OBSERVATÓRIO DO LEITE
DO COVID-19 AOS DESAFIOS FUTUROS
CHEGÁMOS AO ÚLTIMO OBSERVATÓRIO DO ANO, UM ANO ATÍPICO QUE FICARÁ CERTAMENTE PARA A HISTÓRIA. SEM DÚVIDA QUE MESMO NUM FUTURO LONGÍNQUO SE FALARÃO EM TEMPOS “PRÉ-COVID” E “PÓS-COVID”. Por Joana Silva, Médica Veterinária | Fontes AHDB, DairyGlobal, Rabobank, The Dairy Site O setor leiteiro, como temos visto nas últimas edições, não escapou totalmente incólume aos efeitos da pandemia, apesar da sua resiliência em comparação com outros setores. No entanto, a recessão global é hoje mais do que uma simples conjetura, e os mercados do leite e derivados poderão ver-se a braços com diminuições acentuadas da procura. O abrandamento da economia mundial – tão ou mais difundido que o vírus – em paralelo com a desvalorização dos preços do petróleo, poderá também pôr em causa o poder de compra de economias que geram daí a sua riqueza, impactando negativamente a importação de produtos lácteos. Para este ano, a FAO prevê uma contração das exportações a nível global na ordem dos 4%, devido à pandemia, a diminuição, face ao homólogo, mais elevada das últimas três décadas. Na Europa, no primeiro quadrimestre do ano, esta contração foi especialmente
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RUMINANTES | OUT/NOV/DEZ 2020
sentida no mercado do queijo e do leite em pó desnatado. A evolução do mercado chinês, o primeiro colosso a tremer com os efeitos da pandemia, surtirá também efeitos nos próximos meses, especialmente junto de parceiros comerciais próximos, como a Austrália. No entanto, a avidez associada à China poderá ficar aquém do histórico, tendo em conta a quebra da procura interna e também os stocks mais elevados de produtos, como o leite em pó. Em março, as condicionantes do mercado levaram a um desvio do leite em natureza para a produção de leite em pó, um dos principais componentes do cabaz da importação no país. Por outro lado, aponta-se já um início de recuperação dos efetivos suínos, devastados pelo surto de Peste Suína Africana que assolou o país, e consequente maior necessidade de proteína whey. Em julho deste ano, a China importou cerca de 64 000 toneladas desta matéria-prima, o
valor mais alto em dez anos. Ainda no efetivo leiteiro, a longo prazo, os investimentos nacionais no setor almejam chegar a um acréscimo do efetivo na ordem das 700 000 cabeças, compreendendo um aumento do efetivo chinês na ordem dos 8% nos próximos anos. Saído da sombra do cenário da incerteza está também o Brexit, agora garantido, muito embora ainda não estejam redigidos os pressupostos das relações comerciais futuras. A incerteza associada a este cenário, bem como o risco de disrupção dos mercados, poderão per si semear nestes uma tendência de aversão ao risco. Apesar de não existir nenhuma ligação aparente entre a pandemia e o Brexit, ambos levantam questões-chave no que toca à complexidade das cadeias logísticas, e na análise que cada interveniente deve fazer dos seus mercados internos e externos: quão dependente está uma dada economia das importações
de ingredientes ou matériasprimas para satisfazer as suas necessidades? Em paralelo, existirá dependência de um dado parceiro económico para garantir as exportações necessárias, bem como adaptar-se a novos parceiros caso seja necessário? Focando a análise no elo final da cadeia – o consumidor doméstico – a adaptabilidade foi notória: se nos países desenvolvidos tínhamos o perfil predominante do consumidor com poder de compra mas limitado de tempo, o confinamento transformou muitos deles em consumidores com excedente de tempo e algumas limitações financeiras, as quais poderão levar a que o consumo de bens alimentares fique restringido às necessidades básicas. Outra tendência que promete fidelizar muitos consumidores no longo prazo foi a adaptação às compras online, as quais podem dificultar a venda de muitos produtos de valor acrescentado cujos atributos qualitativos não serão tão