Enfoque São Leopoldo Ocupação Mauá 1

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Mulheres na liderança: a conquista do galpão e a luta por moradia

OCUPAÇÃO MAUÁ
LEOPOLDO 1 SÃO LEOPOLDO / RS MAIO DE 2023
ENFOQUE SÃO
Famílias exigem educação de qualidade Página Central Cozinha garante refeições para moradores Página 7 Venezuelanos vivem na ocupação Página 8 ARQUIVO COMUNIDADE LUCAS KOMINKIEWICZ

Articulação, solidariedade e conquistas

Cada edição do jornal Enfoque busca apurar as principais histórias de moradores de uma comunidade. No Enfoque, as pessoas têm nome e trajetórias que serão contadas e partilhadas com outros moradores. A escuta de cada história de vida se transforma em uma reportagem, são temas sensíveis que serão escritos pelos estudantes da disciplina de Jornalismo

Comunitário e Cidadão, da Unisinos.

Na visita à Ocupação Mauá, a força que mobiliza seus moradores se tornou pano de fundo das reportagens: a união, a solidariedade e a luta pela moradia. Aspectos que fazem com que mães, lideranças, imigrantes e tantos

QUEM FAZ O JORNAL

O Enfoque São Leopoldo - Ocupação Mauá é um jornallaboratório dirigido aos moradores da Mauá, localizada em São Leopoldo (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus São Leopoldo). enfoquesaoleopoldo@gmail.com

outros personagens, deem vida à Mauá. Articulações também ocorreram durante nossa visita. A Rede de Solidariedade São Leo, através da professora Isamara Allegretti, conseguiu junto a ONG Moradia e Cidadania, dos funcionários da Caixa Econômica Federal, a doação de 23 mil reais para a construção de um Galpão comunitário e a entrega de um parquinho para as crianças da comunidade Mauá. O galpão está sendo construído aos poucos, mas já conta os alicerces, enquanto a pracinha chegará até o final do mês de maio.

Vanusa Patrícia Antunes de Sá e Shauane Bianca Antunes de Sá são as duas lideranças

| REDAÇÃO | REPORTAGENS E IMAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário e Cidadão. Orientação: Sabrina Franzoni (franzoni@unisinos.br). Repórteres: Amanda Wolff, Ana Paula de Oliveira, Arthur Mombach Schneider, Karolina Bley, Nathalia Jung e Torriê Aliê. Colaboração: Lucas Kominkiewicz (fotografia). Monitoria: José Guilherme Hameyer.

| ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.

que acompanharam o grupo de alunos. Elas conhecem cada morador, participaram da entrega de cada um dos lotes, estão no preparo da comida que está no prato nas quartas e sextas-feiras, ofereceram curso de reforço no verão para crianças, enfim são incansáveis quando o assunto é a moradia, a fome e a dignidade dos habitantes da Mauá. Duas mulheres fortes e decididas que nos ensinam através de suas atitudes e coragem. n

Universidade do Vale do Rio dos Sinos –Unisinos. Campus de São Leopoldo (RS): Av. Unisinos, 950, Cristo Rei (CEP 93022 750).

Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@ unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vice-reitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Micael Vier Behs.

2. Editorial ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | OCUPAÇÃO MAUÁ | MAIO DE 2023
NATHALIA TORRIÊ ALIÊ

Direito à moradia (não) é garantido por lei

Comunidade liderada por irmãs é sinônimo de união entre os moradores

Ter uma moradia é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 e, depois de 35 anos de sua aprovação, ainda hoje muitas famílias vivem na rua, sem ter um lugar digno para morar.

Na Ocupação Mauá, em São Leopoldo, mais de 60 famílias convivem com a incerteza de ter um lar. O direito à moradia está incluso nos direitos sociais dos cidadãos brasileiros a partir da Emenda Constitucional nº 26/2000, mas os moradores da ocupação não têm garantido o cumprimento desta lei. Por diversas vezes, quem reside na Mauá teve sua permanência ameaçada por ordens de despejo, mas os moradores não se intimidaram e se mantêm firmes.

A Ocupação não é composta apenas por pessoas sem moradia das redondezas de São Leopoldo. A comunidade é formada por pessoas que não tinham mais condições de pagar aluguel, ex-moradores de rua e 17 famílias de venezuelanos, imigrantes que fugiram da situação de calamidade de seu país de origem e buscaram abrigo no Brasil. O que essas famílias têm em comum é que foram acolhidas por Vanusa Patrícia e Shauane Antunes de Sá, líderes da ocupação e integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM.

