêineres para armazenamento.

62 €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.)

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Em geral, os membros da equipe indicaram que havia estabilidade financeira, mas alguns estavam céticos e preocupados com o impacto que o recémeleito partido conservador poderia ter em relação ao financiamento e programação, especialmente, os locais de prevenção de overdose. Em abril de 2018, o líder conservador progressista de Ontário afirmou ser fortemente contrário as salas de consumo supervisionadas para o uso de drogas injetáveis (THE CANADIAN PRESS, 2018).

Parcerias

Existe um alto grau de suporte entre o programa de distribuição do COUNTERfit e seus outros programas, e independentemente das especificidades da intervenção, o núcleo permanece o mesmo: colocar as necessidades dos usuários em primeiro lugar. A linha comum de redução de danos que é a base de toda a programação do COUNTERfit garante que, independentemente do serviço acessado, as pessoas serão tratadas sem julgamento, com respeito e com um entendimento de que elas estão no comando dos cuidados que recebem. Há ênfase em aprender fora dos portões do SRCHC e compartilhar conhecimento, experiência e recursos com outros centros comunitários. Além disso, conectar-se e colaborar com outras organizações similares é considerado crucial para o sucesso da intervenção de redução de danos. Isso pode ser visto nas oportunidades para falar em


público, treinamentos e orientação, mas também nas colaborações, como é o caso da Coalizão de Uso Mais Seguro do Crack. Além disso, os serviços-satélite do COUNTERfit permitem que se conectem com agências com ideias semelhantes na parte leste de Toronto e essas redes provam ser mutuamente benéficas para ambos os lados. Por exemplo, a vinculação com agências externas amplia a distribuição de kits para fumar e injetar drogas com maior segurança do COUNTERfit, ao mesmo tempo em que também apoia agências menores que precisam de serviços de redução de danos, fortalecendo simultaneamente as comunidades de seu público-alvo. “Preferimos deixar que as pessoas vejam o que funciona bem do que reinventar a roda [...] porque isso faz parte do movimento de redução de danos que muitos deixam passar, isso faz parte da construção da comunidade, tem a ver com construir uma resposta abrangente, não é só sobre entrada e saída de agulhas” — P3.

Sucessos e desafios

O sucesso do programa de distribuição de kits para fumar com maior segurança do COUNTERfit pode ser atribuído às quatro práticas a seguir. Em primeiro lugar, as estratégias inovadoras de serviços itinerantes e satélites permitem que o programa atenda às necessidades de seus usuários e levem suprimentos diretamente para eles. Em segundo lugar, de forma semelhante, os usuários do serviço podem, essencialmente, acessar materiais seguros para fumar e injetar 24 horas por dia, 7 dias por semana. Terceiro, com a ajuda de mediadores, o programa mantém uma base de dados riquíssima sobre a produção de suprimentos, permitindo ver quais serviços e materiais estão em demanda e quais talvez precisem de melhorias. E, por fim, mas talvez o mais importante, todos os programas do COUNTERfit são voltados para o atendimento com foco no cliente, ou seja, os programas são construídos em torno das necessidades dos usuários, e não o contrário. O COUNTERfit acredita que a população de pessoas que usam drogas é uma população muito enigmática. Para melhor compreendê-los, precisamos continuamente perguntar quais são suas necessidades e criar programas para atender a essas necessidades. Essa regra de ouvir, aceitar e atender às necessidades de cada usuário do serviço individualmente exige

muita flexibilidade e não é isenta de complicações, mas a abordagem é: perguntar ao indivíduo o que ele precisa. Ao fornecer programas e serviços ao indivíduo, o COUNTERfit tem a certeza de que as necessidades específicas das PQUD são atendidas. “O sucesso do nosso programa é ter uma abordagem sem julgamentos, encontrar as pessoas onde elas estão e demonstrar que a qualidade de vida e a experiência delas importa para nós e que gostaríamos de oferecer algo para melhorar a experiência delas” — P2. “Temos os kits para uso de crack mais legais, mas isso não nos deixa mais interessantes. O que nos deixa mais interessantes é que trabalhamos em torno dos determinantes sociais da saúde, portanto, se alguém entrar eventualmente à procura de um kit para uso de crack e mencionar algo que está acontecendo em suas vidas, integraremos isso em nosso diálogo e abordagem. Eles vêm para pegar um cachimbo de crack e nós damos isso a eles, mas também algo a mais, e é exatamente assim que oferecemos serviços” — P5. A convicção pessoal do fundador do COUNTERfit e, portanto, a própria estrutura da intervenção de redução de danos, é claramente implantada na crença de que todo usuário do serviço é um provedor de serviços em potencial. Cada profissional incluído neste estudo de caso enfatizou a necessidade de envolvimento contínuo de PQUD e de fazer perguntas diretamente sobre o que eles gostariam de ver nos programas e serviços. Isso inclui o envolvimento no processo de implementação, desenvolvimento, planejamento, execução e avaliação do programa. Relatos pessoais também demonstram fortemente o sucesso do programa de distribuição do COUNTERfit. Descobriu-se que a intervenção de fornecer kits seguros para fumo permite que os indivíduos “sejam usuários mais seguros”, “tenham uma rede mais segura” e sejam apoiados por equipes “dispostas a ajudar os usuários de qualquer forma” — US2, US4 e US1. Uma usuária do serviço, membro do Círculo das Mulheres há nove anos, do Projeto de Educação e Ação de Luto e Perdas e do Café da Manhã de Acolhimento para Mulheres, expressa os sucessos do programa da seguinte forma: “Eu me sinto mais protegida, mais confiante

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em mim mesma porque sei que posso conseguir as coisas que preciso aqui e sempre vou usar drogas, elas [as drogas] sempre estarão aqui, mas acho que tive várias conquistas vindo pra cá” — US3.

aumentar o acesso a serviços de redução de danos e equipamentos seguros, proporcionando educação sobre redução de danos e reduzindo o isolamento social para seus participantes (ARKELL, 2014).

Sua parceira mencionou que, por algumas vezes, ela estava reutilizando seus materiais para fumar, mas desde seu envolvimento com o COUNTERfit, ela agora consegue novos suprimentos para fumar cada vez que entra no local fixo e isso lhe deixa muito mais segura.

Por outro lado, há vários desafios relacionados à distribuição de materiais seguros para usuários. Os redutores de danos de serviços de busca ativa estão de plantão das 18h às 00:00h, durante as noites e nos finais de semana, e essa disponibilidade constante cria um estilo de vida difícil para eles. Em relação a isso, um assistente relatou que achava difícil permanecer motivado enquanto estava de plantão, uma vez que a programação é imprevisível. Os dois assistentes de abordagem social de serviços itinerantes relataram que a demanda pelos serviços era muito alta e não conseguiam acompanhar essa demanda e que talvez “nunca chegassem rápido o suficiente” (P4) e, além disso, às vezes ficavam sem suprimentos durante os turnos. P4 também expressou sua frustração quando os usuários do serviço não atendiam a ligação que fazia para avisar que estava do lado de fora com a entrega, causando atrasos em sua programação. Ela também luta financeiramente para manter seu carro e pagar pelo combustível, uma vez que a maioria desses custos devem ser cobertos pelos próprios assistentes. Por fim, às vezes os assistentes encontram a polícia na área da entrega e a decisão de continuar ou não a entrega se torna complicada. Isso serve como um lembrete dos obstáculos e da estigmatização que eles enfrentam por parte de figuras da autoridade ou daqueles que não estão familiarizados com a função do COUNTERfit.

Os sucessos vão desde fazer contato com um usuário potencial dos serviços, que ainda se mostra um tanto apreensivo, até garantir que um usuário do serviço vá até a consulta médica marcada, e qualquer outro serviço. Do ponto de vista de um membro da equipe, a conquista está em conectar os usuários do serviço a uma variedade de plataformas sociais e de saúde: “as pessoas ficam bem não quando param de usar drogas, mas quando têm as ferramentas para cuidar de si mesmas, como se conectar com serviços sociais e de saúde, e é isso que fazemos” — P6. O sucesso do COUNTERfit também pode ser definido pelo que o diferencia de outras agências de redução de danos da saúde pública, onde pessoas com experiência pessoal de uso tendem a ter um papel mais marginal, não recebem pagamento ou benefícios, ou seus programas de redução de danos são isolados do resto da organização. O COUNTERfit oferece um envolvimento significativo das PQUD e uma resposta direta às necessidades da comunidade, dando à equipe a capacidade de agir rapidamente e mais responsabilidade com a comunidade. Na opinião dos assistentes itinerantes, o sucesso do programa é tão simples quanto fazer com que todas as suas entregas sejam feitas o mais rápido possível e “ir para a cama sabendo que ninguém sofrerá overdose ou adoecerá” — P4. Um estudo realizado em 2014 para avaliar o sucesso e a eficiência dos serviços de busca ativa descobriu que os usuários do serviço estavam satisfeitos com os materiais entregues, horas de entrega, informações sobre o uso por via fumada e injetável dadas pela equipe, o relacionamento com a equipe e encaminhamentos para outros serviços. Além disso, o estudo mostrou que o programa foi eficaz em

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Outros desafios relacionados a atingir o público-alvo incluem arrecadação insuficiente na programação e falta de pessoal treinado, resultando na impossibilidade de atender (potenciais) usuários de serviços em certos grupos de apoio. Por exemplo, o Círculo das Mulheres é bastante popular e, uma vez que as mulheres fazem parte desse grupo social, elas tendem a não sair. Embora isso converta para o sucesso da intervenção, também cria listas de espera durante o ano e decepção para outras mulheres que procuram esse recurso. Outro desafio prático relacionado à distribuição de suprimentos seguros para o fumo é como realmente fazer com que os usuários em potencial se sintam à vontade para irem à primeira vez até o SRCHC. A


parte leste de Toronto está gentrificada e a fachada e aparência do SRCHC podem intimidar bastante. Presume-se que alguns ficam relutantes em entrar no serviço fixo.

Seguindo em frente

Ao considerar o futuro do programa de redução de danos do COUNTERfit, os membros da equipe, usuários do serviço e voluntários estão todos focados em uma coisa: o desenvolvimento e a expansão de programas e a solução das necessidades não atendidas de PQUD. Um membro do programa de Educação e Ação de Luto e Perdas observou que deveria haver um programa similar oferecido e direcionado a pais e homens que perderam filhos para a Sociedade de Auxílio Infantil: “Acho que eles deveriam ter um programa para esses homens porque eles sofrem como nós” — US3. Ecoando o sentimento acima, e como uma resposta direta ao desafio da disponibilidade limitada de alguns serviços, muitas expectativas dos provedores de serviços para o futuro incluem mais opções na programação e horários estendidos para melhor atender a comunidade. A equipe gostaria de ver os programas de redução de danos das mulheres expandirem ainda mais seu horário de funcionamento para acomodar seu público-alvo. Por exemplo, muitas mulheres e transgêneros que são trabalhadoras do sexo não estão acordadas durante o horário de café da manhã de acolhimento (das 9h às 12h). Essas mudanças envolveriam a comunidade com mais frequência e isso poderia ter um impacto significativo na vida dessas mulheres.

Um desenvolvimento notável que foi mencionado por um membro da equipe e divulgado pela mídia foi a possibilidade de desenvolver um projeto que tornaria a hidromorfona, um opioide semelhante à heroína, disponível para usuários de longa data que já experimentaram tratamentos mais tradicionais, como a metadona (WOO, 2017). Isso seria um passo à frente da terapia de substituição, mas permitiria que o centro oferecesse substâncias limpas e estéreis como alternativa às drogas tóxicas, a fim de diminuir os casos de overdose. No entanto, observou-se que a prioridade é garantir que todos os fundamentos da redução de danos estejam disponíveis para os usuários do serviço, antes de embarcar em tal projeto. Não há oportunidade para o COUNTERfit abrir uma sala para os usuários poderem fumar com mais segurança, uma vez que é estritamente proibido fumar em todos os edifícios da cidade. Assim, enquanto salas para o uso seguro de drogas injetáveis são espaços onde drogas e seu consumo são liberados pelo governo, salas para o uso seguro por via fumada não podem existir – por enquanto. Observando o cenário como um todo, o programa gostaria que o governo federal descriminalizasse todas as drogas e redirecionasse o dinheiro do policiamento e encarceramento para a educação, moradia, renda, saúde e apoio à redução de danos para PQUD.

“Há mulheres no programa que querem fazer alguma coisa, qualquer coisa, para mantê-las ocupadas e não ficar pensando em ir atrás de drogas, elas querem algo mais para fazer durante o dia” — P7. Um programa que a equipe gostaria de ver se desenvolver é o programa de Cuidadores, direcionado a quem cuida de PQUD, mas não está familiarizado com suas necessidades sociais ou de saúde específicas. A ideia aqui é ser um recurso para os pais de PQUD que têm pouca ou nenhuma experiência com o estilo de vida ou o uso de substâncias que os filhos usam.

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LIÇÕES APRENDIDAS

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1

Em termos de distribuição: estar preparado para um cronograma imprevisível, ter suprimentos suficientes, manter a discrição no momento da entrega, manter registros e sempre dar aos usuários de estimulantes opções para o uso.

2

Em termos de provedores de serviços: ter certeza de ter algo para oferecer aos usuários do serviço, seja café, uma refeição quente, bilhetes de transporte público ou dinheiro para atraí-los com o objetivo de estabelecer contato e ficar conectado ao que você tem a oferecer.

3

Em termos de função da organização: ter uma estratégia de redução de danos abrangente e flexível presente em todos os serviços, que permita que se observe todas as diferentes maneiras de intervir com práticas e políticas de redução de danos para todos os tipos de usuários.


5.5 El Achique de Casavalle Um exemplo sobre centros de convivência no Uruguai “A importância [do El Achique] é que [os usuários do serviço] têm um lugar para onde ir, um ponto de referência, onde são recebidos em qualquer situação, onde recebem ajuda para retomar a vida, seguir em frente ou recomeçar. Sem julgamentos, sem culpa” — P1. “Chegamos a El Achique para relaxar, acalmar nossos pensamentos, deixar todos os ruídos e problemas para trás. Nós criamos um vínculo familiar. Cozinhamos juntos, conversamos. Aqui, chegamos e tentamos ajudar uns aos outros” — US4. El Achique de Casavalle (Achique) é um centro comunitário de convivência e aproximação que abriu em torno de 1998, na zona nordeste da capital do Uruguai, Montevidéu. Está situado na bacia de Casavalle, uma área de Montevidéu, onde mais de 55% dos domicílios vivem abaixo da linha da pobreza (SUÁREZ et al., 2014). Casavalle foi um dos primeiros lugares a experimentar uma explosão do uso da pasta base de cocaína (crack), uma forma sulamericana de cocaína fumada relativamente rústica, no início dos anos 2000. O principal objetivo do centro de convivência é trabalhar em prol da integração social, fornecer apoio social e melhorar a vida das pessoas vulneráveis, especialmente jovens do gênero masculino, com uso problemático de drogas dentro de seus próprios bairros e/ou nos entornos destes. A reintegração profissional é um objetivo secundário do Achique. Image 16: Montevidéu, Uruguai

O Achique tem como objetivo gerar um ambiente positivo onde um US possa reduzir a exposição à vida nas ruas e na cena do uso de drogas. O Achique oferece aconselhamento psicoterapêutico individual e em grupo, educação (em saúde) e outras atividades como aulas de culinária, oficinas sobre construção, prevenção de recaídas e direitos básicos e, em alguns casos, encaminhamentos para oportunidades de emprego, caso eles se candidatem. Os usuários também têm acesso a outros serviços que estão disponíveis para PQUD dentro da Rede Nacional do Uruguai de Assistência e Tratamento às Drogas (RENADRO). O Achique funciona nos dias úteis,

das 9h às 15h, e fecha nos finais de semana. Trata-se de uma intervenção interinstitucional, apoiada pela Administração Estatal dos Serviços de Saúde, pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MIDES), pelo Instituto da Criança e do Adolescente do Uruguai e pelo governo local de Montevidéu.

Uruguai

O Uruguai é um pequeno país da América do Sul, localizado entre duas grandes nações vizinhas: Argentina e Brasil. Para o leste, faz fronteira com

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o Oceano Atlântico e, ao sul, o Rio de la Plata, a foz do rio mais ampla do mundo. É o lar de aproximadamente 3,5 milhões de habitantes, dos quais mais da metade vive na capital do país, Montevidéu. Tradicionalmente, e especialmente em comparação com outros países da América Latina, o Uruguai é conhecido por suas políticas sociais relativamente progressistas. Na América Latina, foi o primeiro país que permitiu que as mulheres votassem, um dos dois países que descriminalizaram o aborto e o primeiro país a legalizar as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo (WALSH; RAMSEY, 2015). O Uruguai é uma democracia representativa desde 1985, depois de ter sofrido uma ditadura durante doze anos, entre 1973 e 1985. José Mujica, presidente de 2010 a 2015 – quando o Uruguai legalizou o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a maconha – ficou preso por 13 anos durante a ditadura. O país é considerado um país de alta renda pela ONU e ocupa o primeiro lugar entre os países da América Latina em democracia, pouca corrupção, paz e prosperidade (U.S. EMBASSY OF MONTEVIDEO, 2013). O Uruguai também tem uma alta pontuação como país socialmente desenvolvido, de acordo com o Índice de Progresso Social, que combina indicadores nas áreas de necessidades humanas básicas, fundamentos de bem-estar e oportunidades de progresso (SOCIAL PROGRESS INDEX, 2017). A grande maioria do uso problemático de drogas ocorre na capital, Montevidéu.

Uso de substâncias no Uruguai

Antes da virada do milênio, a grande maioria do uso problemático de substâncias no Uruguai estava associada a substâncias baratas e facilmente disponíveis, como álcool e inalantes (como cola, nafta ou tiner) (KEUROGLIAN; RAMÍREZ; SUÁREZ, 2017). O uso da pasta base só se tornou um problema de saúde pública no Uruguai há relativamente pouco tempo, durante a crise econômica que atingiu o país em 2002 (SUÁREZ et al., 2014). A pasta base substituiu de forma mais ou menos completa o uso de outras substâncias problemáticas, como o uso de cocaína injetável. Segundo os usuários, esse problema surgiu como resultado de um colapso no campo sociocultural, uma perda de valores familiares tradicionais, combinada com a falta de oportunidades de educação e trabalho (SUÁREZ et al., 2014). O uso da pasta base rapidamente afetou as populações urbanas mais vulneráveis, em condições socioeconômicas baixas, tanto que

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alguns pesquisadores o comparam à epidemia de crack nos EUA nos anos 80. No entanto, comparado com o que aconteceu nos EUA, o rápido aumento no uso da cocaína fumada não foi acompanhado por um forte aumento da violência63. Na realidade, o Uruguai continua sendo um dos países mais seguros da região, embora seus cidadãos se sintam relativamente inseguros (WALSH; RAMSEY, 2015). De acordo com estimativas científicas, Montevidéu abriga cerca de 9.500 a 14.500 pessoas que usam a pasta base de forma problemática, das quais cerca de um terço vive nas ruas (KEUROGLIAN; RAMÍREZ; SUÁREZ, 2017; SUÁREZ et al., 2014). A grande maioria é do gênero masculino (89,4%), usa pasta base pelo menos uma vez por semana (90%) e usa mais de uma substância, como álcool (79%), maconha (75%), cloridrato (pó) de cocaína (34%), ou tranquilizantes (21%) (KEUROGLIAN; RAMÍREZ; SUÁREZ, 2017). Mais da metade dos usuários consome pasta base individualmente, e a maioria (63%) consome a droga nas ruas. A prevalência do HIV entre as pessoas que usam pasta base é de 6,3%64, o que é alto em comparação com a prevalência na população geral (0,45%) (KEUROGLIAN; RAMÍREZ; SUÁREZ, 2017). Durante as entrevistas, tanto os profissionais (médicos) como as pessoas que utilizam a pasta base mencionaram com frequência o uso intencional da maconha como método de redução de danos, embora a maconha não tenha tido efeitos positivos para todos os entrevistados. Embora a maioria dos entrevistados concorde que nunca substitui completamente o uso de pasta base, eles observaram que fazer isso os ajuda a reduzir ou ganhar mais controle sobre o uso de pasta base. Um entrevistado (US6) explica: “tentamos usar a maconha, não exatamente como um método de tratamento, mas mais como uma forma de relaxar, se acalmar e ajudar a não ir atrás de drogas mais fortes”. Os entrevistados também mencionaram que isso ajuda a reduzir o desejo pela pasta base, em parte porque a duração dos efeitos da maconha se 63 Um argumento muito utilizado por gestores, políticos e o senso comum, da naturalização da violência como consequência do uso de drogas, principalmente crack. (N. R.) 64 Esse dado estatístico é muito similar aos encontrados no Brasil (BASTOS; BERTONI, 2014), e no contexto do Programa Atitude – uma das experiências aprofundadas por este relatório (SANTOS et al., 2016). (N. R.)


compara favoravelmente à pasta base, que dura apenas alguns segundos, fazendo com que eles queiram fumar mais. Outro contraste importante com os efeitos da pasta base é que a maconha estimula o apetite e pode ser eficaz como auxílio ao sono. O uso da maconha também ajuda PQUD a reduzir a ansiedade (particularmente após longos períodos de uso, embora em alguns estimule a ansiedade e a paranoia) ajudando-as a se desligarem do desejo de usar a pasta base de forma contínua e ajudando-as a relaxar quando estão sofrendo muito por causa da abstinência65. “A pasta base deixa você sozinho, mudo, silenciado, sem ninguém, só. A pasta você não compartilha. Torna você cruel, violento, agressivo. Agora, [maconha] é totalmente o oposto. Faz você compartilhar, sair, divertir-se, conversar, estar entre amigos e familiares” — US7. Vários entrevistados, incluindo aqueles que trabalham na área médica, mencionaram recomendar maconha ou tolerar seu uso (apesar de não permitir o uso de outras substâncias como álcool ou pasta base), e um lamentou não poder prescrever maconha para uso medicinal para as razões descritas acima. No entanto, uma entrevistada – pesando apenas 39 kg – mencionou que foi receitada maconha medicinal para estimular o apetite. “Existe uma sequência nas ruas. Você acorda, curte uma brisa, se deita, curte uma brisa, acorda, curte uma brisa (todos riem). Você não come, não existe mais nada, você fica um palito, só o pó. [...] A pasta tira a fome. Conseguia ficar assim por três dias seguidos: droga, droga, droga, droga e não comia nada. Então você fica só o osso, muito magro. Porque você não come” — US4.

