Revista Dasartes 133

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Capa: , The Artist 2, 1999 (Detalhe). Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.


ANTONIO 12 OBÁ

CYBÈLE VARELA 32

6 Agenda 8 De Arte a Z

MARIA LEONTINA 52

10 Livros

GEGO 66

REGINA PARRA 84


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AGENDA

Ivald Granato, que morreu precocemente há sete anos, em julho de 2016, foi um artista plural. Pintor e um dos pioneiros na arte performance no Brasil, transitou entre desenho, pintura, escultura, performance, vídeo e múltiplos suportes, linguagens, estilos, lugares e pessoas. Conectado a todos os movimentos de vanguarda, ele foi um pop-surrealista na década de 1960, um performático-tropicalista na década de 1970, e um roqueiroexpressionista na década de 1980. Segundo Jacob Klintowitz, crítico de arte brasileiro, o artista tinha sua própria linguagem, intitulada por ele de “Granatês”. 6

Para a mostra, a curadoria explora esse universo inventado por Granato, marcado por sua força colorista, traços expressivos e uma constante pulsação rock and roll, que destaca os vários seres criados pelo artista. No recorte escolhido pelo curador, o figurativo, abrange meados dos anos 1980 até o ano 2000.

IVALD GRANATO • DAN GALERIA • RIO DE JANEIRO • 19/8 A 21/10/2023



de arte

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AZ

ARTE URBANA • O CURA (Circuito Urbano de Arte) acontecerá pela primeira vez fora de Belo Horizonte e desembarcará no território da maior floresta tropical do mundo. A edição CURA AMAZÔNIA promoverá uma imersão em arte pública na capital do Amazonas dos dias 2 a 12 de agosto no histórico Largo São Sebastião e contará com com os artistas Denilson Baniwa (AM) e Olinda Silvano (Peru).

CURIOSIDADES • Dois ativistas climáticos do grupo Última Geração, que se colaram a uma pintura de Rafael, na Alemanha, foram multados em € 1.500 cada um. Embora a pintura tenha saído ilesa, em sua moldura ficaram vestígios de cola. A galeria estimou os danos materiais em cerca de € 2.300 e relatou um adicional de € 7.000 em perda de receita pelo fechamento da instalação após o incidente.

GIRO NA CENA I • Rodrigo de Castro se permitiu transitar, pela primeira vez em sua carreira, entre o plano e a tridimensionalidade. Como ele mesmo definiu, estará revelando sua faceta de "pintor fazendo esculturas". O artista mostrará, em caráter inédito, na Galeria Patrícia Costa, no Rio de Janeiro, esculturas de aço com pintura automotiva – além de pinturas de grandes e médios formatos. Até 9/9/2023. 8


GIRO NA CENA II • A 17ª edição da VERBO, mostra anual de performance organizada pela Galeria Vermelho, abre em São Luís (MA), Fortaleza (CE) e São Paulo (SP). Serão mais de 30 ações com a presença de artistas de cinco países, totalmente gratuito e com apresentações ao vivo e por vídeo. Realizado anualmente desde 2005, este é o primeiro evento dedicado totalmente à performance na América Latina. Até 11/8/2023.

EDITAIS • Oi Futuro e Instituto Ekloos de abrem vagas para aceleração para empreendedores culturais. O edital é indicado para empreendedores ou coletivos com projetos culturais interessados em ampliar seu conhecimento, profissionalizar sua gestão e ampliar o impacto de suas iniciativas. Os Interessados têm até o dia 28 de julho para se inscrever e participar da seleção, totalmente gratuita. Inscrições em

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• DISSE A PRESIDENTE DO MAM Elizabeth Machado, ao anunciar a exposição inédita em realidade aumentada ( que explora o diálogo entre elementos virtuais e físicos no Parque Ibirapuera. 9


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LIVros

Para a artista e ilustradora Sylvia Carolinne, o processo do luto pode acontecer de várias formas, mas em todos os casos a aceitação é um dos passos mais importantes para permitir que a vida continue seu rumo. O título veio por conta da luz no fim do túnel. Tanto para quem fica, quando a escuridão se instala na mente, como para quem vai, que precisa fazer a passagem. Em certas religiões e crenças, só o corpo morre. Na hora da morte se inicia o momento da passagem, a transição da vida corporal para um mundo espiritual. SYLVIA CAROLINNE: PASSAGEM • R$ 150 • Venda pelo e-mail sylviacarolinne@gmail.com

O artista Susano Correa resgata de maneira contemplativa a última década da carreira, em um livro 100% dedicado à pintura, reunindo os principais trabalhos desse período. Suas obras vão muito além da percepção individual das pessoas e passam a ser, também, um movimento que democratiza o acesso à arte. Mais do que simples expressão, a arte para Susano Correia é um delicado canal de interação e um elemento vital para o desenvolvimento humano. SUSANO CORREA: ENQUANTO A LUZ DURAR • 260

páginas • R$ 220,00 • www.susanocorreia.com.br

Na obra, a autora evoca o passado, ao registrar imagens do chão de um campo de concentração na Polônia. Helena Lopes conta que viajou para conhecer Budzyn, terra natal de sua mãe. Depois, viajando por outras partes do país, chamou a sua atenção as propriedades do chão do antigo campo de concentração, hoje transformado em museu, que, diferentemente do restante do lugar, não havia sido reparado. HELENA LOPES: DO CHÃO PARA O CHÃO • Giostri Editora • 176 páginas • R$ 192,00 10


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Fata Morgana nº1, 2022. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

ANTONIO O

DESTAQUE


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OBÁ


A OBRA DO ARTISTA BRASILIENSE ANTONIO OBÁ É CONSTITUÍDA POR TRÊS PILARES: A REMEMORAÇÃO DE ACONTECIMENTOS HISTÓRICOS – EM GERAL MARCOS DE VIOLÊNCIA E LUTA POR DIREITOS DE PESSOAS NEGRAS –, A ATRIBUIÇÃO DE NOVOS SIGNIFICADOS A ESSES EPISÓDIOS E O PROCESSO EDUCATIVO

O MENINO REI Há algum tempo, cresce a discussão que envolve autorias, temas e representações na cena artística contemporânea nacional e internacional. Artistas, pesquisadores e instituições repensam sobre sua existência, sobre a condição de seu grupo e seu público; eles reexaminam narrativas históricas, despertam ativismos e reafirmam experiências humanas. Alguns artistas mostram que a narrativa de mulheres e homens negros (não apenas como representados, mas como protagonistas) abrem perspectivas e contam novas histórias – esse é o caso de Antônio Obá (Ceilândia, 1983). Artista visual, arte-educador e professor, Obá tem apresentado proposições em meios e suportes diversos, tais como o desenho, a pintura, a fotografia, o objeto, a performance, o vídeo e a instalação. O nome escolhido, Obá, significa “rei” (chefe governante do povo edo Nigéria), mas também é o nome da que representa as águas revoltas – e, assim, sua produção artística tem sido pulsante. São memoráveis as primeiras performances que relacionam arte, corpo e religião, entre elas, as famosas: (2016), (2016) e (2017). De modo denso, Obá tem interesse em repensar a identidade dos corpos negros e/ou miscigenados e criar outras histórias. 14

Variação sobre Sankofa - Quem toma as rédeas abre caminhos, 2021. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA



Nos trabalhos de Obá, surgem a “escrita de si” e as “imagens ficcionais”. A raiz afro adentra, primeiro, por suas memórias e registros familiares e, depois, pelos ensinamentos vindos da capoeira de Angola. Suas reflexões se direcionam aos corpos históricos; às relações religiosas, em especial àquelas de caráter místico dentro da tradição católica, e ao questionamento daquelas circunstâncias que envolvem preconceito e resistência. Sua exposição individual , na Pina Contemporânea, a primeira mostra de um artista brasileiro na Galeria da Praça, recebe o legado da 16


Crianças suspensas, 2022. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

história das exposições de autoria negra. São referências: (2015), (2018) e, mais tarde, (2021), mostra coletiva na qual Antônio Obá apresenta o retrato de . Todas foram exposições que, sobretudo, legitimaram autorias negras no grande circuito das artes visuais – o negro deixou de ser objeto da arte para ser produtor dela. Ocupar as galerias da Pinacoteca com o corpo negro é conquista histórica. 17


Strange Fruit III, 2018. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

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Revoada, 2023. © Antonio Obá. Foto: Isabella Matheus.