O Movimento (MNLM) existe há 32 anos e defende o direito constitucional à moradia e à reforma urbana no Brasil e está presente na luta da Ocupação Mauá desde 2021, quando entraram em contato para prestar apoio à ocupação que existia há um ano. Vanusa Patrícia conta que no início foi muito difícil, porque “muitos que necessitavam não recebiam terrenos para construir suas casas enquanto outros que não possuíam tantas necessidades ganhavam a oportunidade”.

Essa situação acabou por provocar insatisfação entre as famílias da ocupação, que precisavam de um terreno para construir sua casa e não eram contemplados. Vanusa explica, que ela e sua irmã Shauane

Bianca Antunes de Sá, manifestaram suas opiniões publicamente, discordando da forma em que os terrenos estavam sendo distribuídos, não priorizando os mais necessitados, por isso, “fomos escolhidas pelos moradores para assumirmos a liderança da ocupação Mauá”.

A ausência de instalação de água potável e de luz precariza ainda mais a situação dos moradores, que vivem com soluções provisórias. A Mauá não tem acesso digno à água, o que faz do desabastecimento uma constante na comunidade. Contudo, a união dos moradores faz com que muitas situações sejam contornadas: a construção de fossas em todos os terrenos é um exemplo dessa organização, ao mesmo tempo que demonstra o abandono social das autoridades.

Apesar das dificuldades, a solidariedade está presente: através da doação de materiais de construção e na ajuda que os moradores prestam uns aos outros quando um lote de terra é repartido. Além do apoio externo, que veio para evitar que os alagamentos comprometessem os lares das mais de 60 famílias. A comunidade recebeu diversos caminhões de entulho de uma empreiteira local, que se sensibilizou com a situação precária das ruas e pátios.

A Ocupação é o lar de muitas pessoas que não tinham onde morar, e é o desejo realizado de ter uma casa. Segundo Vanusa, “desde o início sempre teve fila de espera, tentamos ajudar de todas as maneiras, dividimos os terrenos, onde tem um espacinho sobrando a gente faz um terreno e doa”, relata a líder, que juntamente de sua família se esforça para criar um espaço comunitário para os moradores.

UM TERRENO PARA CONSTRUIR SUA CASA

Valdecir Adriano Ferreira, de 51 anos, é um dos primeiros moradores da Ocupação Mauá. Após um significativo processo depressivo, seu Preto, como é chamado por todos, perdeu o emprego de eletricista predial logo no início da pandemia de Covid-19. Neste momento delicado, ele também estava passando pelo fim

Valdecir, 51, sente orgulho do que conquistou e relembra as dificuldades que enfrentou até conhecer Shauane e Vanusa, facilitadoras de sua residência na Mauá

de um casamento de muitos anos, foi quando deixou a casa onde morava. Como estava desempregado, “eu comecei a procurar, mas como é que eu ia procurar um lugar para morar sem emprego?”. Sua opção foi recorrer à Mauá.

Quando Valdecir chegou na ocupação existia outra liderança, obstáculo que resultou em dois meses de espera. Após esse tempo, ele foi contemplado com um terreno que media seis metros quadrados, tamanho padrão dos menores terrenos da Mauá. Em outubro de 2020 alguns moradores abandonaram seus terrenos por medo de despe-

jo, porque havia sido emitida uma ordem de desocupação. Nessa época Seu Preto se mudou para um terreno mais espaçoso, onde reside atualmente e mantém um pequeno comércio de terra para adubo e pedras de jardim, “quando eu comecei a empacotar essas terras e vender aqui, porque eu não tinha renda nenhuma”, relata.

Seu Preto reside sozinho na casa de poucos cômodos, mas tem como companhia diversas aves da espécie mini garnizé, “esses aqui são os meu bebês”, fala com carinho de seus animais de estimação. É neste ambiente

que ele se sente seguro, de onde sairia somente se pudesse ter algo próprio. Além disso, ele possui relação próxima com Vanusa e sua família. Por ser um homem calmo, Vanusa o descreve como: “a válvula de escape nas horas de tensão”, elogiando o vizinho e amigo.