Política de drogas e redução de danos

O uso de substâncias ilícitas e o porte pessoal de uma quantidade mínima nunca foram criminalizados no Uruguai, inclusive durante a ditadura uruguaia de 1973 a 1985. Desde 2004, o acesso a agulhas e seringas estéreis foi regulamentado e, desde então, a redução de danos tem se tornado cada vez mais 65 O uso de maconha como redutor de danos, seus efeitos de substituição de crack e medicamentos, sua ação “antifissura”, já foram explorados no capítulo 4.7.1 Substitutos baseados em plantas. (N. R.)

integrada na política sobre drogas do país (WALSH; RAMSEY, 2015). Em 2012, o governo liderado pelo presidente José ‘Pepe’ Mujica propôs regulamentar e controlar totalmente a maconha no país, como parte de sua Estratégia para a Vida e a Coexistência. Essa estratégia também incluiu propostas para reprimir a corrupção e o narcotráfico e expandir o tratamento para o uso problemático de drogas, particularmente para a pasta base (WALSH; RAMSEY, 2015). Um argumento proeminente foi a separação dos mercados de drogas, semelhante à política holandesa de tolerar a venda de maconha nos coffeeshops. A ideia por trás é que, limitando a exposição de pessoas que usam maconha a pessoas que vendem cocaína, diminuiria o uso de pasta base (WALSH, RAMSEY, 2015). Até o final de 2013, a Lei 19.172 foi aprovada pelo governo, permitindo que os cidadãos uruguaios (proibindo assim o acesso a estrangeiros) adquirissem maconha através de três formas: cultivo doméstico (de até seis plantas femininas); através de um clube de maconha (cooperativas que permitem que 15 a 45 usuários cultivem coletivamente até 99 plantas); ou através da venda comercial de maconha em farmácias (HUDAK; RAMSEY; WALSH, 2018; CORDA; FUSERO, 2016; JUNTA NACIONAL DE DROGAS, 2016; WALSH; RAMSEY, 2015). O objetivo explícito da lei é reduzir a violência relacionada com o mercado ilegal de maconha e promover a saúde pública, tratando o consumo problemático de maconha, educando o público sobre os riscos da maconha e reduzindo os danos associados ao seu consumo (WALSH; RAMSEY, 2015; HUDAK; RAMSEY; WALSH, 2018). Nos anos seguintes, os ativistas pressionaram por novas reformas, argumentando que enquanto a lei regulamentava legalmente os valores de porte pela primeira vez, PQUD ainda estavam sujeitas a prisões arbitrárias, não podiam legalmente comprar ou cultivar maconha, e eram forçadas a comprar maconha de bocas (traficantes locais) que também vendem outras drogas, como a pasta base (CORDA; FUSERO, 2016; WALSH; RAMSEY, 2015). Os entrevistados em nosso estudo argumentaram ainda que não tinham (fácil) acesso a farmácias ou clubes de maconha porque o registo era demasiado complicado ou porque as farmácias ficam muito longe para aqueles que vivem em bairros pobres. O acesso é mais fácil para os consumidores de classes socioeconômicas mais altas. O resultado é que, mesmo que os usuários dos serviços tentem explicitamente consumir maconha em vez de pasta

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base, acabam consumindo a segunda droga, como explicado por este entrevistado: “Às vezes, sinto que é melhor não usar pasta, então vou até a boca para comprar maconha no mesmo lugar em que eles vendem pasta. É muito complicado, porque muitas vezes acabo consumindo pasta. Porque nas ruas, as pessoas que você vê, tudo faz você recordar dos dias anteriores de consumo. É muito complicado. Porque você vai para comprar maconha e acaba se viciando em pasta” — US3. O Conselho Nacional Interministerial de Drogas é o órgão governamental responsável pela política nacional de drogas, a Estratégia Nacional para Abordar o Problema das Drogas (END) 2016–2020. Essa é uma abordagem baseada em direitos humanos, gênero e saúde pública, buscando uma nova forma de controle de mercado e regulamentação (JUNTA NACIONAL DE DROGAS, 2016). Entende que o problema das drogas é uma questão complexa, composta de fatores econômicos, políticos e culturais. Requer uma abordagem abrangente focada na integração social e inclusão de populações vulneráveis. O objetivo da política nacional de drogas do Uruguai é garantir o acesso ao direito fundamental das pessoas à saúde integral, com foco na qualidade de vida, prevenção e promoção da saúde, atenção, tratamento, inclusão social e redução de danos, promovendo alternativas ao encarceramento (JUNTA NACIONAL DE DROGAS, 2016). A redução de danos é um objetivo explícito da estratégia nacional de drogas e da Lei da Maconha. A redução de danos se estende também à política de tabaco do país e também será a base para a futura regulamentação do mercado de álcool (JUNTA NACIONAL DE DROGAS, 2016). O Uruguai – e Montevidéu em especial – oferece uma variedade de serviços para PQUD. Os serviços relacionados à prevenção e redução de danos incluem assistência telefônica 24 horas, trabalho de busca ativa (Aleros, El Abrojo), instalações de tratamento residencial, uma van que oferece serviços de redução de danos itinerantes (UMA) no centro da cidade de Montevidéu, em Ciudadelas – centros que oferecem informações, orientação e encaminhamento para a população em geral, bem como PQUD.

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Origens do El Achique “[El Achique] é algo como encontrar um espaço tranquilo para quando você está se sentindo mal, é algo como encontrar refúgio, deixar o perigo e a loucura para trás” — P1. Trabalhando em pequenas policlínicas locais nas áreas mais pobres de Montevidéu por volta da virada do milênio, um psicólogo, sociólogo e um médico testemunharam o surgimento do uso, do tráfico e da violência e crime relacionados à pasta base. Cuidando de participantes, ficaram sabendo sobre parentes que estavam usando, e começaram a sair nas ruas, fazendo contato com PQUD moradoras de rua, oferecendo intervenções individuais, em grupo e em família nas ruas. Durante esse período, o governo nacional conservador foi firmemente contra a redução de danos. No entanto, como funcionária pública do governo municipal progressista de Montevidéu, a psicóloga Cláudia Crespo teve permissão para dedicar dez horas por semana a este projeto, abrindo caminho para a construção de uma instalação física próxima à clínica de saúde, com o objetivo de ajudar as pessoas que usavam pasta base em 2009. Em 2012, o governo local e a igreja católica alugaram um imóvel para El Achique, que continua sendo usado atualmente. O nome “El Achique de Casavalle” foi inventado por um usuário, do espanhol achicarse (tornar-se menor), o que, na gíria uruguaia, significa algo parecido com acalmar-se, ter os pés no chão, ir com calma. A maioria dos usuários dos serviços do Achique são jovens do gênero masculino, aproximadamente entre 18 e 35 anos, a maioria usuários de pasta base. Muitos (também) são usuários de maconha e álcool. De acordo com os entrevistados, o uso injetável é atualmente muito raro no Uruguai e nenhum dos usuários dos serviços é atualmente ou foi uma PUDI, embora os dados não sejam registrados de forma estrutural. Embora todos os usuários dos serviços morem nos mesmos bairros pobres ou adjacentes, nem todos vêm dos níveis socioeconômicos mais baixos. Na verdade, a maioria tem lares, embora muitas vezes tenham situações familiares difíceis. Durante nossa visita, em abril de 2018, apenas três dos visitantes atuais não tinham um teto para morar e dormiam em abrigos noturnos. O Achique atende entre 10 a 25 usuários por dia e (várias) centenas por ano.


“Comecei a usar maconha quando tinha 12 anos, mudei para basoco e tabasoco [uma mistura de pasta base com maconha e tabaco, respectivamente) aos 17 anos. Aos 20 anos, estava usando pasta pura, com cinzas, em um cachimbo” — US1. Achique é conhecido como um centro de tratamento comunitário, de acordo com o conceito do psicólogo italiano Efrem Milanese. O princípio básico desse centro é oferecer um espaço seguro e um ambiente saudável para pessoas que estão em estado de séria exclusão social. Seu objetivo é melhorar as condições de vida da população-alvo e da comunidade local. O tratamento comunitário leva em consideração o indivíduo, suas relações familiares e a comunidade em que vive. Essa ideia foi colocada em prática pela psicóloga Crespo nos primeiros dias: “[Ela] começou a trabalhar na aproximação, na comunidade, com usuários, e com a comunidade também. Isso era completamente novo” — P1. Embora o rótulo centro de tratamento possa sugerir o contrário, o Achique é solidamente baseado em princípios de redução de danos, e os entrevistados consideram as intervenções oferecidas no Achique como um tratamento, tanto quanto as intervenções médicas ou psicológicas. Achique tem tudo a ver com a construção da cidadania e a criação de novas redes sociais. “É sobre construir cidadania, construir um ser humano. Existem muitas coisas que eles nunca tiveram. Eles não as perderam, eles nunca as tiveram em primeiro lugar. Você tem que ajudálos a descobrir suas habilidades e capacidades. Estimulando a autoestima e os incentivando, aproveitando os pontos fortes de cada um deles” — P2. Os usuários dos serviços não estão formalmente envolvidos na administração do centro, pois – como argumentam alguns entrevistados – isso criaria atrito entre os usuários. O envolvimento deles inclui preparar o café da manhã e almoço, fazer a limpeza e manutenção geral, tarefas que são consideradas parte do tratamento.

Na prática

Achique está alojado em um longo prédio de um andar, com uma pequena capela no quintal – usada

apenas para missas durante os finais de semana. É um centro de convivência acolhedor de baixa exigência, onde os usuários dos serviços podem simplesmente aparecer e participar do café da manhã. O café da manhã e o almoço são elementos importantes do Achique. Todas as refeições são preparadas pelos usuários dos serviços, e são bastante elogiadas. As refeições são servidas e comidas como um grupo em uma mesa comprida. Como muitos usuários vêm de ambientes sociais complicados ou de lares desfeitos, sentar-se junto com outros usuários e funcionários dos serviços parece muito com uma refeição de uma família de verdade. “Para muitos, esta é a experiência mais próxima de uma família que eles conhecem. Para muitos, já faz anos que se sentaram à mesa para comer juntos” — US6. Quando os novos usuários dos serviços chegam, eles são saudados da maneira mais calorosa e informal possível, e, exceto pelo fato de se apresentarem, seria impossível para alguém de fora saber quem é novo e quem já frequenta. Vários serviços de higiene pessoal, como ducha (fria) e banheiro, estão disponíveis para os usuários, mas também podem cortar o cabelo uns dos outros, lavar roupas ou usar produtos de higiene, como escovas de dentes, desodorantes, sabonetes e lâminas de barbear. Como os usuários dos serviços não são julgados e são sempre bem-vindos, para muitos é um local de referência, onde podem vir quando não estiverem bem, retornando apenas no caso de recaída. A base do Achique é suprir as necessidades mais básicas dos usuários dos serviços, como higiene, alimentação e aquecimento, contato interpessoal e, mais importante, algo diferente do cenário perigoso do uso de drogas, com o qual muitos deles são constantemente confrontados. “O fundamental é reduzir o tempo em que os [usuários dos serviços] estão expostos a situações de risco. Seja nas ruas ou em situações familiares complexas. Qualquer lugar que seja difícil, complexo e onde eles estejam expostos a muita violência e muito uso de drogas” — P2. O que torna o Achique especial, tanto profissionais quanto usuários concordam, é a atmosfera calorosa, positiva e acolhedora e a solidariedade entre os usuários dos serviços. Não é raro ver os

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usuários dos serviços cuidando uns dos outros, trazendo presentes como roupas para usuários menos favorecidos. Ou, como vários entrevistados confidenciaram, fazendo de tudo para ajudar outro US a encontrar um lugar para dormir em um abrigo noturno.

a independência. Os entrevistados mencionaram a importância de incutir neles que são muito mais do que apenas usuários de drogas. “Eles ensinam boas maneiras, a ser sociáveis, conversar com as pessoas, porque quando você está sob efeito de drogas, não fala com ninguém. Por exemplo, eu sempre ficava na defensiva, me sentia menos que os outros. Me sinto bem agora” — US5. Muitas das atividades do Achique são planejadas de tal forma que os usuários ganham experiência trabalhando juntos, sendo pontuais, dividindo tarefas. O objetivo é promover a inclusão, gerar vínculos produtivos e desestigmatizantes com a sociedade por meio do trabalho e do treinamento profissional.

Imagem 17: O centro de convivência

“Para mim, o aspecto mais importante de El Achique é a família. Somos todos iguais aqui e nos entendemos. Veja meu caso, por exemplo: Não tenho família, sem pai, nem mãe, nada. No El Achique, eles são meus irmãos, meus parentes. Sentar à mesa para compartilhar refeições, adoro isso” — US4. O conceito é que, criando primeiro um espaço seguro e acolhedor, os usuários dos serviços podem começar a trabalhar em vários aspectos de seus problemas pessoais e relacionados à comunidade. Os usuários têm acesso a intervenções terapêuticas individuais e em grupo no próprio centro de convivência, por meio dos psicólogos que trabalham lá, e podem ser encaminhados a muitos outros serviços adicionais, por exemplo atendimento médico, psicológico, psiquiátrico, odontológico, mas também acessar programas educacionais e de trabalho. Muitos usuários dos serviços não têm um propósito na vida, e alguns deles demonstram isso visivelmente, largados em sofás e relutantes em ajudar a lavar pratos, limpar o banheiro ou varrer o chão. Os usuários são encorajados a explorar seus pontos fortes e habilidades, motivando-os e estimulando a autoestima, a autonomia e, por fim,

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No Achique, há uma constante oferta de cursos e atividades para os usuários. Atividades anteriores incluíam percussão, boxe, capoeira e xadrez (os usuários gostaram bastante, e aprenderam habilidades como praticar a paciência e não ser impulsivo). Outras atividades e cursos estavam mais diretamente ligados à reintegração profissional, como aulas sobre uso de computadores, carpintaria, construção, cultivo de hortaliças em horta orgânica, fabricação (e venda) de massas e pães frescos. “Aqui você aprende coisas. Você aprende o tempo todo. O hábito de limpar, de manter a ordem, a harmonia, sentar-se à mesa. Muitos não têm família e sentar à mesa com companhia, conversar, é algo imenso. Tem alegria aqui, fazemos a limpeza juntos, ouvimos música juntos, compartilhamos nosso mate [a bebida nacional]” — US1. Curiosamente, o uso de substâncias em si não costuma ser um tópico explícito nas conversas. Desde o seu início, o Achique foi concebido como um lugar onde as pessoas que sofreram (abuso, abandono, problemas familiares, violência etc.) podem abordar essas questões, em vez do uso de substâncias, que é considerado um sintoma de todos os tipos de exclusão (social), de pobreza e de violência. Em termos de estratégias de redução de danos, os psicólogos do Achique dedicam muito tempo e atenção para gerar conscientização sobre situações e contextos em que os usuários são muito mais vulneráveis ou expostos ao risco, relembrando aos usuários estratégias que eles mesmos usaram


antes (evitando certas pessoas ou locais, por exemplo). “Tentamos deixar todos os problemas com drogas do lado de fora da porta. Aqui, falamos sobre coisas normais. Futebol, comida, mulheres… Não se fala em drogas aqui. Estamos cientes de que este lugar é para nos ajudar a progredir” — US3. No entanto, os usuários também mencionaram que parte do que eles apreciam sobre o Achique é o fato de que a maconha não é desaprovada, mesmo que o uso de substâncias não seja permitido nas instalações. “Este é o único lugar onde eles não dizem que você não pode usar. Também não dizem ‘vá fumar um baseado’, mas nosso psicólogo costumava dizer: Eu prefiro que você vá e fume um baseado, pense em comer e beber uma Coca-Cola, em vez de fumar pasta base” — US5. Ajudar os usuários a (re)integrá-los no mercado de trabalho tornou-se um objetivo adicional importante. Esse não era um dos objetivos iniciais, mas tornou-se bastante importante ao longo do tempo. A inserção no mercado de trabalho é considerada fundamental no processo do tratamento, uma vez que os entrevistados consideram a inclusão plena na sociedade impossível para adultos sem acesso ao trabalho. Precisamente pelo fato de que muitos usuários têm apenas uma experiência de trabalho esporádica e errática, não têm referências, além de seu uso de substâncias, a (re)integração no mercado de trabalho formal é bastante difícil de realizar. Durante a nossa visita ao Achique, a cozinha estava sendo reformada pelos usuários, atividade oferecida como um curso sob a supervisão de um professor de construção. O Achique também oferece módulos sobre como evitar acidentes relacionados ao trabalho (como o uso adequado de ferramentas e itens de segurança), bem como um curso de primeiros socorros. Além disso, os usuários têm acesso a um advogado que os instrui sobre legislação e direitos trabalhistas, um item importante para pessoas com pouca experiência em um ambiente de trabalho formal. Além disso, muitos dos usuários geralmente não têm mais que o ensino primário e poucos usuários veem o valor de continuar os estudos.

Com apoio do Conselho Nacional sobre Drogas e sob orientação de uma assistente social, em 2013, vários usuários formaram uma pequena cooperativa chamada Achicando Caminos. A cooperativa é contratada pela Organização de Obras de Saneamento do Estado (OSE) e fornece a vários usuários um emprego remunerado por um ano. Desde então, tornou-se uma organização independente.

Equipe e finanças

A equipe do Achique foi sujeita a mudanças ao longo dos anos. Até outubro de 2017, o projeto era administrado apenas por um dos fundadores. Atualmente, o Achique é composto por dois psicólogos; um gerente de projetos (trabalhando das 9h às 15h) e um assistente de projetos (que trabalha entre 9h e 13h). Durante a nossa visita, um terceiro membro da equipe (também um psicólogo) foi inesperadamente adicionado à equipe, paga por uma cooperativa contratada pela RENADRO. Dos recursos que estão atualmente disponíveis para o Achique, a RENADRO paga os recursos humanos (salários), e o uso do prédio é emprestado pelo padre da capela local. A manutenção é coberta pelo município de Montevidéu. O Achique recebe uma pequena quantia mensal do Conselho Nacional sobre Drogas para comprar produtos básicos, como alimentos frescos e materiais de limpeza. Além disso, a organização recebe doações não frequentes do MIDES para comprar alimentos secos. Os cursos são pagos pelo instituto nacional de emprego e formação profissional. Para obter financiamento adicional, o Achique precisa solicitar fundos competitivos no Conselho Nacional sobre Drogas, que são destinados a projetos específicos, como cursos, mas também para despesas diárias, como alimentação e transporte. Equipe do El Achique Gerente de projetos/ psicólogo

Parcial, 9:00 – 15:00, pago

Psicólogo

Parcial, 9:00 – 15:00, pago

Psicólogo

Parcial, 9:00 – 13:00, pago

Parcerias

O Achique é um dos elementos da rede de serviços do país para a população socialmente marginalizada.

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Novos visitantes, especialmente aqueles que chegam de forma independente (ou seja, não através de um encaminhamento) são geralmente encaminhados pela primeira vez à clínica de saúde local para uma avaliação de quaisquer problemas de saúde (mentais, inclusive). O exemplo a seguir ilustra isso: “Quando cheguei ao El Achique pela primeira vez, estava me sentindo perseguido, paranoico, as pessoas olhavam para mim de maneira estranha. Estava deprimido, me cortei. […] A psicóloga [do Achique] me disse: olha, acho que você tem um distúrbio de personalidade, você precisa de tratamento. Contei a ela tudo sobre a minha infância, tudo. Ela me disse que suspeitava que eu tivesse esse distúrbio desde a infância. E eu nunca soube que tinha, sabe? No começo, não queria saber nada sobre isso. Mas aí comecei a pensar sobre isso e disse, ok, eu vou. E o lugar que eles me enviaram [um centro de tratamento residencial] era ótimo. Um dos melhores e gratuito! […] Agora estou bem, não toco em um cachimbo há mais de um ano” — US5. A equipe do Achique pode ajudar os usuários a se conectarem com outros serviços médicos e sociais, como clínicos e dentistas. Eles também ajudam os usuários a se registrarem para obter uma carteira de identidade e um cartão para obter transporte público gratuito. Fora isso, o Achique é relativamente isolado em termos de conexões diretas com outros serviços. Alguns entrevistados veem isso como o resultado da mentalidade da administração anterior, que consistentemente desafiava as estruturas e a burocracia do Estado.

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acesso a outros serviços, como obter a carteira de identificação nacional, acessar um centro de empregos públicos ou receber assistência para detentos libertados recentemente. Os entrevistados gostariam de receber melhores vínculos com o sistema educacional formal, como escolas técnicas ou profissionais para usuários que desejam concluir ou continuar os estudos.