A ousadia de Antônio Obá está um grau acima: ele colocou crianças negras naquele espaço. São cerca de 20 pinturas, datadas entre 2018 e 2022, e uma instalação inédita, chamada – e que dá nome à exposição, com curadoria de Yuri Quevedo e Ana Maria Maia. A instalação é formada por 200 pares de mãos de crianças moldadas em resina que sobrevoam a Galeria da Praça. Assim, as relações entre o espaço e a obra se entrelaçam: inicialmente, porque a Pina Contemporânea integra um complexo formado pelo edifício construído em 1900, no Jardim da Luz, projetado por Ramos de Azevedo e Domiziano Rossi para ser a sede do Liceu de Artes e Ofícios, e pela construção da antiga Escola Estadual Prudente de Morais. Depois, porque, nos últimos meses, Obá organizou oficinas sobre técnicas de fundição no museu, na Ocupação 9 de Julho (Movimento Sem Teto do Centro) e no Colégio Vera Cruz – assim, essas “mãozinhas” têm estrita relação com o lugar e, acima de tudo, com a função daquele espaço: acolher e educar. 21



Banhistas nº 3 - Espreita, 2020. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.


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Wade in the water (after Adriana Varejão), 2019. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

se liga à experiência de Obá como professor e também ao seu fascínio pelos ex-votos (o presente dado pelo fiel ao seu santo de devoção) – coisa que o intriga desde menino, quando das romarias do Divino Pai Eterno, em Trindade (interior de Goiás). Ele vê nos objetos depositados, pelo agradecimento ou por promessa, a fé que move homens e mulheres. Ele coloca esse seu encanto como um flerte à espiritualidade católica. Nesse código de fé, as “mãozinhas” estão voando como borboletas – símbolo do recomeço, da mudança, da beleza e das boas energias. Já nas pinturas, as crianças são negras e mestiças – corpos racializados mediados pelo sagrado, político e social. São personagens cheios de significados. E que diferença! Elas não são “exóticas”, “pitorescas”, “caricaturadas”; não são objetos representados (aqui se assemelham ao léxico de Kerry James Marshall e Lynette Yiadom-Boakye – pintores internacionais com personagens “inequivocamente negros”). Mas Obá se distingue: suas crianças negras estão imersas em um tempo mítico; o olhar de algumas delas é de verdade, de sagacidade, daquela “esperteza de quem está cansado de apanhar”; elas encaram o espectador; não baixam o olhar; outras estão de costas alheias ao nosso olhar; outras nem olhos têm; elas sempre são o pintor; às vezes, são personagens históricos, transformados em arquétipos, mas que têm suas trajetórias alteradas pela ficção e poesia do artista. 25


(2020) é um exemplo dessa subversão da narrativa: quando, em 1964, um grupo de manifestantes mergulhou na piscina do hotel Monson Motor Lodge, Saint Augustine, Flórida (EUA), em protesto porque, dias antes, Martin Luther King foi vítima de segregação, a reação do gerente do hotel foi jogar ácido muriático na água – a célebre fotografia de Horace Cort registrou a cena. Obá volta ao evento – e não há como não lembrar as piscinas de David Hockney e, ao mesmo tempo, a tradição dos banhistas na história da arte – porém, na imagem construída pelo pintor, o perigo que rodeia os banhistas é um crocodilo. À espreita estão todos: o crocodilo, os banhistas e o homem no canto, atrás do tronco da palmeira, que pisa na corrente rompida, dando acesso à piscina. Algumas imagens, presentes no repertório do pintor, repetem-se nas telas, selecionadas para a mostra. Além de , as piscinas surgem, (2019), (2022), como é instigante essa referência à água, seu espelhamento e o reflexo da luz sobre a superfície. As crianças também aparecem em meio à paisagem campestre (uma natureza mítica com cores de sonho). Nessa paisagem onírica, destacam-se trabalhos como: (2018), (2018) e (2019). Pássaros simbólicos estão em: (2019), (2020) e (2021). O vocabulário católico – daquele mais popular, evidenciase com força expressiva em (2022) e em (2022). 26


Strange Fruits - Goiabeira, 2019. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.



Alvorada - Música Incidental Black Bird, 2020. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.



Strange Fruit IV, 2018. © Antonio Obá. Foto: Bruno Leão.

É inegável que cada tela traz menções à história da arte e a eventos marcados pela resistência; alguns deles partem da experiência dos negros norte-americanos. Em , por exemplo, tem-se a alusão aos trabalhos da artista brasileira, mas também se refere à canção , com letra atribuída à Harriet Tubman, uma mulher-símbolo da luta pela abolição e, posteriormente, pelo voto feminino nos EUA. Nas pinturas de Obá, então, as referências são chaves do entendimento, apesar de ele confessar, em algumas entrevistas, que suas telas passam por um processo criativo instintivo: começam com uma imagem mental que se altera, sendo o resultado de várias , as camadas de tintas e mudanças. No caso da exposição imagens finais integram uma nova iconografia para as crianças negras e mestiças, na qual elas são protagonistas. Acima de tudo, as telas guardam histórias contadas pelo “menino rei”.

Alecsandra Matias de Oliveira é pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp). Doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Mestrado em Comunicação (ECAUSP). Professora do CELACC (ECA-USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA-USP). Membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Curadora independente e colaboradora da revista Dasartes, Jornal da USP e Revista USP.

ANTONIA OBÁ: REVOADA • PINACOTECA CONTEMPORÂNEA • SÃO PAULO • 24/6/2023 A 18/2/2024 31


Las Cybèles 1998. Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.