Valdecir relata que não sairia da Mauá para residir em outra ocupação, para ele, a chance de despejo é menor do que em outros lugares. “Todos aqui têm uma história que se resume em não ter pra onde ir”, fala que reforça a ideia de que ocupações existem porque a lei de direito à moradia não se cumpre na prática. n

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | OCUPAÇÃO MAUÁ | MAIO DE 2023 Habitação .3
ANA PAULA DE OLIVEIRA ANA PAULA DE OLIVEIRA
“Todos aqui têm uma história que se resume em não ter pra onde ir”
NATHALIA JUNG NATHALIA JUNG ANA PAULA DE OLIVEIRA ANA
DE OLIVEIRA
Valdecir Ferreira Morador
PAULA

Famílias cobram educação de

Toda criança tem o direito de ter acesso à educação de qualidade, não importa a sua idade. De acordo com a lei brasileira, crianças devem ser matriculadas na educação básica a partir dos quatro anos. Porém, não é o que ocorre com entorno de 60 crianças que residem na ocupação Mauá, a falta de dinheiro e as complicações com locomoção são os principais empecilhos para que elas cheguem nas unidades escolares.

A ausência de acesso a direitos básicos exemplifica o caso da moradora Geisiele Severo, mãe de dois filhos, Bernardo de um ano e oito meses e Pedro de seis anos. Geisi conta que o mais velho conseguiu ir para escola, mas o “sorteio” da secretaria de educação o levou para uma unidade que se localiza muito longe do lugar onde moram. A prefeitura disponibiliza um ônibus para que as crianças sejam levadas até as escolas, mas, ela questiona como que “eu, como mãe, vou botar um menino de seis anos dentro de um ônibus, sozinho, com mais um bando de adolescentes de 16 e 17 anos”.

“Pedro chora quase todos os dias por não conseguir ir para a escola”

Geisiele Severo

Mãe de Pedro e Bernardo

”Pedro chora quase todos os dias por não conseguir ir para a escola”, lamenta Geisi. Não é difícil de compreender os motivos que impedem essa mãe de mandar seu filho para escola. É uma história que muitas famílias da comunidade se identificam. No dia da entrevista, Pedro não estava presente, mas Geisi contou que ele tem muitos materiais escolares que recebeu de doações ou como presentes dos parentes, e se orgulha de cada um que guarda na mochila esperando ansiosamente a volta à escola.

Acima, Camilla alegre por ficar em casa. Enquanto Geisi fica à vontade na frente da câmera, Bernardo, tenta entender o que acontece em volta

Pedro, que é o mais velho, ajuda nos afazeres da casa, mas, mesmo assim, não se desgruda do seu caderno de desenho, que é o que mais ama fazer. Enquanto isso, o mais novo, Bernardo, neste ano frequenta uma creche que fica em tempo integral. Diferente de 2022, que frequentava apenas meio turno, o que atrapalhava para que Geisi pudesse trabalhar.

Pedro não está indo à escola, além do custo com transporte, a mãe foi avisada de que tinha uma vaga numa unidade e quando foi confirmar a disponibilidade na secretaria de educação, a vaga já tinha sido ocupada.

“A primeira vaga seria para a escola Maria Edila, depois me prometeram na escola Edgar Coelho que seria mais longe, mas ainda não seria no centro da cidade como antes.

Vamos gastando dinheiro de passagem indo e voltando na secretaria para cobrar as vagas das nossas crianças, isso se torna cansativo”, reclama a mãe de Pedro.

Outra mãe, Janaina Kuhn, também enfrenta dificuldades para manter a filha

Camilla Vitória na escola. não seria bem a palavra mas obviamente eles ção, diversão e obviamente lanche que talvez seja ta, porque mexe na mida da casa”, comenta Camilla frequentava a Escola Municipal de (EMEF) Doutor Mário do viaduto do Rio dos caminhando, dava em de ida e mais 20 de volta, que sair muito cedo de ruas que são um perigo. ficar afastada por ficar reclama A filha, não sente escola como de desenhar não tinha que sinto projeto ne”. O projeto se refere, Vanusa Sá e Shauane nes, líderes realizado durante o resumia em elas passarem na área de português para os pequenos da Além dos conteúdos tas muitas brincadeiras, envolvendo água devido raturas registradas durante

OS DESAFIOS DE QUE SÃO O ALICERCE DENTRO DE CASA

Dentre tantas histórias angústias e até mesmo nhados, mães se tornaram provisadas. Mulheres as dificuldades de administrar plementar métodos tempo para entreterem de suas casas. A ida a ainda é uma luta para muitas

A rotina inclui idas médicas e cuidados com dos filhos. Jéssica Kuhn, 2 anos de idade, e do conta que está grávida ela sozinha é quem cuida casa e busca dentro do mais velho a se interessar Enquanto isso, no mesmo mais novo é entretido tão querido cavalo de de “Valo”, que ele não fiel companheiro nas Ao intercalar brincadeiras lhotes de cachorros jogar no celular e desenhar, ta um pouco do que