Sucessos e desafios

Como o Achique fornece atenção de acordo com as necessidades de cada indivíduo e é uma intervenção aberta, vários entrevistados mencionaram que medir o sucesso é complexo. Isso fica ainda mais difícil já que o Achique não registra ou monitora sistematicamente os dados de seus usuários. Apesar disso, os entrevistados mencionaram várias medidas de sucesso. Por exemplo, os usuários conseguem, com frequência, reduzir e, em alguns casos, até mesmo abandonar completamente o uso de drogas. Melhorias na qualidade de vida dos usuários também foram mencionadas pelos entrevistados. “O Achique me deu muito. Antes, eu não sentia vontade de viver, queria me matar. Não conseguia encontrar a saída. Muitos de nós perdemos nossas famílias. Pouco a pouco você perde a vontade de viver porque se você não pode se levantar e ser feliz, preparar o café da manhã e ficar com sua família… Quando cheguei ao Achique, tudo mudou. Eles me receberam como uma família. Você não está sozinho aqui. Você sempre tem um amigo por perto. Todos nós estamos na mesma situação” — US3.

“Algo que vejo muito com equipes que trabalham com pessoas marginalizadas é que elas mesmas acabam excluindo. Elas ficam do lado dos usuários, por isso, se os usuários têm problemas para acessar o sistema médico, a equipe acaba lutando contra o sistema médico também. E acaba não com espírito de cooperação, mas de competição” — P4.

Outra conquista é simplesmente tirar os usuários dos danos imediatos de seu ambiente, o que, por sua vez, pode ajudá-los a ocupar a mente, tirando-os da agitação diária. Como um entrevistado explicou, o sucesso dessa intervenção é, em parte, devido à sua capacidade de ajudar os usuários a permanecer firmes e a refletir. Essa “pausa” é um ponto de partida necessário, a partir do qual os usuários podem ser ajudados no desenvolvimento de estratégias saudáveis para lidar com o uso de substâncias.

Independentemente do Achique, os usuários têm acesso ao SACUDE: um complexo municipal que visa melhorar a qualidade de vida dos moradores de Casavalle, promovendo o acesso à cultura, esportes e saúde. Os usuários podem ir ao SACUDE para praticar esportes ou se exercitar, mas também têm

“Para mim, se alguém assiste ao noticiário enquanto lava roupa e descobre o que acontece no mundo, isso é redução de danos. Que ele tenha contato com um colega e sorria por dez minutos, isso é redução de danos. E mais, eu diria que o sucesso vai mudar dependendo das necessidades de cada um.


Do meu ponto de vista como profissional, o sucesso depende do espaço ser habitado por pessoas que, se não tivessem o espaço, estariam morando na rua” — P3. De acordo com vários entrevistados, é muito importante conseguir transmitir respeito e tolerância para com os usuários e convencê-los de que eles têm valor e são capazes de muitas coisas, ao mesmo tempo que podem se divertir e rir juntos. “Antes, eu estava no fundo do poço, parecia um trapo. Não conseguia sair do círculo diário de levantar, comer alguma coisa, usar, levantar, comer alguma coisa, usar etc. Todos os dias a mesma coisa. Todos os dias. Não conseguia escapar. O Achique me ajudou a perceber que tenho que me preocupar comigo mesmo. […] Isso é muito bom, porque quando você chega no fundo do poço, a primeira coisa que você faz é não se amar. Ao ver os outros com a aparência limpa e arrumada, você percebe que também pode ficar bem e como eles. Não sou um zumbi!” — US6. Para os usuários, realizar essas coisas em um ambiente com poucos recursos, praticando paciência e tolerância à frustração é considerado uma recompensa e um pequeno sucesso em um nível pessoal. “Deve haver muito amor, paciência e respeito. Essa mensagem deve ser transmitida com frequência. Porque, muitas vezes, os próprios inimigos são eles mesmos” — P2. Há uma tensão, no entanto, entre tornar o Achique atraente e com o limiar mínimo possível, ao mesmo tempo em que também se trabalha para a reintegração social. Dito isso, outra medida de sucesso do Achique é o fato de que os usuários conseguem encontrar o caminho de volta ao Achique depois de terem uma recaída, o que inevitavelmente acontece com eles. Definições de sucesso nem sempre são unânimes. “Há muitas pessoas que vêm ao Achique apenas para relaxar. Para mim, isso não está certo. Para eles, também não é bom. Se eles não vêm com uma mentalidade para seguir em frente, eles não conseguem prosperar” — US1.

O Achique não está isento de desafios. Um grande desafio do Achique é que grande parte do trabalho depende de uma única pessoa. Quando o fundador, que havia gerenciado o Achique sozinho, faleceu inesperadamente no início de 2018, assumir a logística (incluindo cartões bancários, contas de mídia social, documentos importantes etc.) sem a devida documentação se mostrou complicado. “A gestão nunca deve depender das pessoas, tem que depender das estruturas” — P3. Em relação a isso, o Achique sofre com a falta de recursos, incluindo itens básicos, como ter dinheiro suficiente para comprar comida. Além disso, o escritório do Achique não tem computador, conexão com a internet ou impressora, o que significa que os funcionários têm que fazer todo o trabalho administrativo em casa e em seu próprio tempo. O Achique não possui pessoal suficiente para acompanhar os participantes aos serviços de encaminhamento, mesmo que eles achem que isso seria benéfico para os usuários. Outros desafios estão relacionados à integração dos usuários no mercado de trabalho. Um entrevistado mencionou que, nos raros casos em que alguém consegue garantir um emprego, eles perdem o acesso aos serviços de redução de danos, porque as horas de trabalho se sobrepõem, e nenhum serviço está disponível à noite ou nos finais de semana. Outro desafio é que empregos temporários podem proporcionar estabilidade temporária às PQUD, mas sem uma solução mais permanente, as PQUD frequentemente se veem forçadas a retornar à mesma situação de antes, o que é desanimador e pode levar à recaída. Além disso, como o Achique não está aberto o dia inteiro ou nos finais de semana, as PQUD moradoras de rua nem sempre têm um lugar para ir, o que significa que passam mais tempo nas ruas. Um desafio mais estrutural diz respeito ao compromisso das instituições de apoio. Essa incerteza é um desafio para os profissionais que trabalham lá e se estende para a estabilidade do emprego dos profissionais, embora os entrevistados reconheçam que essa instabilidade faz parte do Achique desde o início. Os contratos da equipe do Achique são avaliados e prolongados a cada seis meses, portanto, há um alto grau de insegurança e

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instabilidade sobre o futuro e a sustentabilidade do projeto. Além disso, como os profissionais que administram o Achique são contratados por terceiros, eles não são responsáveis pelo centro e, portanto, não são responsáveis finais. Ao mesmo tempo, não fica claro quem é o responsável final. “O problema de um centro como o Achique que funciona como piloto é que, um dia, ele está aqui e pode ser copiado em dez outros lugares. Outro dia, pode não está mais lá. Esse é o problema” — P1. Finalmente, o acesso a usuários do gênero feminino também é visto como insuficiente. Embora os entrevistados reconheçam que o número de homens que fumam pasta base supera em muito o das mulheres, elas são muito mais difíceis de alcançar. Isso é preocupante porque muitas PQUD do gênero feminino são mães que precisam de um lugar para deixar seus filhos durante o dia, o que não é uma opção no Achique.

acesso: os profissionais externos especulam que o Achique pode precisar se tornar mais voltado para a inclusão da comunidade local, e não apenas para as PQUD. Ao mesmo tempo, outros entrevistados reconhecem que trabalhar com a comunidade é um desafio e pode, na verdade, ser contraproducente para atrair as PQUD: “Ainda tentamos incluir a comunidade se pudermos, mas isso não acontece de maneira muito estruturada” — P2. Em suma, embora a maioria dos entrevistados concorde sobre os benefícios do Achique, não há uma estratégia coerente ou acordada sobre o futuro do centro, afetando, assim, sua sustentabilidade.

Seguindo em frente

Os entrevistados acharam difícil falar sobre o futuro do Achique, uma vez que diferentes partes interessadas têm diferentes perspectivas sobre o papel do centro na política nacional de drogas e na perspectiva de “tratamento” no Uruguai. Alguns entrevistados do governo mencionaram planos para revisar o papel e a função do Achique, com o objetivo de redesenhar e exportar para outros locais, potencialmente levando o Achique a se aproximar de outros serviços como o SACUDE.

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LIÇÕES APRENDIDAS

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“O Achique está localizado em um lugar onde o estado já tem muita presença (policlínicas, centros cívicos, centros esportivos etc.). A questão é como fortalecer o Achique para que o centro faça parte dessa rede existente e não permaneça como um satélite. Isso é um desafio” — P3.

O uso de substâncias é sintomático de questões psicossociais mais profundas, como abuso, marginalização, pobreza e violência. A fim de ajudar as pessoas a se reintegrarem na sociedade, transmitir valores básicos, como respeito, amor e paciência, e fornecer acesso a oportunidades de emprego estáveis, são cruciais.

2

Os profissionais que trabalham no Achique esperam desenvolver mais modalidades psicológicas, que garantam uma abordagem mais sistemática, em relação à inclusão e reintegração social de seus usuários. De acordo com outras partes interessadas, o Achique deve se concentrar em alcançar mais pessoas diariamente, se apoiando no argumento de que o conceito pode não ser sustentável se o centro de convívio não atingir quantidades maiores de usuários. Um ponto de conflito gira em torno do

Proporcionar um ambiente seguro, acolhedor e saudável é parte da redução de danos e um ponto de partida necessário para tirar as PQUD de uma situação caótica, muitas vezes violenta e instável. Esse espaço é necessário antes que se possa começar a trabalhar no desenvolvimento de estratégias para controlar ou reduzir o uso de substâncias.

3

Transmitir, empoderar e estimular a autoestima, a autovalorização e a autonomia dos usuários são passos fundamentais para aumentar o autocontrole em torno do uso de substâncias.


5.6 Abordagem social com Shabu da Karisma Um exemplo sobre o trabalho de busca ativa na Indonésia “Nosso projeto está realmente tentando reduzir os danos para os usuários (de metanfetamina), e levá-los a acessar os serviços de saúde. Queremos que os usuários sejam saudáveis e saibam que, se usarem drogas, eles conhecerão os riscos e saberão como se proteger” — P7. “Drogas devem ser usadas para fazer você feliz e não dependente. Eu consegui estabelecer esse limite, especialmente desde que conheci Karisma” — US1. O trabalho de campo com shabu em Karisma é o primeiro projeto de redução de danos e busca ativa focado em ajudar pessoas que usam estimulantes na Indonésia, assim como na região do Sudeste Asiático. Ele alcança pessoas que usam metanfetamina na capital de Jacarta, na ilha de Java. A equipe de redutores de danos e pares fornecem às pessoas que usam estimulantes informações orais e folhetos sobre metanfetamina, problemas de saúde mental, uso e dependência de drogas e os impactos do uso de metanfetamina na saúde. A equipe também distribui kits para fumar com maior segurança. O projeto começou em meados de 2016 e tem adotado muitas lições aprendidas ao longo do processo. Envolver de forma significativa as PQUE, inclusive pessoas com experiência de uso na equipe e investir em parcerias, são algumas das lições que a equipe vem aplicando na prática. Sendo o único projeto que oferece assistência especializada a esse grupo de pessoas, um dos principais desafios é não poder encaminhar pessoas que usam metanfetamina para outros serviços. Trabalhar com problemas de saúde mental associados ao uso de metanfetamina é particularmente difícil. As pessoas que usam estimulantes tendem a não reconhecer seus sintomas como relacionados à saúde mental, e os serviços ainda não estão preparados para atender a população. Apesar dos desafios, as pessoas assistidas pelo programa estão muito satisfeitas. Elas

valorizam principalmente as informações recebidas e os kits distribuídos. Além disso, os usuários do serviço sentem que o projeto lhes oferece um lugar para serem ouvidos e poderem usar sua experiência para ajudar outros usuários de estimulantes.

Imagem 18: Jacarta, Indonésia

Indonésia

A Indonésia é um país do sudeste asiático. Ela se espalha por uma área de quase dois milhões de metros quadrados e mais de 17 mil ilhas. Em 2016, o país contava com 261 milhões de habitantes (BANCO MUNDIAL, 2018). O território indonésio é composto por 34 províncias. A população do

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país é altamente concentrada em Java, a ilha mais populosa do mundo. Kalimantan e Papua são as regiões menos densamente povoadas (KND, 2018). Em relação ao padrão de vida, 86% da população total tem acesso a água encanada e 60,6% tem acesso a instalações de saneamento em casa. Em 2014, a taxa de alfabetização de adultos era de 92,8% (15 anos ou mais velhos) (HDR, 2015). A Indonésia é considerada um país de renda média-baixa pelo Banco Mundial e vem crescendo economicamente nos últimos 15 anos. Apesar do crescimento econômico, a desigualdade continua alta: 10,6% da população indonésia vive abaixo da linha de pobreza nacional e 70% da economia da Indonésia está concentrada apenas na ilha de Java (BANCO MUNDIAL, 2018). O programa de busca ativa deste estudo de caso acontece em Jacarta, a capital do país e a maior cidade da Indonésia. Jacarta está localizada na costa noroeste de Java e é o centro da economia, cultura e política da Indonésia. A cidade tem uma população de mais de dez milhões de pessoas e é uma cidade pluralista e religiosamente diversificada, concentrando pessoas de muitas outras ilhas indonésias. Cerca de 83% da população é muçulmana, e outras religiões são protestante (cerca de 8%), católica ou budista (cerca de 4% cada) ou hindu (cerca de 0,2%) (BPS, 2017).

Uso de substância na Indonésia

Globalmente, estima-se que cerca de 34,2 milhões de pessoas usaram uma substância do tipo anfetamina no ano passado, variando entre 13 e 58 milhões, e seu uso parece estar aumentando (UNODC, 2018b). Na Ásia, muitos países relatam aumento no uso de metanfetamina (UNODC, 2018b; EMCDDA, 2018b). Os Estimulantes do Tipo Anfetamina (ETA) são as principais drogas de escolha na Ásia, com entre 3,5 e 20,9 milhões de pessoas que os utilizam (PINKHAM; STONE, 2015). O mercado de ETA continua a se expandir, particularmente no sudeste asiático e na China. Desde 2009, a prevalência da metanfetamina superou a prevalência de heroína em toda a Ásia (THOMSON, 2013). De acordo com estimativas do UNODC, a Indonésia segue a tendência regional, com a maconha sendo a droga mais usada no país, seguida pela metanfetamina, heroína e ecstasy (UNODC,

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2016). Apesar de sua validade ter sido fortemente criticada, a única pesquisa nacional disponível sobre o uso de drogas apresenta resultados semelhantes, com a metanfetamina, conhecida localmente como shabu, como a segunda droga mais popular no país (BNN, 2015; IRWANTO et al., 2015). O shabu é, atualmente, a droga mais disponível no mercado; a heroína é difícil de conseguir. Na Indonésia, o shabu é fabricado em pequenos laboratórios domésticos, com todos os seus precursores legalmente disponíveis no país (UNODC; PROGRAMME, 2013). Jacarta, Denpasar, Batam, Medan e Makassar são as cidades onde o uso de shabu tem uma prevalência maior (NEVENDORFF; PRAPTORAHARJO, 2015). Uma pesquisa qualitativa conduzida entre 38 usuários de metanfetamina em Jacarta, Medan e Makassar em 2015 descreveu três tipos principais de relações que as pessoas desenvolvem com o uso de metanfetamina nessas cidades. Os usuários frequentes tomam metanfetamina diariamente e relatam usá-la para ganhar mais motivação e melhorar a confiança em seu trabalho. Eles tendem a usar sozinhos e reconhecem que a metanfetamina causa problemas em suas vidas. Usuários práticos usam metanfetamina 3-4 vezes por semana, com base em sua necessidade de apoio em seu trabalho. Eles tendem a usar em grupos e ser profissionais do sexo ou operários. Eles estão mais propensos a substituir a metanfetamina por outra droga (como o álcool) quando a metanfetamina não está disponível e, mais frequentemente, afirmam estar dispostos a reduzir ou parar de usar metanfetamina no futuro. Finalmente, usuários casuais ou sociais usam metanfetamina três vezes por mês ou menos. Eles decidem usar ou não de acordo com seu humor e disponibilidade financeira. No geral, os usuários de metanfetamina relataram não se sentirem viciados, mesmo quando usam a droga diariamente (NEVENDORFF; PRAPTORAHARJO, 2015). Uma pesquisa quantitativa realizada entre 2016 e 2017 em seis grandes cidades da Indonésia (Jacarta Ocidental, Denpasar, Batam, Makassar, Medan e Bandung) mostrou uma prevalência de HIV de 10% entre os usuários de metanfetamina. A prevalência foi muito maior para aqueles com experiência prévia de uso injetável (35%), quando comparada às PQUD que nunca injetaram (3%). Da mesma forma, a prevalência de HCV foi de 14% em média, e 62% para aqueles com experiência de uso injetável, mais


de 3% para PQUD que nunca haviam injetado. A prevalência de sífilis não diferiu muito entre os grupos que injetam e não injetam, sendo em torno de 1,3% para ambos. A prevalência de HBV foi de cerca de 2% para ambos os grupos (PRAPTORAHARJO et al., 2017).

Imagem 19: Bongo de plástico e alumínio caseiro

Quanto à população de PQUE assistida pela Karisma em Jacarta, muitas pessoas que atualmente usam shabu são ex-usuários de heroína (conhecida localmente como putaw) que não conseguem mais encontrar heroína. Muitos usam shabu enquanto também usam metadona prescrita. A maioria das pessoas que usa metanfetamina fuma a droga. Em alguns casos, a metanfetamina é injetada, principalmente quando as pessoas estavam acostumadas a injetar heroína. Ainda mais raros são os casos de administração retal. Para fumar metanfetamina, as pessoas normalmente usam bongos caseiros. Bongos são feitos de copos de plástico ou garrafas velhas – como garrafas de vidro de óleo de eucalipto típico da Indonésia ou garrafas de plástico – nas quais eles fazem furos. As pessoas que usam metanfetamina preferem garrafas pequenas, porque é mais fácil inalar a fumaça. Elas geralmente preferem os bongos do que cachimbos, pois sentem que o fumo é mais suave ou menos agressivo de inalar.

Pessoas assistidas pela Karisma tendem a fumar metanfetamina em grupos. Uma das razões é o preço. Metanfetamina em Jacarta custa cerca de 12 euros66 (200.000 rupias ou cerca de R$ 50) para 0,2 grama. Juntando dinheiro como um grupo, as PQUE conseguem garantir o uso para todos. A nova geração de pessoas que usa metanfetamina tende a ser jovem, entre 14 e 28 anos de idade. A geração anterior tem cerca de 35 a 40 anos e costuma ser de ex-usuários de heroína. A maioria das pessoas que usa metanfetamina a mistura com uma ou mais substâncias, para ajudar a se acalmar. Álcool, maconha e benzodiazepínicos são as escolhas mais comuns, além da metadona para aqueles que estão em TSO. O uso ilegal de drogas prescritas – principalmente benzodiazepínicos – vem aumentando na Indonésia. Os benzodiazepínicos são especialmente usados para ajudar a induzir o sono. As drogas prescritas são menos caras que o shabu e os usuários não são presos por porte, caso sejam pegos pela polícia. Em relação ao álcool, as pessoas costumam usar cerveja (comprada em supermercados e lojas de conveniência) ou álcool caseiro (mais barato e geralmente vendido ilegalmente por vendedores ambulantes). A maconha é usada principalmente em sua forma de planta, mas os canabinoides sintéticos (localmente chamados de Gorilla) também são usados, às vezes. Em Jacarta, muitas PQUE dizem que gostam dos efeitos do shabu, pois permitem que eles sejam mais ativos e produtivos, e se sentem preguiçosos quando não usam metanfetamina. “Quando você usa metanfetamina, você fica mais focada, mais diligente. Como quando você tem muitos filhos e quer cuidar de tudo sozinha e não tem ajuda em casa. Isso torna você mais produtiva” — US1.

Política de drogas e redução de danos

A Indonésia vem travando uma guerra contra as drogas, pressionando por medidas punitivas extremas, como a pena de morte para o tráfico de drogas. A Agência Nacional de Narcóticos (BNN) com frequência chama a atenção da mídia internacional, pelas declarações rigorosas e retrógradas sobre políticas de drogas. Por exemplo, em 2015, a BNN 66 1 = 16.385 Rúpias indonésias (N. A.)