CAPA

Cybèle


Varela


FIGURA-CHAVE DA NOVA FIGURAÇÃO NO BRASIL, CYBÈLE VARELA É HOMENAGEADA EM MOSTRA COM UMA SELEÇÃO DE PINTURAS E OBJETOS EMBLEMÁTICOS DO FINAL DOS ANOS 1960, INÍCIO DE SUA CARREIRA. INVESTIGANDO VÁRIOS ASPECTOS DA PRODUÇÃO DA ARTISTA, A EXPOSIÇÃO IMAGINÁRIOS POP, NO MAC, EM SÃO PAULO, EXPLORA O PAPEL DESEMPENHADO PELA CULTURA DE MASSA, O FEMINISMO E AS QUESTÕES SOCIAIS E POLÍTICAS

POR PAULO MIYADA

Em 1967, Cybèle Varela era, sob quaisquer critérios, uma artista jovem. Nascida em 1943, em Petrópolis, cidade da serra fluminense, ela havia começado a pintar na infância e vivia na comutação com o Rio de Janeiro, onde frequentava aulas livres de Ivan Serpa, no Museu de Arte Moderna (MAM Rio), e convivia com a cena jovem que então recebia , muito nomes: e . O Rio de Janeiro de então era um ambiente de osmoses estéticas e políticas. A geração que despontou já sob o peso do coturno da ditadura militar (1964-1985) se definiu mais por princípios éticos do que estéticos. Tenho escolhido como ideia-chave para abordar a atitude dessa geração a noção de “opinião”, que, não por acaso, foi tomada naqueles anos como nome de exposições, espetáculo musical, grupo teatral, festival de teatro e jornal. No Brasil, o ciclo da opinião (e da ) aconteceu de 1964 até o fim de 1968, com a promulgação do AI-5. Cybèle estava, então, plenamente engajada em experimentar as formas e processos que circulavam a seu redor, tanto no meio das artes visuais, quanto além dele. Em outros textos, já escrevi que essa geração se moldou antes por princípios éticos do que estéticos, mas o caso de Varela torna difícil essa distinção. Acredito que o que hoje se conhece de sua produção jovem demonstra foi o “apalpar” da cena cultural em uma época de exceção que a levou a lidar com as contradições daquele tempo. 34

Os Pedestres, 1967-2022. (Detalhe do Triptico) Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.

JUVENIL




Antonio das Mortes, 1965-1966. © Cybèle Varela. Foto: Ariane Varela Braga.

Crescida em um lar em que a política não era um assunto reiterado, sem contar com um convívio tão assíduo com os cariocas, e por ir e vir sempre de Petrópolis, ela se punha em relação com tentativas de contestação que já lhe chegavam como expressão estética. Vejamos, por exemplo, as obras (1965-6) e (1966), compostas pela justaposição de frases, balões de diálogo, personagens e fragmentos de cena. Absorvendo diversos recursos das histórias em quadrinhos, essas obras funcionam também como uma espécie de fanzine pictórico do filme , um clássico de Glauber Rocha e do Cinema Novo. Bordões que o filme tornou célebre se juntam a um imaginário cangaceiro fantástico, em cenas a um só tempo alucinadas e sedutoras. Seja pela simbologia rebelde e marginal do cangaço, seja pela afirmação da resistência incorporada pelo personagem Corisco (“Eu não me entrego, não”), essas obras compunham, no contexto brasileiro da época, um chamado à luta contra o poder instituído. Esse chamado, não obstante, não havia chegado à Cybèle diretamente da ação política, mas por haver metabolizado algo do que então se produzia de mais disruptivo no cinema nacional. 29 37


Um passeio feliz 2, 1970-2023. Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.

PUZZLES O amadurecimento da obra de Cybèle Varela passou pela absorção do caráter fragmentário do fluxo imagético cotidiano. Obras como (1967), (1967) e (1968), apresentam as ruas como espaço de difração visual de personagens e modos de viver, valendo-se da repetição de elementos como os retângulos paralelos das faixas de pedestres para embaralhar cenas percebidas de modo simultâneo ou sequencial. Essa era uma forma de incorporar o ritmo urbano sincopado nas cores saturadas e brilhantes da tinta esmalte aplicada pela artista em placas de madeira. Era, também, uma espécie de crônica pictórica, que sublinhava a transformação da vida contemporânea e dos seus costumes, impulsionada por uma jovem geração que abraçava entusiasmada novas vestimentas e sociabilidades. O sentido de fragmentação e simultaneidade se aprofundava nos objetos, caixas e volumes explorados pela artista na segunda metade da década de 1960. Seja pelo emprego de espelhos ( (1967) e (1967)), seja pela 38

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Um passeio feliz, 1970. © Cybèle Varela. Foto: Romulo Fialdini.

possibilidade de girar, abrir ou mover peças ( e outras caixas hoje perdidas), o espectador se via implicado nas obras, instigado a interferir em seu tempo de apreensão e na edição de suas narrativas. Essa possibilidade foi levada mais longe nos feitos pela artista, verdadeiros tabuleiros cambiantes compostos por duas pinturas sobrepostas – uma delas perfaz a base do arranjo, enquanto a outra é recortada em nove partes iguais, das quais se suprime uma com a finalidade de permitir que os pedaços deslizem e sejam reposicionados. O único cuja localização é hoje conhecida se chama (1970), mas há o registro de outro trabalho dessa natureza com o mesmo título. Nos dois casos, a tensão narrativa reside no encontro entre um homem e uma mulher, o qual pode mudar de conotação dependendo do arranjo formado pelo público ao manusear as peças moventes da pintura. A depender do maior ou menor naturalismo no encaixe das anatomias dos personagens, das cores que se mantêm aparentes, e da posição relativa entre as figuras masculinas e femininas, o encontro em questão reitera ou frustra a felicidade prometida no título das obras. 39


UMA IMAGEM É UMA IMAGEM Quando as cores e luzes dos biomas tropicais retornaram ao ateliê de Varela, elas já não estavam flutuando em um imaginário arquetípico, mas haviam pousado na superfície de reproduções fotográficas manuseadas no ambiente da casa ou (1973), é uma das do ateliê. A pintura primeiras a revelar essa situação. Nela, vemos uma densa mata composta em tons de verde e amarelo, com pontuações em rosa. Há dois tucanos repousando na copa de uma árvore. Há, também – e aí a ilusão alegórica começa a se desfazer –, um requadro de linhas um pouco abauladas abraçando essa paisagem, e dois círculos pequenos sobre seus cantos superiores. Ao redor, tudo está pintado de rosa. No lado direito, vê-se um interruptor de luz e, sobrepondose a ele, um feixe de luminosidade mais intensa. Percebidos em sequência, os elementos dessa obra explicitam que a artista não estava efetivamente pintando nem tucanos nem florestas, mas um ambiente fechado, com luz elétrica e entrada de luz natural, uma parede rosada, na qual foi fixada uma fotografia do Brasil daquelas dignas de cartão-postal. (colocação em cena, em uma Essa tradução direta e eficaz) se repetiu inúmeras vezes na produção de Cybèle Varela ao longo da década de 1970. Por vezes, a artista preferia abrir mais seu enquadramento, a fim de explorar a espacialidade do contexto observado em sua pintura e posicionar a paisagem fotografada como um objeto de cena (como em (1973)). Noutras vezes, ela alargava a paisagem, reduzindo os vestígios da arquitetura a seu redor e reforçando a presença dos feixes de luz natural projetados sobre a fotografia (como em (1974) e (1974)). Em todos os casos, o observador atento percebe que o assunto das obras extrapola do deslumbre perante a paisagem. O tema efetivo dessas pinturas reside nas mediações acumuladas entre a paisagem percebida em primeira mão e aquela enquadrada, fotografada, impressa, posicionada, pintada. 40


Acima: O Tucano, 1973. Abaixo: Pantanal, 1974. Fotos: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.