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | OCUPAÇÃO 4. Educação
Mães falam sobre de ficar com os

de qualidade para as crianças

sobre as dificuldades os filhos em casa

escola. “Dificuldade palavra que eu usaria, eles têm mais educaobviamente eles têm o seja o que mais afequantidade de cocomenta Janaina. frequentava até o ano passado Ensino Fundamental Sperb, que fica depois dos Sinos. “A gente ia em torno de 20 minutos volta, então tínhamos de casa e atravessar as perigo. Agora ela teve que longe e não ter vaga”, reclama Janaina. filha, Camilla Vitória, sente tanta saudades da como Pedro. “Eu gosto desenhar e estudar, mas tinha muitos amigos, o sinto falta mesmo é do da Vanusa e Shauaprojeto a que a criança refere, foi oferecido por Patrícia Antunes de Shauane Bianca Antulíderes da comunidade, verão de 2023 e se passarem o que sabiam, português e de matemática, da Ocupação Mauá. oferecidos, eram feibrincadeiras, principalmente, devido às altas tempedurante o verão.

DE MÃES ALICERCE CASA

histórias compartilhadas, mesmo sorrisos envergotornaram professoras imMulheres que relatam sobre administrar o lar, imeducacionais e ter o entreterem as crianças dentro ambientes escolares muitas famílias. idas e vindas de consultas com as tarefas escolares Kuhn, mãe do Pedro de Davi Tiago de 8 anos, grávida de 7 meses e que cuida das crianças da do lar auxiliar o filho interessar pelos estudos. mesmo período, o filho entretido com brinquedos e o de borracha, apelidado não desgruda e é seu nas brincadeiras.

brincadeiras com os fino pátio onde mora, desenhar, Davi congosta: "Antes tinha

o Projeto Verão, que tinha futebol. Sinto falta de jogar bola com os amigos.”

A Ocupação Mauá é um espaço familiar, que abrange mães, pais, avós e crianças. Em meio às dificuldades, buscam encontrar, no local em que vivem, o espaço ideal para driblar a escassez de ensino de qualidade, a falta de transporte escolar e até mesmo de ambientes de lazer para o divertimento e a aprendizagem.

A forma sucinta de compartilhar um pouquinho de seu estilo de vida é uma marca de Fernanda Franciele, mãe da pequena Natasha de 3 anos de idade, que frequenta uma creche próxima à ocupação. Ela também é a responsável por cuidar do sobrinho Matheus, de 8 anos de idade. O menino frequentou o ambiente escolar somente na primeira série do ensino fundamental e ainda não sabe ler e escrever, mas tem desenvoltura para compartilhar que a escola deixou saudades, principalmente o recreio com os colegas e a professora que, segundo ele, era muito querida. “Em casa eu gosto de desenhar e também andar de bicicleta”, conta Matheus com entusiasmo.

O tempo de Fernanda é dividido entre alimentar as crianças, auxiliar o sobrinho no aprendizado, e ficar de olho na filha quando ela está em casa, além de confeccionar fivelas de forma artesanal para a venda. “Eu possuo uma dificuldade em ensinar, muitas vezes não sei todos os conteúdos. Além disso, é preciso prestar total atenção na Natasha, e também preciso conciliar com o meu trabalho. Tudo ao mesmo tempo se torna difícil.”

A ocupação fica num local afastado da maioria dos serviços públicos do município de São Leopoldo. As famílias dependem de seus próprios meios e da união e solidariedade da comunidade para construir formas de educar os filhos e até mesmo implementar atividades recreativas para garantir o aprendizado e também o divertimento dos pequenos. Algumas vezes, é dentro da própria casa que se concentra todo o apoio para ensinar a ler e a escrever, e até mesmo tradicionais brincadeiras que auxiliam no desenvolvimento da criança.

É difícil para as mães que cuidam sozinhas de seus filhos, pois muitas vezes precisam levar as crianças junto nos atendimentos de solicitação nas instituições públicas de educação e de saúde, mesmo quando a presença desta criança é dispensável.

A escola, além de ser um lugar seguro, é o espaço adequado para se ter uma educação formal. O ambiente escolar socializa as crianças, além de que, para muitas famílias, contribui no complemento da alimentação. n

OCUPAÇÃO MAUÁ | MAIO DE 2023 .5
Mães e filhos relatam a rotina em suas casas, compartilhando os desafios da falta de ensino TORRIÊ ALIÊ AMANDA WOLFF LUCAS KOMINKIEWICZ

A força feminina dentro da comunidade Mauá

Sentadas na varanda de uma das primeiras casas da Ocupação Mauá, as irmãs Vanusa Patrícia Antunes de Sá, de 35 anos e Shauane Bianca Antunes de Sá, de 26, em um misto de sorrisos e lágrimas partilham suas histórias de lutas, de desafios e de vitórias.