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declarou que o tratamento de PQUD era um desperdício de dinheiro dos contribuintes (ARNAZ, 2015). Consequentemente, eles pretendiam parar de financiar centros de reabilitação para PQUD (SIREGAR, 2015). A Lei nº 35/2009 sobre Narcóticos criminaliza o uso de substâncias e torna obrigatório a notificação do uso de drogas (BNN, 2009). Isso não só criminaliza as PQUD, mas também seus familiares que não reportam o uso de drogas ou a dependência. Ao longo dos anos, várias violações dos direitos de PQUD foram relatadas na Indonésia. Por exemplo: testagem forçada para detecção de drogas, detenção, tratamento compulsório, extorsão e pressão nas unidades de saúde para divulgar informações pessoais e registros médicos de usuários suspeitos de uso de drogas (STOICESCU, 2015). Como as PQUD temem ser denunciadas por uso de drogas e enviadas para tratamento compulsório, elas tendem a ser muito cautelosas no acesso aos serviços de saúde. No geral, a qualidade dos centros de tratamento compulsório na Indonésia é questionável, já que falta uma abordagem baseada em evidências (LARASATI; CHRISTIAN; MISERO, 2017). Apesar das regras punitivas, a redução de danos é apoiada por dois regulamentos: o Regulamento do Ministério da Previdência Social Nº 2/2007, e o Regulamento do Ministério da Saúde nº. 55/2015. A terapia de substituição e as agulhas e seringas estéreis são especificamente mencionadas no Decreto no 55/2006 do Ministério da Saúde sobre Redução de Danos de Substâncias Narcóticas, Psicotrópicas e Viciantes (BNN, 2011). Os serviços de redução de danos estão disponíveis em todo o país, a maioria ainda relacionada ao uso injetável de heroína. Em 2014, existiam 232 locais do Programa de Trocas de Agulhas e Seringas (PTS) e 85 locais de Terapia de Substituição de Opiáceos (TSO), disponíveis em 63 distritos diferentes (UNAIDS, n.d.). O PTS é oferecido por ONGs e serviços de atenção primária à saúde, e a TSO é realizada por serviços públicos de saúde em clínicas de atenção primária à saúde (chamadas Puskesmas). Em 2016, 11 prisões indonésias também ofereciam TSO. A sustentabilidade das intervenções de redução de danos, no entanto, ainda é um desafio, já que a maioria das atividades de redução de danos é

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financiada por doadores internacionais. E quanto ao uso de estimulantes, pouco está disponível na saúde pública. Por outro lado, a Indonésia tem estado na linha de frente de uma abordagem inovadora no terreno, sendo a primeira nação do sudeste asiático a desenvolver medidas comunitárias de redução de danos para usuários de metanfetamina. O estudo de caso descrito neste capítulo oferece uma visão sobre a primeira intervenção de busca ativa na Indonésia e, até onde sabemos, todo o Sudeste Asiático, que é especificamente para pessoas que usam metanfetamina. Além desse em Jacarta, outro projeto de busca ativa para usuários de metanfetamina na Indonésia começou a ser testado este ano em Makassar, financiado pela Mainline e administrado pela ONG local PKNM. O novo projeto baseia-se na experiência e nas recomendações da Karisma a partir da avaliação de suas atividades.

Origens do programa de busca ativa com shabu da Karisma

A Fundação Karitas Sani Madani (Karisma) – uma organização comunitária – foi criada em 2001 por pessoas cujas vidas foram afetadas pelo uso problemático de drogas. A organização foca na dependência de drogas e nos problemas associados ao HIV/Aids. Ela oferecem um centro de recuperação comunitário, aconselhamento sobre HIV/Aids e dependência, grupos de apoio em pares e – desde 2004 – trabalho busca ativa. Em 2004, a organização conseguiu financiamento internacional para trabalhar com a busca ativa de PUDI– que usavam principalmente heroína – em Jacarta. Em 2015, após conduzir um programa sólido de PTS por mais de uma década, a organização começou a notar uma queda drástica na distribuição de seringas. Se antes distribuíam até 20.000 agulhas por mês, em 2015 o número caiu para algumas centenas. “Nós estávamos nos perguntando o que aconteceu. Era tão difícil encontrar novas pessoas que usavam heroína. Ao mesmo tempo, vimos a ascensão da metanfetamina. E nós realmente queríamos nos envolver e ajudar as pessoas que usam drogas” — P6. Antes de 2015, o financiamento nacional e internacional cobria apenas os PTS. Quando o financiamento internacional para trabalhar com usuários de metanfetamina foi disponibilizado pela Mainline em 2015, a Karisma começou a desenvolver o único projeto que oferece redução de danos


para usuários de shabu na Indonésia. A organização trabalhou em estreita colaboração com uma universidade local, a PPH Atma Jaya, para fazer um levantamento de necessidades. A universidade foi responsável por um estudo operacional para avaliar o projeto piloto (NEVENDORFF; PRAPTORAHARJO, 2015). A equipe de abordagem social começou a trabalhar em julho de 2016. Dois locais prioritários de cena de uso de drogas em Jacarta foram escolhidos, com base no levantamento de necessidades. A intervenção teve como alvo dois aspectos de danos associados ao uso de metanfetaminas: as consequências para a saúde associadas ao uso de metanfetaminas e os danos específicos causados pelo comportamento sexual de risco. Nos primeiros seis meses, o programa auxiliou e documentou 194 pessoas, variando de 16 a 61 anos; 75% destes eram do gênero masculino. Ao longo do caminho, a equipe recebeu treinamentos da Atma Jaya e da Mainline sobre o uso de metanfetaminas e riscos de saúde associados, bem como sobre as técnicas de trabalho de abordagem social. Os treinamentos geralmente envolvem PQUE locais como participantes e especialistas. Em 2017, a Karisma expandiu suas intervenções para 8 locais com cena de uso de drogas e informou atingir cerca de 900 usuários de metanfetamina. As atividades da equipe sofreram com a rotatividade de pessoal naquele ano e, em geral, os profissionais de abordagem social tiveram dificuldade em construir um relacionamento confiável com as PQUE em apenas alguns contatos. Como a equipe não tinha pessoas com experiência pessoal de uso do shabu e, portanto, tinha dificuldades em acessar os usuários, mais pessoas com experiência de uso foram adicionadas à equipe. Pares foram envolvidos, e uma redutora de danos do gênero feminino foi contratada para melhorar o alcance para as usuárias, e em particular as profissionais do sexo. Os pesquisadores da Atma Jaya se juntaram ao campo com a Karisma e registraram como o trabalho de campo estava sendo feito. Ao comparar o trabalho de campo com o levantamento de necessidades, eles desenvolveram um guia local passo-a-passo sobre como fazer busca ativa com os usuários de shabu. A Karisma atualmente baseia seu trabalho de campo nessas diretrizes (KARISMA; MAINLINE, 2017), embora ainda busque melhorias e foco adicional nas especificidades dos estimulantes.

Os kits para fumar com maior segurança também começaram a ser distribuídos em 2017. Devido a itens incomuns e às regulamentações locais rígidas, levou algum tempo para a equipe encontrar fornecedores.

Imagem 20: Kits para fumar com maior segurança

Na prática

A equipe de apoio da Karisma é composta por cinco redutores de danos, apoiados por pares (pessoas com experiência pessoal de uso e influência local). Cada redutor de danos é responsável por um dos distritos de Jacarta – Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro de Jacarta. Os redutores também são responsáveis por orientar os pares e outros voluntários em sua área de atuação. Desde que a equipe recebeu 2 novos redutores de danos e 4 pares em 2018, redutores de danos mais experientes orientam os novos. Cada distrito em Jacarta é dividido em subdistritos e, em cada subdistrito, o redutor responsável e os pares responsáveis priorizam as cenas de uso de shabu. Estas áreas foram mapeadas em conjunto com a Universidade Atma-Jaya através de uma levantamento de necessidades. Enquanto algumas áreas – como a parte oeste de Jacarta – têm apenas 10 cenas de uso mapeados, outras – como o centro de Jacarta – podem chegar a 17 locais de uso. O trabalho de campo tenta ir a cada cena pelo menos uma vez por semana e, em média, cada redutor visita cinco locais de uso por dia. Os redutores vão em pares para abrir uma nova área. Uma vez que eles consideram que um campo está pronto para recebêlos, eles vão sozinhos, já que a equipe é limitada. Redutores e pares fornecem informações verbais e folhetos sobre metanfetamina, questões de saúde

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mental, dependência de drogas e os impactos do uso de drogas na saúde e na situação financeira. A redutora é responsável por abordar as usuárias do gênero feminino em todas as áreas quando necessário, além de ser responsável por um distrito de Jacarta. Ela oferece assistência separada para as mulheres, quando elas expressam o desejo de não se misturar em grupos com usuários do gênero masculino.

“Eu aconselho os usuários a encontrar um cômodo para usar. […] Você só quer evitar cenários indesejáveis. Quando você está sob o efeito e seu ambiente não é favorável, não é bom para você. […] As pessoas também podem lhe denunciar ao chefe do bairro, se lhe virem quando você estiver chapado (sob efeito). As pessoas se sentem desconfortáveis ao ver grupos de usuários e você pode acabar sendo denunciado à polícia” — P1.

“Na minha experiência, as mulheres enfrentam riscos maiores em termos de uso de metanfetamina, pois são mais vulneráveis. Elas trocam sexo por dinheiro para comprar metanfetamina mais facilmente ou se tornam aviões (transportadoras) de metanfetamina e as pessoas se aproveitam delas; elas recebem apenas um pouquinho de dinheiro ou metanfetamina como recompensa. Quando as mulheres são presas, elas também são mais propensas à exploração pela polícia. Eles são mais fechadas e reservadas quanto ao uso de drogas. Às vezes, elas usam somente em torno de seus amigos próximos, até mesmo seus maridos ou suas famílias não sabem sobre isso” — P4.

Muitas novas ideias para a abordagem de campo vêm das reuniões semanais da equipe. Nessas reuniões, eles verificam os resultados das estratégias de abordagem social e tentam encontrar soluções para os desafios. Os pares e outros voluntários também são convidados e, às vezes, participam das reuniões. Os pares ajudam os redutores a alcançar os usuários em suas comunidades; Eles entram em contato com pessoas que conhecem em sua vizinhança para espalhar a informação e os kits. Quando mais experientes, eles podem ajudar a equipe de campo a abrir novos pontos, com base em seus contatos nas novas áreas. Os colegas trabalham em regime de voluntariado e recebem orientação do redutor de danos responsável pelo seu distrito. Pelo menos duas vezes no mês, os pares se reúnem na Karisma com a equipe de busca ativa, para trocar experiências e desenvolver um plano para os meses seguintes. Os usuários do serviço também são convidados a participar. Um grande desafio em fazer com que os usuários participem das reuniões é que a organização não possui fundos suficientes para compensar todos pela sua participação, e os custos de transporte e alimentação podem ser um impedimento.

A equipe organiza o cronograma de campo de acordo com os movimentos de PQUD. Eles observam quais pontos estão lotados em que horários e organizam sua programação de acordo. O trabalho de campo pode ser feito durante o dia ou à noite e é necessário também durante os finais de semana. A abordagem de campo depende dos hábitos das PQUD. Para aqueles que tendem a se reunir para usar metanfetamina, a abordagem se dá em grupo. Visitar as PQUD em suas casas ou nos quartos onde elas usam também é uma possibilidade. Em alguns lugares existem quartos onde as pessoas podem comprar e usar metanfetamina. Outros quartos são apenas alugados para uso e estrategicamente localizados perto da boca de tráfico. A abordagem da equipe de busca ativa nesses casos é abordar o locador da sala e dar a ele kits com materiais para uso de drogas (kits para fumar com maior segurança e kits mais seguros para injeção) e informações e folhetos sobre redução de danos. As pessoas que alugam cômodos entram em contato com muitos usuários todos os dias e podem se tornar um ponto de contato que divulga informações sobre o uso mais seguro de drogas. A equipe aconselha as pessoas a usar metanfetamina em espaços fechados:

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Os pares recebem treinamento para falar em público, técnicas de abordagem social e informação sobre redução de danos para a metanfetamina e prevenção de doenças infecciosas. “Eu participei de um treinamento e descobri muitas informações que eu não conhecia antes. Então, pensei: Ah, isso é muito útil, por que não fazer algo bom?” — P2. Cerca de 17 PQUD estiveram ativamente envolvidas como pares ou outro apoio voluntário no projeto, no momento da pesquisa. Os pares disseram compartilhar seus conhecimentos de redução de danos do shabu com seus amigos e contatos,


oferecendo-se como um modelo no qual os amigos podem confiar. “Muitos usuários são meus amigos e pessoas com quem já interagi no passado. Eu sei que eles não estão vivendo de forma saudável... E é aí que eu entro para dar-lhes uma direção. [...] Eu digo a eles, por exemplo, para ver como eu estava no passado e comparar a forma como estou agora. Eu experimentei tudo o que eles têm em primeira mão. Eles podem se identificar com as experiências que eu tive” — P1.

e seringas. Foram necessários muitos esforços de divulgação para mudar isso. Então, a princípio, é possível que carregar bongos seja perigoso, mas isso pode mudar à medida que as pessoas – incluindo a polícia – se tornarem mais informadas e entenderem sua importância” — P5.

Tanto a equipe de redutores quanto os pares distribuem kits para fumar com maior segurança, consistindo em isqueiros, papel alumínio, canudos e material IEC (Imagem 20). Mensagens impressas no papel alumínio e o isqueiro – “coma, beba, durma, e repita” – funcionam como um lembrete. O desejo da Karisma para o futuro é fornecer mais, como um bongo completo, que assegure que as PQUD não inalem materiais tóxicos dos bongos caseiros. Ao distribuir os kits, eles também fornecem informações sobre a redução de danos às PQUD. Os usuários têm uma forte preferência por usar metanfetamina em um bongo e usar canudos presos ao bongo caseiro. A geração mais jovem de usuários não usa papel alumínio (como na Imagem 19), mas prefere um tubo de vidro (cangklong) (como na Imagem 24) ou usa uma pipeta de vidro (de medicamento de ouvido, por exemplo). Às vezes, eles preferem as pipetas aos tubos de vidro, por serem menos obviamente ligadas ao uso de metanfetamina e, portanto, ser menos arriscado quando detidos pela polícia. Apesar de hoje em dia as pessoas terem facilmente problemas se pegas com tubos de vidro ou bongos, a equipe gostaria de distribuir tubos de vidro, pois seria mais fácil para as pessoas não compartilharem se todos tivessem seu tubo pessoal. A equipe acredita que isso é uma questão de tempo e divulgação. Embora, na prática, possa ser desafiador trazer mudanças na cultura de compartilhamento e no sentimento coletivo que o acompanha entre alguns grupos de PQUD. “Da mesma forma, no passado, ao fazer o trabalho de conscientização para usuários de heroína, as pessoas podiam ser presas por carregar agulhas

Imagem 21: Bongo e tubo de vidro

Em 2018, a equipe de busca ativa atingia cerca de 60 usuários individuais por dia. Embora isso em princípio represente um aumento em relação aos anos anteriores, a equipe ainda tem muitos contatos repetidos com os mesmos usuários. Cada trabalhador de campo tem uma meta: todos os dias, eles precisam encontrar pelo menos 10 usuários de metanfetamina e pelo menos um deles deve ser novo no programa, pois eles desejam aumentar o alcance do programa. Essas metas causam tensão entre o alcance do projeto (e a redução dos custos per capita) e a qualidade da assistência e o tempo necessário para se criar laços com as PQUD. “Isso não acontece instantaneamente, fazer com que alguém se abra. Às vezes você entra e eles (PQUE) saem imediatamente (por suspeita). Então, para realmente envolver essa pessoa e ela realmente querer ouvi-lo, isso leva tempo” — P1.

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Equipe e finanças Pessoal envolvido Função

Quantidade

Parcial / Tempo integral

Remunerado/Voluntário

Coordenador de projeto

1

Parcial

Remunerado

Gerente

1

Parcial

Remunerado

Coordenador de campo

1

Tempo integral

Remunerado

Redutores de danos

5

Tempo integral

Remunerado

Funcionário de finanças

1

Parcial

Remunerado

Entrada de dados

1

Parcial

Remunerado

Pares

4

Parcial

Voluntário

Outros colegas voluntários

13

Parcial

Voluntário

Zelador

1

Parcial

Remunerado

Financiadores Doador internacional (Mainline)

90%

Autofinanciado (contribuição do pessoal ou através de outros serviços oferecidos pela ONG)

10%

Os redutores de danos registram o número de pessoas atendidas e o tipo de assistência prestada – apetrechos ou folhetos distribuídos, encaminhamentos, temas discutidos. Eles também mantêm um mapa contextual – incluindo condições sociais e econômicas, hábitos locais, organização da comunidade e os padrões de consumo de drogas – de cada local para ter uma ideia melhor das necessidades da população. Para cada usuário, eles tentam mapear os padrões de uso de drogas e os recursos financeiros usados para sustentar seu uso. Isso abre espaço para falar sobre trabalho sexual ou trabalho como mensageiro de tráfico e direcionar intervenções para necessidades específicas. O número de pessoas alcançadas pelos pares não está sendo registrado ainda. Em 2018, o programa teve um orçamento anual de €45.000 (R$ 189.60367).

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do orçamento (18.000 € ou R$ 75.841,20) cobre despesas com atividades diretas como: grupos focais (GF) com PQUE, levantamento de necessidades e mapeamento, reembolso de transporte e refeições para atividades com PQUE, como participantes, reuniões de rede, custos de transporte local para redutores de danos, material IEC e kits para fumar com maior segurança. Além disso, o orçamento do projeto contribui com 2.500 € (R$ 10.533,5068) para os custos operacionais e administrativos globais da Karisma.

Parcerias

Um dos maiores desafios da abordagem social do shabu da Karisma diz respeito à integração de serviços. Este é o primeiro projeto a fornecer redução de danos para a metanfetamina no país, e a equipe informa que até mesmo os serviços disponíveis para PQUD geralmente não estão preparados para ajudar os usuários de metanfetamina.

Cerca de 70% do orçamento total vai para o pagamento da equipe. Isso representa 27.000 € (R$ 113.761,80) de salário e 4.500 € (R$ 18.960,30) em encargos sociais e de emprego. O restante

“Agora, para os usuários de metanfetamina, a Karisma é o único lutador” — P7.

67 €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.)

68 €1 = R$ 4,2134 (Reais Brasileiros) (N. R.)


“Embora existam alguns serviços para pessoas que usam drogas, eles não focam necessariamente nos usuários de metanfetamina. Por exemplo, temos cerca de 18 a 20 unidades de atenção básica que fornecem serviços para pessoas que usam drogas. Se tentarmos trazer um usuário de metanfetamina, eles dizem: ‘ok, o que eu faço com esse?’” — P6. Algumas das parcerias que a Karisma estabeleceu para projetos anteriores, trabalhando com PUDI, estão funcionando bem com PQUE, que podem ser encaminhados para testes de tuberculose e HIV, aconselhamento e tratamento. Usuários de heroína podem ter acesso a TSO com metadona ou suboxona. E as PUDI tem o PTS disponível. A reabilitação está amplamente disponível, embora, como mencionado anteriormente, o tratamento de drogas não tenha uma base de evidências. A Karisma também administra seu próprio centro de reabilitação e direciona para lá os usuários de metanfetamina que estão dispostos a parar o uso. Geralmente, são pessoas que estão prestes a ser presas ou que têm sérios problemas com a família. Em relação aos direitos humanos e proteção legal, o projeto colabora com a Rede Indonésia de Usuários de Drogas (PKNI) e com um Instituto de Assistência Jurídica da Comunidade (LBHM). A Karisma direciona as PQUD que são apanhadas com uma pequena quantidade de metanfetamina, mas ainda são processadas como traficantes. A Lei Nacional de Narcótico afirma que a posse de menos de um grama (de metanfetamina) é considerada para uso pessoal. No entanto, de acordo com os redutores e usuários do serviço, quando alguém é preso com uma pequena quantidade de drogas (ou seja, um papelote), ele é frequentemente acusado sob o Artigo 114, que é para os traficantes, enquanto os usuários deveriam ser acusados conforme o Artigo 127. Quando os usuários são pegos, os redutores de danos levam seus familiares à PKNI para se informarem sobre a situação. Na PKNI ou no LBHM, eles serão questionados sobre o histórico do usuário: se foram submetidos à reabilitação ou se aceitaram algum serviço de saúde. Eles procuram provas de que a pessoa é realmente um usuário. “Na Indonésia, os casos relacionados com drogas são usados pela polícia para obter dinheiro. A polícia apresentaria uma acusação contra você, por exemplo, sob o Artigo 114, mas então eles fazem uma oferta: ‘você quer ser acusado pelo Artigo

127 em vez do 114? Se sim, você precisa me pagar o preço de um carro’. Sim... Indonésia. Isso é muito dinheiro” — P5. Além dessas parcerias, o projeto enfrenta dificuldades em praticamente todas as outras áreas de parceria. No setor de saúde, o principal desafio é garantir cuidados de saúde mental para usuários de metanfetamina. “Toda vez que eles querem receber aconselhamento, ou se querem conversar sobre seus sentimentos ou problemas, é difícil encontrar pessoas. Se eles procuram os serviços de saúde, normalmente os profissionais de saúde não têm informações suficientes para eles. […] A maioria dos serviços de aconselhamento não é bem equipada para usuários de metanfetamina – somente para usuários de heroína. Eles não têm o conhecimento em termos de aconselhamento para o shabu” — P3. Para enfrentar esse desafio, a equipe planejou nove eventos informativos para usuários de metanfetamina sobre saúde mental, em diferentes instalações de saúde, durante 2018. A ideia das reuniões era convidar médicos locais para falar sobre saúde mental e os tipos de serviços oferecidos pelos centros. Os redutores de danos informaram os médicos de antemão sobre a linguagem apropriada para usar com a população. Na época da pesquisa, duas dessas reuniões havia acontecido. Entre 15 e 20 usuários estavam presentes em cada sessão. As reuniões foram apenas parcialmente bem sucedidas, do ponto de vista da equipe. Os médicos informaram os participantes sobre os serviços disponíveis, mas não falaram sobre os procedimentos e processos de acesso aos serviços de saúde mental, como custos e registro. Além disso, da perspectiva dos usuários do serviço, a apresentação não foi muito atraente ou fácil de entender. Ajustes seriam feitos para as próximas reuniões. Outro problema no acesso aos serviços de saúde mental refere-se aos custos e à falta de documentos. Os serviços podem ser gratuitos se as pessoas tiverem um seguro nacional de saúde. Em média, no entanto, as PQUD não têm seguro de saúde porque não possuem os documentos necessários para ele (carteira de identidade, cartão de família e registro de residência). Conseguir os documentos pode ser gratuito, mas o processo requer muito esforço. De

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acordo com a equipe, os assistentes sociais são difíceis de encontrar em Jacarta: eles são poucos e a maioria trabalha dentro dos ministérios, e não perto do campo. Muitos usuários não sabem onde procurar suporte social ou não estão dispostos a fazer o esforço necessário. Os redutores de danos têm tempo limitado para acompanhar os usuários. Outro desafio grande e duradouro é o relacionamento com a polícia.