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AS MULHERES DE CYBÈLE: REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NOS ANOS 1960 E NO PRESENTE POR CAROLINA VIEIRA FILIPPINI CURI Na década de 1960, o embate entre novos modos de vida desejados e uma sociedade sexista e conservadora não esteve alheio à produção de Cybèle Varela. Suas produções, realizadas no contexto da brasileira, representaram o ambiente urbano e suas idiossincrasias. Varela abordou temas urbanos e populares, o impacto da mídia de massa na sociedade, a ditadura e privilegiou, em um grande número de obras, a representação da figura feminina. Podemos identificar, em muitos de seus trabalhos dos anos 1960, o interesse por questões relacionadas com os lugares ocupados pelas mulheres na sociedade, a objetificação feminina e o impacto da moral católica nas vivências das mulheres. Varela não se considerava uma feminista, assim como boa parte das artistas e intelectuais sul-americanas do período. O contexto no qual viviam, de repressão 42


Danger, 2012. Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.

política e conservadorismo, dificultou que as pautas do movimento feminista, que renascia em sua chamada segunda onda, estabelecessem-se de maneira mais concreta no país. As associações feministas praticamente desapareceram com o Golpe de 64, voltando a tomar impulso somente a partir de 1975, com a instauração do Ano Internacional da Mulher, por iniciativa da ONU. Dentro desse cenário, o feminismo foi constantemente apresentado como um movimento de mulheres frustradas e pouco femininas, e mesmo grupos de esquerda diminuíram o movimento das mulheres, fazendo com que o termo feminista ganhasse um teor pejorativo. Isso não quer dizer, porém, que as artistas brasileiras não tenham abordado, de maneira mais ou menos direta, questões importantes para a segunda vaga feminista. Cybèle Varela e muitas artistas sul-americanas, como a argentina Dalila Puzzovio, a peruana Teresa Burga e colombiana Beatriz González, ao se voltarem para o registro do cotidiano e da vida urbana, em obras muitas vezes autorreferenciais, retrataram os desafios enfrentados pelas mulheres no período, discutindo, assim, muitas das pautas que seriam centrais para o movimento feminista. 43


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Miss Brazil e o Cisne, 1968. Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.

A obra , de 1968, é um exemplo de como Varela trata questões relacionadas à vivência feminina e como traz uma perspectiva crítica. O trabalho, assim como muitos outros de Varela e de artistas , conta com cores fortes da e chapadas, uma representação simplificada das figuras, sem texturas e sem pinceladas aparentes, em uma linguagem semelhante à da publicidade, do design gráfico. Para os artistas do período, utilizar uma linguagem semelhante à da publicidade funcionava não somente como uma maneira de discutir a mídia de massa e seu impacto na vida dos indivíduos, mas travar um contato imediato com o público, comunicar de forma clara e direta e aproximar arte e vida. , Varela traz as referências Ao pintar uma das revistas populares, dos programas de TV e do universo das celebridades, conectada aos interesses da época em representar a iconografia da cultura de massa, do cotidiano contemporâneo e dos temas ligados à vida urbana. Porém, podemos pensar, ainda, que o tema aparece na obra de maneira crítica, “buscando propor uma reflexão a respeito do lugar das mulheres na sociedade”. Os concursos de beleza começaram a receber severas críticas de grupos de mulheres no período, como 45


ocorreu na icônica manifestação feminista realizada em Atlantic City, nos Estados Unidos, em 1968, mesmo ano da produção da obra de Varela, na qual uma centena de mulheres protestou em frente ao teatro onde ocorria o . Posicionando-se contra a ditadura da beleza, as mulheres jogaram sutiãs, cílios postiços, revistas , sapatos de salto e outros itens em uma lata de lixo, em um protesto que ficou conhecido como “A queima dos sutiãs”. A obra de Varela, em consonância com o que era apontado por alguns grupos, critica a redução das mulheres à sua aparência física, seu aprisionamento a um ideal de beleza e o papel dos concursos e da mídia na perpetuação de um imaginário que relaciona o feminino à beleza e não ao intelecto, à razão ou à força. Varela também abordou, em obras do período, o impacto da moral católica na vida das mulheres e o contraste entre diferentes modos de vida no ambiente urbano. Em um contexto de grande aumento da população urbana, devido às migrações do campo para a cidade, Varela representou em muitas obras o cotidiano da grande cidade e seus contrastes. Temos como exemplo a obra intitulada (1967). O trabalho em cores fortes, com predominância do vermelho, 46


De tudo aquilo que pode ser I, II e III , 1967. © Cybèle Varela. Foto: Romulo Fialdini.

tem uma estética e narrativa sequencial que remetem às histórias em quadrinhos. A narrativa mostra quatro mulheres que se cruzam ao atravessar uma faixa de pedestres em um ambiente marcadamente urbano. A obra retrata diferentes modos de vida e de sociabilização que se cruzam e se chocam nos ambientes urbanos. Ao representar jovens mulheres de salto e minissaia de um lado, freiras de outro, e o choque e a confusão entre elas, Varela aborda as transformações da moda, o impacto da moral conservadora e católica na vida das mulheres, e os papéis possíveis de serem ocupados pela mulher na sociedade. É interessante observar, ainda, que uma sensibilidade em relação à condição da mulher não se encerrou nas produções de Cybèle Varela realizadas nos anos 1960, continuando presente em obras mais recentes, produzidas nos anos 1990 e 2000. Nessas pinturas – o foco maior de Varela continua sendo a pintura figurativa –, podemos ver ainda o crescimento de uma vontade por parte da artista de representar a si própria. Nós a vemos em obras como , de 1998, uma espécie de autorretrato multifacetado da artista mostrando diferentes fases de sua vida e diferentes personas em frente a um espelho. 47


A estrada, 2004. Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.



The Artist 1 e 2, 1999. Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.


É possível vê-la representada, ainda, na obra , de 1999. Na tela de grandes proporções, com cores fortes e contrastantes, vemos a artista retratada cinco vezes. Na parte inferior da obra, Varela aparece em um painel de fundo azul, segurando um pincel no alto de uma escada, usando uma peruca e um vestido renascentista. Na parte superior da tela, vemos metade de seu corpo invertido frente a um céu azul, com uma paleta de tinta em uma mão e um pincel na outra, pintando a própria imagem na parte inferior do quadro. Em pintados na parte superior, três pequenos vemos a artista representada mais três vezes, em ambientes diferentes, como uma janela para o que ocorre fora da cena principal representada na tela. O trabalho dialoga com a história da arte na medida em que pode ser pensado tanto como uma referência aos autorretratos de artistas em seus ateliês que surgem a partir da transformação do do artista no século 16 e que se proliferam no século 19, quanto como uma referência às pinturas e performances de mulheres artistas nos anos 1970, nas quais elas se apresentavam de pincel na mão, mostrando-se como produtoras ativas e não mais como objetos passivos de representação.

Paulo Miyada é curador e pesquisador de arte contemporânea. Atualmente é curador do Instituto Tomie Ohtake, onde coordena o setor de Pesquisa e Curadoria.

Carolina Vieira Filippini Curi é historiadora de arte. Está concluindo seu doutorado em Artes Visuais na Universidade de Campinas.

CYBÈLE VARELA: IMAGINÁRIOS POP • MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE SÃO PAULO (MAC-USP) • 1/7 A 1/10/2023 51


Sem título, 1956. Foto Jaime Acioli.