Escolhidas por aclamação popular e de maneira unânime, as duas mulheres são as lideranças responsáveis por fazer os hectares de terra se tornarem lares seguros para aqueles que tiveram negado o direito à moradia e buscam na comunidade Mauá um refúgio. “Se faltar 1kg de feijão, 1kg de arroz, a gente tá aqui pra ajudar. Nós vamos dar um jeito. Tem outros [moradores] que têm família, mas não podem contar com elas, eles contam com a gente” relata Shauane.

As irmãs, moradoras da Mauá há três anos, sentadas em frente a casa, que construíram com as próprias mãos, pedaço por pedaço, contam eufóricas e com brilho nos olhos as suas conquistas, refletindo sobre os anos de uma luta que parece não ter fim, mas que continua por amor à causa: “Para nós, é muito difícil. É a mesma questão da água, isso é desumano. Eu choro e fico com raiva, porque, hoje em dia, as pessoas não enxergam isso. Pra eles, é muito fácil, muito prático virar as costas e não ver a realidade do ser humano e julgar”, conta Vanusa, sem conseguir conter as lágrimas.

O papel da liderança torna o caminho árduo e promove desafios quase diários. Desde a necessidade de provarem o seu valor como mulheres representantes da comunidade, como a desafiadora tarefa de mediar a vida e os conflitos de mais de 60 famílias: “É difícil, até agora, tem muitos homens que não aceitam a gente. Eles falam que a gente não manda, que a gente só faz. A gente não quer man-

dar em nada, a gente só quer o respeito pelo que a gente faz”, comenta Shauane.

O exemplo da força feminina, concretizado na imagem e no trabalho das duas lideranças, impactou diretamente a realidade de outras moradoras: “Muitas [mulheres] falam que se espelham em nós, pelo que nós somos e conseguiram ter coragem para ficar sozinhas”, conta Shauane, orgulhosa.

Entre as jovens mulheres moradoras, acompanhando atentamente esse emaranhado de narrativas, está Sábata Ester de Sá Lara, de 15 anos, filha mais velha de Vanusa.

Para ela, o trabalho da mãe e da tia não é só necessário, mas um exemplo a ser seguido. “Eu sempre falo pra ela: se um dia eu for metade da mulher que tu é, e vou ter muito orgulho de mim.

Só eu e ela sabemos o que a gente já passou.

Eu tenho muito orgulho", comenta Sábata, com lágrimas nos olhos e emociona quem escuta.

A adolescente divide o dia a dia com a tia e é um braço direito para a mãe dentro da

comunidade. Acostumadas a lutar por tudo que conquistaram, mãe e filha representam a história de muitas outras mulheres: “Eu fui mãe solteira, então a gente sempre foi muito unida. Eu sempre trabalhei muito. Ela [Sábata] foi meu porto seguro. Por ser mãe solteira, tu tem que aprender a lutar sozinha”, conta Vanusa.

Uma geração de mulheres fortes que têm sua origem na matriarca da família: Sueli Antunes, de 56 anos, mãe de Vanusa e Shauane, avó de Sábata. A mãe e avó, que hoje não mora na comu-

nidade, é a inspiração desse legado de força e determinação, carrega em sua trajetória as consequências de um câncer de mama, o abandono do marido e a criação solo de seus filhos e netos.

“Eu ensinei elas a trabalhar desde que eu tive câncer. Foi quando comecei a ensinar elas a fazerem as coisas, a lutar pela vida. Eu sempre achei que podia proteger elas, fazer tudo, dar tudo para elas, mas uma hora eu vi que não podia mais”, relata Sueli. Grande parte das adversidades, na comunidade Mauá, têm sido superadas através da

Da esquerda para a direita: Sábata, Vanusa, Sueli, Shauane e a pequena Agatha, três gerações de lideranças femininas

resiliência, da facilidade em se adaptar às mudanças, e da perseverança de seus moradores. As líderes comunitárias são obrigadas a superar limites e romper preconceitos sociais que desmerecem o papel das mulheres enquanto representantes e capazes. Shauane, Vanusa, Sábata e Sueli são os símbolos da força feminina: se conectam na luta de tantas outras mulheres que têm suas vidas marcadas pelos obstáculos, mas, também, pela solidariedade e cuidado ao próximo. n