Eles não tinham nenhuma informação (sobre a metanfetamina) e agora eles sabem de alguma coisa. E eles mudaram a maneira como eles usam metanfetamina. Eles sabem o risco” — P7. Do ponto de vista da equipe, uma das principais conquistas até agora foi aumentar as informações que os usuários têm sobre a metanfetamina e estimular as PQUE a pensarem em maneiras de reduzir os danos associados a ela.

“A polícia de narcóticos é difícil de alcançar. Nós até os convidamos para nossos eventos, mas eles nunca apareceram. Eles estão presentes em cada área. No entanto, eles estão separados das outras divisões [policiais]. Eles não querem ser conhecidos. Estes policiais de narcóticos trabalham principalmente disfarçados” — P3.

“Quando eu os procurei pela primeira vez, eles disseram ‘ah, existe informações sobre metanfetamina? Eu não tinha ideia!’ É completamente novo para eles. As pessoas vem usando há algum tempo, mas informações sobre metanfetamina nunca haviam existido antes” — P4.

Praticamente todas as PQUD neste estudo de caso disseram ter ou conhecer alguém que tenha sido preso por causa do uso de drogas, e todos têm medo de serem denunciados por/à polícia. Policiais disfarçados se infiltram em grupos de usuários para encontrar revendedores e denunciar usuários à reabilitação. Isso desempenha um papel importante na paranoia das PQUD e nos sentimentos receosos de permitir que os recém-chegados entrem em seus grupos de uso. “Você fica paranoico achando que qualquer pessoa pode te denunciar à polícia” — US7. O medo dos usuários de serem denunciados à polícia de narcóticos também traz desafios para os redutores de danos e pares promoverem reuniões e eventos com os usuários, já que as pessoas tendem a ser desconfiadas. “Digamos que haja uma reunião para usuários de metanfetamina. Os usuários de metanfetamina pensarão ‘Ah não’. Eles vão pensar que tem alguém lá para te pegar. Tipo, ‘Ah, talvez vá ter polícia lá’” — US1.

Sucessos e desafios

A equipe é cuidadosa ao falar sobre as realizações do programa até o momento: “Nós ainda não somos tão bem sucedidos, ainda é um processo [...] Mas eu tenho visto algumas mudanças nos usuários com quem trabalhamos.

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De acordo com a equipe, as PQUE agora tendem a se envolver menos em comportamentos de risco e a se preocupar mais com sua saúde. Eles, por exemplo, são mais cuidadosas quando carregam metanfetamina (para se proteger da abordagem policial), e cada vez mais têm seus próprios bongos. Os usuários do serviço também afirmam ter aumentado seu conhecimento sobre a metanfetamina e como reduzir os danos de seu uso. Eles também apreciam as informações sobre vários danos e doenças, como tuberculose, HIV e hepatite. As estratégias de redução de danos que os usuários disseram estar aplicando foram: comer antes de usar drogas e não esquecer de beber e dormir. Os usuários também disseram que sempre carregam preservativos e mais frequentemente os usam quando fazem sexo. Uma pesquisa anterior entre usuários de metanfetamina em Jacarta mostrou que o uso de metanfetamina estava associado a menos autocontrole e a uma maior probabilidade de se engajar em comportamentos sexuais inseguros (NEVENDORFF; PRAPTORAHARJO, 2015). É, portanto, certamente um sucesso que PQUE se mostraram mais consistentes no uso de preservativos. Apesar de conhecer os riscos, no entanto, PQUE admitiram ter dificuldades em mudar alguns comportamentos. Não compartilhar bongos foi considerado especialmente difícil. Grupos de uso tendem a comprar a droga em conjunto e compartilhar faz parte de um ritual não apenas relacionado ao uso de drogas, mas também a


alimentos, espaços, etc. Para aqueles que conseguiam recusar o compartilhamento, eles refletiam isso em seu contexto cultural. Não compartilhar envolveu o desenvolvimento de tato, para poder dizer não sem ofender os outros. Alguns usuários do serviço afirmaram ter reduzido, parado ou conseguido um melhor controle sobre o uso de metanfetamina, desde que começaram a participar das atividades de assistência da Karisma. “Pela minha experiência pessoal, depois que comecei a me envolver com a Karisma, percebi que comecei a usar menos. […] De repente estou cercado de pessoas que me apoiam, em vez de ficarem longe de mim. Automaticamente me distrai de usar drogas” — US6. Vários usuários do serviço disseram que o apoio oferecido pela Karisma fez uma grande diferença em suas vidas. Ajudou-os a aumentar o autocuidado e a autoestima e os interessou em olhar para além do uso de drogas isoladamente. Compartilhar suas histórias com a equipe de campo ajudou-os a encontrar soluções para problemas subjacentes que causam o uso problemático. Essas conversas e reuniões também os ajudaram a se tornarem mais sociáveis e menos isolados. “Nós sentimos que este escritório é como a nossa casa. Nossas histórias são ouvidas e nos sentimos apoiados por causa disso” — US8.

“Eles se preocupam com você e sua saúde. Se você está doente, eles ajudam você a encontrar um serviço de saúde. Até mesmo seus parentes não se importam tanto assim, mas a Karisma se importa. Você pode ligar para eles a qualquer hora do dia e eles estarão lá para você” — US2. Os usuários do serviço também apreciaram os encaminhamentos para centros de saúde e reabilitação e ficaram muito satisfeitos com o apoio legal oferecido pelos parceiros da Karisma. Os redutores expressaram certo orgulho em perceber que alguns PQUE estão começando a cuidar de si mesmos e a disseminar o conhecimento e as práticas de redução de danos que desenvolveram entre seus pares. “Sinto-me orgulhoso quando os participantes se tornam mais independentes e quando os participantes estão ansiosos para convidar e ajudar os seus amigos a acessar os serviços de saúde em Puskesmas. Eu me sinto orgulhoso quando eles realmente mostram progresso em um nível pessoal, especialmente em termos de independência” — P5. Apesar desses sucessos preliminares, os desafios ainda são muitos e estão relacionados principalmente às circunstâncias contextuais, em termos de disponibilidade de serviços e regulamentações sobre drogas. Como mencionado anteriormente, as parcerias permanecem complicadas e uma grande dificuldade está relacionada à abordagem de problemas de saúde mental. Segundo a equipe, uma pessoa comum na Indonésia não entende o que os serviços de saúde mental implicam. A maioria das pessoas associa saúde mental à insanidade e não entende ou fala sobre depressão, ansiedade ou estresse nesses termos. Da mesma forma, a maioria dos usuários do serviço da Karisma não reconhece o conceito de saúde mental ou a si mesmo como tendo problemas de saúde mental, apesar do fato de que praticamente todos mencionaram se tornarem paranoicos e muito emocionais depois de usar metanfetamina. “Se oferecermos informações ou serviços de saúde mental, eles recusam e dizem: ‘Eu não sou louco’” — P4.

Imagem 22: Isqueiro para distribuição (beba, coma, durma, repita.)

Para lidar com esse desafio, a equipe de campo está investindo em redes de atendimento e

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organizando reuniões com profissionais de saúde mental, conforme explicado na seção de formação de equipes. Isso está gerando alguns resultados positivos, pois ajuda as pessoas a reconhecerem problemas de saúde mental: “Eles participaram de reuniões sobre saúde mental e perceberam que os usuários de metanfetamina também podem ter problemas de saúde mental. Eles perceberam que o que eles vivenciavam estava de fato relacionado à saúde mental. Isso era novo para eles” — P4. Além disso, a equipe de campo está organizando GFs com os usuários para obter mais informações sobre como eles podem abordar a saúde mental. “Discutimos o uso de metanfetamina no ano passado, em termos do que eles experimentaram; se eles experimentaram paranoia, alucinações, etc. E perguntamos a eles como eles superaram esses problemas. A maioria deles simplesmente ignorou estas questões” — P3. Estes ainda são os primeiros passos, de acordo com a equipe, e muito mais trabalho é necessário para poder tratar adequadamente dos problemas de saúde mental.

“Os usuários de heroína tendiam a ter mais conhecimento em termos do tipo de informação que estamos dando a eles. Os usuários de metanfetamina tendem a ter menos conhecimento sobre isso. Tudo ainda é novo” — P3. “Para nós, o usuário de heroína ainda é muito mais fácil. Eu não sei se é por causa de nossa história, nossa experiência, mas eles também têm essa consciência sobre si mesmos que, ‘eu preciso de ajuda, eu tenho um problema e preciso de ajuda’. Em contraste, o usuário de metanfetamina não. [eles acham que] O usuário de heroína é quem tem problemas. ‘Eu não sofro com abstinência, não sinto sintomas de abstinência, ainda posso ir trabalhar e ainda estou bem’ [eles pensam]. Esse é o principal desafio, aumentar a conscientização sobre os riscos à saúde associados ao uso de metanfetamina” — P6.

Seguindo em frente

“Neste momento, o uso de shabu está crescendo, mas também está se tornando mais conhecido entre os policiais. A polícia quer impedir que as pessoas usem o shabu, então eles podem parar um estranho e perguntar: ‘você usa metanfetamina?’ [Como o redutor de danos faria]. As pessoas nunca dirão ‘sim’. Eles vão dizer: ‘o que você está fazendo?! Você é um policial?!’ Sempre há desconfiança” — P7.

A equipe tem muitas ideias para melhorar o programa. Em um nível amplo, eles defendem o financiamento para a redução de danos na Indonésia. A maior parte do financiamento vem de doadores internacionais e, como a Indonésia é considerada um país de renda média, o financiamento internacional está ameaçado. O grande desafio é garantir o financiamento do governo nacional. As ONGs na Indonésia não podem obter financiamento sustentável por causa das restrições nos regulamentos. Atualmente, uma ONG só pode ser contratada três vezes por curtos períodos. Se o governo nacional financiasse a redução de danos no futuro, uma solução teria de ser encontrada. A Karisma continua esperançosa de que o governo esteja disposto a encontrar tais soluções, uma vez que eles têm visto um crescente apoio à redução de danos por parte do governo nacional nas últimas décadas.

Finalmente, a equipe ainda enfrenta o desafio de mudar a abordagem e a mentalidade do trabalho de campo que utilizavam para ajudar PUDI e adapta-las ao trabalho com PQUE. Pelo menos três dos cinco

Uma das medidas que a equipe está tomando para tornar o financiamento do governo nacional mais viável é construir uma parceria com outra ONG indonésia de redução de danos (Rumah Chemara)

Outro desafio que a equipe enfrenta está relacionado à regulamentação de drogas em vigor. A equipe luta para aumentar o alcance do programa em termos de número de usuários assistidos. Eles sentem que precisam visitar as PQUE com muita frequência para poder desenvolver um relacionamento confiável, dada a abordagem rigorosa da política de segurança pública em vigor.

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redutores de danos tinham experiências anteriores de trabalho de redução de danos com usuários de heroína. Em geral, os usuários de shabu têm menos conhecimento sobre a droga e seu uso, seus grupos são menos abertos a recém-chegados (e aos redutores) e são menos propensos a reconhecer os danos causados por seu uso de drogas.


para redigir as Diretrizes Nacionais sobre como reduzir os danos aos usuários de metanfetamina. Além de criar orientação contextualizada para ONGs locais, isso também poderia facilitar o financiamento de projetos e redes. A maioria das clínicas de saúde em Jacarta só presta serviços se houver uma diretriz nacional. Quando uma diretriz nacional está disponível, também é possível orçar as atividades. Em relação à assistência em saúde mental, a equipe está organizando uma parceria com o Ministério da Saúde e o Departamento Provincial de Saúde para discutir questões de aconselhamento para as PQUE. O país tem diretrizes nacionais para redução de danos, que ainda não incluem ETA, e a Karisma gostaria de incluir questões específicas para as PQUE nestas diretrizes. Além da Karisma e do Ministério da Saúde, representantes da universidade Atma Jaya e das 18 unidades básicas de saúde que têm Instituições de Notificação Obrigatórias69 estão sendo convidadas, juntamente com os conselheiros sobre dependência, para uma reunião inicial para alavancar a parceria ainda em 2018.

Além disso, tanto os usuários quanto a equipe de campo gostariam de ter um espaço onde os usuários pudessem ficar, idealmente associado a um espaço seguro para usar drogas. “Nesse tipo de espaço seguro, você conhece as pessoas e sabe que elas não denunciarão você. Ao contrário de em casa, às vezes seu vizinho também pode ser aquele que denuncia à polícia, ou eles batem na porta. Nós preferimos um lugar onde podemos relaxar” — US7. Por fim, a equipe está planejando melhorar o alcance do programa. A equipe de busca ativa está trabalhando no equilíbrio entre a qualidade dos contatos (que leva tempo) e o número de pessoas atendidas. Uma vez que muitos contatos repetidos já ocorreram, a inclusão gradual de novas PQUE parece viável. Além disso, a recente inclusão de pares será um recurso útil no crescimento do programa.

No nível básico, a equipe gostaria de promover ainda mais a auto-organização e a independência das PQUE. “O próximo objetivo é criar uma comunidade de usuários de ETA para que eles possam se conhecer melhor e criar uma rede maior em diferentes áreas. Por exemplo, eles poderiam ajudar a disseminar e trocar informações e apoiar uns aos outros, para que sejam mais independentes e autossuficientes” — P5. O trabalho dos pares é visto como fundamental para alcançar este objetivo, e a equipe de campo gostaria de ter mais recursos para apoiar os pares que desejam se engajar com o programa. Em termos de aparatos, tanto a equipe quanto os usuários gostariam que um bongo fosse parte do kit para fumar com maior segurança. Além disso, a equipe também gostaria de tentar distribuir um bocal de silicone para reduzir os riscos de compartilhamento. 69 É nas Instituições de Notificação Compulsória que uma avaliação é feita para determinar qual serviço as pessoas que foram relatadas como usuários de drogas precisam. (N. A.)

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LIÇÕES APRENDIDAS

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1

O mais importante quando se promove a redução de danos para uma população “nova” é conhecer a área, a população de usuários e suas características, de modo a construir uma abordagem. Construir um relacionamento confiável é fundamental para isso. Ter pessoas com experiência de uso na equipe, assim como redutores e pares do gênero feminino e masculino, ajuda a atingir uma variedade de PQUE.

2

Iniciar um projeto com uma população que não foi assistida antes requer um esforço adicional em construir uma rede, sensibilizar parceiros e construir a integração de serviços. O pioneirismo em um contexto de regulamentações sobre drogas e políticas de segurança rígidas também requerem esforços e tempo adicionais na construção de confiança com PQUE.

3

Ser pioneiro em um contexto de regulamentação rígida pode exigir um compromisso entre o alcance do projeto (e a redução dos custos per capita) e a qualidade da assistência e o tempo necessário para criar laços com PQUE nessa fase inicial.


5.7 Princehof, Ripperdastraat e Schurmannstraat Um exemplo de Salas de Consumo de Drogas na Holanda “As salas de consumo de drogas são instalações de cuidados à saúde profissionalmente supervisionadas, onde os usuários de drogas podem consumir drogas em condições mais seguras. Elas buscam atrair populações de usuários difíceis de serem alcançados, especialmente grupos marginalizados e aqueles que usam drogas nas ruas ou em outras condições de risco e anti-higiênicas. Um de seus principais objetivos é reduzir a morbidade e a mortalidade, proporcionando um ambiente seguro para um uso mais higiênico e treinando os participantes em um uso mais seguro. Ao mesmo tempo, buscam reduzir o uso de drogas em público e melhorar a comodidade pública nas áreas em torno dos mercados de drogas urbanos. Outro objetivo é promover o acesso a instalações sociais, de saúde e de tratamento de drogas” — (EMCDDA, 2018c). Em contraste com as Salas de Consumo de Drogas (SCDs) no exterior – que atendem principalmente as PUDI – as instalações holandesas têm como alvo principalmente PQUD que fumam suas substâncias. Normalmente, as SCDs holandesas visam usuários problemáticos crônicos de cocaína fumada (freebase) e heroína (e metadona), com apenas um pequeno número de pessoas que injetam ou cheiram suas substâncias. Além disso, há um uso muito limitado de outras substâncias nesses serviços. Neste capítulo serão discutidas as salas de consumo de drogas na Holanda, através do estudo de três locais exemplares: Princehof em Amsterdã e Ripperdastraat em Enschede, duas SCDs muito diferentes, mas ambas fortemente integradas com outros serviços para PQUD, e Schurmannstraat em Roterdã, um serviço intensivo de habitação com uma sala de consumo de drogas na sala de estar para seus 20 residentes.

Imagem 23: Amsterdã, Enschede e Roterdã, Holanda

Holanda

A Holanda é um país costeiro da Europa Ocidental. Segundo a base de dados das Nações Unidas, o país tinha uma população de 17 milhões de pessoas em 2017 (NAÇÕES UNIDAS,2018). A Holanda faz parte da União Europeia, onde é a sexta maior economia.

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O país tem uma economia estável com taxas de desemprego relativamente baixas. No entanto, 590.000 domicílios na Holanda (8,2% da população) viviam abaixo da linha da pobreza em 2016 e 224.000 dessas famílias vivem abaixo da linha da pobreza há quatro anos ou mais. A Holanda é um pequeno país com apenas 41.542 km2 de área de superfície. Tem 12 províncias. Juntas, as quatro maiores cidades e seus arredores, formam a megalópole Randstad. Duas SCDs incluídas neste estudo de caso – Schurmannstraat e Princehof – estão localizadas em Randstad. O terceiro local situa-se em Enschede, uma cidade ao leste da Holanda, perto da fronteira com a Alemanha.

Uso de substâncias na Holanda

Na Holanda, o Monitor Nacional de Drogas apresenta um relatório anual sobre a evolução do uso, política, tratamento e criminalidade relacionados ao uso de drogas. De acordo com o monitor de 2017, a maconha é há muito tempo e continua a ser a droga mais utilizada (além do álcool) no país. Em 2016, estimativas apontaram que de 880.000 adultos (6,6% da população) consumiu maconha no ano passado e 4,1% da população adulta consumiu maconha no último mês. Mais de um quarto desses têm usado maconha no último mês (quase) diariamente (VAN LAAR et al., 2018). Observe que a maconha tem um status único na Holanda; foi classificada como droga leve, o que significa, na prática, que, embora ainda seja oficialmente ilegal, é vendida no balcão em coffeeshops em muitos municípios holandeses. Em 2016, cerca de 230 mil adultos (1,7% da população) usaram cocaína, 390 mil (2,9% da população) ecstasy e 180 mil adultos (1,4% da população) usaram anfetaminas. Em comparação com outros países europeus, existe uma alta prevalência no consumo de anfetaminas e ecstasy. Além disso, o uso de estimulantes aumentou entre 2014 e 2016 (VAN LAAR et al., 2018). Não há dados sobre a prevalência do uso de metanfetaminas na Holanda. Até agora, seu uso ocorre apenas em um pequeno nicho de HSH que se envolve em chemsex. Há alguns sinais de que seu uso parece estar aumentando entre os gays. Além disso, uma taxa relativamente alta de uso injetável foi relatada entre esses homens (KNOOPS et al., 2015b). Essa cena de drogas, com o uso de cristal de metanfetamina, uso injetável e uso frequente de drogas combinadas, possui riscos

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elevados com relação as drogas, além de contatos sexuais de alto risco. O número total de mortes relacionadas a drogas aumentou entre 2014 e 2016. Não há uma compreensão clara desse aumento, mas possíveis explicações são mudanças no registro de óbitos, aumento no uso de opiáceos medicinais, mais pesquisas toxicológicas ou o envelhecimento das PQUD (VAN LAAR et al., 2018). Embora a prevalência de indivíduos em tratamento devido a anfetaminas tenha aumentado nos últimos anos, o número de pessoas em tratamento de ecstasy ou anfetaminas era relativamente pequeno (menos de 500 e 2.500 pessoas, respectivamente), em 2015. Mais indivíduos procuraram ajuda para o seu uso problemático de cocaína (cerca de 13.500 indivíduos) em 2015, mas esses números estão em declínio desde 2006. Dos que buscam ajuda para o consumo de cocaína, apenas 1% injetou a droga. Quase metade dos que estavam em tratamento atribuíram motivo ao uso de crack, e um pouco mais da metade devido ao pó de cocaína, que eles cheiravam. O pó de cocaína é relativamente popular entre os jovens e adultos jovens que frequentam festas, enquanto o crack é comum entre as pessoas dependentes de opiáceos que muitas vezes faziam parte das cenas de rua (desabrigados) na Holanda nos anos 80 e 90. Enquanto o uso combinado de heroína (ou metadona) com crack é comum, há também muitos indivíduos nessa cena que usam crack sem o uso de opiáceos (VAN LAAR et al., 2018). Este último grupo é o principal alvo das SCDs na Holanda. Os profissionais e usuários do serviço de três locais, incluindo as habitações de abrigo com SCD, todos mencionaram o crack como a droga principal de escolha entre os usuários do serviço. O uso de heroína, ou o mais frequentemente da metadona prescrita, também é muito comum entre essas PQUD. Além do mais, os usuários do serviço podem ser caracterizados como um grupo mais velho de PQUD. A maioria tem 40 anos ou mais, com uma alta prevalência de problemas de saúde mental (incluindo TEPT, depressão, TDAH e esquizofrenia), problemas de saúde física (principalmente infecções pulmonares e doenças e infecções hepáticas), além de problemas sociais (tais como dívidas financeiras). Embora muitos tenham vivido em situação de rua


no passado, a grande maioria dos visitantes da SCD tem algum tipo de habitação no momento. Além do mais, a maioria faz uso de serviços de atendimento integrado, incluindo trabalho social, administração de dívidas e apoio psicológico. PQUD mais jovens também acessam as SCDs, mas é principalmente para este grupo de mais idade que as SCDs oferecem um espaço seguro, além de acesso aos serviços relacionados. Quanto ao serviço de habitação Antes, em Schurmannstraat, uma caracterização adicional das PQUD residentes é que não são capazes de viver de forma independente. Os moradores são todos do gênero masculino entre 40 e 70 anos de idade, e todos lutam com problemas de saúde (mental) e sociais. Dos cinco moradores que participaram do GF, todos usavam crack, e três deles também usavam metadona e heroína. Eles disseram que todos os moradores da Schurmannstraat usam crack.