MARIA

FLASHBACK


LEONTINA


MARIA LEONTINA ERA UMA ACUMULADORA DE REFERÊNCIAS E OBJETOS PELOS QUAIS NUTRIA IMENSO AFETO. A ARTISTA VIA NA ARTE POPULAR, NA ESTATUARIA RELIGIOSA E NOS ARTEFATOS INDÍGENAS UM MANANCIAL DE CONTRADIÇÕES PLÁSTICAS, DE ONDE SURGIU OS INTERESSES QUE SEGUIRAM SEU PERCURSO DA FIGURAÇÃO ATÉ A ABSTRAÇÃO LÍRICA

POR RENATO MENEZES E THIERRY FREITAS

Em uma fotografia datada de 1973, Maria Leontina olha para a câmera enquanto insinua tocar objetos dispostos sobre um armário de madeira. Nele, estatuetas religiosas convivem com cartões-postais de impressão industrial, enquanto bolsas artesanais e potes de cerâmica coabitam o mesmo espaço ocupado por caixas decoradas e livros que se apoiam uns nos outros. Ao fundo, artefatos indígenas incrementam a coleção heterogênea que povoa o ateliê que a artista manteve na rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro. Cada plano que estrutura o armário – cada estante, cada porta – parece se oferecer à Maria Leontina como suporte para um criterioso e lento trabalho de composição, formando quadros de delicadas ações de suas mãos: colocar ou retirar qualquer objeto desse suporte supõe uma cuidadosa coreografia dos dedos, para que os outros objetos que os avizinha não sofram qualquer dano ou prejuízo potencialmente fatal. Tudo o que ali está parece ter sido destinado a ocupar a posição que ocupa, para que nenhum espaço vago se tornasse uma injustificável lacuna. Tudo o que ali está parece suspenso no tempo, sem futuro nem passado, tal qual uma natureza-morta, gênero que Leontina nunca deixou de praticar ao longo de sua carreira. Tudo o que ali está parece ter passado pelo rigoroso crivo de suas mãos. 54

Sem título, 1969. Foto Gabi Carrera. Cortesia Denise Gonçalo Ivo.

DA PAIXÃO PELOS OBJETOS



Acima: Sem título, 1951. Abaixo: Os episódios IV, 1959. Fotos: Cortesia Almeida & Dale.


Se a atividade artística de Maria Leontina pudesse ser definida em poucas palavras, a busca incessante pela tradução em imagens do que as mãos podem sentir seria a melhor forma de expressar o modo como ela se aproximou dos objetos, até fazer de suas obras os objetos pelos quais se apaixonava. “Desde menina eu me apaixonava pelos objetos como os outros se apaixonam pelas pessoas”, confessou Maria Leontina, em 1979. Nessa época, Leontina já trabalhava no referido ateliê de Ipanema, que manteve até o fim da vida. Ocupavam esse pequeno apartamento muitos objetos: leões de barro, anjos de madeira e tocadores de violão; , oratórios, máscaras e leques; bonecas cestos de palha e porta-joias; jarros, cadeiras e pilhas de papeis – toda sorte de objetos, de proveniências e materiais diversos, pareciam estabelecer entre si uma inusitada intimidade, como as que florescem entre os que pouco se importam com a autoridade do calendário. A organização entre eles era arbitrária, pouco (ou nada) hierárquica, obedecendo a critérios tais como peso, medida e material, reminiscências, talvez, das lições que aprendera no curso de Museologia que frequentou na mocidade. Ali, naquele ateliê, esses objetos estavam isentos de qualquer interesse etnográfico para alcançar a dimensão mais concreta e “coisal” que eles poderiam integrar: Maria Leontina parecia ver na arte popular, na estatuaria religiosa, nos artefatos indígenas um misterioso manancial de contradições plásticas, que combinavam a precisão da forma com as incorreções da mão não domesticada, lá onde se firmava um pacto entre rigor e calor que a artista jamais abandonaria até o fim de sua carreira. Talvez por isso, o lugar mais adequado para esses objetos seja não o de fonte de inspiração – termo, aliás, incompatível com a prática de uma artista obcecada pelo desenho, pelo projeto e pelo trabalho demorado sobre as telas –, mas o de testemunhos de sua produção e origem de “infinita e imprevisível surpresa”, conforme anotou ao final de um texto poético que escreveu em 23 de maio de 1967. Talvez, nesses objetos, encontre-se o princípio que emana de suas obras, sobretudo as que fez a partir da década de 1960, segundo o qual pintura se faz a partir de coisas e não de ideias. 57


DA CONSCIÊNCIA ABSTRATA O ano era 1952. Ao se referir à própria produção nos primeiros anos da carreira, Maria Leontina respondeu: “Não tenho passado artístico. Mas acho que pensei em ser pianista, embora nunca tenha concretizado ser alguma coisa”. E mais adiante, quando perguntaram se era a paisagem do Brasil que lhe tinha despertado o sentido das cores, ela completou: “Mas teria eu visto alguma paisagem neste tempo? Creio que a verdadeira paisagem que eu descobri e que quis exprimir foi esta paisagem contida nas pessoas e que reflete o resto das coisas. Quando comecei a desenhar, só desenhava rostos”. Os anos de 1940, quando Leontina introduziu-se com maior afinco à prática artística e passou a frequentar o ateliê de Waldemar da Costa, seu mestre, pareciam se projetar com grande distância no tempo. Ao que tudo indica, sua passagem pelo ateliê de Johnny Friedlaender, durante sua estada em Paris, entre 1951 e 1952, depois que recebera um prêmio do governo francês na I Bienal de São Paulo por uma natureza-morta, fez estreitar sua relação com a abstração, deslocando sua relação com a figuração para um passado virtualmente distante. Embora quisesse apartar esse passado recente, a trajetória formativa de Leontina não diferia muito da de outros artistas, que se viram impelidos em substituir a sugestão abstrata, contida em faturas cubistas e composições metafísicas, por uma abstração literal. O ano de 1952 foi crucial para a história da arte brasileira: data desse ano a criação do Grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro, em São Paulo, enquanto, no Rio de Janeiro, Ivan Serpa já se organizava para criar o Grupo Frente, fundado apenas dois anos mais tarde, quando o grupo paulistano já havia se diluído. É com esse panorama de expansão da abstração geométrica que Maria Leontina se deparou quando retornou ao Brasil, já nutrida das teorias da composição e da Gestalt que conhecera nos ambientes franco-germânicos que frequentara. Deu-se início, então, a uma arriscada manobra: reorientar seu estilo significava reelaborar, com as ferramentas de que dispunha, 58


Os enigmas IX, 1956. Foto: Jaime Acioli.


Janela, s.d. e Pintura, 1967. Fotos: Isabella Matheus. Cortesia : Pinacoteca de São Paulo.


“ ”

a passagem “da forma ao Todo”, ou, em outras palavras, da abstração à (empatia), perfazendo o caminho traçado por Wilhelm Worringer em sua obra clássica, publicada em 1907. As naturezas-mortas, como aquela que expôs na citada Bienal, os retratos e, em menor número, as paisagens, cediam lugar a um estilo mais explicitamente geométrico, mais organizado, mais controlado, mais sintético. A pintora iniciante, que desejava ser expressionista, parecia ceder cada vez mais às conquistas geométricas celebradas pelos seus contemporâneos. De seu estilo inicial, no qual prevalecia uma inclinação expressionista livre de qualquer sedução pela dimensão trágica da vida, manteve-se o compromisso com os gestos largos do pincel sobre a tela e o desejo de reconstrução do espaço, que se revelou em alguns pretextos figurativos. O mais recorrente, sem dúvidas, é o motivo da cadeira (substituído vez ou outra por uma janela), que aparece tanto nas naturezas-mortas, quanto nos retratos. Foi sobre a cadeira, ou na frente de um formado pela janela, que Leontina organizou seus objetos – conjunto no qual se incluem os personagens que retratou – e foi a partir dessa estrutura geométrica, em geral ortogonal, que o espaço foi reconstruído. 61



DA FORMA E DO TODO Em um ensaio dedicado à obra de Maria Leontina, Lélia Coelho Frota, uma de suas amigas mais próximas, escreveu: “O seu processo de criar e se relacionar com o mundo constituiu o oposto da premeditação intelectual, e os meios a que sempre foram estrita e exclusivamente de valor visual. Como Klee e Miró, artistas de sua predileção [...], Leontina dava título aos seus temas após a conclusão dos trabalhos”. Maria Leontina não foi uma artista de rupturas ou de gestos radicais; ao contrário, sua obra constitui um grande conjunto coerente, que se organiza sobre um fio de rara continuidade entre os artistas modernos, em geral, e os de sua geração, em particular. Talvez por isso seja tão difícil aplicar o termo “fase” ou “período”, em sua trajetória. Muito embora a artista tenha se notabilizado por suas séries, que se organizam como subconjuntos mais ou menos autônomos dentro de sua produção bastante homogênea, seu interesse na pintura como processo parece se revelar incompatível com a ideia de pintura como “coisa finita”, traço que se manifestou tanto na organização dessas séries propriamente ditas, sempre prontas para crescer, quanto no aspecto plástico que adotou, via de regra, em sua obra.