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | OCUPAÇÃO MAUÁ | MAIO DE 2023 6. Liderança
Duas irmãs, líderes, lutam por uma vida melhor para os moradores NATHALIA
JUNG
“Essa é a nossa vida, um ajudando o outro”
Vanusa Antunes de Sá Líder comunitária

Projeto garante comida no prato de moradores

Cozinha comunitária na Ocupação Mauá gera gratidão em quem consome e em quem faz as refeições

Aequipe do Enfoque foi recebida pelas líderes da Ocupação Mauá, Vanusa Patrícia Antunes de Sá, de 35 anos, e Shauane Bianca Antunes de Sá, 26 anos, com um rico café da manhã, que incluía cacetinhos, mortadela, margarina e uma garrafa térmica grande de café recém feito, posto na mesa da área externa na casa de Vanusa.

As duas irmãs, além de desempenharem o papel de lideranças da Ocupação, estão à frente da cozinha comunitária na Mauá. O local onde os repórteres do Enfoque foram acolhidos, é o mesmo lugar em que cerca de 80 pessoas recebem uma refeição toda quarta e sexta-feira, através do projeto São Léo Mais Comida no Prato, da Prefeitura Municipal. Mas, antes mesmo do programa ser lançado, em junho de 2022, a cozinha comunitária, criada pelas irmãs, já desempenhava o papel de levar refeições aos moradores da Mauá.

A ocupação surgiu em agosto de 2020, em plena pandemia de Covid-19, próxima à Avenida Mauá. Poucos meses depois, em novembro, já estava ativa a cozinha comunitária das 17 famílias que iniciaram morando no local. “No início, a gente não tinha uma cozinha, era um galpão de lona na frente da minha casa”, explica Shauane. A irmã, Vanusa, complementa contando como era o fogão improvisado: “nós colocamos umas pedras, catamos lenha e pegamos emprestado um panelão, e ali nós fazíamos galinhada, feijoada…”. Shauane recorda que “todo mundo trazia um pouquinho”.

É este espírito de solidariedade e ajuda ao próximo que mantém viva a cozinha comunitária na Mauá. Além das irmãs, a mãe das duas, Sueli Antunes, de 56, e a filha de Vanusa, Sábata Ester de Sá Lara, de 15, também fazem parte do projeto. “Quando surgiu a ideia da cozinha eu falei pra elas ‘eu que vou cozinhar, eu vou fazer a comida’”, fala Sueli. A mãe das líderes da Ocupação é quem

mais fica à frente no preparo dos almoços. “É gratificante fazer parte da cozinha comunitária. As pessoas falam pra mim ‘Deus te abençoe e abençoe tuas mãos pelo o que tu faz, isso que tu está fazendo não tem preço’”, conta.

Hoje, a cozinha não funciona mais no pátio de Shauane, mas nos fundos da casa de Vanusa.

Pelo espaço ser pequeno, somente as quatro integrantes da família cozinham e auxiliam no preparo dos alimentos. Apesar disso, o sonho é maior: “quando formos pro galpão, pretendemos chamar muito mais gente. Aí, vamos ter uma escala para todas

as mulheres que não tem emprego ajudarem”, diz Vanusa. O ‘galpão’ é uma meta de todos da comunidade e seria um espaço de convivência dos moradores da Mauá, além de uma nova e maior estrutura para a cozinha comunitária.

Antunes Cozinheira no projeto São Léo Mais Comida no Prato

No dia da entrevista, a Ocupação possuía apenas as telhas para esta construção. No decorrer da semana, a ONG Cidadania e Moradia, dos funcionários da Caixa Econômica Federal, por intermédio de representante da Rede Solidária São Léo, liberou 23 mil reais para o projeto do galpão. Para as lideranças, a maior dificuldade não é ad-

Vanusa e Sueli comandam a cozinha comunitária da Ocupação Mauá. À direita, o local onde são preparadas refeições para cerca de 80 pessoas, todas as quartas e sextas-feiras

quirir ingredientes para a produção das refeições, mas sim os dias chuvosos, em função da comida ser servida na área externa da casa da Vanusa. Por isso, o galpão da comunidade irá sanar esta e outras necessidades dos moradores.