Imagem 24: A sala de estar em Schurmannstraat

Política de drogas e redução de danos

Na Holanda, a redução de danos recebe apoio político e é incorporada à política nacional oficial de drogas. O Ministério da Saúde, Bem-Estar e Esportes (VWS) é o principal responsável pela coordenação da política sobre drogas, em colaboração com o Ministério da Segurança e Justiça. A Holanda apoia ativamente a redução de danos no estrangeiro através do seu Ministério de Relações Exteriores. Em consonância com uma abordagem pragmática, uma sociedade livre de drogas não é vista como realista. O VWS constrói sua política de drogas em quatro pilares principais, a saber: informação, prevenção, tratamento e redução de danos.

Esta política resulta na disponibilidade de uma ampla gama de serviços de redução de danos em toda a Holanda, financiados principalmente por agências governamentais nacionais ou locais. Esses serviços incluem: PTS, TSO, educação sobre drogas feita por pares em festas, distribuição de kits de uso de drogas, análise anônima de drogas, trabalho de busca ativa, informação online, linhas telefônicas de ajuda, centros de convivência e, é claro, salas de consumo de drogas, só para mencionar alguns.

Origens das três salas de consumo de drogas

A primeira SCD na Holanda foi fundada em 1995. Desde então, as SCDs continuaram a abrir, com um pico de novas SCDs em 2004-2005 (HAVINGA; VAN DER POEL, 2011). No início de 2018, de acordo com um inventário holandês de SCD ainda a ser publicado, a Holanda contava com 26 SCDs em 21 cidades diferentes. Amsterdã e Roterdã são as únicas duas cidades com mais de uma SCD na cidade, três e quatro, respectivamente. Este inventário não inclui os serviços de habitação protegidos (albergue e abrigos) com uma sala de consumo de drogas para seus residentes, como a Schurmannstraat neste capítulo. Na última década, estes serviços habitacionais acolhedores as PQUD aumentaram em número em toda a Holanda. Como a maioria das pessoas que usa drogas de forma problemática na Holanda não está mais desabrigada, o número de SCDs diminuiu. É seguro dizer que o número de serviços residenciais protegidos aumentou, embora o número exato de tais instalações não esteja disponível. A SCD Princehof do Grupo Regenboog foi inaugurada em 1999. Originalmente, o edifício era um serviço de habitação e tratamento de dependência em Amsterdã, mas o Grupo Regenboog assumiu o controle. “Há 26 anos, trabalhei para o serviço de troca de seringas em Amsterdã. Não havia SCD, mas as pessoas continuavam pedindo um lugar onde pudessem usar. Por volta do ano 2000, se bem me lembro, abrimos a SCD. Por volta desse mesmo período, a troca de seringas ficou em um local permanente, junto com um abrigo para mulheres. Todos esses serviços posteriormente foram fundidos em um único local de serviço, por volta de 2003” — P9.

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trabalho de baixa exigência com sua própria SCD para seus participantes.

2001

2003

2010

2013

2018

Imagem 25: SCDs na Holanda

A SCD Ripperdastraat, na cidade de Enschede abriu em 2006 como um local de serviço integrado. Seu funcionamento sempre foi apoiado pelo município, principalmente porque contribui para a redução perturbação da ordem pública gerada por PQUD. A maioria dos antigos usuários de heroína e crack que antes estavam em situação de rua está agora abrigada e em grande parte tem mais de 40 anos, se não for mais velha. Esse também é o caso do abrigo na Schurmannstraat, onde os mais jovens dos vinte homens residentes têm quarenta e poucos anos e muitos deles são aposentados. Serviços de residência protegida para PQUD mais velhos na Holanda lidam com o uso de substâncias de diferentes maneiras; alguns proíbem, alguns permitem que os residentes usem em seus quartos, e outros têm uma SCD interna. Este último estimula o diálogo aberto e permite o uso supervisionado. Além disso, os serviços sociais na Holanda se tornaram, ao longo dos anos, cada vez mais focados na reintegração e recuperação social. Em consonância com esse desenvolvimento, as SCDs tornaram-se cada vez mais parte dos serviços integrados, com os assistentes sociais prestando mais atenção às capacidades dos indivíduos e sua capacidade de trabalhar e (re)integrar-se, em comparação com os primeiros anos da SCD. Assim, os usuários do serviço de SCD geralmente têm acesso a assistentes sociais, serviços de tratamento, assistência médica e psicológica, bem como trabalho ou mais atividades diárias de baixa exigência através da SCD. Muitas SCDs oferecem suas próprias atividades de trabalho de baixa exigência em troca de pequenos reembolsos, e em Groningen (Norte da Holanda) existe até um centro de integração de

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“Hoje, nós (Schurmannstraat) trabalhamos muito mais com recuperação e participação. Este lugar não é mais visto como uma estação final. O desafio é até que ponto isso é possível; alguém pode realmente se tornar autossuficiente? Uma vez que morem e vivam de forma independente, não há mais nenhuma supervisão. Alguns de nossos residentes realmente precisam do atendimento agudo e das 24 horas que oferecemos neste local” — P3.

Na prática

Todas as SCDs oferecem um espaço seguro para as pessoas usarem suas drogas em um ambiente mais seguro e higiênico, sob a supervisão de pessoal qualificado. Além disso, fornecem um ponto de acesso a outros serviços sociais e de saúde. Como mencionado anteriormente, a Holanda possui SCDs públicas e SCDs privadas, sendo parte de um centro de integração de trabalho e moradia. Cada SCD pública tem seus próprios critérios de acesso e procedimentos de registro de informações. Por exemplo, tanto em Ripperdastraat quanto em Princehof, os usuários dos serviços devem ser dependentes de substâncias, com no mínimo 25 anos de idade, e cidadãos registrados no município. Eles também têm critérios diferentes. Por exemplo, Princehof exige que as pessoas estejam em situação de rua no momento da solicitação ou que sejam conhecidas por provocarem perturbação pública, elas devem ter um documento de identidade e assinar um contrato. Em Ripperdastraat isto não é necessário, mas aqui há uma exigência rígida de que os usuários de serviço tragam suas próprias drogas para as instalações; isso é verificado na entrada. “Nós (isto é, assistentes sociais) fazemos o procedimento de admissão para duas das SCDs do grupo Regenboog. Com algum espaço para exceções individuais, verifico-os sobre os critérios do serviço. Você deve ter usado por pelo menos cinco anos. A maioria das pessoas fuma crack. Não há sala para uso injetável e, na teoria, o lugar é para todas as drogas, mas na prática é apenas para pessoas que usam crack, heroína e metadona. Também tentamos vincular as pessoas ao suporte profissional. Tento falar com eles regularmente, mesmo que seja uma vez em duas semanas. Tem


que haver contato com alguém que possa ajudá-los de outras formas, se necessário” — P10.

◊ Seringas estéreis ou outros acessórios para uso

Um pouco mais da metade das inscrições na SCD é aceita. Em princípio, os usuários do serviço têm acesso por um ano e, a cada ano, seu acesso é revisado. Às vezes, se necessário, os assistentes sociais também podem conceder acesso à SCD por um período mais curto. Por exemplo, quando o acesso à SCD puder ajudar a atravessar um breve período de situação de rua. Os migrantes ilegais não podem ter acesso ao Princehof, nem migrantes não autorizados70. No entanto, o último grupo pode ter acesso a outra SCD do Grupo Regenboog, que oferece serviços sociais especificamente para esses migrantes em Amsterdã.

Em Schurmannstraat, os usuários do serviço também só podem entrar através de um encaminhamento profissional. Como os enfermeiros que gerenciam os casos trabalham na SCD, trabalho de abordagem social, distribuição de medicamentos (incluindo metadona) no local e o programa de manutenção de heroína, todos esses serviços são relativamente fáceis de ajustar às necessidades atuais de PQUD. Sempre que alguém está pronto, alguém pode se deslocar para o trabalho de abordagem social em casa, mantendo o mesmo gerente de caso. Outros benefícios de tal abordagem integrada também foram mencionados. “Recentemente, uma das nossas participantes, que fuma heroína no programa de manutenção de heroína, de repente chegou a fumar heroína – até três vezes por dia – também na SCD. Isso levantou uma bandeira vermelha. Como trabalhamos em todos os turnos, percebemos essas coisas como uma equipe. Depois tivemos uma conversa com ela sobre isso e consultamos o médico sobre isso: ‘está recebendo a dose certa?’ Ela nos disse que não estava se sentindo muito bem, dormiu mal, mas não queria falar sobre isso. […] Isso é captado pelo gerente de caso dela” — P7.

◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊

de drogas, como telas para o cachimbo e folhas de alumínio; Preservativos (no Princehof estes são distribuídos apenas para as mulheres); Atividades recreativas, como pintar ou fazer música; Apoio social e judicial; Projetos de trabalho no local e no encaminhamento; Acesso a chuveiros e roupas limpas; Suporte administrativo e possibilidade de usar o telefone. Encaminhamentos para cuidados da saúde mental e física, instalações de tratamento ou apoio habitacional.

Alguns desses serviços são oferecidos fora do centro de convivência que, em ambos os casos, é no mesmo local. Em Ripperdastraat, os usuários do serviço também podem consultar um médico, fazer exames ou tratamento para doenças infecciosas, a naloxona está disponível no caso de overdose de opiáceos e eles até têm controle extensivo de natalidade para mulheres. “Há dois anos oferecemos testes de gravidez e realmente estimulamos o controle de natalidade injetável. Se elas querem ter filhos, estimulamos que fiquem abstinentes primeiro, e é claro que ninguém é obrigado a receber as injeções, mas se quiserem, podem obtê-las de graça, nós rastreamos os intervalos e repetimos a injeção a cada três meses. Cerca de metade das nossas participantes fazem uso desse serviço, acredito” — P6.

Em ambos os locais, os usuários do serviço podem conseguir acesso aos seguintes serviços: ◊ Refeições quentes, café/chá e sanduíches; 70 Migrantes não autorizados são migrantes que têm o direito de residir no país, mas não têm o direito a tratamento ou serviços sociais na Holanda. Eles geralmente vêm de países do Leste Europeu. (N. A.)

Imagem 26: O terreno e o centro de convivência em Ripperdastraat

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Em Schurmannstraat, a SCD é uma sala, ao lado de uma sala de estar, para todos os vinte residentes. Se um residente quiser fazer uso da SCD, ele deve solicitar isso na recepção e pode levar alguns amigos residenciais, se quiserem. A SCD é aberta das 6h às 23h, as pessoas podem usar seu tempo para usar drogas lá e existe vigilância por meio de câmeras. “Isso nos ajuda a manter uma visão geral. Podemos ver quem usa e quando, e se alguém de repente usar mais vezes, podemos falar sobre isso. Como mentor, tenho essa conversa com alguém. Vou perguntar o quanto eles usam e se eles bebem também, então podemos levar isso em consideração. Os residentes sabem que não podem usar em seus quartos e que não precisam usar secretamente” — P4. Há sempre dois membros da equipe de apoio habitacional no local, e cada residente tem um deles como seu mentor e um como co-mentor para todo o apoio prático e social. Eles podem obter ajuda com tudo o que precisarem. Para mais apoio médico e relacionado ao tratamento, um profissional de cuidados faz uma visita pelo menos uma vez por semana. Este profissional de cuidados é responsável por supervisionar o plano de tratamento e o gerenciamento geral de casos. Em todas as três SCD, as pessoas podem obter ajuda com o pagamento de contas ou dívidas, conseguir documentos de identidade, buscar moradia independente ou obter acesso ao tratamento de desintoxicação. Além disso, um papel muito importante da equipe no local é apenas ouvir as PQUD, ouvir suas histórias, conectar-se com elas e dar-lhes apoio moral. Nas habitações protegidas, o pessoal de apoio na habitação também ajuda nas tarefas domésticas. Na prática, no entanto, um usuário do serviço da Princehof e um usuário do serviço na Ripperdastraat mencionam que seu principal motivo para ir à SCD é o contato social. Por exemplo, quando US1 chega à SCD, ele toma café, joga tênis de mesa, usa o computador e conversa com outras pessoas, incluindo dois amigos que ele fez na SCD. “A SCD para mim é como um café, um lugar para conhecer pessoas e conversar” — US1.

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Todos os três locais oferecem a oportunidade de realizar trabalhos de baixa exigência ou atividades alternativas diárias. Os participantes recebem pequenos reembolsos, geralmente alguns euros por meio dia de trabalho, e fazem diferentes tipos de trabalho. Em Ripperdastraat e Princehof, as PQUD realizam tarefas como ajudar na limpeza, cortando alimentos ou cozinhar, ou, no caso da Ripperdastraat, até mesmo trabalhar na oficina interna de conserto de bicicletas. No abrigo, os residentes são obrigados a fazer uma atividade de trabalho estruturada pelo menos dois dias e meio por semana. Isto visa principalmente trazer alguma estrutura na vida das pessoas, mas também dá às PQUD um pouco de dinheiro extra e os distrai de, alternativamente, estarem fixados apenas no uso de drogas. Para a maioria das atividades de trabalho, os residentes podem ser apanhados em grupo por um pequeno ônibus e são levados em casa no final do dia. Em casa eles têm um cronograma rotativo para todas as responsabilidades, como limpeza, servir os pratos, fazer compras e cozinhar. Tudo é feito com o apoio da equipe. Em uma discussão em grupo com cinco moradores da Schurmannstraat, eles compartilharam que a participação envolve mais do que trabalho e tarefas de baixa exigência. “Todas as segundas-feiras à noite, temos nossas reuniões residenciais. E você tem que comer em casa pelo menos quatro dias por semana. […] Nas reuniões residenciais, podemos sugerir coisas como a compra de uma mesa de ping-pong ou mudar as horas em que preparamos o jantar. Todas as sugestões são levadas em consideração. Eles realmente respondem a isso e sempre dão um retorno às nossas sugestões. Além disso, todo mundo tem que ajudar na casa, e eles notam se você fez suas tarefas” — US4 e US5. Além disso, nas outras duas instalações, a possibilidade de os usuários do serviço fornecerem sugestões para mudança foi formalizada, por meio de reuniões regulares de usuários com a equipe. No entanto, tanto a equipe como as PQUD neste estudo de caso mencionam que os usuários do serviço têm interesse limitado nessas reuniões regulares. Parcialmente porque as pessoas também


podem apenas dar sugestões em qualquer lugar, quando falam com um dos membros da equipe.

Equipe e finanças

A Schurmannstraat (Antes) é coordenada por um gerente regional e um gerente local, ambos em tempo integral. Além disso, existem vários funcionários de apoio à habitação, em tempo integral e em tempo parcial. Há três turnos diferentes, durante os quais há sempre dois membros da equipe e, durante o dia, há também um interno presente. Eles ajudam nos aspectos práticos do dia-a-dia. “Eles basicamente conseguem ajuda de várias formas: financeira, perguntas sobre correspondências legais que recebem do governo, ajuda na limpeza – embora dificilmente peçam por isso – […] Estamos aqui 24 horas por dia, 7 dias por semana, mas eles precisam pedir ajuda durante o dia. […] para proteger seu ritmo circadiano” — P5. Para um apoio mais especializado, um profissional da saúde – que é enfermeiro por profissão – visita individualmente cada residente, pelo menos uma vez por semana. Em Princehof (De Regenboog Groep), a SCD está no mesmo prédio que o centro de convivência. Há sempre 6 pessoas trabalhando no prédio, mas apenas uma pessoa está trabalhando na SCD. O projeto é executado por um gerente de meio expediente e três coordenadores de projeto (um em tempo integral e dois de meio expediente). Há dois porteiros, um membro da equipe geral da SCD, três voluntários em tempo parcial, vários estagiários de serviço social e dois assistentes sociais em meio período que trabalham nesse local e em outros locais. Em Ripperdastraat (Tactus), os serviços da SCD são executados por enfermeiros. Há um gerente, dois enfermeiros seniores e 16 enfermeiros regulares. Os enfermeiros são responsáveis pelo gerenciamento dos casos dos usuários do serviço na SCD, distribuição de medicamentos, programa de manutenção de heroína e trabalho de busca ativa. Eles trabalham em um cronograma rotativo em cada um desses serviços e são todos responsáveis por um certo número de participantes.

“Eu trabalho (como enfermeiro) 36 horas por semana e sou responsável por 18 usuários do serviço. 10 destes visitam a SCD, os outros 8 visito durante o trabalho de campo em suas casas. Os usuários do serviço de busca ativa geralmente têm atividades diárias e uma rede fora da cena do usuário de drogas. Geralmente não é o caso de quem visita a SCD” — P7. Há um guarda no portão dos serviços integrados, que também incluem atividades de trabalho, um centro de convivência, sala de informática, uma sala de ensaio de banda e uma sala de consumo de álcool para alcoolistas que participam do programa de varredura de rua. Quando necessário, os enfermeiros encaminham a um médico de meio período, que também faz parte da equipe. Todas as três SCDs são financiadas primeiramente, se não inteiramente, pelo governo local. Em anos recentes, as municipalidades na Holanda receberam mais responsabilidade pela saúde local e políticas sociais.

Parcerias

Todos os três locais das SCDs são parte de uma organização maior, que oferece serviços diversos. Todos trabalham juntos, tanto com os serviços dentro de sua organização, como com a organização externa, através de encaminhamento, por exemplo. Como mencionado previamente, as parcerias existem com oportunidades de trabalho de baixa exigência. Todas as três SCDs oferecem essas oportunidades dentro de sua própria organização, mas para oferecer às pessoas melhor suporte e oportunidades, podem também encaminhá-las ao trabalho em outra organização. Ou, naturalmente, um trabalho remunerado real é sempre uma opção também. Isto, contudo, provou ser um tanto desafiador para muitos visitantes da SCD. Na habitação protegida, o funcionário de cuidados previamente mencionado assume o papel de gerente do caso. Eles são parte de uma equipe Flexível Assertiva de Tratamento Comunitário (FACT) da Antes, através da qual os residentes têm seu próprio psiquiatra ou especialista em dependências. A equipe de apoio em habitação ajuda os residentes a se registrarem com os

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serviços sociais, ou suporte profissional para pagar seus débitos. Em caso das emergências da saúde mental, o serviço de crise pode ser chamado. Adicionalmente, a equipe de funcionários de apoio à habitação mantém relacionamentos próximos com os clínicos gerais dos residentes. Através da equipe de FACT, os residentes podem entrar em qualquer tipo do tratamento de reabilitação ou em outros tipos do cuidado da saúde mental ou física.

SCD, os funcionários de Princehof podem vê-los no centro de convivência e encaminhá-los para apoio básico à saúde. O MDHG é uma associação de pessoas que usam drogas que oferece o suporte de baixa exigência prática e emocional para as PQUD marginalizadas. Há também um contato estreito com trabalhadores envolvidos com busca ativa, e contato ocasional com clínicos gerais dos usuários do serviço.