Sem título, 1969. Foto: Gabi Carrera. Cortesia Denise e Gonçalo Ivo. 63


Com esse estilo difuso e processual, em que a mancha progressivamente se sobrepõe à forma nítida, Maria Leontina trouxe ao mundo “pequenas invenções de objetos simbólicos inexistentes”, que povoaram sua obra, desde os empilhamentos de formas geométricas que se organizam em um “equilíbrio precário de pedras e blocos no espaço”, , como em , s e , até as séries em que os objetos deixam de se tornar pretexto à fragmentação do espaço para se tornarem centro de uma observação dissolutiva: os ângulos se arrefecem, as linhas se diluem, os contornos se tornam ainda mais imprecisos e o plano se apresenta como superfície complexa sobre a qual linhas e pontos coexistem. Surgem, então, séries , , , como os , , , , , em que os planos se comportam de maneiras diferentes, todos eles negando a rigidez e a frontalidade absoluta, em um espaço que agora, mas do que nunca, prescinde de qualquer referência ao mundo exterior

Renato Menezes é curador e historiador da arte e doutorado em Teoria da Arte pela EHESS (Paris).

Thierry Freitas é curador e historiador da arte atuando com Arte Moderna e Contemporânea.

MARIA LEONTINA: DA FORMA AO TODO • EDIFÍCIO PINA LUZ • SÃO PAULO • 13/5 A 10/9/2023 64

Os episódios V, 1959-1960. Foto: Cortesia Pinacoteca de São Paulo.



GE DO mundo


Esfera nº 4, 1976. © Fundación Gego. Foto: Oriol Tarridas, courtesy CIFO Cisneros Fontanals Art Foundation.

GO


COM OBRAS BIDIMENSIONAIS E TRIDIMENSIONAIS EM UMA VARIEDADE DE MEIOS, A ARTISTA GERMANOVENEZUELANA GEGO EXPLOROU A RELAÇÃO ENTRE LINHA, ESPAÇO E VOLUME. SUAS PRÁTICAS, EM FLERTE COM A ARQUITETURA, O DESIGN E A EDUCAÇÃO, COMPLEMENTARAM ESSAS INVESTIGAÇÕES

POR PABLO LEÓN DE LA BARRA E GEANINNE GUTIÉRREZ-GUIMARÃES

Uma das artistas mais significativas a surgir na América Latina durante a segunda metade do século 20, Gego (n. 1912, Hamburgo; d. 1994, Caracas) permanece menos conhecida nos Estados Unidos. Nascida em uma família judia alemã, Gertrud Goldschmidt, ou Gego, formou-se inicialmente como arquiteta e engenheira na Universidade Técnica de Stuttgart (agora Universität Stuttgart). Fugitiva nazista da perseguição em 1939, emigrou para a Venezuela, onde se estabeleceu permanentemente, iniciando, na década de 1950, uma carreira artística de mais de quatro décadas. Gego apresentou ideias radicais por meio de suas investigações de sistemas estruturais: transparência, tensão, fragilidade, relações espaciais e os efeitos ópticos do movimento são metodicamente abordados em seu corpo singular de trabalho. Traçando um percurso artístico marcadamente individual, Gego desafiou a categorização.

Chorro Reticulárea, 1988. © Fundación Gego. Foto: Walter Otto, courtesy Colección Mercantil, Caracas. 68



Reticulárea, 1969. Abaixo: Sin título, 1966 e Sin título, 1968. © Fundación Gego. Foto: Will Michels, courtesy The Museum of Fine Arts, Houston e Archivo Fundación Gego.

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“ ”

PRIMEIROS TRABALHOS (1953-1960) A Venezuela experimentou dramáticas mudanças econômicas, políticas e sociais durante e após a Segunda Guerra Mundial. Durante essa época, a arte moderna venezuelana passou por uma mudança igualmente transformadora. O surgimento da abstração geométrica – um movimento transnacional caracterizado por esquemas puros de forma, linha, cor e ordenação geométrica – no país, por volta da década de 1950, marcou um período de grande inovação artística. Foi nesse contexto que Gego iniciou sua nova vida em seu lar adotivo na Venezuela, onde chegou, em 1939, como deslocada, sem familiaridade com o idioma e a cultura. Ela começou a trabalhar como em escritórios de arquitetura e estúdios de planejamento urbano em Caracas no início dos anos 1940, utilizando o treinamento em arquitetura e engenharia que recebeu na Alemanha. No início dos anos 1950, recentemente divorciada de seu primeiro marido, Gego abandonou sua prática de arquitetura e abraçou totalmente a arte. Ela e o designer gráfico nascido na Lituânia, Gerd Leufert, que se tornaria seu parceiro vitalício, mudaram-se para a vila de Tarmas, perto da costa caribenha da Venezuela, de 1953 a 1956. Lá, Gego se concentrou em paisagens, representações de formas arquitetônicas e figuração. Ela experimentou diferentes meios, incluindo aquarela, grafite, monotipia e xilogravura. A artista tomou seu entorno imediato como fonte de inspiração no início e meados da década de 1950, retratando a flora local em cores vivas e exuberantes e cenas de montanha e casas em uma paleta suave. Na última parte daquela década, influenciada pela presença da abstração geométrica na Venezuela, ela fez uma transição crítica para formas não representacionais. 71


LÍNEAS PARALELAS (1957-1968) Uma seleção de desenhos e esculturas, do final dos anos 1950 até o final dos anos 1960, considera as investigações de Gego sobre as possibilidades espaciais e estruturais do que ela chamou de “líneas paralelas”, um conceito extraído do vocabulário pictórico da abstração geométrica. Por volta de 1960, Gego também começou a experimentar os efeitos ópticos de movimento e vibração, sintetizando suas explorações de luz, movimento e espaço – todos temas predominantes na arte cinética. Algumas esculturas apresentam elementos tubulares paralelos que formam planos geométricos que se cruzam ou se superpõem. Ao se envolver com essas obras de diferentes perspectivas, a ilusão de ótica da vibração é produzida, mudando, assim, a percepção dos próprios objetos.

Gegofón, 1959. © Fundación Gego. Foto: Peter Lynde, courtesy Duker Collection, Pasadena.

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TIPOLOGIAS RETICULARES (1962-1976) No auge de uma nova década, em 1969, Gego fez uma mudança decisiva de “ ” para “ ”, seu termo para as várias formas reticulares (redes ou estruturas semelhantes a redes), em seus dois trabalhos dimensionais. Ela então aplicou os mesmos preceitos à sua produção tridimensional. Gego começou a utilizar novos materiais mais fáceis de manipular, como aço inoxidável e arame de alumínio, resultando em esculturas suspensas mais arejadas e leves: constelações de linhas tecidas no espaço. Esses objetos suspensos diferem de suas esculturas anteriores, cuja fabricação exigia a ajuda de um soldador. (1971-1977), algumas assumem a forma de Conhecidas como estruturas semelhantes a grades ou colunas geométricas volumosas, enquanto em outras a grade é deformada ou alterada por distorções espaciais inesperadas.