AUXÍLIO GARANTE INGREDIENTES

O programa São Léo Mais Comida no Prato auxilia na compra de comida e ajuda na continuação da cozinha da Ocupação. A prefeitura encaminha verba mensal a 26 cozinhas comunitárias e com esse valor, as lideranças de cada comunidade realizam as compras dos ingredientes necessários para o preparo das refeições. Sábata, filha de Vanusa, conta com alegria sobre fazer parte do projeto: “saber que as pessoas têm ali-

mento garantido toda quarta e sexta, é muito gratificante. Às vezes as pessoas contam só com esse alimento no dia delas”. Ela ainda reforça como a casa dela e da mãe é um ponto de referência quando moradores precisam de auxílio. “Nesses dois dias, as pessoas sabem que vão ter comida e que elas podem vir pra cá. E a gente não tinha isso, de poder pegar comida em outro lugar. Agora com o Comida no Prato, isso é possível!”. A verba permanente da prefeitura e a doação de um fogão e um forno industrial - realizada no início de 2023, pelo deputado federal Dionilso Marcon, do Partido dos Trabalhadores (PT) - auxiliam no funcionamento da cozinha comunitária da Mauá. Porém, para elas, o que mais motiva a continuidade do trabalho é a gratidão e a satisfação em ajudar e ver resultados. Vanusa se emociona ao falar da fome que as pessoas passam. “A gente nunca passou fome, mas tu ver uma criança não tendo um prato de comida pra comer, é muito difícil. Isso é desumano, é a palavra que eu uso sempre. É desumano um filho meu ou de alguém não ter um litro de leite para tomar”, diz, em lágrimas.

Sueli, que tem orgulho de chefiar o preparo das refeições, diz que mesmo quando há poucos ingredientes, coloca temperos comprados com o próprio dinheiro para entregar um alimento gostoso e feito com carinho. “Saio cansada de cozinhar, mas com o sentimento de dever cumprido. O dia que eu não posso vir [na cozinha], eu fico com a consciência pesada”, conta.

Já Vanusa, diz que na Ocupação nunca são preparadas poucas porções de comida, independente da quantidade de itens para o preparo: “aqui pode faltar água e luz, mas comida nunca mais faltou, graças a Deus”. Apesar de ainda enfrentarem algumas dificuldades, afirma que a alegria em ver alguém feliz por receber uma refeição paga o esforço de todas elas. Vanusa finaliza: “Só de ver uma criança comendo feliz… sabe o que é isso? Não tem preço!”. n

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | OCUPAÇÃO MAUÁ | MAIO DE 2023
Economia
KAROLINA BLEY LUCAS KOMINKIEWICZ
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“Saio cansada de cozinhar, mas com o sentimento de dever cumprido”
Sueli

Com o objetivo de juntar o dinheiro para a viagem de dona Zulay de Roraima para Porto Alegre, o imigrante pretende realizar uma vaquinha

Atualmente Jesus trabalha como auxiliar de produção em uma empresa siderúrgica, em Esteio. Na Venezuela, ele trabalhou como soldador, pois fez cursos na área. No Brasil, sua certificação não é aceita: "eu preciso fazer um novo curso, mas ainda não fiz por não ter dinheiro e nem tempo”. A busca por qualificação profissional, contudo, não é o principal objetivo de Jesus: a preocupação com a mãedona Zulay que segue vivendo em Caracas - lhe tira o sono mais do que a precariedade da casa da família - “eu mando dinheiro para ela poder viver na Venezuela, enquanto não conseguimos trazê-la para o Brasil, pois a situação lá está bem complicada.”

TENTANDO TRAZER A MÃE PARA O BRASIL

Jesus sonha em trazer a mãe para o Brasil

Venezuelano vive na comunidade há 4 anos com sua esposa e três filhos

Atualmente, residem 17 famílias de imigrantes venezuelanos na Ocupação Mauá. Uma delas é a de Henry Jesus Bastidas Galindo, formada por sua esposa, Julimar Der Carmo Rodrigues e os três filhos do casal, Juliane Estefânia, de 5 anos, Jesus Jonier, de 3 anos e Josué Manuel, de apenas 1 ano. Há quatro anos construíram sua moradia e fazem parte da comunidade.

A ideia de vir para o Brasil partiu de Julimar Der Carmo, que em função da situação econômica da Venezuela, da precariedade do sistema público de saúde e da dificuldade de Henry Jesus em conseguir um emprego, tomou a iniciativa. Ela estava grávida e decidiu que a melhor opção para a família seria imigrar. Jesus inicialmente não concordou com a esposa, mas após

muita insistência dela, decidiram deixar o país.