Princehof trabalha principalmente junto com os serviços de saúde municipais, Jellinek, Kruispost e Doctors of the World, e o MDHG (Grupo de Interesse de Usuário de Drogas). Através dos serviços de saúde municipais, os usuários de serviço da SCD podem conseguir metadona e qualquer tipo de teste ou de tratamento relacionado à saúde sexual. Os serviços municipais de saúde são, além disso, responsáveis para o tratamento da manutenção da heroína. Aqueles que recebem a heroína por meio deste caminho têm que fumar sua heroína nos serviços municipais de saúde, mas podem ainda vir à SCD para usar crack. Jellinek é a instalação principal de tratamento de drogas em Amsterdã. Os usuários do serviço podem ser encaminhados a estes serviços para o tratamento da dependência – tal como desintoxicação – ou apoio à saúde mental e para serviços de dentista. Kruispost e Doctors of the World prestam serviços de atendimento à saúde para as pessoas sem seguro, como aqueles que estão no país ilegalmente ou são pessoas em situação de rua que não pagaram por seu seguro. Então, mesmo que os migrantes ilegais não possam acessar a

Em Ripperdastraat, alguns dos serviços externos de Princehof – isto é, a distribuição de medicação a manutenção da heroína e serviços de busca ativa – são oferecidos internamente. Além disso, eles são o serviço principal de tratamento de drogas em Eindhoven, podendo assim encaminhar para desintoxicação ou reabilitação dentro de sua própria organização. Tactus tem também quatro albergues para PQUD, com quem a SCD trabalha em estreita colaboração. “Eles veem o nosso comportamento diferente. Às vezes pode ser útil discutir coisas com uma pessoa de contato lá. Geralmente pedirei o consentimento do usuário de serviço antecipadamente. Podemos ler os relatórios de cliente uns dos outros” — P7. Entretanto, eles também trabalham em conjunto com uma rede inteira de parceiros externos. Exatamente como Princehof, eles mantêm boas relações com os serviços municipais de saúde, os clínicos gerais, e outros serviços médicos (tais como hospitais). Podem também ter contato com

Pessoal envolvido Antes

De Regenboog Groep

Tactus

Gerente regional Gerente de local Equipe de funcionários de apoio na habitação Clínico geral Estagiários

Gerente regional Gerente local Coordenadores de projeto Equipe de funcionários gerais da DCR Porteiros Voluntários Estagiários Assistentes sociais

Gerente Médico Enfermeiros Guarda

Antes

De Regenboog Groep

Tactus

Governo local (80%) Governo nacional (20%)

Governo local (maioria) Doações (minoria)

Governo local (100%)

Recursos da DCR

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a farmácia, caso tenham perguntas sobre o uso do medicamento do usuário do serviço. São parte de uma rede profissional que inclui a habitação protegida, uma organização do bem-estar e serviços sociais locais. Por último, todos os três locais investem na manutenção de bons relacionamentos com a polícia e a vizinhança. Um diálogo contínuo com ambos, policiais e vizinhos, estimula a aceitação da comunidade. Por exemplo, os vizinhos são convidados para um dia livre na instalação e serão ouvidos (e terão uma resposta) quando tiverem uma queixa sobre (um dos) usuários do serviço. Com a polícia acordos são feitos, como a prevenção do uso público de drogas na vizinhança, e a polícia ser contatada quando a má conduta de um usuário do serviço não puder ser tratada no local.

Sucessos e desafios

Ao discutir os sucessos das Salas de Consumo de Drogas, os usuários do serviço neste estudo de caso mencionam vários. No grupo focal realizado na habitação protegida, havia um consenso geral de que o sucesso mais importante do lugar é a segurança que oferece a eles em suas vidas. No grupo focal os residentes expressam sua apreciação às regras estruturadas, e como eles realmente veem a casa e sua SCD como seu próprio espaço. Eles gostariam muito de tornar a sala até mais gezellig (isto é, acolhedora) – por exemplo, com pinturas que um deles faz – e apreciam o monitoramento de câmera, para que os funcionários possam vir em seu auxílio se algo der errado. A principal chateação (e a razão pela qual alguns decidem usar em seus quartos), de acordo com os participantes das discussões em grupo focal, é que todos podem ver você usar drogas quando entra na SCD. “E ver alguém se drogar estimula o desejo.” Já que você tem permissão de levar um grupo pequeno com você, se quiser, os outros insistirão para ir junto. “Mas resolvemos isto muito bem uns com os outros”. Um dos participantes do grupo focal mantém um esquema rotativo; seu melhor amigo sempre tem prioridade, mas os outros têm vez. Um usuário do serviço de Princehof descreve os sucessos principais da SCD da seguinte forma:

“A maneira principal em que a SCD contribuiu para a minha qualidade de vida é através da alimentação. Há quase sempre alimentos saudáveis e em abundância disponíveis aqui. […] Socialmente o lugar também é de grande valor. Eles são pessoas de confiança para testar minhas ideias, mas podem também ser um espelho para mim. Podem verificar minha saúde e dizer-me quando eu não pareço estar muito bem. Nem sempre posso fazer isso sozinho. De modo geral, a SCD me oferece alimento, pessoas de confiança, e verificação da minha saúde” — US1. Além disso, SCD têm funcionado na Holanda desde 1995, com aceitação social relativamente forte. Todos os três estudos de caso neste capítulo conseguiram manter relações razoavelmente boas com vizinhos, polícia e políticos locais. Não somente provaram ser sustentáveis com o passar dos anos, como também certamente contribuíram para a estabilização de usuários de droga problemáticos na Holanda, e o desaparecimento de uma cena de usuários de rua. A maioria dos usuários de serviço da SCD, quer seja de uma habitação pública ou parte de uma habitação de abrigo, é parte de um grupo mais velho de PQUD com padrões estabilizados do uso da droga e muito pouco distúrbio social. O envelhecimento geral dos usuários do serviço significa novos desafios para as SCDs. Por exemplo, com o passar dos anos, várias SCDs públicas fecharam, e locais de abrigo em que as pessoas podem usar foram abertos, por outro lado. Entretanto, manter à vista o uso de drogas dos residentes e/ou evitar que eles as usem em seus quartos pode ser difícil. Além disso, com quase nenhuma PQUD causando perturbação da ordem pública nas ruas, o apoio público pode diminuir, pois sua razão de ser é menos importante para terceiros. Por último, conforme as PQUD envelhecem, elas enfrentam cada vez mais problemas da velhice, principalmente: isolamento social e problemas de saúde. Os locais de SCD atendem a isto de várias maneiras, geralmente tendo diversas opções de referência para o atendimento médico e – fora a função social do local propriamente dito – a equipe fornece apoio na (re)integração social. Entretanto, alguns tópicos podem ser difíceis de abordar, e o fato de que muitos usuários do serviço estão tão acostumados aos seus estilos de vida marginalizados de PQUD pode tornar difícil motivá-los às vezes.

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“Acho que temos que prestar mais atenção a suas necessidades sexuais. […] Muitos residentes e membros da equipe de funcionários acham difícil falar sobre isso. Às vezes quando os residentes fazem piada sobre isso, pode ser ofensivo, mas como escolhemos e falamos sobre isso com alguém? Como você começa essa conversa? É parte da vida, mas permanece sendo um grande tabu” — P4. “Algumas pessoas vem aqui durante anos. Eu não concordo necessariamente com isso. As pessoas não devem fazer uso de um serviço durante suas vidas inteiras, elas não devem ficar estagnadas. Não vamos mais mudar isso para nossos participantes mais antigos, mas com nossos novos participantes, tentamos estimular o desenvolvimento. […] A maioria de nossos usuários antigos do serviço não têm realmente objetivos pessoais específicos, além de encontrar uma casa. Alguns veem a SCD como um tipo de café; para vários a SCD é um lar longe de casa. Os novos usuários do serviço devem pensar sobre seus objetivos, e trabalhar para estabilizar suas vidas. Poucos conseguem isso” — P10. “Se quiserem instrução básica ou ajuda profissional na SCD, podem sempre conseguir, mas a maioria das pessoas não quer. A maioria tem 40 anos ou mais e tem usado há muito tempo. Eles já conhecem os princípios básicos e a terapia é confrontante demais para eles. Talvez a SCD às vezes ofereça isso, mas não há nenhuma demanda para isso. Eles não querem, têm medo disso” — US1.

Seguindo em frente

Em geral, as SCDs estão razoavelmente confiantes sobre a sustentabilidade de seus programas, e provavelmente com razão. Atualmente, as SCDs não são um tópico politicamente sensível na Holanda. Com o passar dos anos, as SCDs na Holanda desenvolveram-se em serviços fortes integrados que podem tomar diversas formas, dependendo do contexto local. Alguns desenvolvimentos sociais que afetaram os serviços das SCDs devem continuar no futuro, a saber: a necessidade da resposta adequada a uma população PQUD que envelhece, a preferência por trabalho de abordagem social em cenários clínicos, serviços integrados e redes robustas de cuidado e serviços, e trabalho de recuperação e participação como um valor central.

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“Acho que devemos aumentar nosso foco para os pequenos passos que eles ainda podem dar. Eu sei que é possível” — P2. “Gostaria que trabalhássemos mais com os princípios da recuperação, para focar mais na autoconfiança deles” — P3. “Gostaria de expandir os nossos serviços de busca ativa. Mesmo que esses usuários não venham à SCD, podemos ajudar-lhes melhor em suas próprias casas. É mais fácil ver como alguém realmente está. Pense nas coisas pequenas, tais como as plantas que morreram de repente ou um vaso sanitário muito sujo. Na SCD, as pessoas em geral fingem que está tudo bem” — P6. Além disso, diversos profissionais mencionam seu desejo de melhorar as relações de trabalho existentes com outros serviços; por exemplo, serviços de saúde mental ou hospitais, que frequentemente carecem de conhecimento sobre como tratar das PQUD quando estão sob influência da droga. Em contraste aos profissionais, os usuários do serviço não estão tão focados em seguir em frente, mas tendem a fazer sugestões para a expansão dos serviços das SCDs. Os dois usuários de serviço das SCDs públicas acham que as horas de abertura devem ser expandidas. Em Princehof as pessoas podem permanecer na SCD por tempo ilimitado e ela fica aberta sete dias por semana, mas em Ripperdastraat há apenas seis lugares na SCD, então todos fazem 30 minutos por sessão, e fecha aos domingos. Também reduziram os horários de funcionamento aos sábados. “Mesmo apenas 15 minutos de acréscimo seria legal. Agora temos até que sair quando ninguém está esperando para entrar, mas fumar é uma coisa social. […] E seis lugares é muito pouco. Os alcoolistas têm mais espaço (Há uma sala para usuários de álcool na porta ao lado, para alcoolistas que participam na equipe de limpeza) e podem ficar sentados lá o dia inteiro. A diferença é muito grande. Seu espaço também abre nos fins de semana” — US2. Os participantes do grupo focal em Schurmann gostariam de ter a opção de escolher mais atividades recreativas, embora confessem que isto costumava


ser oferecido, mas foi cancelado, por enquanto, porque muita gente não aparecia. Isto é semelhante às experiências em Princehof. Um usuário do serviço explica que isso provavelmente continuará assim, enquanto o uso da cocaína não for facilitado durante as atividades, já que as pessoas na SCD estão sempre ocupadas, vagando e usando drogas. Estas PQUD assim como os participantes do grupo focal gostariam todos de ter acesso a suas drogas de uma maneira legal (através de legalização ou distribuição medicinal). Além disso, todos gostariam que a SCD fosse mais gezellig (acolhedora).

LIÇÕES APRENDIDAS

1

As SCDs oferecem espaços seguros e higiênicos para o uso de droga, permitindo mais conversas abertas e redução de danos.

2

Quando integradas em uma rede de saúde e de serviços sociais, as SCDs oferecem não somente um espaço seguro, mas funcionam também como um ponto inicial para a recuperação (social). O equilíbrio entre a aceitação e a motivação para mudar é importante, mas pode ser desafiador.

3

Se a política nacional permitir SCD dentro dos abrigos, será possível oferecer um bom serviço de acompanhamento para as PQUD vulneráveis, que se encontravam em situação de rua.

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6 Conclusão

Nos últimos anos, várias regiões do mundo testemunharam um aumento no uso de estimulantes. Esses desenvolvimentos ressaltam a necessidade de estratégias efetivas para lidar com os danos relacionados ao uso de estimulantes. Boa parte da evidência e dos serviços de redução de danos disponíveis focam predominantemente nas pessoas que injetam (opioides). Em geral, as pessoas que usam estimulantes (PQUE), e especialmente aquelas que não injetam, têm acesso mais limitado a serviços disponíveis especificamente para elas, e frequentemente acessam os serviços de redução de danos em geral. Muitas PQUE experimentam diferentes danos e problemas relacionados à saúde, e não se identificam com o uso (problemático) de opiáceos e frequentemente pertencem a diferentes redes (sociais) de PQUD. Assim, elas podem perceber os serviços de redução de danos como irrelevantes ou inacessíveis a elas. Isso acontece apesar do fato de que as PQUE, e especialmente aquelas que vêm de condições socioeconômicas difíceis, são frequentemente marginalizadas e enfrentam uma gama diversificada de problemas sociais e de saúde. Da mesma forma que o conjunto recomendado de intervenções para prevenir, tratar e cuidar do HIV entre as PUDI, nenhuma intervenção exclusiva abordará as muitas questões vivenciadas pelas PQUE em todo o mundo. Qualquer pacote abrangente de intervenções para pessoas que usam estimulantes precisará considerar os efeitos de substâncias específicas, diferentes rotas de administração, grupos de usuários, tipos de intervenções e variações contextuais, tais como

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aspectos sociais, culturais, políticos, legislativos e religiosos. Este relatório apresenta o primeiro mapeamento abrangente de evidências e práticas para redução de danos para pessoas que usam estimulantes. O estudo oferece uma revisão da literatura sobre diferentes estimulantes e pessoas que os utilizam, com uma descrição detalhada de boas práticas de redução de danos para pessoas que usam estimulantes em diferentes partes do mundo. Nele, nós focamos predominantemente nas intervenções para pessoas que fumam metanfetamina e cocaína (crack, pasta base ou freebase). Embora inicialmente tivéssemos procurado abordar outras substâncias do tipo anfetaminas, as catinonas e o pó de cocaína, bem como outras vias de administração não relacionadas à injeção, a maioria das publicações e intervenções de redução de danos disponíveis tratava do uso fumado de metanfetamina e crack. As principais contribuições do presente estudo são duas. Primeiro, fornece uma revisão de literatura sobre as evidências de quais intervenções de redução de danos são eficazes para as PQUE. A literatura selecionada foi agrupada em 12 intervenções de redução de danos para as quais encontramos evidências de eficácia na redução dos danos do uso de drogas estimulantes. Essas estratégias são: kits para fumar com maior segurança, prevenção de riscos sexuais, intervenções focadas no gênero feminino, salas de consumo de drogas, estratégias de autorregulação, moradia em primeiro


lugar, substituição, intervenções de busca ativa e baseadas em pares, centros de convivência, kits de testes de drogas, intervenções online e intervenções terapêuticas. Em segundo lugar, este relatório documenta sete estudos de caso de boas práticas de redução de danos para as PQUE em diferentes contextos culturais. Estes sete casos refletem uma seleção de uma gama diversificada de: tipos de estratégias de redução de danos, tipos de estimulantes, contextos sociais e culturais, aspectos de gênero, tipos de políticas de drogas implementadas, nível de integração no sistema da saúde, ligações com outros serviços (de redução de danos), recursos disponíveis e regiões geográficas. Descrevemos uma abordagem de moradia primeiro para as pessoas que usam crack no Brasil, uma intervenção online para pessoas que praticam chemsex na Espanha, grupos de contemplação para pessoas que usam metanfetaminas na África do Sul, distribuição de kits de fumo mais seguro para pessoas que usam crack e/ou metanfetamina no Canadá, um centro de convívio para pessoas que usam crack (pasta base) no Uruguai, salas de consumo de drogas para pessoas que fumam crack na Holanda e trabalho de busca ativa para pessoas que usam metanfetamina na Indonésia.

6.1 Lições da literatura e dos casos de boas práticas

Muitos estudos oferecem provas da eficácia das estratégias de redução de danos para estimulantes. As 12 estratégias descritas neste relatório são as que descobrimos ter mais evidências disponíveis. Algumas estratégias têm uma sólida base de evidências. Este é o caso de kits para fumar com maior segurança, salas de consumo de drogas, moradia primeiro, intervenções de busca ativa e por pares, e intervenções terapêuticas. Para outras estratégias, evidências da eficácia estão disponíveis para pessoas que usam outras substâncias, mas não há evidências suficientes para PQUE. Esse é o caso de centros de convivência, intervenções focadas na mulher e prevenção de riscos sexuais. Outros ainda, como para substituição baseada em plantas, kits de testes de drogas, autorregulação e intervenções online, podem mostrar evidências iniciais positivas, mas precisam de avaliação adequada por meio de pesquisas adicionais. Finalmente, a substituição farmacológica tem ampla literatura disponível, mas

seus efeitos permanecem inconclusivos, embora haja alguns resultados promissores. Algumas dessas intervenções, incluindo a substituição a base de plantas, salas de consumo de drogas e análise de drogas, estão expostas a desafios legais e debates políticos críticos, o que dificulta sua formalização como soluções de redução de danos. Os sete casos de boas práticas descritos neste relatório trouxeram muitas lições e, para todos os casos, apresentamos as principais no final de cada capítulo. Aqui resumimos algumas delas. Em muitos contextos, embora um estimulante possa ser a principal droga de escolha das pessoas, é comum o uso de diversas drogas. As PQUE tentam otimizar sua “viagem”, ou gerenciar efeitos adversos de seu uso de estimulantes, usando álcool, GHB, opioides, maconha ou depressivos prescritos. É importante reconhecer os riscos do uso de substâncias combinadas e, sempre que possível, promover alternativas mais saudáveis. Na maioria, se não todas as intervenções que estudamos, tanto PQUE quanto os profissionais que trabalham com elas enfatizaram a importância dos serviços de baixa exigência. Os principais elementos são proporcionar um ambiente acolhedor, seguro, amistoso e simpático para alcançar pessoas que muitas vezes sofreram exclusão social, violência, vulnerabilidade econômica e situações familiares instáveis. Isso não é só importante para atrair PQUE para os serviços, mas também cria espaço para as pessoas refletirem sobre suas vidas, antes de poderem trabalhar em estratégias de autocuidado, como reduzir os danos causados pelo uso de estimulantes ou controle no uso de substâncias. A solidão e a falta de estrutura social também podem ser abordadas, proporcionando um ambiente acolhedor que transmita uma sensação de família e pertencimento, algo que muitos usuários do serviço carecem, por terem um estilo de vida caótico e baseado nas vivências de rua. Isso não significa que os usuários do serviço devam ser mimados ou tutelados: o empoderamento dos usuários do serviço também é um tema recorrente, e promover a autonomia, estimular a autoestima e incentivar os usuários do serviço a empregar estratégias de autorregulação é algo que muitos participantes acharam útil. Isso inclui definir regras e limites nos serviços. O fornecimento de estrutura

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e a opção de participar de atividades significativas combate sentimentos de inutilidade que as pessoas podem experimentar e podem dar-lhes um sentido de propósito. Isso, no entanto, deve ser complementado por estratégias mais estruturais de redução de danos para ajudar PQUE a integrar-se ainda mais à sociedade. Tais estratégias podem proporcionar às pessoas habitação estável e ajudálas a conquistar fontes de renda, embora isso possa ser difícil em contextos onde a economia é vulnerável e o desemprego é alto. O uso de substâncias pode ser sintomático de questões psicossociais, econômicas ou culturais mais profundas, incluindo marginalização, falta de moradia, isolamento, desemprego, pobreza e violência. Nesse sentido, as intervenções de redução de danos que se concentram em melhorar o ambiente de PQUD também podem influenciar o uso de substâncias. Independentemente do contexto que estudamos, criar uma atmosfera familiar e um sentimento de pertencimento foram muito importantes para as PQUE. O sentimento de ser aceito e de pertencimento, ajudou as pessoas a aprender que elas podem responsabilizar umas às outras e criou solidariedade com os outros, aumentando os sentimentos de autoestima e estimulando o autocuidado. Embora nem todas as intervenções envolvessem significativamente as PQUE em todos os níveis de prestação de serviços e gerenciamento, ninguém questionou a importância de envolver os pares. Especialmente no trabalho de busca ativa (abordagem social), o envolvimento de pares é indispensável. Isso também se relaciona com a compreensão da população, sua linguagem e modos de usar as substâncias, assim como o contexto em que o uso ocorre. Isto é particularmente importante quando se tenta alcançar novas populações. Estabelecer um relacionamento bom e confiável com as PQUE é fundamental e requer uma atitude receptiva e sem julgamento (empáticas). Trabalhar com pares que vêm do mesmo grupo social também é fundamental para se conectar com (novos) grupos de PQUE, independentemente do contexto social ou cultural, ou das substâncias específicas que elas usam. Uma abordagem que não seja julgadora também deve estar presente em qualquer informação apresentada às PQUE. O fornecimento de informações factuais e não sensacionalistas

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sobre o uso de substâncias e os riscos associados, em uma linguagem que seja familiar ao grupo-alvo, é fundamental para uma abordagem eficaz de redução de danos. Outra lição aprendida com este estudo foi que, ao chegar às PQUE, pode ser muito útil ter um benefício concreto para oferecer, além da informação. Isso pode ser tão básico quanto água, uma bebida quente ou uma refeição, ou materiais para redução de danos, como kits para fumar com maior segurança. O fornecimento de materiais foi percebido pelos participantes como um facilitador à iniciação, assim como a manutenção do contato com as PQUE. A integração e/ou ligação dos serviços (de saúde e sociais) também provaram ser importantes. Enquanto inicialmente nos propusemos a descrever um (tipo de) intervenção principal em cada estudo, na prática nenhum caso descrito fornece qualquer serviço isoladamente. Quando solicitados a sugerir quais elementos poderiam ajudar a melhorar seu serviço, muitos participantes pensaram que uma melhor integração dos serviços (um serviço único, onde todas intervenções são oferecidas sendo o modelo ideal) ou melhores redes entre serviços complementares (que são acolhedores às necessidades do grupo-alvo) melhoraria as intervenções oferecidas. Serviços integrados podem acomodar melhor as diferentes necessidades de PQUE Ao selecionar os serviços com os quais se associar, os programas precisam primeiro avaliar as necessidades das PQUD para depois combiná-las com os recursos públicos disponíveis localmente. Finalmente, a integração de serviços sociais e de saúde pode ser mais eficiente e econômica, mas também pode ser mais desafiadora em áreas com poucos recursos ou em casos em que projetos de redução de danos são pioneiros. Estabelecer uma nova intervenção de redução de danos para uma população que não recebeu serviços antes é um desafio. Exige esforço adicional no estabelecimento de conexões com outras organizações, mas também com o grupo-alvo, especialmente quando se trabalha em contextos repressivos. Intervenções pioneiras também podem significar ter que se comprometer entre expandir o alcance de um programa e assegurar a


qualidade da assistência necessária para construir um relacionamento confiável com as PQUE. A assistência à saúde mental é uma preocupação especial para as pessoas que usam estimulantes. Pode ser particularmente desafiador para a equipe de redução de danos lidar com problemas de saúde mental, como psicose, depressão ou comportamento imprevisível e agressivo. Especialmente em locais onde o cuidado com a saúde mental é subdesenvolvido, construir sistemas de referência para atendimento especializado pode ser difícil. Em qualquer caso, o treinamento básico em aspectos da saúde mental pode ajudar a equipe da linha de frente a responder adequadamente aos sintomas básicos. Algumas substâncias substitutas podem ser úteis na mitigação do desejo e outros efeitos adversos do uso de estimulantes. Evidências de estudos de pequena escala, bem como descobertas empíricas no Uruguai, sugerem que a maconha pode ser eficaz em alguns casos, mas outras pesquisas são necessárias nessa área, já que o uso de maconha pode ter efeitos adversos. Por fim, a evidência para a eficácia e/ou custobenefício dos serviços de redução de danos para as PQUE ainda é escassa. Mesmo as intervenções de longa duração mais bem sucedidas têm apenas evidências anedóticas ou de pequena escala. A introdução de ferramentas básicas de monitoramento e avaliação pode ajudar a medir o impacto de maneira mais eficaz. Os indicadores podem enfocar uma série de aspectos: desde o impacto no aumento do autocontrole, da frequência e quantidade de uso de substâncias, até o impacto na qualidade de vida, nas circunstâncias da vida e nas relações familiares. Mais pesquisas sobre a eficácia das intervenções são necessárias, incluindo pesquisas que analisem a viabilidade econômica dos programas.