Reticulárea cuadrada 71/2, 1971/1989. © Fundación Gego. Foto: Carlos Germán Rojas, courtesy Archivo Fundación Gego.

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RETICULÁREA (1969-1982) Estruturalmente relacionada com outras esculturas e desenhos reticulares, também consiste em malhas triangulares e quadradas maleáveis, de tamanho variável, feitas de arame de aço inoxidável e outros materiais. Com pequenas variações no título, cada iteração dessa instalação foi cuidadosamente composta pelas mãos da artista para um espaço específico. A é igual em estatura a outras estruturas “penetráveis” inovadoras da década de 1960 de artistas da América Latina, como Lygia Clark, Carlos Cruz-Diez, Hélio Oiticica, Mira Schendel e Jesús Rafael Soto. JATOS E TRONCOS (1970-1977) As esculturas suspensas que Gego desenvolveu na década de 1970 são compostas por malhas interligadas, algumas baseadas no quadrado ou no triângulo. São (1970-1974), exemplos três séries relevantes: (1974-1981) e (1976-1977). Suspensas verticalmente no espaço, essas obras minimalistas enfatizam os temas de fragilidade, gravidade e transparência. , cujo título pode ser traduzido como Os “córregos” ou “cachoeiras”, são aglomerados de hastes interrelacionadas feitas de alumínio e outros materiais que pendem em configurações verticais em cascata. Os são estruturas cilíndricas verticais compostas por arame de aço e outros elementos que produzem um vazio central. Eles imitam a forma colunar dos troncos das árvores; as referências de Gego a fenômenos naturais em seus títulos se tornaram outra forma de vincular a forma aos objetos funcionais. Elaborando sua escolha de material, a artista explicou: “Só com o metal posso transformar algo que é transparente, e inclui o espaço que envolve a escultura, de forma a incorporá-lo na própria obra.”

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Tronco nº 5, 1976. © Fundación Gego. Foto: © Fundación Gego. Foto: Thomas R. DuBrock, courtesy the Museum of Fine Arts, Houston.


Dibujo sin papel, 86/13, 1986. © Fundación Gego. Foto: Courtesy Colección Patricia Phelps de Cisneros.


Chorro, 1970. © Fundación Gego. Foto: Courtesy Colección Patricia Phelps de Cisneros.


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Dibujo sin papel nº. 77/16, 1977. © Fundación Gego. Foto: Courtesy Colección Patricia Phelps de Cisneros.

DESENHOS SEM PAPEL (1976-1988) são esculturas orgânicas cujas linhas e vários elementos formais mínimos são realizados com arame, sucatas de metal reciclado e outros materiais. A série desafia a autonomia da escultura ao subordiná-la à parede, atribuindo a esses objetos as qualidades bidimensionais do desenho. Entre os corpos de trabalho conceitualmente mais complexos de Gego, ofereceram à artista infinitas os possibilidades de modular o espaço. Alguns exemplos iniciais apresentam arranjos de planos que se projetam para fora, como um livro aberto, enquanto outros são estruturados em torno de linhas verticais ou horizontais simples ou padrões cruzados. Em 1979, essas obras começaram a assumir a forma de molduras quadradas ou retangulares vazias. Incorporando fios ou hastes de aço ou ferro, suas configurações geométricas lineares são frequentemente duplicadas ou triplicadas para enfatizar sua construção formal. No início da década de 1980, Gego começou a incluir estruturas circulares feitas com malhas lineares, fios e arames. A partir de 1984, seu foco mudou para representações de grades deformadas ou quebradas – composições geométricas de padrões lineares interrompidos ou inacabados.

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Bicho 87/9, 1987. © Fundación Gego. Foto: FotoGasull, courtesy Museu d’Art Contemporani de Barcelona, MACBA.

ÚLTIMAS OBRAS: BICHOS E BICHITOS (1987-1991) No final dos anos 1980, Gego desenvolveu os (1987-1991) e (1987-1989), suas duas séries escultóricas finais, reaproveitando materiais e elementos descartados de obras anteriores. Na Venezuela, significa animal, ou, mais comumente, inseto. Também pode significar qualquer coisa que não tenha um nome específico. Com seus precários sistemas de construção, e representam um colapso total de estrutura, geometria e os grade na obra da artista. Autoliberando-se de formas fixas, Gego concebeu assemblagens cuja imprevisibilidade e caóticas configurações são caracterizadas por diversas formas e texturas. Preferindo o irregular e o orgânico, rendeu-se a uma nova forma de fazer arte, em um contraste direto com as geometrias definidas de seu trabalho anterior. 80


Les demoiselles d’Avignon, 1907. © Succession Picasso/ Bildrecht, Vienna 2023.

“Não sei de onde vem o resultado meu trabalho”, ela disse uma vez. “Eu sei que começa com as minhas mãos, meus olhos e minhas emoções. Interessei-me pela transparência do volume, para que uma forma possa ser apreciada plenamente de todos os ângulos da observação.” O propósito de Gego, em suas próprias palavras, era estudar “o infinito da geometria tridimensional”. Embora ela não tenha entrado no campo artístico até seus quarenta e poucos anos, Gego então produziu rigorosa e continuamente até sua morte. Abraçando muitas disciplinas, ela se baseou em sua experiência fundamental com arquitetura e engenharia para desenvolver uma prática artística singular e radical – marcando seu lugar na arte do século 20. Após a morte de Gego, em 1994, a família da artista e seus herdeiros fundaram para preservar seu trabalho e seu legado único. a 81



Boceto para escultura en el edificio del Banco Industrial de Venezuela, 1961. © Fundación Gego.

Pablo León de la Barra é curador geral de Arte da América Latina no Museum Solomon R. Guggenheim Foundation, Nova York.

Geaninne Gutiérrez-Guimarães é curadora associada no Guggenheim Museu Bilbao Nova York.

GEGO: MEASURING INFINITY • SOLOMON GUGGENHEIM MUSEUM • NOVA YORK • 31/3 A 10/9/2023 83


REFLEXO


Regina Parra

O gosto do vivo, 2023. © Regina Parra. Foto: Julia Thompson.


POR REGINA PARRA 86

Winnie (Not I), 2019. © Regina Parra. Cortesia Millan.

DIALOGANDO COM DIFERENTES CAMPOS CRIATIVOS, A ARTISTA REGINA PARRA TRANSFORMA A PINA ESTAÇÃO EM ESPAÇO CÊNICO PARA CONTAR A HISTÓRIA DE PAGÃ, UMA MULHER QUE ABDICA DE UMA VIDA SOCIALMENTE CONFORTÁVEL E INICIA UM RITUAL DE DESCOBERTA E TRANSFORMAÇÃO DE SI E DO SEU CORPO. O PROJETO EXPERIMENTAL FALA SOBRE O CORPO FEMININO, SEU PRAZER, LIBERDADE E INSUBORDINAÇÃO




Electra (nós que guardamos o grito em segredo inviolável), 2023. © Regina Parra.

