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Ainda as declarações polémicas de Manuel Heitor Em entrevista ao “Diário de Notícias” no passado dia 2 de setembro, o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, lançou a ideia de, num futuro próximo, a formação dos médicos de família poder vir a ser abreviada – de forma a aumentar o número de profissionais e, assim, suprir as necessidades existentes. “Para formar um médico de família experiente não é preciso, se calhar, ter o mesmo nível, a mesma duração de formação, que para um especialista em oncologia ou um especialista em doenças mentais”, disse. Estas declarações deram origem a uma enorme polémica, com críticas unânimes das estruturas profissionais e do ensino médico em Portugal, das quais demos já conta no último número desta revista. Em Viana do Castelo, numa iniciativa liderada por Nelson Rodrigues, Presidente do Conselho Sub-Regional de Viana do Castelo da Ordem dos Médicos, houve também ecos da contestação, manifestados numa Carta Aberta dirigida ao Ministro Manuel Heitor, (divulgada no dia 18 de novembro no 21.º Encontro de MGF) e ainda através do lançamento de uma Petição Pública online “Melhor Saúde Para Todos”, que conta já com mais de 220 assinaturas.
Carta Aberta ao Exmo. Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior 18 nov. Professor Doutor Manuel Heitor, Excelência,
O
s Médicos de Família, especialistas em Medicina Geral e Familiar sentem-se chocados com as declarações de V. Exa. ao Diário de Notícias porque revelam ingratidão, incompreensão, inadequação e incorreção. O clamor foi tal que teve eco no Reino Unido, com a British Medical Association indignada e, de igual modo, em associações médicas europeias como a European Union of General Practitioners e a European Federation of Salaried Doctors. Todavia, sabemos que V. Exa., e nós, desejamos o bem comum, o melhor para Portugal, para os portugueses. V. Exa., nessa entrevista, teve um momento infeliz, como por vezes acontece a qualquer ser humano, nesta nossa viagem que é a vida. Dizia Santo Agostinho: “Errar é humano, continuar no erro é diabólico”. Senhor Ministro, para nós médicos, a política é uma atividade muito importante, tal como a nossa. A política é medicina em larga escala. Um político no fundo é um médico. Evidentemente que nos referimos à política no sentido nobre dos gregos, “a arte de governar a cidade”. De granjear o bem público. Não a politiquice que tanto campeia em Portugal. A nossa atividade, e com tal a do político, exige um aperfeiçoamento, uma atualização constante. Um médico, um político, é um estudante para a vida! As suas declarações, Senhor Ministro, não estão atualizadas, aperfeiçoadas. Não estão devidamente estudadas. A matéria está colada a cuspo. Como tal, é necessário estudar devidamente. Mas porquê este nosso sentir? Passamos a explicar. Senhor Ministro, nós, Médicos de Família, trabalhamos na primeira linha de atendimento do sistema de saúde e somos essenciais para o Serviço Nacional de Saúde, como ficou bem demonstrado na pandemia que atualmente
vivemos, com o evidente reconhecimento das comunidades que servimos. Os Médicos de Família em exercício nos Centros de Saúde do Serviço Nacional de Saúde fazem mais de 30 milhões de consultas por ano. Assistimos gestantes, crianças e jovens, assim como adultos e idosos, em atendimento personalizado e de proximidade com elevada acessibilidade, dirigindo a nossa atenção a pessoas saudáveis e a doentes, por vezes em situações graves e de fim de vida. As nossas atividades e resultados estão publicados e divulgados ao longo das últimas décadas, com expressão nacional e internacional. Os ganhos em saúde são evidentes e sentidos pelas pessoas. Senhor Ministro, as vossas declarações não revelam o reconhecimento e importância destes factos, a importância desta especialidade médica, uma dentre 48 especialidades, as quais tem entre 4 a 6 anos de formação. A nossa têm 4 anos de formação e, muitos de nós, atendendo à complexidade e exigência dos cuidados de saúde a prestar aos nossos concidadãos, entendem que deveriam ser 5 anos. Esta formação decorre após se obter elevadas classificações no ensino secundário, um mestrado em medicina de 6 anos, seguido de 1 ano de formação geral profissionalizante, e depois de um exame nacional de acesso à especialidade, finalmente é que se “tira” a especialidade. A frequência da formação especializada é feita por médicos autónomos, com toda a responsabilidade legal do ato médico, sob orientações de especialistas. Apesar de todo este percurso de formação técnico-científica e ética, uma das características que o médico tem de ter é saber qual o seu limite. E, neste caso, encaminha o seu consulente para quem sabe. Pois como diziam os romanos: “Sutor, ne ultra crepidam” (“não vá o sapateiro além da alpergata”). Ou como dizia Mark Twain: “Há certas coisas sobre como pegar num gato pelo rabo que só se aprende pegando no gato pelo rabo”. Ah! Fizessem isto muitos políticos!