6.2 Precisamos de uma redução de danos específica para estimulantes?

Em grande medida, a redução de danos aos estimulantes segue os mesmos princípios fundamentais que a redução de danos para outras drogas. Os bons serviços de redução de danos começam fornecendo serviços de baixa exigência, atendendo as pessoas onde elas estão, fornecendo

informações e materiais com base nas necessidades das pessoas, oferecendo serviços móveis e de proximidade àquelas que não querem ou não podem visitar locais fixos, envolvendo pares como funcionários e garantindo que as pessoas tenham acesso a outros serviços relevantes. Também é importante reconhecer que o uso de qualquer substância não ocorre no vácuo, mas sim em um ambiente social, cultural, econômico, legal e político específico. Manter o controle sobre o próprio uso e, dessa forma, administrar danos individuais e sociais, depende em grande parte de mecanismos sociais, incluindo rituais, controles sociais e outras regras sociais. Os riscos ambientais afetam negativamente a vida das pessoas que usam drogas. Pode-se pensar em desemprego, pobreza, falta de moradia, violência, moradia instável, encarceramento, substâncias adulterantes, (falta de) disponibilidade de serviços de redução de danos de alta qualidade, legislação sobre drogas, práticas policiais e políticas públicas. Isso não é diferente para pessoas que usam estimulantes. As PQUE podem desenvolver problemas e danos relacionados ao uso de substâncias como resposta a ambientes psicológicos, sociais, econômicos e culturais desafiadores. O uso problemático de estimulantes é, em muitos casos, um problema social que necessita de soluções estruturais. Isso requer uma mudança de foco nas intervenções, para que não estejam centradas na substância propriamente dita. Mesmo as intervenções que não se concentram na substância, como moradia primeiro e os centros de convivência, por exemplo, são capazes de diminuir o uso de estimulantes e promover um consumo mais controlado. Além dos serviços de tratamento de drogas e redução de danos, as pessoas precisam de programas que promovam segurança, conforto e estabilidade. Dito isto, existem vários elementos que são específicos do uso de estimulantes – e da privação de sono resultante do uso prolongado de estimulantes – particularmente problemas de saúde mental (aguda), como paranoia, alucinações e ansiedade. Enfrentar estes problemas pode ser um desafio, particularmente em áreas com poucos recursos, em locais onde as questões de saúde mental ainda são fortemente estigmatizadas e onde os cuidados de saúde mental adequados não estão disponíveis. Algumas estratégias específicas para reduzir os riscos físicos do uso de estimulantes

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estão relacionadas ao estímulo do sexo seguro, um padrão de sono saudável e dietas saudáveis, incluindo a prevenção da desidratação, bem como a higiene geral e dental.

6.3 Recomendações para a continuidade das pesquisas e intervenções

A abrangência deste estudo teve um escopo limitado, em termos de prazo e número de casos de boas práticas que poderia incluir. Aqui, recomendamos futuros acompanhamentos para aumentar a disponibilidade de informações baseadas em evidências e práticas sobre redução de danos para as PQUE. Uma revisão mais aprofundada da literatura poderia incluir evidências adicionais sobre a atenção plena e como ela poderia ser usada para melhorar a saúde mental e a qualidade de vida das PQUE. A atenção plena parece ser eficaz na promoção do autocontrole, e mais pesquisas sobre esse tópico podem fornecer informações sobre um método de baixo custo para apoiar PQUE. Outra importante área de investigação refere-se à inclusão de questões relacionadas à paternidade com os homens que participam dos programas de redução de danos, bem como outras questões de gênero. A pesquisa e as atividades baseadas em gênero voltadas para a parentalidade de PQUD tendem a se concentrar exclusivamente nas mulheres, excluindo os homens da reflexão sobre seu papel e responsabilidades. Pesquisas adicionais também poderiam levar a recomendações concretas para melhores maneiras de incluir reflexões sobre masculinidade, relações de gênero e paternidade em programas de redução de danos, auxiliando homens e mulheres que usam estimulantes ou outras drogas. Finalmente, há uma compreensão limitada de como a saúde mental pode ser melhorada entre pessoas que usam estimulantes em ambientes pobres de recursos. Pesquisas adicionais podem ajudar a reunir quais serviços de saúde mental são eficazes e estão disponíveis para as PQUE e a fornecer um conjunto de recomendações para organizações que trabalham em ambientes com serviços de saúde mental menos desenvolvidas. Novos estudos de casos de boas práticas também devem considerar a documentação de intervenções que não foram incluídas neste relatório. O kit de

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testes de drogas é um exemplo disso. Outro tema que vale a pena investigar são maneiras de abordar os efeitos adversos da privação do sono, após o uso de estimulantes durante múltiplos dias, incluindo o uso de zonas de descontração (chill-out zones) em áreas urbanas ou em festivais de música. Muito pouco se sabe sobre intervenções efetivas de redução de danos para pessoas que usam catinonas, e uma descrição de boas práticas de tais programas poderia incluir outros estimulantes novos também. Também recomendamos documentar evidências de estimulantes farmacêuticos ou à base de plantas suaves como substitutos de estimulantes ilícitos. Também recomendamos o desenvolvimento de diretrizes práticas, baseadas nas evidências disponíveis, para facilitar a criação de serviços de redução de danos de alta qualidade para PQUE. Tais diretrizes devem fornecer orientação sobre como treinar a equipe de redução de danos e profissionais de saúde no reconhecimento e resposta adequada aos problemas de saúde mental das PQUE. Finalmente, dada a baixa disponibilidade de recursos para redução de danos no uso de estimulantes (não injetáveis), pode valer a pena criar um fundo específico para redução de danos para PQUE. Esse fundo poderia estimular a redução de danos, passando de um enfoque restrito ao HIV a outro que aborde os direitos mais amplos de saúde e qualidade de vida para PQUE. Em longo prazo, é claro, os governos desempenham um papel fundamental na implementação de serviços de redução de danos para todas as pessoas que usam drogas – independentemente de sua substância de escolha. Alguns governos já deram o exemplo, através de iniciativas para fomentar a base de evidências ou através do apoio aos serviços de redução de danos para PQUE.


Epílogo

Criamos pontes e abrimos caminhos de diálogo pelo mundo, trouxemos toda nossa potência pro nosso território e dele falamos e nos apresentamos, seguimos bem as palavras de Bell Hooks, quando nos amamos e experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes, referindo-nos às mulheres negras, mas também a toda comunidade, que diante da mazela genocida do racismo e da lógica higienista, tentam impor e apagar nossa etnia e história. Somos redução de danos e o amor também é um forte aliado nessa construção social e coletiva. O relatório “Limites da Correria: redução de danos para pessoas que usam estimulantes”, nasce movimentando a rede comunitária em toda sua forma, através das vivências de redução de danos no mundo, e daí podemos perceber e sentir, somos um movimento, uma força em organização, atuando em todos os campos, quer seja na rua, na academia, nas estruturas governamental e não-governamental, somos sociedade civil, somos povo, somos a potência que guiará a construção de uma nova era da nossa civilização. Em alguns pontos do mundo acontecem neste momento guerras de formatos variados e ampliados absurdamente a cada segundo, limitam formas e expressões de vida, onde os caminhos de vida e subjetividade estão sendo julgados e criminalizados quer seja por raça, gênero, credo ou etnia. Em meio a uma crise planetária de valores, são iniciativas e provocações coletivas que darão a rachadura para o novo tempo que está por vir. A redução de danos vive e sobrevive pela presença contínua e da organização de trabalhadoras e

trabalhadores, usuárias e usuários de drogas, da rede de atenção psicossocial, do SUS e do SUAS, de toda rede visível e invisível. Insistimos e continuaremos a criar, porque o público não é do Estado, é do POVO, e a nós cabe a retomada e a direção deste país, enquanto gente que insiste em acreditar em gente. Esta iniciativa provoca em nós o desejo de interligar, integrar e inovar. Esta foi nossa proposta desde o início, como tornar real nossos sonhos de vida e toda essa energia de trabalho, tão potente aos nossos olhos, mais ainda distante de tantas pessoas? Trazer à tona as práticas de redução de danos no mundo, acontecendo em diversos países ao mesmo tempo, com troca e respeito, com autonomia e liberdade, junto a encontros, desencontros e reencontros, potencializando o que há de melhor em nós, nossa regulação comunitária e social, sim, este é o nosso fazer e comprovamos isto em cada uma das experiências. Neste ano, na Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, Sônia Guajajara ecoou no eixo monumental e nós reafirmamos novamente: “Nós somos a Força Nacional!”, sim, nós somos, enquanto povo organizado e que luta por uma sociedade onde as mazelas do genocídio indígena e do racismo sejam erradicadas, pois só diante de um pacto civilizatório poderemos contrapor este modelo que tenta se impor a nós, povo brasileiro, e a toda América Latina. Não iremos aceitar este modelo bélico e proibicionista por lógica de controle de territórios e de formas de vida, na tentativa contínua de eliminar populações, na manutenção de lucro e poder.

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Quando Marielle Franco se posiciona e pergunta “Quantos mais têm que morrer pra esta guerra acabar?”, essa questão precisa permanecer em nós, todos os dias, questionando em como quebrar esse padrão de guerra cotidiana que o sistema atual nos impõe, com barreiras capitalistas e centradas no lucro econômico, que se estrutura com a manutenção ininterrupta do machismo e do racismo. Acontecendo no Brasil do século XXI onde tentam impor lógicas medievais de vida, propomo-nos a apresentar as ferramentas que construímos em meio ao cenário de guerra, a exemplo das salas de uso seguro como realidade a quem deseja e sabe que pode promover qualidade de vida e garantia de direitos, a liberdade religiosa como prática e acesso a bem-estar, sem imposição de lógicas únicas e centradas num único olhar. A necessidade de espaços integrados de convivência que possam servir de moradia passageira já nos são realidades, entretanto, não podemos deixar de falar do déficit habitacional e da desigualdade social alarmante no país, o que impedem qualquer desenvolvimento em médio e longo prazo. Moradia é cidadania e direito básico de toda pessoa. As desigualdades e vulnerabilidades provocadas pela falta de espaços de moradia dificultam processos de cuidado que necessitam de suporte adequado e preservado. Diante da falta de ética, do centralismo branco e masculino posto na política, unidos à força de falsos religiosos, travestidos de moralidade, com referenciais racistas e escravocratas, temos que assistir, cotidianamente, rios de sangue provocados por um genocídio estatal deliberado contra jovens e mulheres cis e trans, tratados com seres sem valor e que diante das escalas brasileiras se tornam cada vez menores, de acordo com a região, religião e função social. A imposição de formatos autoritários e contrários à liberdade não permitem discussões necessárias e relevantes a esta nossa construção, e por isso precisamos criar e construir, trazer à tona as experiências e vivências dos diversos campos de guerra pelo mundo, que de algum modo tentam preservar formas de subjetividade julgadas e criminalizadas apenas por existirem.

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Interligar práticas, vivências, saberes e continuidades são estratégias de sobrevivência desde sempre, e é neste lugar que nos encontramos, em todos os espaços onde a conexão com as experiências com substâncias psicotrópicas nos provocam necessidades, precisamos ter a certeza que poderemos ter alguém junto, se necessário, e em cada etapa deste processo, quer seja para o uso seguro, para proteção social, para avaliar e repensar este uso, todas as práticas terão nossa formatação e cuidado necessários. Como aponta nosso companheiro Dênis Petuco, no Pomo da Discórdia, um fato é de que as práticas de redução de danos nos permitiram uma ampliação na atuação de trabalhadoras e trabalhadores, onde a dedicação ao trabalho junto às pessoas nos territórios nos permitiu conceber dentro da política pública atendimento e acolhimento em situações de risco ou vulnerabilidade no acompanhamento a pessoas com uso ou abuso de substâncias, inclusive em casos onde as pessoas não queriam parar o consumo e ainda assim conseguiram se cuidar e ficar vivas com qualidade. Sem desconsiderar nenhuma outra iniciativa, esta afirmativa nos mostra que conseguimos e entramos na construção do mundo que acreditamos e sabemos que podemos, no cuidado ao nosso povo e a nossa realidade biopsicossocial. Neste lugar, afirmamos e posicionamo-nos, criando formas de continuidade da educação para autonomia e para liberdade, assim como nos ensinou Paulo Freire, nosso patrono e mestre da educação brasileira. Na perspectiva de uma sociedade decolonizada em sua forma de ser, feminista por vida e fato, antirracista por ação e saída, que possibilite vivência em comunidade, com potencialização do território e de suas práticas de cuidado, acolhimento e proteção, lançamos e chamamos pra caminhada, o povo que quer bem viver. Seguindo Chicão, nosso ancestral e cacique Xukuru – “Diga ao Povo! Avançaremos”. Priscilla Gadelha Moreira Psicóloga Clínica, CBT em Análise Bioenergética Cofundadora da Escola Livre de Redução de Danos Ex-trabalhadora do Programa Atitude (2011-2016) Integrante do Movimento Brasileiro de Redução de Danos (MBRD) Integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionista


Redução de Danos e Raça — descolonizando autonomias A Redução de Danos completa 30 anos no Brasil, e essa estratégia de cuidado que surge no contexto da disseminação do vírus da aids no país, diretamente ligado ao consumo de drogas injetáveis especialmente no sudeste brasileiro. Sendo assim, é fundamental refletir em que contextos sociais e políticos a redução de danos precisou ser difundida como uma estratégia não apenas de cuidado, mas de sobrevivência diante das invisibilidades das questões de raça e gênero nessa discussão. A disseminação da aids no Brasil se conecta com um contexto global de ampliação de sistemas neoliberais, especialmente nos continentes empobrecidos com as guerras e processos escravizadores; 95% das novas infecções por HIV estão localizadas no Oriente Médio e Norte da África. A realidade de nossa região também assusta, a América Latina representa 65% das novas infecções por HIV, de acordo com dados da UNAIDS. Essa realidade denuncia a criação de uma epidemia globalizada organizada pelo sistema neoliberal e racista, concentrando a contaminação entre os grupos tornados vulneráveis pela opressões estruturantes de raça, gênero e classe. Essa realidade é fruto da globalização do HIV e dos sistemas de opressão. Apesar da Redução de Danos enquanto estratégia de cuidado ter registros de nascimento na europa na década de 80, o fato é que os fundamentos dessa estratégia são registrados antes disso, com o processo de colonização da região de África e disseminação de doenças que são fruto da

exploração capitalista. A redução de danos se conceitua do encontro de pares, quando usuários de drogas na década de 80 em Amsterdã começaram a morrer pela contaminação do compartilhamento de seringas no uso de substâncias injetáveis. O uso dessas drogas chega ao Brasil ainda na década de 80, na mesma época são as populações LGBTs, profissionais do sexo, moradores de rua, que são alvo da contaminação, grupos sociais com trajetórias de negação de direitos e cidadania. Dentre os grupos citados, as mulheres negras estão no topo da mortalidade por HIV, representando três vezes mais mortes que as mulheres brancas. O risco de uma pessoa negra contaminada pelo HIV morrer é 2,4 vezes maior do que o de uma pessoa branca. Além das estatística de que mulheres brancas têm mais acesso e adesão ao tratamento do que as mulheres negras. Essa realidade é velada pelo racismo institucional, que dificulta o acesso ao tratamento do HIV e às políticas de prevenção e cuidado promovidas pelos serviços de saúde a esses grupos. O fato é que começar a se cuidar e reduzir os danos das exposições sociais causadas pela falta de prevenção com os grupos vulnerabilizadas não era uma opção, mas uma estratégia para sobreviver aos apagamentos físicos e sociais vivenciados diariamente por esses grupos. Os atuais modelos de políticas institucionais de controle, proibição e punição reproduzem uma lógica que se retroalimenta por macro e microfascismos, e pela necropolítica.

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Proibicionismo e criminalização das culturas negras

O registro da primeira legislação proibicionista é de 1830, na cidade do Rio de Janeiro, à época uma cidade com uma das maiores concentrações da chegada de pessoas escravizadas de África, para serem vendidas para outras regiões do país. A lei batizada como “Pito do Pango” é a primeira no Brasil que criminaliza a maconha e seus usuários. É importante ressaltar que, de acordo com os registros históricos, a maconha é uma planta originária do continente Africano, sendo trazida ao Brasil pelas pessoas escravizadas nos navios, e plantada entre as plantações de café e açúcar, pois era usada como erva medicinal e também como fundamento de rituais religiosos dos escravizados. A leis proibicionistas seguem criminalizando as práticas da cultura negra, em 1890 a Capoeira foi “proibida” por lei. Era considerado crime pertencer a grupos e gingar em roda. Essas leis proibicionistas baseavam-se em teorias racistas eugenistas que, ainda na década de 1830, considerou que o uso da maconha pelas pessoas pobres e negras incitava a “bandidagem”. E até hoje vivenciamos os ataques às práticas religiosas de matriz africana e afro-indígena, e toda expressão da cultura negra como o samba.

A criação de um inimigo público

Fanon, em seu livro “Pele negra, máscaras brancas”, aponta que o complexo de inferioridade passa por dois fatores. O primeiro é o econômico; o segundo, a interiorização. Ou melhor, pela epidermidização dessa inferioridade (FANON, 1962). As teorias eugenistas da década de 80 incitavam a patologização das pessoas negras, disseminada por um grupo que acreditava que melhoria racial só seria possível com um amplo projeto que fosse favorável ao predomínio da raça branca no país. Com um projeto que pretendia comprovar cientificamente que a capacidade intelectual era hereditária, e passava de membro para membro da família, para justificar a exclusão dos negros e todos os diferentes da raça branca. Essa mesma teoria defendia a esterilização dos ‘anormais e criminosos’. As pessoas que usavam drogas eram esses anormais e criminosos. Em nossa realidade as pessoas negras e pobres são transformadas em inimigos públicos, que causam medo ao serem encontradas nas ruas. A mídia referenda que pessoas usuárias de drogas que são

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brancas são passíveis de cuidado e acolhimento. No caso de pessoas negras, usuárias de drogas essas devem ser higienizadas, retirada da vista e da imagem de uma cidade “limpa”. O olhar sobre as mulheres também revela o racismo. Uma mulher branca pode sofrer por ser usuária de droga, acusada pelo juízo moral e pela patologização. Para as mulheres negras, além do enquadramento moral, a patologização exige a objetificação do seu corpo e as consequências jurídicas, criminalizantes.

Descolonizando as autonomias

A redução de danos oferece às pessoas que usam drogas e outros grupos um conjunto de estratégias de organização e resistência, principalmente na cultura de ocupação das ruas, de ações direta e de luta contra a repressão proibicionista. A Marcha da Maconha, movimento de usuários de drogas pioneiro na formação política do antiproibicionismo, alinhada a uma ética da Redução de Danos que afirma que é das ruas que contribuímos para as formulações teóricas, e denunciando o caráter racista e machista desse modelo de política de drogas no Brasil. É necessária a criação de outras referências para alteração de culturas proibicionistas perpetuadas ao longo da história. A redução de danos é uma das estratégias para descolonizar. Descolonizar a forma de se relacionar com as drogas, a forma de reconhecer as pessoas que usam drogas suas cidadanias, direitos e autonomias garantidas constitucionalmente. É necessário e urgente criar novos marcos que aprofundem discussões sobre os impactos das políticas e culturas proibicionistas na vida das pessoas, as questões de raça são fundantes a esse debate, que esse seja mais uma das reflexões que incitem tantas outras a se debruçar sobre essa interseção entre raça e redução de danos.

Ingrid Assunção Farias Feminista negra periférica, nordestina, abolicionista e antiproibicionista Escritora, Aceleradora Social e redutora de danos Cofundadora da Escola Livre de Redução de Danos Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, Rede Latino Americana de Pessoas que Usam Drogas Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.


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