“A ideia de surgiu a partir de uma pesquisa em torno das tragédias gregas. Descobri que os gregos têm um vocabulário muito maior para expressar dor e lamento. Na maior parte das traduções, essas nuances e sutilezas de expressões se perdem, uma vez que não temos palavras para traduzir. No português, por exemplo, todas expressões de lamento acabam sendo traduzidas para “ai de mim”. E com isso perdemos a curva da personagem e suas nuances de sofrimento. Tradutores e tradutoras contemporâneos estão se atentando a isso e, em vez de aplainar tudo para “ai de mim”, estão optando por manter o termo original em grego – que aparece quase um ruído no meio do texto. Apesar de não sabermos a tradução daquele termo, identificamos que é uma das muitas expressões de dor intraduzíveis e, como leitores, tentamos dar nossa própria versão ou tradução. Fiquei fascinada por essas expressões e convidei o compositor norteamericano Ian Gottlieb para criar uma composição musical usando essas expressões gregas como partitura. O resultado é o dueto . Convidei então as performers Stephanie Lucchese e Luisa Alcantara para cantar esse dueto. E a estilista Marina Dalgalarrondo para criar o figurino. A partir do fato de que a performance seria estática e cantada, com as intérpretes uma de frente para a outra, optamos por fazer sobressair a boca: tampando todas as extremidades e deixando apenas a boca aparecendo, destacando o trabalho vocal. Os dois figurinos foram inspirados em drapeados gregos que contornam os corpos de forma a não aparecer qualquer espaço de pele, deixando apenas a boca à mostra. Para dar ainda mais destaque a essa parte do corpo, o rosto foi inteiro pintado de branco, com boca e dentes em vermelho, como se o lamento saísse pela boca.” 89


Minotaura, 2023. © Regina Parra.

“ surgiu do desejo de imaginar o que seria, como seria e como agiria a fêmea do Minotauro. As histórias que chegam para nós sobre esse ser mitológico são muito associadas ao falo e à ideia de que o Minotauro é um ser monstruoso que foi trancado no labirinto por ser perigoso. Minha vontade era investigar essa selvageria vital não como um aspecto monstruoso, mas como uma força tenebrosa a serviço do triunfo da vida. E com isso imaginar como seria esse ser híbrido de mulher-animal e a vitalidade erótica em torno disso. Convidei a coreógrafa Clarice Lima para colaborar comigo na criação de uma dança circular e vigorosa que remetesse a um labirinto. As bailarinas Karen Marçal, Patricia Árabe e Sabrina Ferreira – que já trabalhavam com Clarice – foram fundamentais na criação dessa coreografia e trouxeram um erotismo primitivo para essas Minotauras. Para o figurino, convidei a figurinista Marina Dalgalarrondo que desenvolveu sapatos encapados com pelos de animais que se conectavam a joelheiras por meio de fivelas e tiras vermelhas. Joelheiras e botas se fundem em uma única peça, remetendo ao misto de bicho-mulher. Para enfatizar esse caráter híbrido, criei máscaras bem simples, pintadas com bastão oleoso e trazem a silhueta de um touro.” 90


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“ também surgiu de uma pesquisa vinda da Grécia Antiga. Para alguns estudiosos, a origem do termo “tragédia” está relacionada ao “canto do bode” (bode) e (canção). A partir disso, comecei a imaginar o que seria a versão feminina desse canto, ou seja, quais sonoridades o canto da cabra poderia trazer. Surgiu então o desejo de experimentar e criar um canto sem voz, mas feito de ar, de respiração somente. Há tempos vinha me interessando pela respiração ofegante. Não apenas pela potência sonora do ofegar, mas também por ser uma respiração que aparece tanto em situação de extremo cansaço e até agonia como em situação de gozo e prazer. Essa respiração rítmica e intensa também gera uma superoxigenação no cérebro que vinha me interessando.

O canto da cabra, 2023. © Regina Parra.


Convidei o coreógrafo Bruno Levorin, com quem eu já tinha trabalhado em outro projeto em 2018, para me ajudar nessa pesquisa. A ideia era criar uma coreografia sutil e precisa que enfatizasse essa respiração ofegante, mas também trouxesse afeto e cuidado. A bailarina Maitê Lacerda e a atriz May Tuti se juntaram a nós e deram corpo a essas duas mulheres-cabras que se conectam pelo toque e pela troca de ar. Chamei mais uma vez a Marina Dalgalarrondo para o figurino. E, nesse caso, o desejo era fugir da premissa teatral e trazer elementos da moda. Marina criou peças com couro que foi rasgado, desgastado e pintado, e então remodelado, com cortes e aplicações, finalizado por uma grande capa nas costas dos figurinos, feito com o próprio pelo da cabra.”


“Essa grande pintura surgiu de um desejo antigo que pareceu propício à cena final da exposição . Há uns três anos, tenho trabalhado com pinturas que trazem versões de naturezas mortas. Digo versões porque enxergo e trato as frutas nas minhas pinturas como corpos, como entranhas. queria trazer a imagem Em desse grande gozo, um êxtase que acontece pelo corpo e não negando o corpo. A pintura tinha que ser grande o bastante para que o público pudesse mergulhar nela e participar desse delírio. Convidei Malka Bor, Luiza Rolla e May Tuti, três atrizes que toparam criar essa cena comigo. E a Thany Sanches me ajudou com as fotos e a produção. Eu queria fazer essa cena em um teatro porque a luz é sempre muito importante para mim. Levamos uma piscina inflável para o palco do Teatro do Centro da Terra e a enchemos com frutas e uma mistura de água e farinha, criando uma aparência leitosa. Escolhi as frutas mais moles, ou seja, que pudessem ser mais facilmente despedaçadas e mescladas. As atrizes entraram nessa piscina com as frutas e seguimos criando movimentos e interações que pudessem trazer essa imagem de sedução, êxtase e gozo.” 94

O gosto do vivo, 2023.© Regina Parra.


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“Três grandes pinturas compõem essa espécie de retábulo que criei para a Cena 2 da exposição . Comecei a pensar nessas imagens em 2021, quando estava estudando o texto da Clarice Lispector e começando a desenhar a exposição da Pinacoteca. Queria trazer pinturas que pudessem ser lidas em sequência, como fragmentos de um ritual ou de uma iniciação. Também queria trazer uma natureza que não fosse óbvia e completamente familiar. Estava mais interessada nesse encontro/confronto com uma natureza misteriosa e ameaçadora. E encontrei isso na vegetação da região Norte do Maine (EUA). Para o figurino, escolhi uma saia de couro natural e grosso que parece não pertencer a época alguma ou tempo específico. O processo de criação dessas pinturas é parecido com o de outras séries que tenho criado desde 2018. É como se as pinturas fossem a documentação de uma 96


Horas de perdição, 2023. © Regina Parra.

performance que aconteceu, mas que só pode ser vista por meio da pintura. O processo dessa performance acontece da seguinte maneira: depois de eleger as intenções, escolher a locação, o figurino e também alguns elementos que podem ou não entrar nessa encenação, eu inicio um processo de experimentação/improvisação. Como uma tentativa de encontrar no corpo, gestos, movimentos e ações que podem traduzir o que estou buscando. Um ritual que entendo como “in-cenar, in-corporar, in-carnar”. Essa performance experimental geralmente dura entre três e quatro horas ininterruptas e uma câmera colocada em um tripé grava toda a cena. Eu costumo esperar ao menos alguns dias para assistir a essa gravação para tentar ter um olhar mais fresco diante de tudo. Depois de assistir, tento selecionar gestos, movimentos e ações que farão parte da composição da pintura.” 97


É preciso continuar, 2018. © Regina Parra. Cortesia Millan.


REGINA PARRA: PAGÃ • EDIFÍCIO PINA ESTAÇÃO • SÃO PAULO • 1/4 A 13/8/2023


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