Jesus e Julimar entraram no Brasil pela divisa com Roraima, no norte do país. Eles tiveram o auxílio da ONU ACNUR, que ajudou no transporte e na infraestrutura básica de chegada: “a ACNUR é o alto comissariado da ONU para a migração e refúgio, o objetivo deles é acolher e receber migrantes de diferentes nacionalidades”, explicou a representante da Rede de Solidariedade e professora da Unisinos, Isamara Allegretti. “Eles costumam custear o transporte para a cidade onde eles vão se fixar e no começo ajudam com alimentação, convênios com as prefeituras para a saúde e escola para as crianças. Não é tão simples assim como eu estou falando, mas tem esse objetivo e é um apoio muito grande que eles recebem”, ressaltou Isamara. No percurso até o Brasil, Jesus e Julimar passaram fome, insônia, e muito frio: “até chegar na fronteira com

o Brasil foi bem difícil. Na época em que viemos da Venezuela para cá, era inverno, pegamos chuva, ela estava grávida, perdemos quase todas as nossas coisas, chegando em Roraima nós dormimos na rua, por uns 2, 3 meses”.

Após ficarem por um tempo no norte do país, a família, com a ajuda de um colega venezuelano, conseguiu vir para o Rio Grande do Sul, vivendo inicialmente em Porto Alegre. Com o aumento do aluguel, se tornou inviável viver na capital: “eu pagava um aluguel muito alto em Porto Alegre, que era de 400 reais por mês e depois aumentou para 600 reais, mais a água e a luz, para mim ficou sem condições, meus filhos e minha mulher já estavam passando fome”, relata Henry Jesus.

A situação estava insustentável. Uma colega indicou para Jesus a ocupação Mauá, então ele entrou em contato com Vanusa Patrícia Antunes de Sá, que junto de sua irmã, Shauane Bianca, coordenam a comunidade. As irmãs disponibilizaram um terreno para que ele pudesse morar com sua família. “Quando cheguei aqui era só mato, não tinha nada ainda, fui um dos primeiros moradores, cheguei aqui, só limpei a vol-

ta, coloquei uma lona preta e amarrei, botei uma lona laranja em cima. Tinha uma filha com 1 ano de idade, era inverno, aí eu me estabeleci com minha família aqui e pouco a pouco fui, com a ajuda das pessoas da comunidade, conseguindo melhorar a minha casa”.

Um dos primeiros moradores da ocupação, Jesus contou que é um lugar muito bom para viver, as pessoas são muito unidas, sempre se ajudam. As dificuldades que os moradores da Mauá enfrentam decorrem da ausência do Estado: falta de saneamento básico, água encanada e sistema de iluminação pública.

Zulay Galindo tem 53 anos e vive sozinha em Caracas, capital da Venezuela, ela sobrevive com dificuldades, dependendo muito da ajuda do filho. Além dela, Jesus também tenta trazer a filha de sua esposa, uma menina de 11 anos, chamada Valerí Estefânia.

O grande esforço de Jesus tem sido o de guardar dinheiro para conseguir trazer a mãe para o Brasil, mas ainda não conseguiu juntar o valor necessário. Recentemente, a última ideia que teve - com a ajuda da líder comunitária Vanusa - foi criar uma Vaquinha para arrecadar fundos. O grande empecilho, porém, são os altos valores de uma passagem para trazer as duas de Roraima até o Rio Grande do Sul.: Por exemplo, o ticket de ônibus de Roraima até Porto Alegre custa R$ 500,00 reais e uma passagem de avião, para o mesmo trajeto, custa em torno de R$ 3.000,00 reais. Otimista com a nova possibilidade de arrecadação de dinheiro, Jesus espera trazer a mãe e a enteada para o país até dezembro. n

Português para migrantes

Como uma forma de inserir os migrantes no mercado de trabalho e na cultura local, tem sido oferecido pela Prefeitura de São Leopoldo, por meio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, em parceria com a Unisinos e o SENAC, um curso, de curta duração, de português para estrangeiros. Veja, a seguir, as principais informações sobre o curso:

l Período de aulas: De março a julho

l Local das aulas: Senac- SL (Rua Lindolfo Collor, 835 - Centro, São Leopoldo)

l Total de encontros: 16 aulas presenciais + 5 aulas online

l Duração das aulas: 2h (19h às 21h)

l Mais informações podem ser solicitadas para a Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Leopoldo (Sedhu) pelos telefones: 2200 0265 ou 2200 0266.

MAIO DE 2023 EDIÇÃO 1 OCUPAÇÃO MAUÁ ENFOQUE SÃO LEOPOLDO
ARTHUR MOMBACH SCHNEIDER LUCAS KOMINKIEWICZ
“Eu mando dinheiro para ela poder viver na Venezuela, pois a situação lá está bem complicada”
Henry Jesus Galindo Imigrante venezuelano

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